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“As crianças podem ser críticas de literatura?”: a contribuição de Aidan Chambers para o ensino de literatura

“Can children be literary critics?” - Aidan Chambers' contribution to literature teaching

“¿Pueden los niños ser críticos de literatura?” - La contribución de Aidan Chambers a la enseñanza de literatura

Resumo:

Aidan Chambers é um reconhecido escritor inglês dedicado ao público jovem que, paralelamente à atividade artística, estuda e elabora práticas para o ensino de literatura na escola. O objetivo deste artigo é descrever o enfoque no qual se baseia a “conversa literária” como prática social significativa na escola e na vida. Segundo Chambers (2007bCHAMBERS, A. Dime: los niños, la lectura y la conversación. Tradução de Ana Tamarit Amieva. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica , 2007b., 2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b.), as sessões “Diga-me” (Tell Me) não são um método, mas sim um enfoque que entende que crianças podem tornar-se críticos de literatura. Para esse fim, a discussão está dividida em quatro partes: a apresentação do autor e sua obra; o jogo de vozes (Bakhtin, 2002BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 10. ed. São Paulo: Annablume; Hucitec, 2002.) presentes na proposição de Chambers; a categorização da corrente discursiva sobre a recepção e o efeito de obras estéticas (Barthes, 2000BARTHES, R. O grau zero da escrita. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2000., 2013BARTHES, R. O prazer do texto. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2013.; Dewey, 2010DEWEY, J. Arte como experiência. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes , 2010. (Todas as Artes).; Iser, 1999ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1999. , 2002ISER, W. O jogo do texto. In: JAUSS, H. R. et al. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Tradução de Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. p. 105-118.) e, finalmente, a descrição do enfoque “Diga-me”. Os resultados obtidos levam à sistematização do elo discursivo que sustenta a proposição de uma abordagem pertinente para a leitura literária nas salas de aula, que parte da leitura individual e transita para o ato coletivo, negociando e compartilhando os sentidos de um objeto estético. Em razão de os trabalhos de Chambers não estarem traduzidos para o português, entende-se este exercício como uma contribuição para o campo do ensino da literatura no Brasil.

Palavras-chave:
Aidan Chambers; literatura; educação literária.

Abstract:

Aidan Chambers is a renowned English writer dedicated to young audiences who, in parallel to his artistic activity, studies and develops practices for teaching literature in schools. The purpose of this article is to describe the approach in which "literary conversation" as a meaningful social practice in school and in life is based. According to Chambers (2007bCHAMBERS, A. Dime: los niños, la lectura y la conversación. Tradução de Ana Tamarit Amieva. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica , 2007b., 2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b.), the "Tell Me" sessions are not a method but an approach that understands that children can become literary critics. To this end, the discussion is divided into four parts: the author's presentation and production, the game of voices (Bakhtin, 2002)BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 10. ed. São Paulo: Annablume; Hucitec, 2002. present in Chambers' proposition, the categorization of the discursive line on the reception and effect of aesthetic works (Barthes, 2000BARTHES, R. O grau zero da escrita. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2000., 2013BARTHES, R. O prazer do texto. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2013.; Dewey, 2010DEWEY, J. Arte como experiência. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes , 2010. (Todas as Artes).; Iser, 1999ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1999. , 2002ISER, W. O jogo do texto. In: JAUSS, H. R. et al. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Tradução de Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. p. 105-118.) and, ultimately, the description of the "Tell Me" approach. The results obtained lead to the systematization of the discursive link that sustains the proposition of a pertinent approach to literary reading in the classroom, which originates from an individual reading and moves to a collective action, negotiating and sharing the meanings of the aesthetic object. Due to the fact that Chambers' works have not been translated into Portuguese, this exercise is understood as a contribution to the field of literature teaching in Brazil.

Keywords:
Aidan Chambers; literature; literary education.

Resumen:

Aidan Chambers es un reputado escritor inglés dedicado al público joven que, en paralelo a su actividad artística, estudia y establece prácticas para la enseñanza de literatura en la escuela. El objetivo de este artículo es describir el enfoque en el que se basa la “conversación literaria” como práctica social significativa en la escuela y en la vida. Según Chambers (2007bCHAMBERS, A. Dime: los niños, la lectura y la conversación. Tradução de Ana Tamarit Amieva. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica , 2007b., 2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b.), las sesiones de “Diga-me” (Díme) no son un método, sino un abordaje que entiende que los niños pueden convertirse en críticos de literatura. Para este propósito, la discusión se divide en cuatro partes: la presentación y producción del autor; el juego de voces (Bakhtin, 2002)BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 10. ed. São Paulo: Annablume; Hucitec, 2002. presente en la propuesta de Chambers; la categorización de la corriente discursiva sobre la recepción y el efecto de las obras estéticas (Barthes, 2000BARTHES, R. O grau zero da escrita. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2000., 2013BARTHES, R. O prazer do texto. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2013.; Dewey, 2010DEWEY, J. Arte como experiência. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes , 2010. (Todas as Artes).; Iser, 1999ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1999. , 2002ISER, W. O jogo do texto. In: JAUSS, H. R. et al. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Tradução de Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. p. 105-118.) y, finalmente, la descripción del enfoque “Diga-me”. Los resultados obtenidos conducen a la sistematización del vínculo discursivo que sostiene la propuesta de un planteamiento pertinente de la lectura literaria en las aulas, que parte de la lectura individual y transita hacia el acto colectivo, negociando y compartiendo los sentidos del objeto estético. Dado que las obras de Chambers no han sido traducidas al portugués, este ejercicio se entiende como una contribución al campo de la enseñanza de literatura en Brasil.

