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O modelo de Bolonha: origens e repercussões no campo da conservação integrada

Resumo

O desejo de promover a transição de uma “cidade antiga para uma sociedade nova” tomou Bolonha, na Itália, como objeto de um processo singular de planejamento urbano de cidades históricas, entre as décadas de 1960 e 1970. O presente artigo busca compreender a construção da agenda de conservação do centro histórico bolonhês, que se materializou em uma política de habitação social com forte aspiração emancipatória e anticapitalista. Baseado em uma revisão bibliográfica, o artigo buscou desvendar as diversas sínteses políticas e técnicas relacionadas ao tema da restauração patrimonial, em particular na Itália do pós-guerra (1945) até a década de 1970. Foram abordados temas incidentes, como o sistema de regulação estatal e a política fundiária e imobiliária, assim como a natureza da política de salvaguarda e as diretrizes para o ordenamento metropolitano, sendo o centro histórico seu ponto focal.

Palavras-chave:
Conservação Integrada; Bolonha; Habitação Social em Centros Históricos

Abstract

To promote the transition from an “old city to a new society,” Bologna, Italy, took on a particular urban planning process for historic cities between the 1960s and 1970s. This article seeks to understand the construction of the conservation agenda of the historic center, which materialized in a social housing policy, with a solid emancipatory and anti-capitalist aspiration. Based on a literature review, the article sought to unravel the various political and technical syntheses related to the issue of heritage restoration, particularly in post-war Italy (1945) until the 1970s. Land and real estate, the nature of the safeguarding policy, and the guidelines for metropolitan planning, with the historic center being its focal point.

Keywords:
Integrated Conservation; Bologna; Social Housing in Historic Centers

Introdução

A descontextualização histórica em debates é uma das razões para limitações nas análises sobre conservação patrimonial. Usualmente, estudos sobre o tema ignoram a lógica do desenvolvimento desigual do território, no contexto do capitalismo e da compreensão do processo de especulação decorrente da realização de investimentos no conjunto patrimonial. A análise materialista-histórica deve compreender o valor da terra urbana e o papel do espaço urbano consolidado representado pelos centros históricos. Essa consideração ocorre quando se estabelecem os vínculos ideológicos específicos que articulam o espaço urbano com a economia, a política e a ideologia, por meio das quais o processo de produção do espaço opera.

Este artigo busca compor um quadro mais complexo das discussões sucessivas de agendas públicas, especialmente entre 1950 e 1970, relacionadas à conservação patrimonial do centro histórico de Bolonha, e, com base nisso, explicar as divergências, as contradições, os limites e as possibilidades para o processo de desenvolvimento de uma política pública.

1. Conservação urbana integrada: uma agenda pública

De acordo com Bandarin (1979BANDARIN, F. The Bologna experience: Planning and historic renovation in a communist city. In: APPLEYARD, D. (ed.). The conservation of European cities. Cambridge, Massachusetts; London: The MIT Press, 1979., p. 188), após a Segunda Guerra Mundial, grandes cidades italianas lidavam com dois problemas relativos à urbanização: (i) a reconstrução das áreas destruídas pelos bombardeios e (ii) a intensa onda de migração da zona rural para a cidade, e do Sul agrário para o Norte industrializado. A pressão por moradia traduziu-se em um constante aumento de habitações novas nas bordas das metrópoles e nas zonas periurbanas. Os limites da área urbana foram subitamente estendidos, avançando sobre terrenos agricultáveis, o que contribuiu para elevar a pressão por mobilidade, o “elemento cinemático da cidade”,1 1 Todos os textos e expressões em língua estrangeira foram traduzidos pelo autor Fabricio Martins. segundo Giovannoni (2012 GIOVANNONI, G. Vecchie città ed edilizia nuova. Nuova Antologia, v. CLXV, fasc. 995, p. 449-472, 2012 [1931]. Tradução: Renata Campello Cabral e Carlos Roberto M. de Andrade. Disponível em: https://docplayer.com.br/57343920-Velhas-cidades-e-nova-construcao-urbana.html. Acesso em: 15 ago. 2021.
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[1931]).

Em paralelo, planos de demolição e reconstrução nas áreas arruinadas pela guerra e a expansão do sistema viário ameaçavam a integridade dos centros históricos. Tais ações buscavam consolidar as redes de transportes regionais e metropolitanas para facilitar a circulação dos automóveis entre o núcleo antigo e as zonas de expansão.

A inadequação da cidade histórica - enquanto estrutura pré-moderna - aos desígnios do novo arranjo do capital era evidente havia algum tempo, desde o nostálgico Sitte (1992SITTE, C. A construção das cidades segundo seus princípios artísticos. Org. e apres.: Carlos Roberto Monteiro de Andrade. Tradução: Ricardo Ferreira Henrique. São Paulo: Ática, 1992 [1889]. [1889]) ao militante Giovannoni (2012 GIOVANNONI, G. Vecchie città ed edilizia nuova. Nuova Antologia, v. CLXV, fasc. 995, p. 449-472, 2012 [1931]. Tradução: Renata Campello Cabral e Carlos Roberto M. de Andrade. Disponível em: https://docplayer.com.br/57343920-Velhas-cidades-e-nova-construcao-urbana.html. Acesso em: 15 ago. 2021.
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[1931]). Para ambos, muito antes da reconstrução pós-guerra, a cidade histórica era limitada a um valor marginal e subalterno. Este último (id., ibid.) já apostava na conversão funcional da velha cidade em “centro”, de forma que cessava de ser a totalidade do urbano para assumir papéis de convergência e nuclearidade. Ele entendia que as velhas cidades sobreviventes são quase caminhos impróprios para se tornar o centro dos novos. Assim, para esse autor, o futuro inapelável dos centros urbanos pré-industriais era sua marginalização funcional. Na opinião dele, a única maneira de reconciliar o desenvolvimento urbano moderno com a necessidade de preservar os ambientes urbanos existentes era por meio da descentralização de funções externas que fossem incompatíveis com a morfologia das cidades antigas.

Desde a Conferência Internacional de Restauração (SOCIEDADE DAS NAÇÕES, 1931SOCIEDADE DAS NAÇÕES. Carta de Atenas. Atenas: Escritório Internacional de Museus, 1931. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20de%20Atenas%201931.pdf. Acesso em: 18 ago. 2021.
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), que resultou na Carta de Atenas, o conceito de “restauração” evoluiu do sentido de “retorno ao estado anterior” para a possibilidade de conceber usos distintos do original. A Carta Italiana do Restauro (CONSIGLIO SUPERIORE PER LE ANTICHITÀ E BELLE ARTI, 1932CONSIGLIO SUPERIORE PER LE ANTICHITÀ E BELLE ARTI. Carta Italiana del restauro, 1932. Disponível em: http://brescianisrl.it/newsite/public/link/Carta_restauro%20_1932.pdf. Acesso em: 20 ago. 2021.
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), redigida por Giovannoni, adiciona a noção de patrimônio em uma abordagem que transcende as obras de arte, abrangendo a preocupação com o “ambiente” e a funcionalidade dos bens patrimoniais. As cidades italianas vivenciaram um desenvolvimento centrípeto desde a emergência da Revolução Industrial e, mais particularmente, da aceleração do processo de metropolização no pós-guerra (1945). As relações de circulação e trocas deixaram de ser majoritariamente endógenas (no espaço confinado da cidade antiga) e passaram a responder a pressões exógenas (provenientes dos subúrbios e das cidades limítrofes).

