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Prostituição e espaço urbano: a perspectiva “putafeminista” nos escritos de três prostitutas ativistas brasileiras1 1 O presente trabalho foi realizado com apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) - Código de Financiamento 001.

Prostitution and urban space: the “putafeminista” perspective in the writings of three Brazilian activist prostitutes

Resumo

Colaborando com a busca de novos referenciais epistemológicos que contribuam para o avanço da produção de conhecimento sobre prostituição e espaço urbano, este artigo se volta para os escritos de três prostitutas ativistas brasileiras - Gabriela Leite, Amara Moira e Monique Prada - sobre prostituição, gênero, sexualidade, espaço urbano e feminismo, a fim de acessar o contexto de formação e questões formuladas pelo “putafeminismo”, movimento criado e fomentado por prostitutas que pressionam os limites do feminismo ao propor que este se abra para o reconhecimento de seus saberes, vivências e demandas. Pretende-se, a partir disso, fomentar uma análise sobre a produção do espaço urbano pela prostituição, em um debate de gênero que visibiliza o lugar das prostitutas como usuárias e produtoras do espaço urbano e como sujeitas reflexivas de sua própria realidade.

Palavras-chave:
Cidade; Putafeminismo; Feminismo; Espaço; Prostituição

Abstract

In order to collaborate with the search for new epistemological references that contribute to the advancement of knowledge production about prostitution and urban space, this article uses the writings of three Brazilian activist prostitutes - Gabriela Leite, Amara Moira and Monique Prada - about prostitution, gender, sexuality, urban space and feminism to access the emergence context and some of the propositions raised by “putafeminismo”, a movement created and fostered by prostitutes who have been pushing the limits of feminism by proposing its opening for the recognition of their knowledge, experiences and demands. The aim is to contribute to an analysis of the production of urban space by prostitution within a debate on gender that recognizes the place of prostitutes as users and producers of the city, as well as thinkers of their own reality.

Keywords:
City; Putafeminismo; Feminism; Space; Prostitution

1. Introdução

A partir das décadas de 1970 e 1980, no cenário internacional e no Brasil, respectivamente, alguns grupos de prostitutas passaram a transgredir as fronteiras espaciais e simbólicas que ocultam suas identidades e presenças nas cidades. Elas começaram a se organizar coletivamente, a fim de disputar na arena pública as noções dominantes construídas sobre o seu trabalho, reivindicando o lugar de sujeitas de sua própria história (BARRETO, 2015BARRETO, L. C. "Somos sujeitas políticas de nossa própria história": prostituição e feminismos em Belo Horizonte. Tese (Doutorado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas. Florianópolis, 2015.). Desde então, a relação entre o movimento de prostitutas e as vertentes mais hegemônicas do feminismo tem se caracterizado por apresentar tensões, conflitos e oposições entre as visões sobre prostituição defendidas por cada grupo.

Grupos feministas têm sido, em alguns casos, os principais agentes que obstaculizam a luta das putativistas, ao mesmo tempo que defendem políticas públicas de controle, vitimização e criminalização da atividade, algo que reproduz a condição de subalternização (SPIVAK, 2014SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar?. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.) das prostitutas. Por outro lado, prostitutas em todo o mundo têm, cada vez mais, disputado espaços e feito alianças dentro do feminismo, pressionando seus limites ao reivindicarem a si mesmas e à sua luta como feministas - tal como outros grupos subalternizados de mulheres - e ao proporem a abertura do movimento ao reconhecimento de suas vozes, vivências e demandas - aspecto que pode ser visto na construção mais recente do que tem sido nomeado no Brasil e na Argentina de putafeminismo (PISCITELLI, 2016PISCITELLI, A. Conhecimento antropológico, arenas políticas, gênero e sexualidade. Revista Mundaú, n. 1, 2016, p. 73-90.; BLANCHETTE; SILVA, 2018BLANCHETTE, T.; SILVA, A. P. Classy Whores: Intersections of Class, Gender, and Sex Work in the Ideologies of the Putafeminista Movement in Brazil. Contexto Internacional, v. 4, n. 3, 2018, p. 549-571.).

Junto do acirramento da disputa por espaços dentro do feminismo, nota-se um crescente interesse por parte das prostitutas em produzir e divulgar escritos e reflexões que usem suas vivências de forma engajada e política para (re)pensar questões sobre prostituição, gênero, sexualidade e feminismo, promovendo uma “prostituição de saberes” (MOIRA, 2018bMOIRA, A. Prefácio: Prostituindo saberes. In: PRADA, M. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018b, p. 11-15., p. 15) ou uma “pedagogia feminista ‘descolonial’” (PISCITELLI, 2018PISCITELLI, A. Apresentação. In: PRADA, M. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018. p. 17-22., p. 17), apesar de ainda serem poucas as que conseguem ter seus trabalhos publicados em outros espaços que não as redes sociais e os blogs pessoais: “é interessante perceber que aos poucos vai se fazendo mais forte a vontade de inventarmos nós mesmas palavras, caminhos, perspectivas que falem sobre aquilo que vivemos ou deixamos de viver” (MOIRA, 2018bMOIRA, A. Prefácio: Prostituindo saberes. In: PRADA, M. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018b, p. 11-15., p. 14). Para Monique Prada, esse movimento indica que “são os nossos saberes, os saberes que trazemos sobre papéis sociais, gênero, sexualidade e corpo, que finalmente começam a ter lugar” (PRADA, 2018PRADA, M. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018., p. 81).

Este artigo se volta, especificamente, para as obras literárias de três prostitutas ativistas brasileiras - Eu, mulher da vida e Filha, mãe, avó e puta, de Gabriela Leite 2 2 Mulher cisgênera branca e de origem de classe média baixa. Cursou Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP) e começou a trabalhar como prostituta em 1973, vivendo durante 20 anos em zonas de prostituição de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Foi cofundadora da Rede Brasileira de Prostitutas, da ONG Davida e da grife de moda Daspu. Escreveu para a “Coluna da Gabi”, no jornal Beijo da Rua. (1992LEITE, G. S. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1992.; 2009LEITE, G. Filha, mãe, avó e puta: a história de uma mulher que decidiu ser prostituta. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.); Putafeminista, de Monique Prada3 3 Mulher cisgênera, branca, de origem de classe média baixa, escritora, prostituta, cofundadora da Central Única de Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais (CUTS), coeditora do projeto Mundo Invisível.org e assessora da ONU Mulheres - Brasil. (2018PRADA, M. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018.); e Se eu fosse puta4 4 O livro foi republicado em 2018, em edição revista e atualizada, com o título E se eu fosse pura?, segundo a autora, para que pudesse circular mais tranquilamente pelas casas das famílias brasileiras. , de Amara Moira5 5 Travesti branca, de origem de classe média, escritora, doutora em Crítica Literária pela Universidade de Campinas (Unicamp). Trabalha como prostituta na cidade de Campinas (SP) e como professora de literatura no curso Descomplica. (2018aMOIRA, A. E se eu fosse puta. São Paulo: Hoo Editora, 2018a. [2016]) -, que trazem importantes reflexões sobre a prostituição para o debate de gênero, sexualidade e feminismo e tensionam os limites do pensamento feminista - elemento presente desde os primeiros anos de existência do movimento de prostitutas até a conformação mais recente do putafeminismo no Brasil, situado, portanto, em quatro décadas de um histórico complexo de relações entre putativistas e feministas. Os escritos de Gabriela, Amara e Monique são aqui utilizados com o objetivo de, primeiramente, acessar e construir um quadro geral com algumas das questões formuladas pela perspectiva putafeminista no Brasil. Depois disso, tais assuntos são relacionados com uma análise sobre a produção do espaço urbano pela prostituição, conforme um debate de gênero capaz de reconhecer o lugar das prostitutas cis e trans6 6 O termo “cis” se refere à pessoa que se identifica com o mesmo gênero a que foi socialmente criada para se expressar, geralmente informado pelo órgão sexual reprodutor que seu corpo carrega; enquanto “trans” diz respeito à pessoa que se identifica com o gênero oposto ao qual foi criada para se expressar. como usuárias e produtoras da cidade, assim como sujeitas reflexivas de suas realidades.