Palabras clave:
Aidan Chambers; literatura; enseñanza de literatura

Introdução

Aidan Chambers é um renomado escritor de literatura juvenil em língua inglesa que também produziu estudos teórico-práticos amplamente reconhecidos e citados em investigações do mundo todo.1 1 Algumas referências a traduções. Disponível em: <http://www.aidanchambers.co.uk/translations.htm>. Entre os seus livros teóricos, há versões em espanhol amplamente conhecidas nos países hispano-falantes, no entanto, trata-se de um autor pouco conhecido no Brasil. Este trabalho busca contribuir para apresentá-lo a pesquisadores, professores, bibliotecários e outros profissionais dedicados ao ensino de literatura ou à pesquisa sobre práticas de leitura literária na escola, ressaltando as bases teóricas que embasam a contribuição.

O escritor nasceu na Inglaterra em 1934, e se reconhece como filho da classe trabalhadora, por isso, sua mãe afirmava que apenas por meio do estudo e da leitura uma pessoa pode mudar de vida, incentivando-o constantemente. No período escolar, Chambers foi um estudante considerado “lento” e “com dificuldades”. Contra a ordem lógica e estimulado por um professor, ele vai superando os obstáculos e, com 15 anos, Chambers começa a arriscar-se como escritor de literatura, porém apenas sua namorada lê o que ele produz. Em decorrência do desejo de ser um autor, o jovem vai aproximando-se da leitura e da literatura e inicia sua carreira como docente da educação básica.

Na vida adulta, por volta dos 26 anos, mesmo não sendo cristão católico, ingressa em um monastério. Durante esse período dedicado à formação religiosa, Chambers é responsável pela biblioteca, onde intensifica suas leituras e surge a reflexão sobre os desafios para o ensino de literatura. Em 1967 ele abandona a vida religiosa para continuar a carreira como docente e escritor para jovens. Torna-se, a partir de então, autor de vários livros, entre eles Postcards from No Man's Land (1999), traduzido no Brasil com o título de Postais da terra de ninguém (2012). Já ao lado de sua esposa, a editora Nancy Chambers, eles fundam, em 1969, a editora Thimble Press, na qual publicam seus livros e de outros autores de literatura infantil e juvenil.

Em 2002, Aidan Chambers se torna o primeiro britânico a receber o Prêmio Hans Christian Andersen, que é considerado o Nobel da literatura infantil e juvenil, o qual é concedido a cada dois anos em reconhecimento ao conjunto do trabalho de um autor. Paralelamente à atividade de criação, dedicou-se a discutir sobre as respostas das crianças às narrativas ficcionais e seus efeitos na educação literária. Com o intuito de aprofundar as reflexões críticas em relação ao ensino de literatura e à qualidade das obras para crianças e jovens, debruça-se sobre práticas de ensino a fim de apresentar às crianças a literatura em diferentes contextos escolares (rurais, urbanos, populares etc). Nessa época, Chambers já não trabalha como docente, mas continua oferecendo cursos de formação de professores e trabalhando como editor.

No livro The Reading Environment (Ambiente de leitura), de 1991, Chambers propõe o “círculo de leitura”, sugerindo ao docente, a partir da obra, formas de selecionar livros para serem lidos na escola, recomendações para pensar sobre o ambiente em que a leitura será realizada e, fechando a dinâmica desenhada pelo círculo, orienta sobre as diferentes respostas dos alunos, com o intuito de estimular que a criança volte aos livros. Já em Tell Me: Children, Reading and Talk (Diga-me: criança, leitura e conversa), de 1993, Chambers formula, apresenta e detalha o referido enfoque, partindo da premissa de que falar de forma aprofundada sobre a leitura faz com que a criança pense melhor sobre o que leu e enfatiza a importância do compartilhamento de ideias como eixo estruturante da conversa literária; finalmente, a coletânea Booktalk: Occasional writing of on literature and Children (Conversando sobre livros: escritos sobre literatura e crianças) reúne artigos proferidos como palestras e encontros sobre a criança, a literatura e a escola, compilados em primeira edição em 1995.2 2 Utilizamos como referência, além dos originais em inglês, as versões em espanhol: DIME. Los niños, la lectura, y la conversación, publicada em 2007, e Conversaciones. Escritos sobre literatura y los niños, de 2008, ambas publicadas pela editora Fondo de Cultura Económica, na coleção “Espacios para la lectura”.

Posteriormente a essa breve apresentação, enfatiza-se que o objetivo do artigo é fazer a revisão e a apresentação do enfoque Diga-me para refletir sobre o ensino de literatura proposto com base nas conversas literárias sobre textos ficcionais. O ponto de partida do autor explicita que a abordagem busca ajudar as crianças a falarem bem sobre o livro lido e reforça que “falar bem” implica “escutar bem” o que os outros dizem, desenvolvendo, além de habilidades leitoras, competências para conversar em muitos outros contextos sociais.

Trata-se, então, de concentrar-se, em sala de aula, na conversa literária em seu funcionamento e em seu contexto de produção, evidenciando os sentidos gerados mais do que as propriedades formais que são suporte a funcionamentos cognitivos.

Vale alertar, como também o faz Chambers (2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b., p. 98, tradução nossa), que a abordagem

[...] não é um método, nem um sistema, nem um esquema programático. Não é um conjunto rígido de regras, mas simplesmente uma maneira de conduzir a conversa por meio de tipos de perguntas, que cada um de nós pode adaptar dependendo da nossa personalidade e das necessidades de nossos alunos.3 3 Ao longo do artigo as citações do corpo do texto estão traduzidas para o português, mas nas notas as citações estão transcritas conforme o original em inglês: “Please note: an approach - not a method, not a system, not a schematic programme. Not a rigid set of rules, but simply a way of asking particular kinds of question which each of us can adapt to suit our personality and needs of our students”.

Assim sendo, o artigo se estrutura de forma a recuperar a fundamentação teórica utilizada por Chambers nas obras Diga-me, Conversas e Ambiente de leitura, entendendo que essa revisão e concatenação de ideias, principalmente no que se refere às teorias da recepção leitora, contribuem para deslindar a complexidade da abordagem, a fim de pensar sobre a contribuição do enfoque para o ensino de literatura nas escolas no Brasil. Da breve apresentação do investigador e de seus estudos críticos, passa-se a discutir a fundamentação teórica que sustenta suas proposições, visando explicitar a relação dos fundamentos com os efeitos na prática.