A ascensão da agenda conservacionista não foi um fenômeno localmente limitado. Nos anos 1950, sobretudo na Europa, ganhou impulso a consciência sobre a necessidade de ir além do modelo de restauração de edifícios individuais e isolados em favor da preservação de complexos urbanos de valor histórico. Na Itália, particularmente, a defesa do patrimônio cultural e histórico alcançou importância nacional. Embora o escopo do debate fosse restrito a certos grupos da elite cultural e urbanistas, floresceram discussões cujo intuito era salvaguardar os centros históricos dos efeitos da especulação imobiliária (DE PIERI; SCRIVANO, 2004DE PIERI, F; SCRIVANO, P. Representing the “Historical Centre” of Bologna: Preservation policies and reinvention of an urban identity. Urban History Review, 33(1), p. 34-45, 2004. Disponível em: https://doi.org/10.7202/1015673ar. Acesso em: 10 out. 2018.
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, p. 35).

Em 1956, a Associação Italia Nostra foi fundada, formada por agentes da sociedade civil, cuja tarefa primária era sensibilizar o público para a conservação urbana e sua realidade social (NUCIFORA, 2017NUCIFORA, M. Protection of cultural heritage and urban development. Catania and Syracuse in the seventies: A comparative approach. In: BAUMEISTER, M.; BONOMO, B.; SCHOTT, D. (ed.). Cities contested: Urban politics, heritage, and social movements in Italy and West Germany in the 1970s . Frankfurt-am-Main: Campus Verlag , 2017., p. 252). Outro ponto de inflexão foi a Conferência Nacional para Salvaguarda e Reabilitação dos Centros Históricos. A Associação Nacional para os Centros Histórico-Artísticos (ANCSA, 1960ANCSA. Associazione Nazionale per i Centristorico-Artistici. Convegno Nazionale per la Salvaguardia e il Risanamento dei Centri Storici (Carta di Gubbio), 1960. Disponível em: https://www.italianostra.org/nazionale/la-carta-di-gubbio-del-1960. Acesso em: 20 ago. 2021.
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) foi fundada em 1961 e uma declaração de princípios sobre a proteção e a restauração de centros históricos (Carta de Gubbio, 1960) foi aprovada. Na conferência em questão, foi introduzida a expressão “centro histórico” no vocabulário de discussões sobre conservação urbana. Esse termo tornou-se comum para designar a rede densa de pequenos centros urbanos de importância histórica ou para identificar o núcleo central das cidades maiores.

A noção de “centro histórico” é objeto de controvérsias técnicas e discussões. Benévolo (apud CERVELLATI; SCANNAVINI; DE ANGELIS, 1981CERVELLATI, P. L.; SCANNAVINI, R.; DE ANGELIS, C. La nouvelle culture urbaine: Bologne face à son patrimoine. Paris: Éditions du Seuil, 1981., p. 37), lidando com a particularidade italiana, propõe um conceito: “a única definição operacional é de ordem histórica: é a cidade pré-industrial, na medida em que - isolada ou desordenada - sobrevive no meio do sistema espacial atual”. Processos históricos sucessivos no desenvolvimento da cidade produziram um organismo estratificado, porém dotado de uma verdadeira unidade, como um “palimpsesto” (HARVEY, 2013HARVEY, D. Os limites do capital. Tradução: Magda Lopes . São Paulo: Boitempo, 2013 [1982]. [1982]).

A Carta de Veneza (ICOMOS, 1964ICOMOS. Carta Internacional sobre a Conservação e o Restauro de Monumentos e Sítios (Carta de Veneza), 1964. Tradução de Flávio Lopes e Miguel Brito Correia. Disponível em: https://bityli.com/rPlrtlMEu. Acesso em: 15 ago. 2021.
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) estende o conceito de patrimônio arquitetônico e registra a importância da conservação do conjunto edificado urbano e rural. Nesse contexto, surge o apelo a uma aproximação entre planejamento urbano e políticas de preservação. A perspectiva de perda da excepcionalidade morfológica e identitária da cidade por conta das políticas agressivas de produção do espaço era particularmente pavorosa em Bolonha, que, como Veneza, detém um dos mais extensos conjuntos patrimoniais de toda a Itália (BODENSCHATZ, 2017BODENSCHATZ, H. Bologna and the (Re-)discovery of urban values. In: BAUMEISTER, M.; BONOMO, B.; SCHOTT, D (ed.). Cities contested: Urban politics, heritage, and social movements in Italy and West Germany in the 1970s . Frankfurt-am-Main: Campus Verlag , 2017. , p. 214). A conscientização crescente e a adoção de regulações protetivas delegaram ao patrimônio histórico o status de bem cultural inalienável, o qual o Estado e a sociedade têm o dever de proteger e manter.

Cervellati e Scannavini (1976CERVELLATI, P. L.; SCANNAVINI, R. Bolonia: política y metodologia de la restauración de centros históricos. Barcelona: Editorial Gustavo Gili , 1976., p. 1) encaravam o centro histórico igualmente como um “bem cultural inalienável” e um “notável patrimônio econômico-edificado”. Porém, diante do avanço da pressão imobiliária sobre a cidade antiga, eles desenvolveram uma perspectiva particularmente fatalista: se for mantida a atual ideologia política e econômica, que faz o “direito” de propriedade coincidir com o “direito” de construir, nenhuma proposta, ainda que científica, estará na posição de interromper a ruína dos centros históricos e das zonas de interesse ambiental.

Para Cervellati, Scannavini e De Angelis (1981CERVELLATI, P. L.; SCANNAVINI, R.; DE ANGELIS, C. La nouvelle culture urbaine: Bologne face à son patrimoine. Paris: Éditions du Seuil, 1981., p. 40-41), conservar significa “manter um objeto que pode se deteriorar em bom estado. Conservar é, pois, necessário para evitar uma perda ou um dano”. Eles argumentavam, em seu turno, pela superação do debate em torno da proteção do patrimônio pelo viés puramente cultural, em que o bem é “ameaçado pela barbárie de uma sociedade insensível aos valores do passado”. A crítica sugere que o “viés culturalista” do discurso engaja somente uma pequena fração da sociedade, restrita aos meios acadêmicos e intelectualizados, “que possui o privilégio de conhecer e de apreciar a significação dos bens culturais”. Os autores concluem que não se pode esperar uma política para o “centro histórico” autônoma e marginalizada da política territorial geral. Assim, a conservação urbana adquire um sentido ideológico: oposição à economia da abundância e do consumo desenfreado de terras agricultáveis em favor da expansão periférica das grandes cidades.

2. Urbanização acelerada e massificada: a questão da moradia

O trabalho de reconstrução de Bolonha após a Segunda Guerra Mundial ampliou a urbanização para além dos limites intramuros. Com o Plano INA Casa (1949), inúmeros conjuntos habitacionais foram construídos, destinados à ocupação de dezenas de milhares de habitantes. Entre 1951 e 1961, enquanto o crescimento demográfico da cidade foi de 31%, o acréscimo de moradias foi substancialmente maior (59%). No mesmo período, a população italiana cresceu apenas 6,5% (CAMPOS VENUTI, 1971CAMPOS VENUTI, G. La administración del urbanismo. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1971. ).