O texto se fundamenta na produção de um conjunto de teóricas/os pós-coloniais, feministas e queers identificadas/os por Larissa Pelúcio (2012PELÚCIO, L. Subalterno quem, cara pálida? Apontamentos às margens sobre pós-colonialismos, feminismos e estudos queer. Contemporânea, v. 2, n. 2, 2012, p. 395-418.) como responsáveis pela construção de saberes subalternos nas universidades. Suas enunciações teóricas criticam a prevalência do privilégio do ponto de vista dos homens brancos europeus nas produções científicas das universidades ocidentalizadas, desafiando-as em um “esforço para prover outra gramática, outra epistemologia, outras referências que não aquelas que aprendemos a ver como as ‘verdadeiras’ e, até mesmo, as únicas dignas de serem aprendidas e respeitadas” (PELÚCIO, 2012PELÚCIO, L. Subalterno quem, cara pálida? Apontamentos às margens sobre pós-colonialismos, feminismos e estudos queer. Contemporânea, v. 2, n. 2, 2012, p. 395-418., p. 399).

2. Ponto de partida: ser prostituta e feminista

Nesta seção, são expostas algumas das reflexões produzidas por Gabriela Leite, Amara Moira e Monique Prada sobre a prostituição, em sua relação com os debates sobre gênero, sexualidade e feminismo, demonstrando que, desde os primeiros anos de existência do movimento de prostitutas até mais recentemente, com a conformação da perspectiva putafeminista, os limites do feminismo têm sido tensionados pelas prostitutas no Brasil. Inicia-se com a apresentação do pensamento de Gabriela Leite, que, apesar de não ser contemporânea do putafeminismo, já se autointitulava, anos antes, como puta feminista (BENTO, 2011BENTO, B. Política da diferença: feminismos e transexualidades. In: COLLING, L. (org.). Stonewall 40 + o que no Brasil?. Salvador: EDUFBA, 2011, p. 79-110.; PRADA, 2018PRADA, M. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018., p. 80). Posteriormente, a perspectiva putafeminista é então acessada pelos escritos de Amara Moira e Monique Prada, duas de suas expoentes no Brasil.

Gabriela Leite foi uma grande defensora do reconhecimento da liberdade de escolha da mulher para exercer a prostituição e construir sua autonomia nessa atividade, entendida, de sua perspectiva, como um trabalho de importante função na sociedade no que se refere às fantasias sexuais, ao campo do desejo e do prazer. Criticava o olhar dominante que justifica a existência da prostituição apenas pelo viés da pobreza e como última opção de sobrevivência da mulher e traçava relações entre a forma de existência da prostituição e o modo como a sociedade constrói os papéis de gênero e sexualidade (LEITE, 1992LEITE, G. S. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1992.). Ela acreditava que o predomínio de uma sexualidade mal resolvida e cheia de moralismos cristãos na sociedade, na qual “vivemos uma eterna divisão entre a santa, a mãe dos filhos, e ‘as outras’, as ‘da vida’” (LEITE, 1992LEITE, G. S. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1992., p. 15), contribuía para a produção do estigma responsável por isolar a prostituta - aquela que ocuparia, ao mesmo tempo, o lado transgressor e libertário da prática sexual, por isso, precisaria incorporar uma dupla identidade e viver uma vida partida entre o pessoal/familiar e o profissional. Ou seja, deveria manter na clandestinidade o seu trabalho como meio de se proteger das discriminações e preconceitos em um ambiente propício para a ocorrência de diversas formas de exploração, de retirada de direitos e de violências.

Por essa razão, Gabriela Leite defendia o direito de as prostitutas se expressarem publicamente sobre o seu trabalho como forma de combater o estigma e como caminho para construir uma luta coletivamente organizada em direção a melhores condições de vida e à cidadania plena como sujeitas políticas de direitos, rompendo com a condição de vítima que a clandestinidade lhes impõe e, consequentemente, com a dupla identidade da mulher prostituta. Em 1987, junto com Lourdes Barreto, a putativista organizou o I Encontro Nacional de Prostitutas do Brasil, intitulado de Mulher da vida: É preciso falar - primeiro evento na América Latina criado por prostitutas e para que prostitutas pudessem debater publicamente as questões relacionadas à profissão, quando, então, surgiu o movimento autônomo de prostitutas no país. Na construção de uma identidade laboral pelo movimento, como via para a conquista de direitos, Gabriela ainda causou polêmicas entre as companheiras ao reivindicar a reapropriação política do termo “puta” - normalmente utilizado para produzir uma desqualificação social da mulher e justificar formas de violência contra ela -, com vistas a lhe dar sentidos associados à afirmação da prostituta como trabalhadora e sujeita política de direitos (LEITE, 2009LEITE, G. Filha, mãe, avó e puta: a história de uma mulher que decidiu ser prostituta. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.).

Apesar de Berenice Bento (2011BENTO, B. Política da diferença: feminismos e transexualidades. In: COLLING, L. (org.). Stonewall 40 + o que no Brasil?. Salvador: EDUFBA, 2011, p. 79-110.) e Barreto e Mayorga (2016BARRETO, L.C.; MAYORGA, C. Gabriela Leite - histórias de uma puta feminista. In: MESSEDER, S.; CASTRO, M.G.; MOUTINHO, L. (orgs.). Enlaçando sexualidades: uma tessitura interdisciplinar no reino das sexualidades e das relações de gênero. Salvador: EDUFBA, 2016, p. 287-307.) relatarem situações nas quais Gabriela Leite afirmava-se como feminista ou dava esse qualificativo à sua luta, ela não assumiu explicitamente essa identidade em seus livros; demonstrou, inclusive, ser crítica à visão das “feministas” sobre a prostituição em Eu, mulher da vida (1992). Sua crítica se dirigia mais especificamente para o viés abolicionista que havia começado a ganhar espaço no feminismo no Brasil a partir dos anos 1990 (PISCITELLI, 2016PISCITELLI, A. Conhecimento antropológico, arenas políticas, gênero e sexualidade. Revista Mundaú, n. 1, 2016, p. 73-90.), isto é, o contexto de publicação de seu primeiro livro autobiográfico.

