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Editorial

EDITORIAL

Roberto Nascimento Rodrigues

Cedeplar/UFMG

Cinquenta anos atrás, quando as pílulas anticoncepcionais começaram a circular, nos Estados Unidos, como método anticoncepcional, o número médio de filhos por mulher em idade reprodutiva, no Brasil, oscilava em torno de seis e o processo de acelerado declínio da fecundidade, que constitui um dos traços característicos mais importantes da dinâmica demográfica brasileira desde a segunda metade do século XX, só viria a se configurar quase dez anos depois, no final da década de 1960. É certo que não se pode dizer que o advento da pílula anticoncepcional e sua massiva difusão tenham sido a causa desse processo, mas certamente é um dos fatores associados mais importantes. Em 1960, a Abep ainda não tinha sido fundada e, consequentemente, a Revista Brasileira de Estudos de População ainda não havia iniciado sua trajetória de bem divulgar e estimular o debate sobre demografia no Brasil.

Mais distante ainda está o início do processo de redução da mortalidade no Brasil, sobretudo a infantil, que teve como um dos fatores associados mais relevantes as medidas adotadas no âmbito de atuação da saúde pública no país. Nessa perspectiva, destacam-se os avanços tecnológicos que permitiram, além da criação de medicamentos para combater as patologias já instaladas, a produção de vacinas que atuam na prevenção. Também importante nesse processo é o efeito da terapia de reidratação oral no tratamento da diarreia, que, embora fosse conhecida pelo menos desde os anos 1940 (no tratamento da cólera), somente foi liberada para utilização por agentes de saúde e familiares a partir da década de 1970.

Hoje, no final do primeiro decênio do século XXI, a fecundidade situa-se em nível inferior ao de reposição e temas como envelhecimento populacional e novos arranjos familiares têm ganhado destaque crescente no cenário da demografia nacional. Em paralelo, a mortalidade geral registra nível considerado baixo, embora a mortalidade infantil, a despeito da continuidade da sua trajetória declinante, ainda apresente patamar mais elevado do que aquele compatível com o grau de crescimento e desenvolvimento econômico já alcançado pelo país.

A trajetória do processo de transição demográfica no Brasil, nas suas diversas dimensões e perspectivas, tem sido registrada pela Rebep, desde a sua criação, em 1984, sempre de maneira plural e aberta às interfaces da demografia com outras áreas do conhecimento científico. O compromisso da Rebep em divulgar e estimular o debate da pluralidade de temas que marcam a dinâmica demográfica brasileira e a sua abordagem teórico-metodológica, mantida a excelência da produção científica veiculada, são bem exemplificados no presente número.

Abre a discussão uma interessante proposta, formulada por Sathler, Monte-Mór, Carvalho e Costa, de identificação de redes urbanas estruturadas na Amazônia brasileira, com base na aplicação do modelo Grade of Membership (GoM), utilizando variáveis que procuram expressar aspectos que vão além daqueles puramente econômicos ou demográficos, inseridos em um banco de dados heterogêneo e multidimensional. Em linha com a perspectiva de incorporar questões de desenvolvimento econômico no contexto dos estudos populacionais, o artigo de Noronha, Figueiredo e Andrade focaliza os mecanismos, diretos e indiretos, por intermédio dos quais o estado de saúde pode afetar o crescimento econômico.

Embora não seja essa a perspectiva de abordagem dos dois artigos mencionados, eles ensejam a necessidade de uma discussão acerca de dados e metodologia de investigação dos fenômenos demográficos no Brasil. Não alheia a este desafio, a Rebep publica neste número a análise empreendida por Mendonça, Drumond e Cardoso sobre os problemas de preenchimento da Declaração de Óbitos no Brasil, que constitui o principal instrumento de informação sobre mortalidade no país. Em consonância com a complexidade e diversidade de temas impostos à análise e ao entendimento da dinâmica demográfica brasileira, é importante considerar, também, o emprego de bases de dados pouco convencionais, como aqueles gerados pelo sistema mantido pelo Ministério de Previdência e Assistência Social. Exemplo dessa utilização é encontrado no artigo de Gomes, Fígoli e Ribeiro, que apresenta estimativas de probabilidades de transição de um indivíduo entre os estados de atividade e invalidez permanente. Há, ainda, o estudo de Ribeiro, Reis e Barbosa, que se dedica à construção de tábuas de mortalidade de inválidos dos segurados de clientela urbana do Regime Geral da Previdência Social, por meio de modelos estatísticos bayesianos.