Quando o provimento imediato de moradia para a crescente população urbana era o objetivo a ser perseguido pela municipalidade, a ideologia de expansão infinita tinha perfeita aderência à realidade. A cidade antiga era vista como inadaptada às funções modernas e incapaz de absorver a demanda crescente por moradia digna e de qualidade. A transferência populacional para os novos projetos residenciais periféricos era desejada como um “benefício social” (ULSHÖFER, 2017ULSHÖFER, J. From “Vechio Nucleo Cittadino” to “Centro Storico” On Bologna’s preservation policies and the social cost of urban renewal (1955-1975). In: BAUMEISTER, M.; BONOMO, B.; SCHOTT, D (ed.). Cities contested: Urban politics, heritage, and social movements in Italy and West Germany in the 1970s . Frankfurt-am-Main: Campus Verlag , 2017., p. 232).

Além do custo unitário mais barato, principalmente em função da disponibilidade de terrenos cujo valor de troca era mais baixo, as habitações construídas no periurbano possuíam comodidades exigidas pela ideologia da época e que, em muitos casos, eram ausentes na cidade antiga: espaço domiciliar privativo, serviços básicos de higiene e estrutura viária adaptada ao automóvel. Nessas condições, era possível empregar técnicas construtivas modernas para produzir moradias baratas mais rapidamente e em larga escala.

Cervellati, Scannavini e De Angelis (1981CERVELLATI, P. L.; SCANNAVINI, R.; DE ANGELIS, C. La nouvelle culture urbaine: Bologne face à son patrimoine. Paris: Éditions du Seuil, 1981., p. 29-33) disputam a narrativa do baixo custo da expansão. Para eles, o custo social não tardaria a aparecer, pois a vida nos subúrbios rapidamente se degradaria à medida que a oferta de serviços públicos não acompanhasse a expansão urbana. O crescimento da metrópole ampliou a dependência do automóvel, com os consequentes incômodos de trafegabilidade. Política e socialmente, o esgarçamento do tecido comunitário e a percepção de fortalecimento de valores individualistas e consumistas foram sentidos (BARTOLINI, 2017BARTOLINI, F. Changing cities. An urban question for the Italian Communist Party. In: BAUMEISTER, M.; BONOMO, B.; SCHOTT, D. (ed.). Cities contested: Urban politics, heritage, and social movements in Italy and West Germany in the 1970s. Frankfurt-am-Main: Campus Verlag, 2017., p. 57).

O mal-estar da urbanização massificada unificou, ainda que sob distintas bases conceituais e ideológicas, os “culturalistas” e a nascente geografia crítica. A “indistinção” da cidade moderna, sua “monotonia e tédio da geometria edilícia”, que contrariavam Giovannoni (2012 GIOVANNONI, G. Vecchie città ed edilizia nuova. Nuova Antologia, v. CLXV, fasc. 995, p. 449-472, 2012 [1931]. Tradução: Renata Campello Cabral e Carlos Roberto M. de Andrade. Disponível em: https://docplayer.com.br/57343920-Velhas-cidades-e-nova-construcao-urbana.html. Acesso em: 15 ago. 2021.
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[1931]), ganharam nova leitura com a concepção de espaço produzido de Henri Lefebvre (1974LEFEBVRE, H. La Production de l’espace. Paris: Anthropos, 1974.). Para esse autor, o “espaço de modernidade” tem características precisas: de homogeneidade, fragmentação e hierarquização. Aprovado em 1955, o Plano Diretor de Bolonha (PRG 55) (COMUNE DI BOLOGNA, 1955COMUNE DI BOLOGNA. Piano Regolatore Generale della Città di Bologna. [S.l.: s.n.], 1955. ) seguiu a lógica expansionista, embora tenha uma relação ambígua com o chamado “velho núcleo citadino”. Campos Venuti (1974, apud BANDARIN, 1979BANDARIN, F. The Bologna experience: Planning and historic renovation in a communist city. In: APPLEYARD, D. (ed.). The conservation of European cities. Cambridge, Massachusetts; London: The MIT Press, 1979., p. 189) testemunha:

No período pós-guerra, nenhuma tentativa séria foi feita em Bolonha para mudar a tradicional política fundiária das prefeituras italianas, essencialmente dominada por especuladores; pelo contrário, o plano aprovado permitia enorme expansão residencial na periferia, não planejava os serviços necessários, permitia demolições no centro histórico e favorecia a expansão de residências privadas nas áreas “verdes” livres nas colinas que circundam a cidade.

No PRG 55, há duas definições para as áreas históricas: o “antigo centro”, uma área correspondente ao núcleo mais central, limitado pelo traçado das muralhas do século XI; e o “velho núcleo citadino”, que correspondia à área mais abrangente e, grosso modo, aos limites da cidade estabelecidos pelas muralhas do século XV. A despeito de considerar o centro superpovoado, decadente e não apropriado para as necessidades contemporâneas, o PRG 55 reconhecia as qualidades artísticas e estéticas dos monumentos e da arquitetura vernacular. Daquela feita, o Plano reverberava as conclusões que Giovannoni inferira três décadas antes sobre a destinação do núcleo antigo das cidades.

De maneira sutil, a agenda conservacionista ganhava espaço, ainda que desprovida do sentido de integridade, e sem metodologia de intervenção claramente definida. Permanecia um “fenômeno isolado e não como princípio essencial da organização da cidade” (CERVELLATI; SCANNAVINI; DE ANGELIS, 1981CERVELLATI, P. L.; SCANNAVINI, R.; DE ANGELIS, C. La nouvelle culture urbaine: Bologne face à son patrimoine. Paris: Éditions du Seuil, 1981., p. 23). O plano genericamente mencionava a limitação do direito de construir em “zonas com características ambientais e construtivas particulares” (id., ibid., p. 232) e previa parcial ou completo isolamento de monumentos seletos.

Se, por um lado, havia preocupação com a preservação de ruas com valor cenográfico, sobretudo pela presença das celebradas arcadas e pela atenção especial à proteção das fachadas, por outro, zonas que continham lotes fragmentados e traçado viário irregular seriam retificadas ou demolidas. Além disso, o plano não era claro quanto ao destino da população tradicional nem quanto à abordagem do direito à propriedade em tais zonas. Havia inclusive previsão de uma pequena diminuição do número de habitantes do centro.

Não tardou para surgirem as primeiras mudanças de atitude quanto à agenda patrimonial. Quando as autoridades nacionais finalmente referendaram o PRG 55, em 1958, Bolonha recebeu uma advertência a respeito da incongruência do Plano em relação às exigências do planejamento urbano mais contemporâneo (ULSHÖFER, 2017ULSHÖFER, J. From “Vechio Nucleo Cittadino” to “Centro Storico” On Bologna’s preservation policies and the social cost of urban renewal (1955-1975). In: BAUMEISTER, M.; BONOMO, B.; SCHOTT, D (ed.). Cities contested: Urban politics, heritage, and social movements in Italy and West Germany in the 1970s . Frankfurt-am-Main: Campus Verlag , 2017., p. 232).