Baseado na experiência comum de exploração das mulheres pelos homens na ordem patriarcal, o setor abolicionista do feminismo entende que a prostituição, por se configurar como uma relação sexual na qual o consentimento é mediado pelo dinheiro, funcionaria como uma “venda do corpo” (PRADA, 2018PRADA, M. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018.) pela mulher, portanto, uma forma de exploração sexual que a oprime ao torná-la objeto de consumo em prol do prazer masculino. A prostituta é construída como a vítima-protótipo do patriarcado; segundo esse viés, ela precisa se conscientizar sobre a opressão que vivencia e sair da prostituição - atividade a ser combatida e abolida - para emancipar-se. Ou seja, para o setor abolicionista do feminismo, não é possível que uma mulher seja prostituta e feminista, nem que ela se firme como sujeito na prostituição, nem que a luta do movimento das prostitutas por melhores condições de trabalho seja uma luta feminista (TAVARES, 2015bTAVARES, A. Movimento Feminista em disputa: paradoxos entre discursos nacionais e práticas regionais acerca do tema da prostituição no Brasil. Buenos Aires: CLACSO, 2015b.; PISCITELLI, 2016PISCITELLI, A. Conhecimento antropológico, arenas políticas, gênero e sexualidade. Revista Mundaú, n. 1, 2016, p. 73-90.).

A partir dos anos 1990, portanto, alguns grupos feministas começaram a adotar uma posição mais aberta de recusa à escuta das prostitutas ativistas, enquanto outros mantinham uma posição ambivalente ao reconhecer, por exemplo, a autonomia de Gabriela Leite de afirmar a prostituição como escolha e, ao mesmo tempo, determinar a prostituição como uma exploração contra a mulher, não reconhecendo Gabriela como feminista propriamente (PISCITELLI, 2016PISCITELLI, A. Conhecimento antropológico, arenas políticas, gênero e sexualidade. Revista Mundaú, n. 1, 2016, p. 73-90.). Por isso, as autodenominações públicas de Gabriela Leite como uma puta feminista, ou mesmo sua participação em debates com grupos de feministas, eram marcadas muitas vezes por situações de tensão e conflito (BENTO, 2011BENTO, B. Política da diferença: feminismos e transexualidades. In: COLLING, L. (org.). Stonewall 40 + o que no Brasil?. Salvador: EDUFBA, 2011, p. 79-110.; PISCITELLI, 2016PISCITELLI, A. Conhecimento antropológico, arenas políticas, gênero e sexualidade. Revista Mundaú, n. 1, 2016, p. 73-90.).

Devido à sua experiência militante com setores progressistas da Igreja Católica, como a Pastoral da Mulher Marginalizada, Gabriela Leite já conhecia bem e criticava o discurso abolicionista de vitimização da prostituta, que ela logo percebeu que estava impregnado no discurso feminista: “a mesma mentalidade preconceituosa nas feministas gera aquela ideia manjada (que não é marxista, segundo elas...) de que a prostituta ‘demonstra a grande exploração da mulher pelo homem’. Isto é pequeno em relação à vida, é uma visão estreita” (LEITE, 1992LEITE, G. S. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1992., p. 87). Segundo ela, “assim como no discurso da Teologia da Libertação e outros do gênero, tem sempre o maniqueísmo do explorado e do explorador, opressor e oprimido, mal e bem” (LEITE, 1992LEITE, G. S. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1992., p. 116), dicotomias insuficientes para a compreensão das complexidades da vida, “mais além dos livros e teses feministas” (LEITE, 1992LEITE, G. S. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1992., p. 87).

Na crítica de Gabriela à visão das “feministas” sobre a prostituição, percebe-se uma postura similar à de outros grupos de mulheres que têm sido excluídos do debate feminista, a saber, questionar o caráter universal com que o feminismo tem utilizado a categoria “mulher”, privilegiando o ponto de vista da mulher branca, burguesa e ocidental como representativo das experiências e opressões sociais comuns de todas as mulheres, sem considerar a diversidade de realidades. Isso fica evidente no trecho a seguir: “Se essas feministas burguesas pensassem com mais sinceridade na relação que elas têm com suas empregadas domésticas, talvez então conseguissem ter uma visão mais objetiva e menos bobinha sobre as relações de trabalho na prostituição e nas atividades femininas em geral” (LEITE, 1992LEITE, G. S. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1992., p. 170).

A visibilidade do setor abolicionista no movimento feminista no Brasil se intensificou a partir da metade dos anos 2000, com a disseminação de um debate público sobre o tráfico de pessoas e o turismo sexual - discussão que potencializou a visão da prostituição como uma forma de exploração, não de trabalho, sendo que o ataque contra o movimento de prostitutas e suas demandas vinha principalmente de um setor radical do feminismo (PISCITELLI, 2016PISCITELLI, A. Conhecimento antropológico, arenas políticas, gênero e sexualidade. Revista Mundaú, n. 1, 2016, p. 73-90.; TAVARES, 2015bTAVARES, A. Movimento Feminista em disputa: paradoxos entre discursos nacionais e práticas regionais acerca do tema da prostituição no Brasil. Buenos Aires: CLACSO, 2015b.). Ao mesmo tempo, putativistas em todo o mundo passaram cada vez mais a se identificar como feministas e, assim como outros grupos de mulheres, começaram a pressionar os limites do feminismo ao propor uma vertente que posicionasse a luta por direitos das prostitutas nas discussões sobre os direitos das mulheres, nomeada no Brasil e na Argentina como putafeminismo (PISCITELLI, 2016PISCITELLI, A. Conhecimento antropológico, arenas políticas, gênero e sexualidade. Revista Mundaú, n. 1, 2016, p. 73-90.; BLANCHETTE; SILVA, 2018BLANCHETTE, T.; SILVA, A. P. Classy Whores: Intersections of Class, Gender, and Sex Work in the Ideologies of the Putafeminista Movement in Brazil. Contexto Internacional, v. 4, n. 3, 2018, p. 549-571.).

Para Thaddeus Blanchette e Ana Paula da Silva (2018BLANCHETTE, T.; SILVA, A. P. Classy Whores: Intersections of Class, Gender, and Sex Work in the Ideologies of the Putafeminista Movement in Brazil. Contexto Internacional, v. 4, n. 3, 2018, p. 549-571.), o movimento putafeminista no Brasil se inseriu em um quadro de renovação de lideranças e reformulação das abordagens teóricas do movimento de prostitutas após a morte de Gabriela Leite em 2013. O putafeminismo se conformaria como uma aliança entre prostitutas ativistas, acadêmicas e feministas com o objetivo de fortalecer o ativismo das prostitutas por meio tanto do estabelecimento de redes com outros movimentos de classes trabalhadoras, feministas, LGBTQI+ e anticarcerários, comprometidos com a democracia e com a luta contra o neoliberalismo, quanto da multiplicação de espaços nos quais as prostitutas pudessem falar por si mesmas, em vez de serem faladas (BLANCHETTE; SILVA, 2018BLANCHETTE, T.; SILVA, A. P. Classy Whores: Intersections of Class, Gender, and Sex Work in the Ideologies of the Putafeminista Movement in Brazil. Contexto Internacional, v. 4, n. 3, 2018, p. 549-571.).

Inserida no contexto de surgimento do putafeminismo no Brasil, em seu livro de 2016, Amara Moira se posiciona contrária à visão da prostituição de um setor específico do feminismo - não mais das “feministas” no geral - que ela chama de conservadorismo radical, radcon, ou “um feminismo que se diz radical”, para o qual “é um absurdo alguém defender que mulheres possam vender prazer a um homem, negociar esse prazer, pôr a ele um preço. [...] a prostituta será sempre vítima, sempre ‘explorada’ pelo homem perverso vulgo seu cliente” (MOIRA, 2018aMOIRA, A. E se eu fosse puta. São Paulo: Hoo Editora, 2018a., p. 135). Ao mesmo tempo, Amara entende seu livro como uma contribuição para inaugurar uma nova vertente do feminismo, o putafeminismo, comprometido em “lutar para que tenhamos plenas condições de escolher o caminho que quisermos, seguir na prostituição sendo um deles [...]. Afinal, quem explora quem quando a prostituição é exercida sem risco de violência, sem o peso do estigma, com pagamento justo?” (MOIRA, 2018aMOIRA, A. E se eu fosse puta. São Paulo: Hoo Editora, 2018a., p. 135-136).