Jogo de vozes na proposição de Chambers

Para compreender as bases de sustentação da proposta Diga-me (2007), é necessário recuperar as contribuições teóricas presentes na produção metodológica do pedagogo em discussão. Para tanto, é utilizada a abordagem de análise erigida por Mikhail Bakhtin (1985-1975), centrada nas concepções de dialogismo e polifonia, as quais possibilitam uma leitura dialógica dos textos. Essa análise tem por propósito identificar “[...] as vozes que se deixam ouvir no texto, em que lugares é possível ouvi-las e quais são as vozes ausentes” (Amorim, 2002AMORIM, M. Vozes e silêncio no texto de pesquisa em ciências humanas. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 116, p. 7-19, jul. 2002. , p. 8). Propõe-se, pois, o estudo dos diálogos e da disputa de vozes (polifonia) na elaboração da proposição de ensino da leitura literária para crianças.

Particularmente, neste estudo, são pontuadas as vozes “marcadas” textualmente por Chambers, pois entende-se que “não há enunciado isolado, todo enunciado pressupõe aqueles que o antecederam e todos os que o sucederão: um enunciado é apenas um elo de uma cadeia, só podendo ser compreendido no interior dessa cadeia” (Souza, 1995SOUZA, S. J. Infância e linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamin. 2. ed. Campinas: Papirus, 1995., p. 99-100). Como optou-se pelas vozes marcadas no discurso, o procedimento é percorrer os caminhos e conceitos citados por Chambers (2011b)CHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b. para a elaboração do enfoque, que se assemelha mais a um relato analítico de experiências com uma breve introdução teórica, proposta geral (círculo de leitura), métodos de desenvolvimento (perguntas básicas, gerais e específicas) e descrição e análise das práticas observadas e relatadas por professores da educação básica.

Além de outros, John Dewey (1859-1952), Wolfgang Iser (1926-2007) e Roland Barthes (1915-1980) estão presentes na abordagem desenvolvida por Chambers e são recuperados, a fim de revelar qual a sustentação das reflexões realizadas pelo pedagogo. Logo na introdução dos livros de apresentação da metodologia, as vozes dos estudiosos da literatura e semiologia são retomadas da seguinte maneira: “O enfoque foi elaborado a partir das lições da fenomenologia da leitura - na qual nos apoiou Wolfgang Iser [...] e os escritos de vários pensadores, especialmente Roland Barthes [...]”4 4 “The ‘Tell Me’ approach grew out of the lesson learned from studying the phenomenology of reading (Wolfgang Iser helped us here) […] and the writing of various thinkers, including especially Roland Barthes)”. (Chambers, 2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b., p. 99, tradução nossa). Mais adiante e em diálogo com Iser (1999ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1999. , 2002ISER, W. O jogo do texto. In: JAUSS, H. R. et al. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Tradução de Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. p. 105-118.), no que diz respeito à recepção, ele cita Dewey para sustentar a argumentação da coautoria do receptor: “Sem um ato de recriação, o objeto não é percebido como obra de arte” (Dewey, 1958, p. 54, apudChambers, 2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b., p. 134, tradução nossa).5 5 “Without an act of recreation the object is not perceived as a work of art”.

Consoante ao exposto, cumpre-se, pois, os ensinamentos de Bakhtin, já que

Quando se analisa um texto e se consegue identificar a relação necessária entre o que é dito e o como se diz, pode-se dizer que se encontrou a instância do autor. (Estou falando da voz do autor e não da pessoa do autor. Posso identificar a voz de um autor sem conhecer nada a respeito de sua pessoa.) À voz do autor concerne um lugar enunciativo e como tal ela é portadora de um olhar, de um ponto de vista que trabalha o texto do início ao fim. (Amorim, 2002AMORIM, M. Vozes e silêncio no texto de pesquisa em ciências humanas. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 116, p. 7-19, jul. 2002. , p. 11).

Com a ideia de que um enunciado é portador de diferentes vozes e da própria voz do autor, não como pessoa, mas como instância de enunciação, o propósito é seguir os caminhos teóricos percorridos por Chambers, com o intuito de desvelar as estruturas profundas do enfoque, que se conforma como um relato de experiência, e não um texto acadêmico em Ciências Humanas. Souza (1995SOUZA, S. J. Infância e linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamin. 2. ed. Campinas: Papirus, 1995., p. 104) insiste que:

Embarcar na corrente do pensamento de Bakhtin requer, assim, nos seus próprios termos, uma forma de pensar incontestavelmente dialógica. Isso nem sempre é fácil em um mundo marcado pela fragmentação, no qual o homem é constantemente reificado em categorias dicotômicas e excludentes. O pensamento ocidental tem se mostrado preponderantemente monológico, daí a dificuldade maior de se substituir as abordagens reificadas de interpretação da realidade pelo modelo dialógico e polifônico proposto por Bakhtin.

Buscando o elo entre os campos da literatura, das artes, da semiologia e das diferentes vozes da corrente discursiva, o exercício é descrever, relacionar as vozes de outros pensadores ao enfoque e, posteriormente, organizá-las nas seguintes categorias: área do conhecimento, concepções de literatura/arte e ato de leitura.

No campo da teoria literária, a teoria da recepção (ou do efeito) é a corrente que mais avançou no tema da leitura. Há na teoria o protagonismo do leitor, que é recriador ou coautor do texto, “pois o repertório e as estratégias textuais se limitam a esboçar e pré-estruturar o potencial do texto; caberá ao leitor atualizá-lo para construir o objeto estético” (Iser, 1999ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1999. , p. 9). A Escola de Constanza se debruçou sobre a recepção dos textos, propondo especialmente, nos anos 1970, novos caminhos para a crítica literária moderna, objetivando, como Hans Robert Jauss (1921-1997), revisar a teoria e a história da literatura sob a perspectiva do leitor. Em termos gerais, o pressuposto mais importante que articula essa vertente teórica é aquele que está baseado na crença de que não se pode pensar em uma teoria literária se o leitor não estiver em foco.