Em 1962, Bolonha aderiu à ANCSA, passado um ano de sua formação (ULSHÖFER, 2017ULSHÖFER, J. From “Vechio Nucleo Cittadino” to “Centro Storico” On Bologna’s preservation policies and the social cost of urban renewal (1955-1975). In: BAUMEISTER, M.; BONOMO, B.; SCHOTT, D (ed.). Cities contested: Urban politics, heritage, and social movements in Italy and West Germany in the 1970s . Frankfurt-am-Main: Campus Verlag , 2017., p. 237). Apesar de a Carta de Gubbio (1960) ter servido de inspiração para o que veio a ser conhecido como “modelo de Bolonha” - nomeadamente no que se refere aos seus princípios metodológicos de restauro -, a ausência de ambição no campo econômico e social foi criticada por Cervellati e Scannavini (1976CERVELLATI, P. L.; SCANNAVINI, R. Bolonia: política y metodologia de la restauración de centros históricos. Barcelona: Editorial Gustavo Gili , 1976., p. 3; 7-9). Embora o modo tradicional de conservar, apelidado de “restauração conservadora”, tenha apresentado efeitos práticos positivos quanto à preservação do patrimônio, não buscou opor-se à expulsão dos moradores tradicionais e à degradação social. Segundo esses autores (1976, p. 18):

Dizer que a restauração conservadora (no sentido indicado na Carta de Gubbio e outros acordos) é a única terapia para os centros históricos é necessário, mas não suficiente. A restauração deve abarcar, na forma programada, a cidade em seu conjunto, não edifícios e episódios ilhados, e, para tanto, o planejamento do centro histórico, seu destino, seu uso, estão estreitamente ligados e derivam do planejamento geral do território, tanto do ponto de vista social como técnico. [...] A falta de rigor e a renúncia à compreensão histórico-crítica reduzem o problema do centro histórico a mera cenografia e reestruturação funcional.

A própria qualificação de “restauração conservadora” parece conter um trocadilho, que os autores não clarificam devidamente: é conservadora porque conserva apenas o objeto construído - e desconsidera a estrutura econômico-social e as dinâmicas de poder no território - ou por que é politicamente conservadora e, logo, não vislumbra atuar para reverter as relações de dominação e espoliação?

Para Cervellati e Scavannini (1976CERVELLATI, P. L.; SCANNAVINI, R. Bolonia: política y metodologia de la restauración de centros históricos. Barcelona: Editorial Gustavo Gili , 1976., p. 8), a “restauração conserva, mas apenas as estruturas físicas, a ordenação morfológica, não a estrutura social e, resumidamente, não conserva a cidade”. Sem discutir a lógica de acumulação do capital relacionada à despossessão, as políticas de investimentos nos centros históricos somente repetem o padrão de expulsão e segregação de populações vulneráveis, substituindo de maneira efetiva as demolições por técnicas de intervenção mais refinadas.

Para David Harvey (2014HARVEY, D. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014.), a acumulação de capital por despossessão integra a natureza cíclica da produção de mais-valia amparada em instrumentos de urbanização. O processo de degradação física do estoque patrimonial é parte vital para a solvência da empreitada e para a realização dos lucros no momento seguinte à revalorização dos bens.

O processo de revalorização, que exclui atores vulneráveis em termos econômicos, é tolerado socialmente por meio do controle ideológico da bandeira da regeneração urbana. A atuação em sintonia do capital financeiro com o engajamento estatal promove estabilidade para a realização da mais-valia urbana no longo prazo (HARVEY, 2014HARVEY, D. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014.). É comum que projetos de requalificação usurpem terminologias articuladas à cultura e ao patrimônio, sob o apelo de “iniciativas culturais”, para facilitar a financeirização e a especulação imobiliária.

O avesso da “restauração conservadora” seria, portanto, a “conservação estrutural”. O respeito pelo passado histórico se constituiria em objetivo essencial; assim, a premissa básica para a elaboração de um plano de conservação seria a leitura de caráter histórico-morfológico da estrutura existente e de sua inter-relação com a cidade pós-industrial. Na elaboração do plano, a leitura estrutural substituiu uma valoração puramente formal e romântica da cidade antiga; o problema da forma urbana foi considerado em sua totalidade, analisando-a como organização dialética, entre a permanência de organismos e instalações originais e sucessivas alterações morfológicas (CERVELLATI; SCANNAVINI, 1976CERVELLATI, P. L.; SCANNAVINI, R. Bolonia: política y metodologia de la restauración de centros históricos. Barcelona: Editorial Gustavo Gili , 1976., p. 20). “Conservação estrutural”, aqui chamada de conservação Integrada, antagoniza a noção de cenografia urbana, identificada como parte da estratégia da restauração conservadora. O centro histórico adquire dimensão de bem cultural, econômico e social.

3. Democracia, sociedade e o papel do urbanista

A divergência essencial entre o consenso disseminado pela ANCSA e a concepção enunciada por Cervellati, Scannavini e De Angelis (1981CERVELLATI, P. L.; SCANNAVINI, R.; DE ANGELIS, C. La nouvelle culture urbaine: Bologne face à son patrimoine. Paris: Éditions du Seuil, 1981., p. 69-71) encontra-se na dimensão política dada ao planejamento territorial. Segundo eles, não há neutralidade do urbanismo e do urbanista, nem na proeminência e na autonomia das áreas técnicas em relação às agendas sociais. Como disciplina e conjunto de técnicas, o urbanismo tem papel subordinado e ajuda a atingir os objetivos societais democraticamente construídos.

Nesse raciocínio, o “direito à cidade” aplica-se aos fins políticos, uma vez que são balizadores do planejamento, a priori definido, mas não escrito em pedra. Modifica-se à medida que as condições materiais, históricas e sociais de certa coletividade, em certo espaço, produzam um novo paradigma. O reconhecimento da não neutralidade do ofício técnico e a demanda por ação política pelo urbanista parecem levar em conta que a conservação do patrimônio, como forma de produção do espaço, possui intencionalidade e finalidade intrínsecas. Portanto, o urbanista deve ter uma postura política e não mais de “executante técnico de uma tarefa bem determinada” (CERVELLATI, SCANNAVINI; DE ANGELIS, 1981CERVELLATI, P. L.; SCANNAVINI, R.; DE ANGELIS, C. La nouvelle culture urbaine: Bologne face à son patrimoine. Paris: Éditions du Seuil, 1981., p. 71). Em seu campo de atuação, o intérprete é formulador de uma proposta, que, por sua vez, não reflete magnanimamente a própria concepção de cidade, senão é a materialização - via procedimentos participativos - de expectativas, reinvindicações e demandas difusas. Essa conduta o levará necessariamente à responsabilidade vigilante para que o técnico não substitua o cidadão. Nesse contexto, o exercício da síntese social é compartilhado entre as estruturas constitucionais de poder (Poder Legislativo e Poder Executivo, a quem compete a legitimidade política) e as instâncias decisórias participativas, tomando como núcleo elementar o “bairro”.

Para De Pieri e Scrivano (2004)DE PIERI, F; SCRIVANO, P. Representing the “Historical Centre” of Bologna: Preservation policies and reinvention of an urban identity. Urban History Review, 33(1), p. 34-45, 2004. Disponível em: https://doi.org/10.7202/1015673ar. Acesso em: 10 out. 2018.
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, o experimentalismo bolonhês foi possível porque, alijados do poder no cenário nacional, os comunistas italianos utilizavam a administração local como vitrine de “boa administração”. Apresentando a cidade como caso de sucesso, o partido angariaria apoio popular para assumir as rédeas da nação e implantar suas políticas redistributivas e sua visão de governança, calcada em ideais igualitários.