Posteriormente, o livro de Monique Prada, de 2018PRADA, M. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018., consolida o putafeminismo como uma vertente do feminismo (ou dos “feminismos”, como ela evidencia), situando a divergência com relação à prostituição entre prostitutas feministas e o radfem/feminismo radical/feminismo conservador como um ponto de conflito inserido no movimento feminista e estabelecendo, portanto, o espaço das prostitutas nos feminismos. Ao longo do livro, da perspectiva putafeminista, Monique Prada apresenta suas principais questões sobre a prostituição; ao mesmo tempo, faz uma revisão crítica da noção defendida pelas radfem, argumentando em defesa da luta do movimento de prostitutas como uma luta de todas as mulheres.

Nas primeiras páginas de Putafeminista, há uma citação da antropóloga argentina Dolores Juliano, na qual ela afirma que o estigma da prostituição não recai apenas nas prostitutas, nem necessariamente se relaciona com a atividade que elas desempenham em si, mas com o controle de todas as mulheres, que, diante da divisão entre santas e putas, se veem compelidas a incorporar o modelo socialmente construído da “mulher boa” e a se distanciar da imagem da prostituta em função dos preconceitos sociais que esta carrega. Ao cobrar pelo trabalho sexual e ainda exercê-lo fora do domínio do lar, quando supostamente deveria ser concedido de graça e apenas no casamento, junto com os trabalhos reprodutivo e doméstico, a prostituta rompe com as normas de gênero e sexualidade, por isso, é perseguida e marginalizada, tornando-se representante do modelo de “mulher má” (PRADA, 2018PRADA, M. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018.).

A partir da ideia de que “o estigma tem sido uma das estratégias mais eficazes de dominação patriarcal” (PRADA, 2018PRADA, M. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018., p. 35), isolando e punindo as mulheres que transgridem papéis normativos de gênero - “a Ofensa Madre, parecer uma puta, ser confundida com uma puta, ser chamada de puta” (PRADA, 2018PRADA, M. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018., p. 65) -, Monique desconstrói oposições e constrói aproximações e identificações entre as prostitutas, e suas lutas, com as demais mulheres e feministas, realçando a importância da escuta não seletiva das prostitutas, a fim de romper com o estereótipo da “puta imaginada” (PRADA, 2018PRADA, M. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018.).

Consciente de como o debate público recente tem associado de forma irresponsável termos como tráfico de pessoas e exploração sexual com a prostituição, Monique apresenta um marco conceitual para definir a prostituição, apontando para a necessidade de estabelecer limites e diferenças entre tal atividade e terminologias referentes a formas de crime: “De modo reto e descomplicado, podemos dizer que prostituição consiste no ato, por pessoas adultas e em condições de consentir, de trocar sexo por dinheiro ou outros bens, de modo regular ou ocasional. É basicamente uma prestação de serviço” (PRADA, 2018PRADA, M. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018., p. 49). Ao afirmar que nenhum trabalho exercido em nossa sociedade pode ser considerado de fato empoderador e emancipatório, ela situa a prostituição no rol dos trabalhos precários que, junto com o casamento, têm sido das poucas opções na ordem capitalista patriarcal para que mulheres, muitas vezes chefes de família, de pouca escolaridade e provenientes de classe social baixa, construam sua independência financeira, bem como assumam a posição de mantenedoras de suas famílias, sejam gestoras de seus bens e, assim, conquistem alguma mobilidade social.

Numa sociedade em que a mulher branca recebe cerca de 30% a menos que um homem branco pelo mesmo trabalho - a disparidade entre os salários de um homem branco e de uma mulher negra para a mesma atividade é ainda maior -, sem esquecer da dificuldade de inserção e de ascensão das mulheres no mercado de trabalho formal, o trabalho sexual costuma ser, entre os trabalhos informais, aquele que melhor remunera as mulheres, mesmo as que têm pouco estudo ou qualificação. Esse é um dos motivos pelos quais muitas de nós ainda o exercemos, apesar dos riscos e preconceitos (PRADA, 2018PRADA, M. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018., p. 60). 7 7 De acordo com o levantamento do PNAD/IBGE, em 2015, o rendimento médio mensal de trabalhadoras negras foi cerca de 40% do valor de trabalhadores brancos. HELENE, D. Gênero e direito à cidade a partir da luta dos movimentos de moradia. Cadernos Metrópole, v. 21, n. 46, p. 951-974, 2019.

No caso da mulher trans ou travesti, o processo de marginalização social acontece pelo fato de seus modos de existência, em si mesmos, já expressarem uma ruptura com os padrões normativos de gênero e sexualidade; ele é usualmente relacionado a eventos como “perder família, amigos, círculo social, não ter um teto pra chamar de meu, o direito de continuar estudando, de poder buscar emprego que não fosse esse que não consideram emprego: puta8 8 Segundo dados da ANTRA, de 2019, apenas 4% das travestis e transexuais associadas possuem empregos formais com fluxo de carreira, sendo que 90% delas se dedicam à prostituição para obter alguma fonte de renda; as outras 6% se sustentam por meio de demais formas de trabalhos informais. BENEVIDES, B. G.; NOGUEIRA, S. (Orgs). Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2019. São Paulo: Expressão Popular, ANTRA, IBTE, 2020. ” (MOIRA, 2018aMOIRA, A. E se eu fosse puta. São Paulo: Hoo Editora, 2018a., p. 33). Diferentemente da mulher cis que consegue levar uma “vida partida” e esconder a profissão que exerce como forma de proteção contra o estigma, a mulher trans carrega o estigma de puta como uma “tatuagem na testa” (MOIRA, 2018aMOIRA, A. E se eu fosse puta. São Paulo: Hoo Editora, 2018a.), até mesmo quando não exerce a prostituição. Tendo iniciado sua transição durante o doutorado, Amara relata em seu livro que percebeu que não poderia seguir com a ideia de ser professora por ter assumido a identidade travesti. A prostituição aparecia como o lugar onde ela encontrava seus pares e ao qual se sentia de fato pertencente; por sua vez, os demais espaços pareciam cada vez mais hostis à sua presença, sendo esse um dos motivos para que ela ligasse o “foda-se” e se prostituísse, em vez de ficar apenas no “e se eu fosse puta” (MOIRA, 2018aMOIRA, A. E se eu fosse puta. São Paulo: Hoo Editora, 2018a.).

Mesmo que reconheça a possibilidade de agência da mulher de negociar com homens as práticas sexuais pagas e, assim, estabelecer relações de trabalho e não de exploração com eles, Monique Prada (2018PRADA, M. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018.) critica o discurso “[...] que defende a ideia de que, dentro do prostíbulo, a vida e a sexualidade acontecem de forma libertária” (PRADA, 2018PRADA, M. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018., p. 78), um entendimento mais próximo do pensamento de Gabriela Leite. Para Monique, como em outras relações de trabalho e até mesmo nas relações amorosas, machismo, misoginia e transfobia estão também presentes na prostituição, cuja condição clandestina tende a reforçar a dimensão da violência praticada contra as mulheres.