Partindo dessa ideia geradora, Iser (1999ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1999. ) afirma que as “ciências literárias” devem deslocar seu objeto de estudo, não abordando mais a “estrutura dos textos” e seus “significados ocultos”, como postulavam os formalistas, mas sim considerando a recepção como eixo estruturante da reflexão sobre a produção literária. Para essa perspectiva, além de decifrar o significado do texto, o leitor-apreciador deve expressar os potenciais de sentido do objeto apreciado, uma vez que a atualização que ocorre no ato de leitura literária é realizada como um processo de interação entre leitor-obra-autor.

John Dewey (1859-1952), filósofo e educador, citado com frequência por Iser (1999ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1999. , 2002) e, consequentemente, por Chambers, conformando o elo da corrente discursiva, defende a arte como experimentação e, em A arte como experiência, ele discute a relação entre o artista e a pessoa que recebe a obra artística:

Para perceber, o espectador ou observador tem que criar sua experiência. E a criação deve incluir relações comparáveis às vivências pelo produtor original. Elas não são idênticas, em um sentido literal. Mas tanto naquele que percebe quanto no artista deve haver uma ordenação dos elementos do conjunto que, em sua forma, embora não nos detalhes, seja idêntica ao processo de organização conscientemente vivenciado pelo criador da obra. Sem um ato de recriação, o objeto não é percebido como obra de arte. O artista escolheu, simplificou, esclareceu, abreviou e condensou a obra de acordo com o seu interesse. Aquele que olha deve passar por essas operações, de acordo com o seu ponto de vista e seu interesse. (Dewey, 2010DEWEY, J. Arte como experiência. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes , 2010. (Todas as Artes)., p. 136).

Além de entender a arte como espaço de percepção e interação entre obra e leitor -apreciador, em um movimento que passa da apreensão subjetiva à construção coletiva, Dewey (2010DEWEY, J. Arte como experiência. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes , 2010. (Todas as Artes).) professa uma educação democrática, na qual o conhecimento é adquirido mediante observação, análise e resolução de problemas em ambientes sociais compartilhados e cooperativos. As situações de leitura compartilhada são a base do enfoque Diga-me, consistindo em: compartilhar o entusiasmo, os desconsertos (dificuldades) e as conexões (ou padrões), pois a experiência orienta que “[...] falar sobre a literatura é compartilhar uma forma de contemplação. É uma maneira de dar forma aos pensamentos e emoções estimuladas pelo livro e pelos significados que construímos juntos a partir do texto” (Chambers, 2007bCHAMBERS, A. Dime: los niños, la lectura y la conversación. Tradução de Ana Tamarit Amieva. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica , 2007b., p. 26-27, tradução nossa).6 6 No original, em inglês: “In essence, talking about literature is a form of shared contemplation”. Aliado ao compartilhamento da experiência entre os integrantes do grupo de leitura, o desenvolvimento educativo orienta-se como um movimento de avanço para experiências novas e um recuo para vivências preptéritas, dialogando com a própria dinâmica proposta pela fenomenologia da leitura, na qual a percepção retoma experiências passadas para propor novos sentidos na apreensão do objeto estético:

Durante a leitura de um texto ficcional, inicia-se uma interação entre a presença do texto e a experiência do leitor, relegada ao passado, interação esta que se manifesta na relação mútua entre reorganizar e dar forma. Isso significa que a apreensão de tal texto não pode ser vista como processo de aceitação passiva, mas sim como resposta produtiva à diferença experimentada. (Iser, 1999ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1999. , p. 53).

Porém, a fenomenologia da leitura literária, proposta pelo estudioso alemão, é criticada por seus contemporâneos, já que eles entendem a categoria leitor, distinguida por Iser (1999ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1999. , 2002ISER, W. O jogo do texto. In: JAUSS, H. R. et al. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Tradução de Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. p. 105-118.), apenas como uma instância textual, pois a postulação do “leitor implícito” seria prevista pelo autor/artista e a tarefa do leitor seria a de seguir as pistas sugeridas no texto. A discussão em O ato da leitura(Iser, 1999)ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1999. , contudo, constantemente pontua a presença das contribuições de um leitor empírico, individual, subjetivo, na produção de sentidos do texto lido, e não apenas uma instância textual prevista e marcada no texto.

O leitor empírico “[...] possui o texto e interage com ele por meio de seus sentidos de percepção, de seu acervo/repertório literário, imagético e de linguagens, de sua experiência/conhecimento de mundo e da arquitetura do mundo ficcional” (Birman, 1994BIRMAN, J. Leitura crítica: questões sobre recepção. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE LEITURA: LEITURA, SABER E CIDADANIA, 1., 1994, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Proler/Centro Cultural Banco do Brasil, 1994. p. 103-111. , p. 111). É sobre esse leitor real, empírico, que se edifica o método de Chambers, que quer, sobretudo, que as crianças em sala de aula compartilhem suas leituras e que, assim, possam negociar os sentidos e se apropriar, inclusive, da própria metalinguagem utilizada nas análises literárias.

Se Iser (1999ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1999. ) compreende as tramas narrativas e discursivas como um “jogo”, é possível também perceber que as subjetividades atuam na objetividade dada pelo objeto estético.

Isso significa que o leitor reage a algo que ele mesmo produzira, e este modo de reação explica por que somos capazes de experimentar o texto como evento real. Não o compreendemos como objeto dado, nem como estrutura determinada por predicados; é antes de mais nada por nossas reações que o texto se faz presente. (Iser, 1999ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1999. , p. 45-46).