Essa visão refletia uma mudança significativa de orientação política no discurso do Partido Comunista Italiano (PCI), que, embora tivesse acontecido primariamente nos anos 1950, traria seus frutos apenas nas décadas subsequentes (ULSHÖFER, 2017ULSHÖFER, J. From “Vechio Nucleo Cittadino” to “Centro Storico” On Bologna’s preservation policies and the social cost of urban renewal (1955-1975). In: BAUMEISTER, M.; BONOMO, B.; SCHOTT, D (ed.). Cities contested: Urban politics, heritage, and social movements in Italy and West Germany in the 1970s . Frankfurt-am-Main: Campus Verlag , 2017., p. 236-237). A realidade emergente era de um partido revolucionário em seu nascimento, mas que renunciaria à tomada violenta do poder e adaptaria sua plataforma e seus ideais aos parâmetros da democracia eleitoral. Para seus líderes, ainda que mantivesse a perspectiva da luta de classes como intérprete dos desequilíbrios do sistema capitalista, essa mediação somente seria vitoriosa se a noção de explorado se estendesse para além da classe operária e buscasse apoio nas classes médias urbanas (BARTOLINI, 2017BARTOLINI, F. Changing cities. An urban question for the Italian Communist Party. In: BAUMEISTER, M.; BONOMO, B.; SCHOTT, D. (ed.). Cities contested: Urban politics, heritage, and social movements in Italy and West Germany in the 1970s. Frankfurt-am-Main: Campus Verlag, 2017., p. 55-58).

Em 1956, o PCI adotou um alinhamento político reformista, conhecido como “via italiana ao socialismo”, e, nesse contexto, a agenda de reforma urbana integrou o programa de reformas estruturais defendido pelo partido. Com a recomposição dos quadros dirigentes, o processo de renovação partidária teve efeito em Bolonha a partir de 1959, com menção especial à nomeação de Giuseppe Campos Venuti como secretário de Urbanismo em 1960.

O advento dessa nova geração de gestores municipais (Campos Venuti, Leonardo Benevolo, Pier Luigi Cervellati, Italo Insolera, Carlo Aymonino, entre outros) trouxe um câmbio radical na direção da agenda municipal bolonhesa. Planejamento econômico e implementação sistemática de uma política de déficits orçamentários receberam maior atenção, privilegiando a qualidade em detrimento da quantidade e preocupando-se com medidas regulatórias do peso da renda da terra.

A análise da equipe ecoava a crítica à segregação espacial e à distribuição desigual de serviços públicos no território, mas introduziu outras questões que haviam sido ignoradas. Dentre elas, o reconhecimento da “vizinhança” como espaço privilegiado em que a classe trabalhadora forma alianças sociais (desafiando a primazia do local de trabalho como espaço de sociabilidade e difusão ideológica, como defendia a ortodoxia comunista), além do imperativo de uma reforma cultural e cívica, e da mobilização por uma nova condição urbana (BARTOLINI, 2017BARTOLINI, F. Changing cities. An urban question for the Italian Communist Party. In: BAUMEISTER, M.; BONOMO, B.; SCHOTT, D. (ed.). Cities contested: Urban politics, heritage, and social movements in Italy and West Germany in the 1970s. Frankfurt-am-Main: Campus Verlag, 2017., p. 60).

4. Planejamento do centro histórico

Os anos 1960 marcaram a inserção de uma política habitacional no processo de reforma urbana e de preservação do centro histórico. Um estudo prospectivo foi publicado em 1966 pelo time de arquitetos-urbanistas liderado por Leonardo Benevolo, no qual participava Pier Luigi Cervellati, que serviu de base para a elaboração, em 1969, do “Plano para o Centro Histórico” (ULSHÖFER, 2017ULSHÖFER, J. From “Vechio Nucleo Cittadino” to “Centro Storico” On Bologna’s preservation policies and the social cost of urban renewal (1955-1975). In: BAUMEISTER, M.; BONOMO, B.; SCHOTT, D (ed.). Cities contested: Urban politics, heritage, and social movements in Italy and West Germany in the 1970s . Frankfurt-am-Main: Campus Verlag , 2017., p. 236). Na visão dos técnicos, existiria uma fratura entre a “cidade moderna” e a “cidade do passado”, de modo que se definisse o tecido antigo como oposição à cidade moderna, e que não houvesse nenhuma continuidade entre ambas (CERVELLATI; SCANNAVINI, 1976CERVELLATI, P. L.; SCANNAVINI, R. Bolonia: política y metodologia de la restauración de centros históricos. Barcelona: Editorial Gustavo Gili , 1976., p. 19). De acordo com o documento. o passado havia interrompido sua comunicação pela tradição contínua, assumindo sua relação com o presente como resultado da reflexão histórica; logo, a preservação histórica era um meio de salvaguardar o testemunho concreto do passado e de seus valores (DE PIERI; SCRIVANNO, 2004DE PIERI, F; SCRIVANO, P. Representing the “Historical Centre” of Bologna: Preservation policies and reinvention of an urban identity. Urban History Review, 33(1), p. 34-45, 2004. Disponível em: https://doi.org/10.7202/1015673ar. Acesso em: 10 out. 2018.
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, p. 38).

Como ambos os tipos de cidade tinham morfologia, tipologias e princípios organizacionais irredutivelmente diferentes, a cidade histórica merecia ser objeto de uma política especial de planejamento, que definisse sua função no âmbito da metrópole. Assim, salvaguardar a cidade antiga era apenas um dos aspectos de algo maior: a organização das funções urbanas na escala metropolitana.

Tanto o estudo setorial de Benevolo como a obra de Cervellati reverberam as propostas de Giovannoni (2012 GIOVANNONI, G. Vecchie città ed edilizia nuova. Nuova Antologia, v. CLXV, fasc. 995, p. 449-472, 2012 [1931]. Tradução: Renata Campello Cabral e Carlos Roberto M. de Andrade. Disponível em: https://docplayer.com.br/57343920-Velhas-cidades-e-nova-construcao-urbana.html. Acesso em: 15 ago. 2021.
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[1931]) sobre o lugar dos centros das cidades no contexto da metrópole contemporânea. Para eles, a cidade antiga era incompatível com certas funções demandadas pelo desenvolvimento econômico da cidade moderna. Então, seria natural reconhecer centralidades alternativas. Logo, ambos imaginavam uma organização territorial que fizesse coexistir diferentes centralidades, preservando o centro histórico de funções que gerassem desconforto e movimentos em massa de pessoas. O ideal de recuperar o centro histórico também significava diminuir o ritmo da expansão urbana. Resumidamente, tratava-se de uma questão de fazer da requalificação patrimonial parte integral do ordenamento territorial, e não apenas um assunto setorial, ligado à cultura e ao restauro.

Sem embargo, uma distinção foi estabelecida entre zonas intactas e aquelas transformadas, de maneira que nem todo patrimônio edificado nos limites do centro histórico foi considerado digno de preservação. O estudo dividiu o estoque edificado em três categorias: (i) restauração científica, (ii) preservação dos atributos exteriores e (iii) demolição (ULSHÖFER, 2017ULSHÖFER, J. From “Vechio Nucleo Cittadino” to “Centro Storico” On Bologna’s preservation policies and the social cost of urban renewal (1955-1975). In: BAUMEISTER, M.; BONOMO, B.; SCHOTT, D (ed.). Cities contested: Urban politics, heritage, and social movements in Italy and West Germany in the 1970s . Frankfurt-am-Main: Campus Verlag , 2017., p. 238). Numa cidade tão distinta, cujo desenvolvimento histórico produziu contínuas modificações e inúmeras estratificações construtivas, algumas áreas haviam sofrido tanta descaracterização que já não havia mais valor histórico reconhecido.