Os escritos de Amara Moira (2018aMOIRA, A. E se eu fosse puta. São Paulo: Hoo Editora, 2018a.) sobre os programas e seus clientes, os quais ela costuma chamar de “lixos”, revelam a dimensão da violência machista e transfóbica a que as prostitutas estão expostas na prostituição. A isso, misturam-se, também, experiências de prazer, liberdade e desejo, construindo um quadro complexo de relações na profissão, o que “fez gente ler indecência onde havia não mais que realismo vulgar, do mais pé-no-chão mesmo, coisa a que não anda tão acostumada a família tradicional brasileira” (MOIRA, 2018aMOIRA, A. E se eu fosse puta. São Paulo: Hoo Editora, 2018a., p. 107). O ato de identificar e combater violências de gênero na prostituição é visto pelas putafeministas como um passo necessário para superar aquilo que Monique denomina como a última fronteira do feminismo (PRADA, 2018PRADA, M. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018.).

Contudo, Monique Prada (2018PRADA, M. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018.) ressalta que o feminismo costuma chegar aos prostíbulos como um movimento que quer tirar a renda da prostituta. Ela critica as políticas defendidas pelo setor abolicionista do feminismo para exterminar a prostituição, segundo uma visão utópica de libertação das mulheres, o que gera o efeito distópico de empurrá-las para uma situação mais restritiva de possibilidades de escolha, para a clandestinidade ou para o cárcere. Políticas que, em função do estigma de puta, têm a capacidade de atingir todas as mulheres. Por outro lado, a autora enfatiza que a luta que o movimento de prostitutas tem construído, a partir da organização política de mulheres trabalhadoras que reivindicam o acesso a direitos e o combate do estigma como forma de conquistar melhores condições de vida, precisa ser encarada como uma luta que interessa a todas as mulheres, compondo uma parte das pautas feministas: “Lutar por políticas públicas que garantam às mulheres mais e melhores opções de vida, lutar por equiparação salarial entre homens e mulheres e lutar pelos direitos das trabalhadoras sexuais não são, não podem ser, excludentes” (PRADA, 2018PRADA, M. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018., p. 68).

Portanto, percebe-se que as críticas e os tensionamentos entre putativistas e feministas, devido à visão sobre a prostituição defendida por cada um dos grupos e sua relação com o feminismo, aparecem desde os primeiros anos de existência do movimento de prostitutas no Brasil, como demonstram os escritos de Gabriela Leite. Contudo, a construção mais recente de um movimento putafeminista trouxe novas formulações para esse histórico debate, algumas delas apresentadas nos livros de Amara Moira e Monique Prada. Como outros grupos de mulheres, as putafeministas têm estabelecido seu espaço nos feminismos, afirmando a condição plural de um movimento formado por mulheres de diferentes realidades e origens, propondo alianças e construindo argumentos sólidos para desconstruir oposições e gerar aproximações e identificações entre prostitutas e demais mulheres e feministas. A partir desse quadro geral sobre o putafeminismo, no qual a luta por direitos das prostitutas se associa, de forma nítida, com uma luta feminista de interesse de todas as mulheres, este artigo se direciona para questões que se voltam mais especificamente para a análise da produção do espaço urbano pela prostituição.

3. Feminismo, cidade e prostituição

Desde os anos 1980, teóricas europeias e norte-americanas têm construído perspectivas feministas no interior do campo dos estudos urbanos, de modo a reconhecer as relações sociais de gênero imbricadas na produção do espaço e a criticar a visão universalista adotada pelo planejamento urbano e pelo urbanismo moderno, que na prática toma como parâmetro o sujeito homem branco, cis-hétero e burguês para arquitetar modelos de cidade, sem considerar diferentes experiências, necessidades e usos urbanos determinados pelos papéis de gênero. O modelo de cidade modernista, em especial, tem sido bastante criticado, e aqui se destaca o famoso manifesto What would a non-sexist city be like? Speculations on Housing, Urban Design and Human Work, de Dolores Hayden (1980HAYDEN, D. What Would a Non-Sexist City Be Like? Speculations on Housing, Urban Design, and Human Work. Signs, v. 5, n. 3, 1980, p. 170-187.), no qual a autora analisa o contexto de construção dos subúrbios estadunidenses como zonas residenciais da classe média branca - uma construção fundamentada num projeto de expansão urbana de caráter rodoviarista e funcionalista que separava os locais de moradia, consumo e trabalho, além de - segundo uma concepção hegemônica de família, papéis sociais femininos e divisão sexual do trabalho - confinar as mulheres nas tarefas domésticas e de cuidado das crianças no âmbito privado da casa, segregando-as nas periferias da cidade.

No Brasil, mais recentemente, pesquisadoras da área de arquitetura e urbanismo também têm produzido trabalhos acadêmicos comprometidos em incorporar a perspectiva feminista nas análises sobre planejamento urbano, sendo elas conhecedoras do pensamento das teóricas do Norte Global, porém, atentas às particularidades das grandes cidades brasileiras, nas quais muitas mulheres, em grande parte chefes de família, de escolaridade e classe social baixas, possuem condições de vida agravadas por uma dinâmica de planejamento que produz cidades indiferentes à diferença (TAVARES, 2015aTAVARES, R. B. Indiferença à diferença: espaços urbanos de resistência na perspectiva das desigualdades de gênero. 2015. Tese (Doutorado em Urbanismo) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Urbanismo. Rio de Janeiro, 2015a. ). Diversas pesquisas demonstraram que a reprodução de desigualdades socioespaciais generificadas (HELENE, 2019HELENE, D. Gênero e direito à cidade a partir da luta dos movimentos de moradia. Cadernos Metrópole, v. 21, n. 46, 2019, p. 951-974.) tem como implicação a exposição cotidiana dessas mulheres a situações de violência policial e de falta de acesso à moradia digna, ao trabalho formal, à infraestrutura urbana, a equipamentos, serviços e transportes públicos de qualidade; em geral, elas ficam confinadas em bairros periféricos, favelas, ocupações ou zonas de prostituição (SANTORO, 2008SANTORO, P. F. Gênero e planejamento territorial: uma aproximação. In: ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, 16, 2008, Caxambu/MG. Anais do XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais. Caxambu (MG): [s.n.], 2008, p. 1-16.; GONZAGA, 2011GONZAGA, T. A cidade e a arquitetura também mulher: planejamento urbano, projetos arquitetônicos e gênero. São Paulo: Ed. Annablume, 2011.; TAVARES, 2015aTAVARES, R. B. Indiferença à diferença: espaços urbanos de resistência na perspectiva das desigualdades de gênero. 2015. Tese (Doutorado em Urbanismo) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Urbanismo. Rio de Janeiro, 2015a. ; HELENE, 2015HELENE, D. “Preta, Pobre e Puta”: a segregação urbana da prostituição em Campinas - Jardim Itatinga. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Rio de Janeiro, 2015., 2019HELENE, D. O movimento social das prostitutas e o direito à cidade para as mulheres. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero; Women’s Worlds Congress, 11; 13, 2017, Florianópolis. Anais... Florianópolis: [s.n.], 2017, p. 1-12. ; SILVA et al., 2017SILVA, N. A.; FARIA, D.; PIMENTA, M. Feminismo e o espaço urbano: apontamentos para o debate. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR, 17, 2017, São Paulo. Anais do XVII Encontro Nacional da Anpur. São Paulo: ANPUR, 2017. p. 1-17.).