A didática da leitura, porém, não é o foco de Iser (1999ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1999. ), pois seu objetivo é descrever e defender a recepção leitora no conjunto da crítica literária. Para Chambers, as reflexões sobre a recepção e o efeito da leitura no leitor são fundamentais para iluminar as práticas escolares com a literatura. Para ele, é a caracterização da experiência do leitor empírico (aluno ou grupo de alunos) no ato de leitura literária que alicerça a abordagem Diga-me. Além de esclarecer o exercício do leitor no ato de leitura, é essencial compreender a visão de literatura adotada por Chambers. Para ele, literatura é linguagem, e ele alerta para o fato de que alguns docentes não percebem ou não fazem questão de notar que, segundo Barthes (2000BARTHES, R. O grau zero da escrita. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2000.), a narrativa é, do ponto de vista referencial, em realidade, literalmente “nada”, enfatizando que o acontecimento se dá na e pela linguagem (Barthes, 2000, apudChambers, 2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b., p. 129), e se dá também na língua, afirmando que a literatura é uma “trapaça da língua” e que ela age sobre o leitor no processo de leitura: “[...] só resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir fora do poder, no esplendor de uma renovação permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura”. (Barthes, 2000BARTHES, R. O grau zero da escrita. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2000., p. 14).

Além de trapaça, a linguagem propicia a magia, como relatado no diálogo com uma criança, durante o qual o semiólogo reflete que a literatura é uma construção linguística, o que uma criança de 10 anos chamou de “[...] uma espécie de magia que ocorre em nossa cabeça” (Chambers, 2007bCHAMBERS, A. Dime: los niños, la lectura y la conversación. Tradução de Ana Tamarit Amieva. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica , 2007b., p. 56, tradução nossa) e, vai além, recuperando Barthes (2004BARTHES, R. Da obra ao texto. In: BARTHES, R. O rumor da língua. Tradução de Mario Laranjeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes , 2004. p. 65-75., p. 70) na “magia” da leitura:

O Texto não é coexistência de sentidos, mas passagem, travessia; não pode, pois, depender de uma interpretação, ainda que liberal, mas de uma explosão, de uma disseminação. O plural do texto deve ser, efetivamente, não a ambiguidade de seus conteúdos, mas ao que se poderia chamar de pluralidade estereográfica dos significantes que o tecem (etimologicamente, o texto é um tecido).

Essa concepção de texto nos remete à plurissignificação existente no conceito de semiologia proposto por Barthes (2004BARTHES, R. Da obra ao texto. In: BARTHES, R. O rumor da língua. Tradução de Mario Laranjeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes , 2004. p. 65-75.), no qual língua e linguagem não se despegam, mas são o próprio discurso. O autor considera o texto (ou discurso) como um tecido, ou seja, um entrecruzamento de palavras, uma construção de sentidos que acontece quando texto e leitor se “tocam” e produzem um novo evento. Apropriando-se das considerações de Barthes (2004)BARTHES, R. Da obra ao texto. In: BARTHES, R. O rumor da língua. Tradução de Mario Laranjeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes , 2004. p. 65-75., Chambers (2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b., p. 129, tradução nossa) orienta:

Com certeza é essa apaixonante aventura com a linguagem que queremos para nossas crianças. Portanto, nós as ajudamos a explorar a literatura como sua própria história, e a leitura é descoberta em nossa própria história e na de outros que a leem. [...] a leitura é um constructo de linguagem que usamos para falarmos sobre nós mesmos. 7 7 No original: “Surely it is this passionate adventure with language we want for our children before all else. We therefore help them explore literature as its own story, and the story of literature is discovered in the story of our own and others reading of it. [...] reading is a construct of language we use in telling ourselves about it”

Quando Chambers (2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b.) propõe que o leitor fale sobre a própria leitura, está pautando- se na ideia de que “falar sobre narrativas” e exercitar um “falar bem sobre elas” é uma prática social comumente utilizada depois de o sujeito expor-se a uma experiência artística. Por exemplo, quando alguém lê, sente, normalmente, o desejo de compartilhar a leitura: o que gosta, o que não gosta, destaca a parte mais significativa da história, sugere o livro para quem não o leu e, de alguma forma, oferece “respostas”, “reações” provocadas pelos objetos. Recupera-se Bakhtin para refletir não apenas sobre a identificação das correntes discursivas presentes nas concepções de recepção e estéticas, mas também sobre o entendimento de linguagem (ou língua) como prática social implicada na noção de gênero de discurso.

O gênero bakhtiniano é um modo de dizer que tem suas regras e suas finalidades engendradas socialmente, o que confere a todo discurso o caráter de uma prática social. Aprender a falar não consiste apenas em aprender uma língua, mas também a falar em diferentes gêneros. As regras e as finalidades dos gêneros não são nunca inteiramente explícitas, e sua aprendizagem exige a mesma competência que exige uma língua, isto é, a de poder deduzir as regras a partir do uso que fazem os outros. (Amorim, 2002AMORIM, M. Vozes e silêncio no texto de pesquisa em ciências humanas. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 116, p. 7-19, jul. 2002. , p. 14).

Apesar de Chambers não situar suas propostas no interacionismo bakhtiniano, a ideia de prática social relacionada à experiência da conversa literária torna-se evidente, já que, segundo Schneuwly e Dolz (2004SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004. , p. 62), “[...] se o desenvolvimento é considerado como um processo de apropriação das experiências acumuladas pela sociedade [...] a prática social fornece um ponto de vista contextual e social das experiências humanas e do funcionamento da linguagem”.

Para eles, a prática e a atividade social mobilizam experiências que podem transformar-se em objetos de ensino, pois, citando Vygotsky (1930, 1934 apudSchneuwly; Dolz, 2004SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004. ), se o ensino é um desenvolvimento artificial do ser humano, a intervenção educativa é uma condição necessária para o aparecimento de certas formas cognitivas complexas, ligadas a técnicas culturais particularmente elaboradas, cujo acesso implica lugares sociais particulares de aprendizagem.