Ulshöfer (2017ULSHÖFER, J. From “Vechio Nucleo Cittadino” to “Centro Storico” On Bologna’s preservation policies and the social cost of urban renewal (1955-1975). In: BAUMEISTER, M.; BONOMO, B.; SCHOTT, D (ed.). Cities contested: Urban politics, heritage, and social movements in Italy and West Germany in the 1970s . Frankfurt-am-Main: Campus Verlag , 2017., p. 238) especula que possíveis efeitos da reabilitação do centro histórico para os residentes não foram debatidos em detalhes. Entretanto, já se previa que a renovação do conjunto histórico acarretaria queda populacional de 20% na área histórica, e igualmente causaria sólida recomposição social. Para Cervellati e Scannavini, contudo, “a vitalidade (ou revitalização) do centro histórico está, desta maneira, estreitamente ligada ao direito que as classes sociais populares têm de habitar nele” (CERVELLATI; SCANNAVINI, 1981CERVELLATI, P. L.; SCANNAVINI, R.; DE ANGELIS, C. La nouvelle culture urbaine: Bologne face à son patrimoine. Paris: Éditions du Seuil, 1981., p. 3). Logo, naquele momento, o compromisso social de combinar a conservação patrimonial com uma estratégia de provisão de moradia popular não era evidente.

Ainda nos anos 1960, um processo de descentralização das funções municipais começou, emergindo algo como uma “democracia distrital” (BODENSCHATZ, 2017BODENSCHATZ, H. Bologna and the (Re-)discovery of urban values. In: BAUMEISTER, M.; BONOMO, B.; SCHOTT, D (ed.). Cities contested: Urban politics, heritage, and social movements in Italy and West Germany in the 1970s . Frankfurt-am-Main: Campus Verlag , 2017. , p. 213). A municipalidade adotou políticas para incrementar a participação cidadã na esfera pública. Em 1960, a Câmara Municipal aprovou a divisão da cidade em catorze bairros; cada conselho de bairro representava cerca de 30 mil habitantes, com funções consultivas, um fórum para formulação de políticas públicas e de intermediação entre cidadãos e a municipalidade (BANDARIN, 1979BANDARIN, F. The Bologna experience: Planning and historic renovation in a communist city. In: APPLEYARD, D. (ed.). The conservation of European cities. Cambridge, Massachusetts; London: The MIT Press, 1979., p. 191). Bolonha foi a primeira cidade na Itália a adotar esse tipo de instituição. A formação de conselhos buscava não apenas reforçar o consenso político, como também contribuir para expandir a imagem da cidade como reduto de novos experimentos democráticos. Foi possível em face do contexto favorável, no qual um consenso envolvia gestores, sindicatos, cooperativas habitacionais e cidadãos (DE PIERI; SCRIVANNO, 2004DE PIERI, F; SCRIVANO, P. Representing the “Historical Centre” of Bologna: Preservation policies and reinvention of an urban identity. Urban History Review, 33(1), p. 34-45, 2004. Disponível em: https://doi.org/10.7202/1015673ar. Acesso em: 10 out. 2018.
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).

Após anos de maturidade política, o Plano para o Centro Histórico foi aprovado em 1969 (COMUNE DI BOLOGNA, 1969COMUNE DI BOLOGNA. Assessorato ai problemi urbanistici dell’assetto territoriale del comune del comprensorio. Variante al piano regolatore generale. Piano per il centro storico. Norme tecniche di attuazione adottate con deliberazione consiliare del 21 luglio 1969, n. 74 dell’O.d.G. [S.l.: s.n.], 1969.), e instituído como uma modificação ao PRG 1955, cuja aplicação era restrita à zona delimitada desse espaço. Em termos gerais, o Plano indicava uma nova abordagem do centro histórico no seio do ordenamento territorial, ditando rigidamente usos e ocupação do solo, critérios de preservação e restauro, assim como propostas de intervenção para definir as funções consideradas “apropriadas” ao centro. O Plano também recomendava converter grandes estruturas para uso contemporâneo, incrementando o valor socioeconômico da área e melhorando a prestação de serviços públicos. Como medida de intervenção, treze setores de renovação prioritários foram identificados (ULSHÖFER, 2017ULSHÖFER, J. From “Vechio Nucleo Cittadino” to “Centro Storico” On Bologna’s preservation policies and the social cost of urban renewal (1955-1975). In: BAUMEISTER, M.; BONOMO, B.; SCHOTT, D (ed.). Cities contested: Urban politics, heritage, and social movements in Italy and West Germany in the 1970s . Frankfurt-am-Main: Campus Verlag , 2017., p. 239). A espacialidade estudada incluiu o território definido como “centro histórico”, a sua periferia imediata e as terras agricultáveis nos arredores. O documento repetiu a definição de “centro histórico” e assinalou os sucessivos processos históricos e econômicos que acarretaram transformações importantes ao tecido urbano pré-moderno e a cada edifício proeminente. Seus objetivos técnicos coincidiam com um propósito singular: preservar o centro histórico e incorporá-lo à estrutura da cidade como uma parte qualificada e diferenciada pelo seu caráter especializado.

Auxiliados pelas inovações originadas dos estudos exploratórios de Benevolo, o conceito de “tipologia” foi inserido como ideia central da metodologia de restauro e adaptação. Era uma ferramenta metodológica - mas não exclusivamente analítica - para separar elementos construtivos constantes (relativos à estrutura original) daqueles “variáveis” (elementos colecionados durante os séculos que manifestam usos e costumes acomodados à estrutura para assegurar sua adaptabilidade). O intuito dessa ferramenta era decifrar os processos formativos das estruturas arquitetônicas e os modos pelos quais poderiam influenciar sua adequação ao uso contemporâneo (BANDARIN, 1979BANDARIN, F. The Bologna experience: Planning and historic renovation in a communist city. In: APPLEYARD, D. (ed.). The conservation of European cities. Cambridge, Massachusetts; London: The MIT Press, 1979., p. 194).

O Plano para o Centro Histórico de Bolonha (1969) foi, acima de tudo, recenseamento e identificação dos edifícios existentes, acompanhados de normativas que definiam um limitado conjunto de transformações possíveis. Planejadores viam o setor de serviços (terciário e quaternário) como ameaça à cidade, sobretudo pelo poder indutor da realização da mais-valia especulativa (gentrificação).

4.1 Um plano habitacional para o centro: Peep Centro Storico (1973)

A ideia de o centro histórico ser lugar de concentração de investimentos e serviços e a caracterização oficial de sua homogeneidade morfológica e arquitetônica camuflaram as iniquidades territoriais e a profunda segregação espacial. Havia considerável segregação social na cidade antiga. No mesmo território, propriedades de alto valor contrastavam com imóveis em severo grau de deterioração ambiental e construtiva. Essa situação de abandono era pior nos treze setores de renovação já indicados no Plano de 1969. Uma leitura espacial com nuances possibilitou que o território não fosse tratado uniformemente. Outro fator fundamental foi a identificação de que a ausência de serviços públicos na cidade antiga era similar à dos bairros periféricos.

Diante da lógica da ruína como predecessora natural, na dinâmica capitalista, da espoliação e da expulsão da população mais vulnerável, o time de Cervellati concluiu, em 1973, o Plano de Edificação Econômica e Popular do Centro Histórico (Peep Centro Storico) (COMUNE DI BOLOGNA, 1973COMUNE DI BOLOGNA. Il piano per l’edilizia economica e popolare relativo al centro storico di Bologna (Peep Centro Storico). [S.l.: s.n.], 1973.). Era um instrumento de urbanismo que tinha como objetivo planejar, gerir e realizar todas as intervenções relacionadas à habitação social na cidade antiga.