No caso de pesquisas sobre prostituição e espaço urbano, Diana Helene (2015HELENE, D. “Preta, Pobre e Puta”: a segregação urbana da prostituição em Campinas - Jardim Itatinga. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Rio de Janeiro, 2015.; 2017HELENE, D. Gênero e direito à cidade a partir da luta dos movimentos de moradia. Cadernos Metrópole, v. 21, n. 46, 2019, p. 951-974.) afirma que a organização da atividade na cidade é um reflexo da divisão dicotômica das identidades femininas entre “mulheres boas” e “mulheres más”, controladas pelo que Gail Pheterson (1996PHETERSON, G. The prostitution prism. Amsterdam: Amsterdam University Press, 1996.) denomina de estigma de puta. Segundo Margareth Rago (1990RAGO, M. Os prazeres da noite: Prostituição e Códigos da Sexualidade Feminina em São Paulo (1890-1930). 1990. Tese (Doutorado) - Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 1990.), o conceito moderno da prostituição funcionou como uma forma de delimitação no espaço urbano de duas identidades femininas bem definidas e separadas: a mulher de família e a mulher pública, em um contexto em que a mulher de família era incentivada a ter uma presença mais constante no espaço público, desde que sua circulação pela cidade fosse condicionada à realização de atividades relacionadas com a organização do lar e o desempenho da maternidade.

No contexto de modernização das cidades brasileiras, a criação de “zonas confinadas” se popularizou como política urbana voltada à organização da prostituição, a partir da qual seria escolhido um setor urbano bem delimitado e escondido para servir ao uso tolerado da prostituição. As prostitutas ficariam confinadas nesse setor, enquanto as “mulheres de família” permaneceriam no âmbito da casa, realizando tarefas domésticas e de cuidado das crianças, ocasionalmente, circulariam pelos espaços públicos externos à zona. As “zonas confinadas” funcionariam para delimitar, portanto, os espaços específicos da cidade ocupados por “mulheres direitas” e prostitutas, sob risco de penalização quando as barreiras fossem transpostas. Já o homem era incentivado a circular entre ambas as áreas (RAGO, 1990RAGO, M. Os prazeres da noite: Prostituição e Códigos da Sexualidade Feminina em São Paulo (1890-1930). 1990. Tese (Doutorado) - Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 1990.; HELENE, 2015HELENE, D. “Preta, Pobre e Puta”: a segregação urbana da prostituição em Campinas - Jardim Itatinga. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Rio de Janeiro, 2015.; SIMÕES, 2010SIMÕES, S. S. Vila Mimosa: etnografia da cidade cenográfica da prostituição carioca. Niterói: Eduff, 2010.).

Essa leitura feminista da organização da prostituição na cidade corrobora com a defesa do putafeminismo de que o estigma da prostituição é uma forma de controle que recai sobre todas as mulheres, e não apenas nas prostitutas - nesse último caso, serve para restringir os espaços da cidade pelos quais as prostitutas podem circular, demarcando, com limites físicos, “os espaços que podemos ocupar sem risco de violência física e desgraça pública” (PRADA, 2018PRADA, M. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018., p. 77). Apesar de a prostituta ser considerada a “mulher pública” por excelência, por exercer práticas sexuais fora do ambiente privado, Monique Prada (2018PRADA, M. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018.) afirma que o prostíbulo é um ambiente de relativa domesticidade, frequentado principalmente por pais de família, o que reforça a complementariedade entre casamento e prostituição.

O uso dos pares “mulher direita/prostituta” para organizar os espaços da cidade está associado a pares que agregam um diferencial de valor entre ambas as áreas - como “positivo/negativo”, “inclusão/exclusão”, “legal/ilegal”, “visível/invisível” -, e as prostitutas são bem conscientes de que “a sociedade quer que fiquemos no lugar que ela nos reservou, o único espaço possível para mulheres como nós: o espaço da precariedade, da exclusão, da marginalidade, da clandestinidade, da violência” (PRADA, 2018PRADA, M. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018., p. 35). O planejamento urbano se encarrega de localizar as “zonas confinadas” em áreas desvalorizadas tanto do ponto de vista simbólico quanto material (HELENE, 2015HELENE, D. “Preta, Pobre e Puta”: a segregação urbana da prostituição em Campinas - Jardim Itatinga. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Rio de Janeiro, 2015.), de modo que, além da condição de confinamento, as prostitutas precisam lidar com outros fatores que agravam sua condição de vida nas cidades. Gabriela Leite (1992LEITE, G. S. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1992., p. 126), que conheceu muitas zonas de prostituição no país, afirma que “a prostituição ocupa, em princípio, áreas desvalorizadas [...] casas [...] caindo aos pedaços [...] [e] no geral as questões são as mesmas, em todo o Brasil: saneamento básico, a área tolerada e a relação disso com subornos à polícia”.

A “qualificação pela negação” (ROSA, 2018ROSA, T. T. Pensar por margens. In: JACQUES, P.; PEREIRA, M. (org.). Nebulosas do pensamento urbanístico: Tomo I - Modos de pensar. Salvador: Edufba, 2018, p. 176-204.) atribuída às zonas de prostituição, baseada em uma leitura dicotômica da organização da prostituição na cidade, também legitima intervenções no espaço e violências praticadas contra as prostitutas pelo planejamento urbano, como é possível notar no caso das intervenções urbanas em zonas de prostituição devido a ações especulativas de revalorização de centros urbanos. Segundo Gabriela Leite (1992LEITE, G. S. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1992., p. 126), “existe uma característica arquitetônica interessante em todas as zonas brasileiras: estão fixadas no bairro histórico da cidade”, contudo, “essas áreas históricas, numa reviravolta urbana, tornaram-se interessantes e agora sofrem assédio da especulação imobiliária. [...] O que antes era velho agora torna-se antigo, e valorizar o antigo está na moda”. A justificativa frequente para a intervenção nessas áreas é reintegrá-las à cidade ou promover a “revitalização” urbana por meio da transformação e do ordenamento do espaço, geralmente acompanhados por remoções arbitrárias e processos forçados de periferização das prostitutas (LEITE, 1992LEITE, G. S. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1992.; PRADA, 2018PRADA, M. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018.; SIMÕES, 2010SIMÕES, S. S. Vila Mimosa: etnografia da cidade cenográfica da prostituição carioca. Niterói: Eduff, 2010.; HELENE, 2015HELENE, D. “Preta, Pobre e Puta”: a segregação urbana da prostituição em Campinas - Jardim Itatinga. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Rio de Janeiro, 2015.).

Por esse motivo, é importante que os estudos urbanos adotem a perspectiva das margens (ROSA, 2018ROSA, T. T. Pensar por margens. In: JACQUES, P.; PEREIRA, M. (org.). Nebulosas do pensamento urbanístico: Tomo I - Modos de pensar. Salvador: Edufba, 2018, p. 176-204.), de maneira a evidenciar novos nexos e relações de sentido das zonas com a cidade, ultrapassando as dicotomias. Isso já acontece nos escritos de prostitutas ativistas e pesquisadoras que adotam posturas de caráter etnográfico. Neles, a zona não aparece em um quadro dicotômico que a define apenas como espaço de precariedade, exclusão e marginalidade, mas como espaço de intensa socialização, onde as prostitutas constroem suas identidades individuais e coletivas, seus laços comunitários, sociais e econômicos com diversos atores da cidade (LEITE, 1992LEITE, G. S. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1992.; 2009LEITE, G. Filha, mãe, avó e puta: a história de uma mulher que decidiu ser prostituta. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.; SIMÕES, 2010SIMÕES, S. S. Vila Mimosa: etnografia da cidade cenográfica da prostituição carioca. Niterói: Eduff, 2010.; MOIRA, 2018aMOIRA, A. E se eu fosse puta. São Paulo: Hoo Editora, 2018a.; 2020MOIRA, A. A prostituição como trincheira trans. Revista Contraste, n. 6, 2020, p. 114-119.).