Relacionando as concepções de linguagem tanto nas abordagens pedagógicas como literárias, o enfoque Diga-me se baseia na ideia de que apenas quando se fala sobre a leitura é que o texto ficcional significa. Contar sobre a leitura pessoal é uma habilidade que, segundo o pedagogo, é inata, mas pode ser aprofundada por “intervenções educativas”, durante a “conversa literária” considerada como prática social - ler, escutar e negociar sentidos é o que se entende por “falar bem” sobre a leitura. Nesse sentido, falar “bem” é um exercício de diálogo, e não apenas falar positivamente de algo. Conectam-se, à vista disso, orientações advindas de ao menos dois campos de estudo - leitura/literatura e educação, e reafirma-se com Jonathan Culler que “[...] falar sobre o significado da obra é contar a história de uma leitura” (Culler, 2010, apudChambers, 2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b., p. 116, tradução nossa).

Ademais, buscando relacionar as áreas de conhecimento e a prática social decorrente da experiência literária, W. H. Auden (1999 apudChambers 2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b., p. 117), expõe que para ser “crítico literário” é necessário: 1) apresentar obras de autores que não se conhecia; 2) convencer de que é necessária uma leitura cuidadosa do livro; 3) mostrar a diferenças entre obras de épocas e culturas distintas; 4) desenvolver uma leitura que aprofunde a compreensão da obra; 5) dar atenção às características artísticas do livro em questão; 6) enfatizar a relação entre a arte e a vida, a ciência, a economia, a ética, a religião, etc.

Assim como Iser (1999ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1999. ), Auden (1999 apudChambers, 2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b.) não tinha em seu horizonte o ensino de literatura, já Chambers (2011b)CHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b. busca possibilidades para pensar a aproximação da criança à literatura, com o propósito de favorecer a construção das crianças como “críticos de literatura”, partindo, inicialmente, de impressões gerais sobre o livro para o detalhamento do texto ficcional, lançando mão, inclusive, da metalinguagem própria das análises literárias utilizadas pelos críticos literários.

Como forma de síntese das vozes discursivas resgatadas por Chambers na proposição de seu enfoque, apresenta-se o seguinte quadro comparativo:

Quadro 1
Alicerces do enfoque Diga-me

A partir das ideias em diálogo, as discussões sobre a recepção e o efeito, a perspectiva semiológica e a experiência com as artes, Chambers desenvolve o enfoque Diga-me, ou seja, um modelo de trabalho com a literatura na escola. Para verificar as contribuições do pedagogo, são descritos dois caminhos possíveis: a conversa formal e a informal, que, por meio das “respostas” das crianças, é possível identificar o papel social destas como “críticas de literatura”, destacando aspectos positivos e negativos da composição narrativa, os fatos supreendentes do enredo e, finalmente, as possíveis conexões intertextuais e interculturais presentes no objeto estético.

Da passagem dos diálogos emaranhados para as premissas do enfoque

A proposição de Chambers parte do desenho do círculo de leitura, pois, por meio dele, os docentes podem elaborar intervenções educativas sustentadas pelos esquemas, sempre em um mecanismo em espiral no que diz respeito ao caminho leitor das crianças.

Figura 1
Círculo de leitura

A elaboração do esquema proposto no estudo Ambiente de leitura (Chambers, 2011aCHAMBERS, A. The reading environment: how adults help children. Woodchester: Thimble Press, 2011a.) é retomada no início da apresentação de Diga-me (Chambers, 2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b.). O círculo de leitura tem o intuito de demonstrar onde se concentra a conversa literária no ato de leitura e a que tipo de conversa Chambers se refere. Nele, o adulto facilitador8 8 Chambers (2011b), em seus estudos, utiliza a expressão enabling adult (em espanhol foi traduzido como adulto facilitador), para designar aquele adulto mais experiente que propõe a conversa literária, tendo em vista o círculo de leitura. O termo mediador, muito comum nas discussões atuais sobre ensino de literatura, não é utilizado por ele e mereceria maior aprofundamento nesta distinção. está no centro da atividade e tem a incumbência de estabelecer relações entre os três polos do esquema: a seleção de textos, o ato de leitura propriamente e a resposta leitora.

A seleção de textos ficcionais é a primeira etapa do processo, porque a leitura é tanto um trabalho (exercer uma atividade) como uma arte (poder de criação); por isso, há a necessidade de selecionar livros a partir das concepções de literatura expostas anteriormente, qual seja, a apresentação das vozes discursivas passadas em revista para verificar se há aspectos de similitudes e diferenças entre as ideias e concepções dos estudiosos, com o fim de elucidar o caminho da proposta para o trabalho com a leitura literária na escola.

Sendo assim, o facilitador deve dar atenção à seleção tanto no que implica disponibilizar, dar acesso e apresentar os livros para o leitor quanto nas qualidades da narrativa oferecida, deve decidir o espaço e o tempo de leitura e escutar e acolher as respostas leitoras. Ele é, portanto, o elo entre os procedimentos do círculo. Sobre os livros, Chambers defende que há aqueles livros que possibilitam mais riqueza imaginativa, que são chamados de transformadores, isto é, que têm múltiplos níveis de leitura, múltiplos temas e são linguisticamente densos e elaborados. Assim, esses livros devem ter especificidades que possibilitem conversar sobre eles. Em direção oposta, estão os livros que apresentam ideias reducionistas, porque estão estreitamente relacionados ao familiar, ao óbvio, ao gratuitamente atraente, que se limitam a temas fáceis e redundantes (Chambers, 2008CHAMBERS, A. Conversaciones: escritos sobre la literatura y los niños. Tradução de Ana Tamarit Amieva. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica , 2008., p. 49), não oferecendo material para o desenvolvimento da conversa.