Embora Campos Venuti já tivesse buscado introduzir, em 1963, duas zonas centrais no primeiro Peep de Bolonha, seus esforços se revestiam de um simples caráter simbólico como indutor do debate sobre habitação social no centro (ULSHÖFER, 2017ULSHÖFER, J. From “Vechio Nucleo Cittadino” to “Centro Storico” On Bologna’s preservation policies and the social cost of urban renewal (1955-1975). In: BAUMEISTER, M.; BONOMO, B.; SCHOTT, D (ed.). Cities contested: Urban politics, heritage, and social movements in Italy and West Germany in the 1970s . Frankfurt-am-Main: Campus Verlag , 2017., p. 243). Um plano de moradia popular exclusivo para a cidade antiga ainda precisava acontecer. Dentre os treze setores de intervenção inseridos no Plano para o Centro Histórico (1969), o Peep Centro Histórico (1973) incorporou apenas cinco deles. Tais territórios (Santa Caterina, Solferino, Fondazza, San Leonardo e San Carlo) tinham uma população de 6 mil habitantes, dentre os 32 mil residentes nos setores originais. Essas localidades foram escolhidas porque apresentavam condições precárias de moradia, tanto no âmbito estrutural como higiênico.

Do ponto de vista da política restaurativa, o Peep buscou uma abordagem pragmática da metodologia delineada pelo Plano de 1969. Emprestou a categoria de reconstrução tipológica (ripristino tipologico) como forma de construir novos edifícios no centro histórico. Cabe uma distinção: enquanto do ponto de vista da ocupação fundiária, no Plano de 1969, o centro histórico era visto como um “processo histórico completo”, o Peep (1973) recomendava a construção de residências temporárias (case albergo) em lotes onde não havia edificações. Essa saída heterodoxa permitiria que o residente não deixasse seu bairro - portanto, sua comunidade e rede social - durante os trabalhos de renovação (ULSHÖFER, 2017ULSHÖFER, J. From “Vechio Nucleo Cittadino” to “Centro Storico” On Bologna’s preservation policies and the social cost of urban renewal (1955-1975). In: BAUMEISTER, M.; BONOMO, B.; SCHOTT, D (ed.). Cities contested: Urban politics, heritage, and social movements in Italy and West Germany in the 1970s . Frankfurt-am-Main: Campus Verlag , 2017.). Esse aspecto recebeu fortes críticas em virtude da lesão à autenticidade edilícia, justamente pelo uso de materiais, técnicas e tipologias extemporâneos, resultando num pastiche arquitetural.

Essas propostas pareciam inspirar-se na ideia que Giovannoni (2012 GIOVANNONI, G. Vecchie città ed edilizia nuova. Nuova Antologia, v. CLXV, fasc. 995, p. 449-472, 2012 [1931]. Tradução: Renata Campello Cabral e Carlos Roberto M. de Andrade. Disponível em: https://docplayer.com.br/57343920-Velhas-cidades-e-nova-construcao-urbana.html. Acesso em: 15 ago. 2021.
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[1931]) já havia defendido, a de reconstruir o tecido histórico com novos edifícios, sem contrastar cores, formas e volumes com a arquitetura tradicional. Tais “atos não conservativos”, de acordo com ele, se guiariam pelo princípio da intervenção mínima necessária e se ligariam a ações culturais (KÜHL, 2013KÜHL, B. M. Observações sobre os textos de Gustavo Giovannoni traduzidos nesta edição. In: KÜHL, B. M. (org.). Gustavo Giovannoni - textos escolhidos. São Paulo: Ateliê Editorial, 2013., p. 22-23). Não obstante o Plano de 1969 prognosticasse a reconstrução tipológica, esta era destinada a edifícios arruinados ou parcialmente modificados, não a construções novas.

A novidade do Peep Centro Storico (1973) não se resumia ao fato de ser o primeiro programa habitacional italiano a dispor de requalificação patrimonial (BANDARIN, 1979BANDARIN, F. The Bologna experience: Planning and historic renovation in a communist city. In: APPLEYARD, D. (ed.). The conservation of European cities. Cambridge, Massachusetts; London: The MIT Press, 1979.). Sua audácia fundamental residia em trazer uma interpretação expansiva da Lei de Reforma Urbana (ITÁLIA, 1971ITÁLIA. Legge 22 ottobre 1971, n. 865. Programmi e coordinamento dell’edilizia residenziale pubblica; norme sulla espropriazione per pubblica utilita’; modifiche ed integrazioni alle leggi 17 agosto 1942, n. 1150; 18 aprile 1962, n. 167; 29 settembre 1964, n. 847; ed autorizzazione di spesa per interventi straordinari nel settore dell’edilizia residenziale, agevolata e convenzionata. (Gazzetta Ufficiale Della Repubblica Italiana n.276 del 30-10-1971).) e em classificar a habitação social como um “serviço público” (ULSHÖFER, 2017ULSHÖFER, J. From “Vechio Nucleo Cittadino” to “Centro Storico” On Bologna’s preservation policies and the social cost of urban renewal (1955-1975). In: BAUMEISTER, M.; BONOMO, B.; SCHOTT, D (ed.). Cities contested: Urban politics, heritage, and social movements in Italy and West Germany in the 1970s . Frankfurt-am-Main: Campus Verlag , 2017., p. 242). Desta maneira, modificando a natureza jurídica da intervenção, seria possível para a municipalidade expropriar propriedades com finalidade de habitação social mais rapidamente e com menor custo.

A solução “criativa” foi muito mais uma opção dos técnicos do que uma escolha política do PCI (ULSHÖFER, 2017ULSHÖFER, J. From “Vechio Nucleo Cittadino” to “Centro Storico” On Bologna’s preservation policies and the social cost of urban renewal (1955-1975). In: BAUMEISTER, M.; BONOMO, B.; SCHOTT, D (ed.). Cities contested: Urban politics, heritage, and social movements in Italy and West Germany in the 1970s . Frankfurt-am-Main: Campus Verlag , 2017.). Após a renovação edilícia, a concessão de títulos de propriedade coletiva, sem individualização de posse, tornou-se particularmente impopular e contenciosa com a classe média e com modestos proprietários de apartamentos. Dois aspectos emergiram: primeiro, a quantia monetária reservada pela municipalidade aos proprietários seria substancialmente mais baixa do que o valor de mercado, já que a Prefeitura usaria o cálculo de valor venal, desconsiderando as flutuações típicas da especulação imobiliária. Além disso, era incerta a extensão de direitos e deveres sobrevindos dos títulos de “cooperativa predial indivisa” - instrumento de início proposto no Peep (BANDARIN, 1979BANDARIN, F. The Bologna experience: Planning and historic renovation in a communist city. In: APPLEYARD, D. (ed.). The conservation of European cities. Cambridge, Massachusetts; London: The MIT Press, 1979.). A configuração cooperativa não permitia que as propriedades renovadas fossem usurpadas pela especulação imobiliária, limitando assim o alcance social do Plano.

A ênfase em instrumentos coercitivos de reforma urbana encontrou seus limites quando as contradições de classe foram exploradas. Houve oposição até na classe operária, entre os sem propriedade e os proprietários. Para abrandar a oposição, em 1975 um novo instrumento de acordo entre o poder público e os proprietários foi aprovado: a “convenção”. Foi uma solução de compromisso político, que possibilitaria ao proprietário manter seu direito real de propriedade, e, em troca do financiamento público para a renovação, ele aderiria aos termos da política habitacional para a sua propriedade, determinados pela Prefeitura e aprovados pelo conselho de bairro.