Outra vertente da miríade de temas e abordagens relacionados à dinâmica demográfica brasileira ancora-se na discussão de direitos, em conexão com os atributos sociodemográficos da população e com forte interface com questões ligadas à desigualdade e equidade, fundamentais para análise e entendimento do caso específico do Brasil. A esse respeito, o artigo de Winther e Golgher investiga o impacto de políticas de ação afirmativa adotadas em universidades brasileiras, como a de bônus adicional com base na cor e rendimento familiar, sobre o potencial de aprendizado do corpo discente. Já o artigo de Goldani discute questões relacionadas à discriminação por idade no Brasil, nos planos teórico e empírico, como parte das múltiplas formas de discriminação experimentadas ou vivenciadas no nível individual. Em paralelo, o artigo de Pereira, Palta e Mullahy desloca o foco para a situação específica dos Estados Unidos, mas sem reduzir o escopo da discussão àquele país, uma vez que se trata de uma revisão da literatura sobre raça e qualidade de vida relacionada à saúde, examinando especificamente os domínios que constituem as principais medidas baseadas na teoria da utilidade, tais como saúde física e mental, dor e desconforto, destreza e locomoção.

Para ampliar ainda mais o leque de insumos capazes de subsidiar a reflexão sobre a dinâmica populacional, a Rebep, neste número, permite ao leitor uma incursão instigante, formulada por Marandola Jr. e Gallo, sobre as implicações existenciais e territoriais da migração, que é vista como fenômeno vivido em diferentes escalas espaço-temporais, mas sob a ótica de uma mesma essência constitutiva. Movimento e tempo, nas suas várias dimensões, como a histórica e a política, são elementos inerentes ao objeto de estudo da demografia, cuja circularidade nos remete, com frequência, à consideração de questões relacionadas à demografia histórica. Atenta a essa possibilidade, a Rebep publica o artigo de Carneiro, Chagas e Nadalin que, tomando como universo de investigação o caso de Curitiba, nos séculos XVIII e XIX, discutem a construção de uma base de dados comparativa e a análise crítica a respeito do intervalo entre nascimento e data do batismo, que constitui informação importante para delimitação da idade, necessária nos estudos com base em dados paroquiais.

Ao propiciar a retomada da discussão sobre fontes de dados no Brasil, sob diferentes perspectivas teórico-metodológicas e temporal, a Rebep, de fato, permite ao leitor vislumbrar possibilidades promissoras no sentido de avançar, com mais consistência, na análise e entendimento da dinâmica demográfica brasileira. Isto porque a primeira década do século XXI, no Brasil, pode ser marcada, também, por pelo menos dois fatos importantes: o início da produção de informações longitudinais proporcionada pelo novo desenho amostral da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD); e a realização do Censo Demográfico de 2010, com coleta de informações que permitem aduzir elementos capazes de oferecer maior complexidade analítica, teórica e metodológica aos estudos populacionais no Brasil. Desafio enorme para a comunidade científica brasileira, desde já convidada a utilizar a Rebep como veículo de difusão dos conhecimentos que certamente serão trazidos pela utilização dessas e outras bases de dados.

Para estimular o debate envolvendo as possibilidades de emprego dessas "novas" bases de dados, a Rebep publica, na seção Ponto de Vista, o texto de Gupta, focalizando exatamente alguns dos potenciais que emergem quando se tomam os dados do Censo Demográfico de 2010 para analisar questões relativas ao cumprimento das metas do milênio, relacionadas a indicadores de saúde, a serem atingidas em 2015.

Duas Notas de Pesquisa e duas Resenhas completam este número da Rebep. A Nota apresentada por Marcondes diz respeito a uma pesquisa sobre os processos de constituição, organização e manutenção da vida doméstico-familiar em Salvador (BA), inspirada no conjunto de reflexões sobre transformações recentes nas famílias e nas relações de gênero. Em outro polo de investigação, Abreu, Drumond, França, Ishitami, Malta e Machado relatam o protocolo e resultados preliminares da pesquisa sobre análise comparativa de classificações de causas evitáveis de morte em capitais brasileiras, enfatizando o caso das doenças cerebrovasculares. A resenha elaborada por Myrrha e Siviero convida o leitor para acompanhar criticamente as ideias apostas no livro publicado por Giambiagi e Tafner sobre a reforma previdenciária que o Brasil deverá (ou não?) efetuar na próxima década. Já a resenha apresentada por Marandola Jr. permite que o leitor retorne ao tema do artigo inicial publicado neste número da Rebep, sob perspectiva a um só tempo diversa e complementar, nos moldes de uma circularidade que tão bem exemplifica a mobilidade que caracteriza o objeto central de estudo da demografia. A discussão comum aos quatro livros, de autores franceses, resenhados por Marandola Jr., gira em torno da mobilidade intraurbana e constitui um convite a (re)pensar a cidade, o urbano, sob a ótica da (re)organização do sistema de transporte, público e privado, introduzindo a questão da liberdade de ir e vir, pensada em termos da equidade que deveria marcar a possibilidade de circulação da população no espaço.

Eis o novo número da Rebep que, com apenas 26 anos, consolidou papel de destaque na divulgação de trabalhos científicos de alto nível, compatível com o grau de excelência que tem marcado a pesquisa na área de demografia no Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 2010
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