Com o objetivo de aprofundar a definição de livros transformadores, recupera-se a concepção de literatura tanto exposta por Barthes como aquela na qual a conversa literária se assenta, particularmente, na ideia de que a leitura é um meio para pensar e, pela literatura, pensa-se por imagens (Chambers, 2008CHAMBERS, A. Conversaciones: escritos sobre la literatura y los niños. Tradução de Ana Tamarit Amieva. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica , 2008., p. 40). A imagem é entendida como a toma Ítalo Calvino em Seis propostas para o próximo milênio, ao afirmar que:

A partir do momento em que a imagem adquire uma certa nitidez em minha mente, ponho-me a desenvolvê-la numa história, ou melhor, são as próprias imagens que desenvolvem suas potencialidades implícitas, o conto que trazem dentro de si. Em torno de cada imagem escondem-se outras, forma-se um campo de analogias, simetrias e contraposições. (Calvino, 1990CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990., p. 104)

As analogias, simetrias e contraposições desencadeiam as conversas, pois é a matéria da linguagem literária que oferece a possibilidade de construção de sentidos no ato da leitura. Ler, para Chambers (2011aCHAMBERS, A. The reading environment: how adults help children. Woodchester: Thimble Press, 2011a., p. 53, tradução nossa), é colocar em cena, dramatizar as letras impressas na imaginação, pois

Toda escrita é uma espécie de espetáculo teatral. Para apreciar uma história ou um poema é preciso saber converter a palavra escrita em ação, o som dos personagens pensando e falando, dando a cada “cena”, a cada sequência, o ritmo certo (lento ou rápido ou com uma pausa silenciosa) que transformará a letra impressa em drama vivo.9 9 No original: “All writing is a kind of playscript. To enjoy a story or a poem you have to know to convert print into the movement of action, the sound of characters thinking and talking, while giving every ‘scene’, every sequence, the right pace (slow, fast or a silent pause) that will turn printed information into vivid drama”.

Se ler é criar uma cena na imaginação, ampliando a discussão, para Richard Hoggart ([s.d.] apudChambers, 2011aCHAMBERS, A. The reading environment: how adults help children. Woodchester: Thimble Press, 2011a., p. 21), a literatura é um modo particular de linguagem que explora, recria e busca significados na experiência humana, porque elabora a diversidade, a complexidade e o estranho a essa experiência. Isto é, por meio da experiência literária, percebe-se a vida com toda a sua vulnerabilidade, honestidade e penetração (Chambers, 2011aCHAMBERS, A. The reading environment: how adults help children. Woodchester: Thimble Press, 2011a., p. 22).

A seleção de livros deve, portanto, primar por livros transformadores, os quais favorecem a dinâmica da conversa literária, pois a plurissignificação, as dúvidas e as coerências e incoerências narrativas geram o diálogo e a negociação de sentidos entre os integrantes da leitura coletiva.

Além da seleção, o ato de leitura (o tempo de leitura) deve ser pensado pelo facilitador, principalmente no que implica diferentes práticas com textos ficcionais. Ler para si, ler com os outros, ler em voz alta, entre outras formas, são experiências com efeitos e respostas distintas. Cada uma dessas atividades de linguagem exige preparações diferentes, e Chambers põe ênfase no tempo destinado para a leitura e no ambiente em que atenção, cuidado e concentração estão voltados para o livro.

Nesse sentido, o estudo Ambiente de leitura (Chambers, 2011aCHAMBERS, A. The reading environment: how adults help children. Woodchester: Thimble Press, 2011a.) orienta, oferecendo reflexões sobre a disposição dos livros no ambiente, os lugares e tempos de leitura, a contação de histórias, a leitura em voz alta, a busca por pistas, a ajuda para escolher livros, as respostas dos leitores etc.

Decorrente da leitura propriamente deriva a resposta leitora, que é pensada a partir da pergunta: qual é a ação intelectual provocada pela leitura? Uma possibilidade é falar informalmente sobre o livro ou ler novamente o mesmo livro ou outro do mesmo gênero ou propor uma conversa formal a partir da abordagem Diga-me. Ou, finalmente, todas as respostas juntas.

A observação da ação-resposta do comportamento leitor encaminha o facilitador a refletir sobre os procedimentos de aproximação da criança à literatura, com vistas a torná-la crítica de literatura. Simulando a prática social da conversa após a experiência literária, o facilitador opera uma intervenção educativa importante, pois “[...] trata-se de levar os alunos das formas de produção oral autorreguladas, cotidianas e imediatas a outras, mais definidas do exterior, mais formais e mediadas [...]”, conforme orientam Schneuwly e Dolz (2004SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004. , p. 121). Colocar em cena a prática social de conversas sobre objetos ficcionais como intervenção educativa conduz a criança-leitora a tornar-se consciente de sua posição de apreciadora qualificada das artes e, portanto, habilitada a comunicar sua experiência.

Sobre isso, Schneuwly e Dolz (2004SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004. , p. 121) explicam que

As formas cotidianas de produção oral funcionam, em especial nas crianças, principalmente na forma de reação imediata à palavra dos outros interlocutores presentes; a gestão da palavra é, portanto, coletiva; a palavra do outro constitui o ponto de partida da palavra própria.

A conversa literária na escola (porque não é um diálogo sobre impressões ou apenas passatempo) prevê três situações que conduzem ao aprofundamento das leituras realizadas coletivamente. Essas situações têm por objetivo compartilhar o entusiasmo, as surpresas/dificuldades e as conexões estabelecidas posteriormente à apreciação literária.

Com respeito à primeira situação compartilhada, é recuperada a ideia de conversa informal (gossip), aquela em que falamos espontaneamente sobre textos ficcionais, enfatizando a trama, os personagens ou uma parte em especial (o que você gostou ou o que você não gostou). Já em relação às surpresas e às dificuldades decorrentes da experiência com o texto ficcional, entende-se que elas possibilitam perguntas levadas ao coletivo e desencadeiam discussões e negociações de sentidos da narrativa.

A experiência de cada leitor pode ser socializada nessa situação, já que “ao compartilhar e resolver dificuldades entre os elementos que provocam ‘estranhamentos’ em uma história podemos descobrir o que essa história significa para cada um” (Chambers, 2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b., p. 105, tradução nossa). Barthes (2000BARTHES, R. O grau zero da escrita. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2000.) defende que deveriam reconhecer como fato poético expressões que despertassem a sensação de estranhamento, uma vez que essa não familiaridade geraria um prolongamento de efeitos de contemplação estética, desconcertos, enigmas, pistas e, como consequência, a dificuldade e os desafios de leitura literária. Em Chambers (2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b., p. 103), é possível encontrar termos - Sharing puzzles/puzzling elements - que podem ser entendidos como o compartilhamento de um jogo, já que a literatura não é representação, mas “trapaça da língua” ou um jogo a ser compartilhado pelo leitor.