5. La festa è finita! - a superação do modelo (1980-)

A dependência da política conservacionista em Bolonha em relação aos instrumentos orçamentários municipais foi decisiva para o esvaziamento da política pública no período de austeridade fiscal vivenciado na Itália de 1976 em diante (BODENSCHATZ, 2017BODENSCHATZ, H. Bologna and the (Re-)discovery of urban values. In: BAUMEISTER, M.; BONOMO, B.; SCHOTT, D (ed.). Cities contested: Urban politics, heritage, and social movements in Italy and West Germany in the 1970s . Frankfurt-am-Main: Campus Verlag , 2017. ). Os cortes orçamentários e o aumento da carga tributária, designados para combater o alto déficit público, obrigaram a interrupção dos subsídios e investimentos, o que comprometeu o resultado da política justamente quando seu planejamento havia alcançado grande maturidade.

É importante notar que a Itália possui um sistema de governo unitário, e as administrações locais não têm autonomia fiscal. Isso significa que a capacidade arrecadatória provém das receitas coletadas pelo Estado nacional e é distribuída aos entes subnacionais (municípios, províncias, regiões). Em adição à ausência de autonomia, a crise econômica que afetou o país depois da crise do petróleo de 1973 lesou severamente a habilidade dos governos locais de financiar programas habitacionais e de expandir serviços.

A austeridade não apenas afetou investimentos, como condicionou toda a ação pública e enfraqueceu o espírito reformista inovador. O tom corrente entre 1960-70 foi de constante expansão dos serviços públicos e de fortalecimento da contracultura do uso coletivo sobre o consumo individualista. A austeridade derrubou essas inciativas, ao limitar o crescimento dos gastos públicos, ao elevar tarifas públicas de gás, de energia e de transportes e ao reduzir o horário e a abrangência dos serviços (BODENSCHATZ, 2017BODENSCHATZ, H. Bologna and the (Re-)discovery of urban values. In: BAUMEISTER, M.; BONOMO, B.; SCHOTT, D (ed.). Cities contested: Urban politics, heritage, and social movements in Italy and West Germany in the 1970s . Frankfurt-am-Main: Campus Verlag , 2017. ).

Bandarin (1979BANDARIN, F. The Bologna experience: Planning and historic renovation in a communist city. In: APPLEYARD, D. (ed.). The conservation of European cities. Cambridge, Massachusetts; London: The MIT Press, 1979., p. 201) asseverou que o Peep Centro Storico seria somente o início de um processo que incluiria, passo a passo, toda a cidade em um programa de renovação sob controle da administração. A despeito de suas restrições, já em 1977 o Plano apresentou resultados na aquisição de terrenos e imóveis, na renovação de aproximadamente duzentos apartamentos para quinhentas pessoas, na implementação de serviços públicos e na restauração de monumentos históricos (BODENSCHATZ, 2017BODENSCHATZ, H. Bologna and the (Re-)discovery of urban values. In: BAUMEISTER, M.; BONOMO, B.; SCHOTT, D (ed.). Cities contested: Urban politics, heritage, and social movements in Italy and West Germany in the 1970s . Frankfurt-am-Main: Campus Verlag , 2017. , p. 200). De acordo com Ulshöfer (2017ULSHÖFER, J. From “Vechio Nucleo Cittadino” to “Centro Storico” On Bologna’s preservation policies and the social cost of urban renewal (1955-1975). In: BAUMEISTER, M.; BONOMO, B.; SCHOTT, D (ed.). Cities contested: Urban politics, heritage, and social movements in Italy and West Germany in the 1970s . Frankfurt-am-Main: Campus Verlag , 2017., p. 246), em 1980, o Plano Geral foi desmembrado em cinco planos específicos para cada zona de intervenção e finalizado em 1983, deixando de existir como política pública.

Considerações finais

Este artigo destacou o “modelo de Bolonha” como uma política de habitação social e planejamento urbano focada na reabilitação da cidade antiga. Essa política consistiu na materialização de uma série de agendas públicas que se combinaram, se articularam e ganharam força ao longo de décadas. O argumento desenvolvido permanece atual: para o centro histórico sobreviver e permanecer relevante, no contexto das metrópoles contemporâneas, suas funções devem ser compatíveis com suas estruturas, respeitando a peculiaridade de suas redes comunitárias, e, num contínuo esforço para conservar, jamais prescindir da responsabilidade social em relação à sua população tradicional.

O voluntarismo da Prefeitura de Bolonha em opor-se à lógica da especulação imobiliária, ainda que sua estrutura econômica estivesse imersa no sistema capitalista de produção, deparou com seu limite precisamente quando a política de déficit público não mais conseguiu desfazer, de maneira artificial, a especulação utilizando-se de financiamento público. Quando o dinheiro acabou, o planejamento morreu.

No entanto, a entrega de bens públicos era somente uma feição da experiência. Do ponto de vista ideológico, a intervenção no centro histórico significava uma alteração substancial de postura: a perspectiva defensiva da restauração foi deixada de lado para se apostar em uma atitude ofensiva e propositiva, enquanto força de transformação do espaço urbano num ambiente cultural e arquitetonicamente significativo.

O exemplo de Bolonha, com seu conteúdo social e participativo forte, inspirou a Declaração de Amsterdã (CONSELHO DA EUROPA, 1975CONSELHO DA EUROPA. Carta Europeia do Patrimônio Arquitetônico (Declaração de Amsterdã), 1975. Disponível em: https://bityli.com/krpKcakTf. Acesso em: 20 ago. 2021.
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), adotada pelo Conselho da Europa, como documento diretriz para o planejamento urbano de centros históricos do continente. Delineou-se a primeira formulação sistemática da Conservação Integrada, cujos princípios espelham grandemente a experiência bolonhesa. Para Zanchetti (2003ZANCHETTI, S. M. Conservação Integrada e planejamento urbano: uma revisão. Cadernos de Estudos Sociais (Fundaj), Recife. v. 19, n. 1, p. 107-124, jan./jun. 2003. Disponível em: https://periodicos.fundaj.gov.br/CAD/article/view/1312/1032. Acesso em: 11 jun. 2018.
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, p. 108), essa primeira formulação restringiu-se à intervenção nos centros históricos e era reclamada como uma abordagem ou modo de conceber e orientar a ação de intervenção em áreas urbanas históricas.

Apesar das diferenças, os elementos críticos para entender e salvaguardar o patrimônio são similares aos de Cervellati e de Giovannoni: a cidade histórica constitui uma unidade formal e orgânica, cujas estruturas e a população que nela habita são, em sua relação dialética, testemunho da História e condição para sua vitalidade, permanência e relevância na contemporaneidade. Dessa maneira, sustentamos que o “modelo de Bolonha” não constituiu uma ruptura, senão uma continuada síntese das agendas sociais, políticas e econômicas que se impuseram na cidade nas décadas anteriores. Por fim, entendemos que a proposta não tratou apenas de revitalização ou de reabilitação, com cunho social, em áreas centrais degradadas: foi além e permitiu uma leitura de cidade diferente, emancipatória e motora de práticas urbanísticas alternativas.

Referências

  • ANCSA. Associazione Nazionale per i Centristorico-Artistici. Convegno Nazionale per la Salvaguardia e il Risanamento dei Centri Storici (Carta di Gubbio), 1960. Disponível em: https://www.italianostra.org/nazionale/la-carta-di-gubbio-del-1960 Acesso em: 20 ago. 2021.
    » https://www.italianostra.org/nazionale/la-carta-di-gubbio-del-1960
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    Todos os textos e expressões em língua estrangeira foram traduzidos pelo autor Fabricio Martins.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Out 2021
  • Aceito
    13 Maio 2022
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