É preciso pontuar que muitas mulheres corroboram com a visão dicotômica que posiciona a prostituta como parte excluída da sociedade; elas concordam com a perspectiva de se manterem reclusas e de ocultarem do mundo externo a relação que têm com a prostituição, mantendo uma vida dupla, muitas vezes como forma de proteção contra a exposição a situações de conflito, preconceito e discriminação social envolvidas no exercício da profissão (LEITE, 1992LEITE, G. S. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1992.; SIMÕES, 2010SIMÕES, S. S. Vila Mimosa: etnografia da cidade cenográfica da prostituição carioca. Niterói: Eduff, 2010.; HELENE, 2015HELENE, D. “Preta, Pobre e Puta”: a segregação urbana da prostituição em Campinas - Jardim Itatinga. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Rio de Janeiro, 2015.). Desse modo, há a reprodução das divisões dicotômicas de gênero que organizam a prostituição nas cidades e, consequentemente, do controle do estigma de puta que recai sobre todas as mulheres e sobre os espaços em que circulam, contribuindo para a manutenção da condição clandestina, marginal e precária da prostituta no espaço urbano.

No caso das mulheres trans e travestis, que não conseguem manter uma vida dupla como a mulher cis e, por isso, são constantemente expostas a formas de violência e assédio nos espaços públicos externos à zona, a condição de confinamento como forma de proteção, sobrevivência e possibilidade de liberdade para construir sua identidade se torna ainda mais acentuada e difícil de contornar. Ciente da existência desses aspectos, Amara Moira (2020MOIRA, A. A prostituição como trincheira trans. Revista Contraste, n. 6, 2020, p. 114-119., p. 119) evidencia o papel da prostituição como a “trincheira trans”, espaço “onde temos podido subsistir pelas últimas décadas, sobrevivendo à política de extermínio levada a cabo tanto pelo Estado quanto pela sociedade civil”.

Contudo, o que se percebe na construção do movimento de prostitutas é que, a partir da ocupação da posição marginal que a sociedade tenta lhes impor, elas reconhecem sua importância e a de seu trabalho como parte integrante e vital dessa mesma sociedade, não como sua parte excluída, conforme afirma a visão dominante, daí não concordarem com os limites simbólicos nem físicos que lhes são impostos. Assim, instauram a “luta pelo nosso direito de ocupar espaços para além das esquinas - reais e simbólicas - nas quais temos sido historicamente segregadas” (PRADA, 2018PRADA, M. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018., p. 72). Essa luta ocorre pela afirmação da identidade de prostituta fora dos limites da zona como possibilidade de transformação de sua realidade, apropriando-se de sua marginalidade como espaço de abertura radical (HOOKS, 1989HOOKS, B. Choosing the Margin as a Space of Radical Openess. In: HOOKS, B. Yearning: Race, Gender and Culture Politics. Cambridge: South End Press, 1989, p. 203-209. ), que tem como potência, por exemplo, a produção de discursos contra-hegemônicos de modelos de cidade (HELENE, 2015HELENE, D. “Preta, Pobre e Puta”: a segregação urbana da prostituição em Campinas - Jardim Itatinga. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Rio de Janeiro, 2015.).

Na perspectiva putafeminista recente, a defesa do direito de ocupar todos os espaços da cidade pelas prostitutas se aproxima da luta pelo direito de todas as mulheres ocuparem todos os espaços da cidade. Isso envolve a ruptura com as divisões dicotômicas que organizam hierarquicamente a prostituição no espaço urbano e confinam as mulheres em geral nos espaços da cidade de acordo com o papel social feminino que elas desempenham, questionando, assim, o controle promovido pelo estigma da prostituição sobre os espaços pelos quais as mulheres circulam. Diana Helene (2017HELENE, D. O movimento social das prostitutas e o direito à cidade para as mulheres. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero; Women’s Worlds Congress, 11; 13, 2017, Florianópolis. Anais... Florianópolis: [s.n.], 2017, p. 1-12. ) defende a atuação do movimento de prostitutas como uma reivindicação do direito à cidade para todas as mulheres. Para a autora, as putativistas “estabelecem uma crítica a um certo modelo de cidade, ao mesmo tempo em que [sic] contestam um certo modelo de ‘mulher’” (HELENE, 2017HELENE, D. O movimento social das prostitutas e o direito à cidade para as mulheres. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero; Women’s Worlds Congress, 11; 13, 2017, Florianópolis. Anais... Florianópolis: [s.n.], 2017, p. 1-12. , p. 9-10), uma vez que “desestabilizam as fronteiras entre as dicotomias fictícias criadas pelo estigma de puta” (HELENE, 2017HELENE, D. O movimento social das prostitutas e o direito à cidade para as mulheres. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero; Women’s Worlds Congress, 11; 13, 2017, Florianópolis. Anais... Florianópolis: [s.n.], 2017, p. 1-12. , p. 8).

Na luta pelo direito de ocupar os espaços para além das esquinas, o corpo é uma dimensão importante como plataforma de profanação do espaço público (HELENE, 2017HELENE, D. O movimento social das prostitutas e o direito à cidade para as mulheres. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero; Women’s Worlds Congress, 11; 13, 2017, Florianópolis. Anais... Florianópolis: [s.n.], 2017, p. 1-12. ), contribuindo para a conquista de visibilidade na cidade pelas prostitutas. Cortés (2008CORTÉS, J. M. G. Políticas do Espaço: Arquitetura, Gênero e Controle Social. São Paulo: Editora Senac, 2008., p. 124) se baseia no conceito de performatividade de Judith Butler (2018BUTLER, J. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2018.) para apresentar o corpo como “um veículo metafórico pleno de significados” socioculturalmente construídos, os quais informam os papéis de gênero e sexualidade em determinado momento histórico. A partir disso, ele demonstra que a concentração repetitiva de corpos com signos específicos em determinado espaço acaba por conferir este último certos significados, ao mesmo tempo que tal espaço produzido informa o corpo que nele circula, também o produzindo (CORTÉS, 2008CORTÉS, J. M. G. Políticas do Espaço: Arquitetura, Gênero e Controle Social. São Paulo: Editora Senac, 2008.).

De acordo com Cortés (2008CORTÉS, J. M. G. Políticas do Espaço: Arquitetura, Gênero e Controle Social. São Paulo: Editora Senac, 2008.), a cidade seria organizada por usos sociais, leis, normas e instituições que restringem ou valorizam o acesso, a apropriação e/ou a visibilidade de determinados corpos no espaço e, consequentemente, restringem ou valorizam determinados espaços da cidade, interferindo no modo como as relações sociais são experimentadas no meio urbano e como o sujeito vê os outros e a si mesmo. Dessa maneira, “[...] nega a todos os setores que não participam da sua maneira de entender a sexualidade ou os gêneros o direito de ser vistos, identificados, representados, pois pretende torná-los invisíveis e silenciosos” (CORTÉS, 2008CORTÉS, J. M. G. Políticas do Espaço: Arquitetura, Gênero e Controle Social. São Paulo: Editora Senac, 2008., p. 133).

Contudo, na visão de Judith Butler (2018BUTLER, J. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2018.), o mesmo corpo sexuado que é produtor do/ produzido pelo espaço, e está sujeito a controle, ocultamento e violações pela política sexual que organiza a cidade, pode contestar essa política e reivindicar reconhecimento e direitos a partir de sua aparição na esfera pública. Para a autora, o corpo possui papel fundamental na reivindicação de condições menos precárias de vida ao possibilitar o exercício do direito plural e performativo de aparecer publicamente aos sujeitos não inteligíveis pela democracia moderna, contestando as normas de reconhecimento que lhes garantem acesso a direitos. Gabriela Leite identificava em sua trajetória de militante pelo direito das prostitutas a potência performativa dos corpos em aliança nas ruas. Apesar de Gabriela considerar que sua luta tenha se iniciado “pra valer” a partir de sua primeira fala pública como prostituta em 1982, ela identifica que sua militância política começou “na prática” durante a passeata que levou milhares de pessoas para as ruas do centro de São Paulo, em 1979, para denunciar o abuso da violência policial na zona de prostituição da Boca do Lixo: “Imagina uma cidade do tamanho de São Paulo, conservadora como é, onde prostituta e travesti não existiam, nem sequer era gente, e nós todos discutindo o problema em público! Foi de arrepiar” (LEITE, 1992LEITE, G. S. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1992., p. 86-87).

Décadas depois, a Daspu seria a expressão máxima da aposta de Gabriela Leite no corpo como plataforma política, junto com outras iniciativas, como festivais e performances artísticas, todas organizadas pelo movimento de prostitutas, as quais fomentavam a ocupação da cidade (HELENE, 2017HELENE, D. O movimento social das prostitutas e o direito à cidade para as mulheres. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero; Women’s Worlds Congress, 11; 13, 2017, Florianópolis. Anais... Florianópolis: [s.n.], 2017, p. 1-12. ). A Daspu é uma grife de moda para prostitutas criada por Gabriela Leite, em 2005, como forma alternativa de financiamento para a manutenção da ONG Davida, associação voltada para a luta dos direitos das prostitutas (LENZ, 2008LENZ, F. Daspu, a moda sem vergonha. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008.). Com grande visibilidade social, seus desfiles têm sido ostensivamente cobertos por diversas mídias nacionais e internacionais, ocupando diversos espaços de visibilidade da cidade, onde as modelos, ao desfilarem, afirmam uma identidade “puta”, tal qual a defendida por Gabriela Leite em sua reapropriação política da palavra (HELENE, 2017HELENE, D. O movimento social das prostitutas e o direito à cidade para as mulheres. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero; Women’s Worlds Congress, 11; 13, 2017, Florianópolis. Anais... Florianópolis: [s.n.], 2017, p. 1-12. ): “Na passarela, as meninas mostram a cara, soltam a voz e se liberam do estigma. [...] Elaine Bortolanza, uma amiga minha de Brasília, escreveu um texto para a Revista Global e o título dele resume para mim o que é a Daspu: Passarelas Passeatas” (LEITE, 2009LEITE, G. Filha, mãe, avó e puta: a história de uma mulher que decidiu ser prostituta. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009., p. 187).

4. Considerações finais

Este trabalho utilizou obras literárias de três prostitutas ativistas brasileiras para acessar algumas das questões formuladas pela perspectiva putafeminista no Brasil, com o intuito de colaborar com novos referenciais epistemológicos para a produção de conhecimento no campo dos estudos urbanos, em especial, nas pesquisas sobre prostituição e espaço urbano. Foi possível perceber que os limites do pensamento feminista têm sido tensionados pelas putativistas no Brasil desde os primeiros anos de existência do movimento de prostitutas, a partir de sua própria visão sobre a prostituição no interior do debate de gênero, sexualidade e feminismo. Apesar disso, a construção mais recente de um movimento putafeminista trouxe novas formulações para esse debate histórico, com o estabelecimento de seu espaço nos feminismos ao afirmar a condição plural de um movimento formado por mulheres de diferentes realidades e origens, propor alianças e construir argumentos sólidos para desconstruir oposições e gerar aproximações e identificações entre prostitutas e demais mulheres e feministas.

Como discutido, no quadro putafeminista, a luta por direitos das prostitutas aparece de forma nítida como uma luta feminista de interesse de todas as mulheres, e isso é explicitado com mais profundidade no contexto de análise da produção do espaço urbano pela prostituição. Diante da constatação de que a organização da prostituição nas cidades tem funcionado como uma forma de espacialização das identidades femininas separadas pelo estigma de puta entre “mulheres boas” e “mulheres más”, a luta pelo direito de ocupar todos espaços da cidade pelas prostitutas se tornou uma luta pelo direito de todas as mulheres ocuparem todos os espaços da cidade, já que a afirmação da identidade da prostituta fora dos limites da zona contesta um modelo de cidade que confina todas as mulheres de acordo com o papel social feminino que desempenham. Nesse contexto, o corpo aparece como uma dimensão importante para a compreensão da conquista dos espaços da cidade pelas prostitutas - sujeito ao controle imposto por leis, normas e instituições que organizam os espaços da cidade, mas também servindo à reivindicação de reconhecimento e direitos, como o direito de aparecer em público.

Referências

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  • 1
    O presente trabalho foi realizado com apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) - Código de Financiamento 001.
  • 2
    Mulher cisgênera branca e de origem de classe média baixa. Cursou Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP) e começou a trabalhar como prostituta em 1973, vivendo durante 20 anos em zonas de prostituição de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Foi cofundadora da Rede Brasileira de Prostitutas, da ONG Davida e da grife de moda Daspu. Escreveu para a “Coluna da Gabi”, no jornal Beijo da Rua.
  • 3
    Mulher cisgênera, branca, de origem de classe média baixa, escritora, prostituta, cofundadora da Central Única de Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais (CUTS), coeditora do projeto Mundo Invisível.org e assessora da ONU Mulheres - Brasil.
  • 4
    O livro foi republicado em 2018, em edição revista e atualizada, com o título E se eu fosse pura?, segundo a autora, para que pudesse circular mais tranquilamente pelas casas das famílias brasileiras.
  • 5
    Travesti branca, de origem de classe média, escritora, doutora em Crítica Literária pela Universidade de Campinas (Unicamp). Trabalha como prostituta na cidade de Campinas (SP) e como professora de literatura no curso Descomplica.
  • 6
    O termo “cis” se refere à pessoa que se identifica com o mesmo gênero a que foi socialmente criada para se expressar, geralmente informado pelo órgão sexual reprodutor que seu corpo carrega; enquanto “trans” diz respeito à pessoa que se identifica com o gênero oposto ao qual foi criada para se expressar.
  • 7
    De acordo com o levantamento do PNAD/IBGE, em 2015, o rendimento médio mensal de trabalhadoras negras foi cerca de 40% do valor de trabalhadores brancos. HELENE, D. Gênero e direito à cidade a partir da luta dos movimentos de moradia. Cadernos Metrópole, v. 21, n. 46, p. 951-974, 2019.
  • 8
    Segundo dados da ANTRA, de 2019, apenas 4% das travestis e transexuais associadas possuem empregos formais com fluxo de carreira, sendo que 90% delas se dedicam à prostituição para obter alguma fonte de renda; as outras 6% se sustentam por meio de demais formas de trabalhos informais. BENEVIDES, B. G.; NOGUEIRA, S. (Orgs). Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2019. São Paulo: Expressão Popular, ANTRA, IBTE, 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    20 Dez 2020
  • Aceito
    21 Jul 2021
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