Finalizando as situações compartilhadas, as conexões fazem referência ao que a leitura “faz lembrar”, na medida em que ela convoca outras imagens percebidas para completar a dramatização do sentido do texto ficcional. Chambers (2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b.) explica que pensar por imagens ou dramatizar/encenar a narrativa é um processo fundamental à leitura literária, pois a aprendizagem da prática reflexiva sobre a literatura acontece quando o sujeito se torna consciente de algo inato ao humano que é falar sobre o que vive, sobre as experiências. Em defesa desse ponto de vista, ele afirma que:

Vivemos na era da conversa. Nunca as pessoas falaram tanto. O telefone, os blogs, o twitter, as mensagens de texto, o rádio, o cinema, a televisão, o áudio e a gravação digital aumentaram nossas oportunidades para falar uns com os outros não apenas quando estamos juntos, mas também à distância e ao longo do tempo (Chambers, 2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b., p. 97, tradução nossa).10 10 No original: “Ours is a talkative era. Never before have people talked so much. The telephone, blogs, twitter, text messages, radio, cinema, television, audio and digital recording have all increased our opportunities for speaking to one another not only when we are together but across distance and across time as well”.

Colocar em discussão a encenação da narrativa traz à baila a possibilidade da construção coletiva de sentido: o que era individual e próprio à imaginação, quando é falado, concretiza-se no espaço público, propiciando a satisfação intelectual de perceber (tornar-se consciente) do que se sabe e do saber coletivamente construído em uma prática cooperativa. Logo, “‘Diga-me’ é sobre ajudar a criança a falar bem sobre os livros [...]” (Chambers, 2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b., p. 97, tradução nossa), não apenas indicando livros bons ou ruins, mas identificando a própria matéria literária.

Para que a conversa literária aconteça, é preciso situar as próprias interpretações no conjunto do que é público, e Chambers (2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b., p. 112-113) orienta isso sobre os diferentes modos de fala, descrevendo que, ao “falar para si”, ouve-se o pensamento interno e se estabelece uma relação íntima com a palavra e a imaginação; já quando se “fala para os outros”, parte-se do desejo de comunicar a experiência de leitura, assim convertendo os pensamentos em “bens” compartilhados, uma vez que são socializados; “falar juntos” é construir e negociar os sentidos de textos plurissignificativos. Nas palavras de Colomer (2007COLOMER, T. Andar entre livros: a leitura literária na escola. Tradução de Laura Sandroni. São Paulo: Global, 2007., p. 147), “[...] compartilhar a leitura significa socializá-la, ou seja, estabelecer um caminho a partir da recepção individual até a recepção no sentido de uma comunidade cultural que a interpreta e avalia”. Ainda, o quarto modo de fala proposto pelo enfoque é “falar sobre o novo”, pois ler “[...] dá uma sensação de ‘descolar-se’, de voar ao até agora desconhecido: a experiência da revelação” (Chambers, 2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b., p. 111, tradução nossa).11 11 No original: “The sensation is of ‘lift off’, of flight into the hitherto unknown: the experience of revelation”.

Nessa perspectiva, ao conversar sobre a leitura literária, é possível “saber que sabe” e “saber o que o outro sabe” e, nesse encontro, revelar sentidos novos para a percepção, tornando a criança consciente de que a literatura propicia um espaço de recriação e coautoria, exigindo o conhecimento de recursos metalinguísticos que contribuem para tornar mais clara a argumentação sobre o texto ficcional.

Retomando a ideia de que a abordagem Diga-me tem por objetivo ajudar as crianças a falarem sobre os livros e torná-los leitores críticos de literatura: “Como mediar entre livros e leitores de modo que não somente os livros sejam melhor apreciados de forma individual, mas também ajudem a transformar as crianças em leitores de literatura?”12 12 No original: “Cómo mediar entre los libros y sus lectores de modo que no sólo sean mejor apreciados los libros en la forma individual sino que también coadyuve a que los niños se conviertan en lectores de literatura”. (Chambers, 2008CHAMBERS, A. Conversaciones: escritos sobre la literatura y los niños. Tradução de Ana Tamarit Amieva. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica , 2008., p. 68, tradução nossa). Esse é, pois, o desafio proposto pelo enfoque.

Como possibilidade para superá-lo, Colomer (2007COLOMER, T. Andar entre livros: a leitura literária na escola. Tradução de Laura Sandroni. São Paulo: Global, 2007.) explica que a conversa em grupo serve para enriquecer a resposta própria com base nas interpretações dos outros, serve para utilizar a metalinguagem aprendida (personagem, metáfora, trama, etc.) quando faz sentido fazê-lo. Assim, falar sobre livros faz com que alguém se esforce para ser claro em sua argumentação, tornando-se cada vez mais consciente do seu papel de crítico literário.

A experiência de leitura que dirige o individual ao coletivo está na centralidade da abordagem discutida, porque atribui às práticas orais uma função relevante na construção de modos compartilhados e coletivos de vida social, com implicações sobre os modos de subjetivação dos indivíduos na esfera pública. Entende- se que as práticas orais inscrevem o sujeito, por meio de seu corpo e sua voz, na esfera da visibilidade, conferindo a ele autoria e responsabilidade por seu dizer. Considerar significativa a interpretação do colega promove um espaço de aprendizagem democrático, solidário e cooperativo. Quando o espaço atende a essas características, então todas as ideias “merecem ser comunicadas” (honourably reportable). Diante dessas concepções de literatura, das reflexões sobre as formas de socializar a experiência e das possibilidades de aprendizagem da metalinguagem literária, Chambers (2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b.) elabora a abordagem Diga-me, de acordo com as seguintes premissas do método:

  1. três situações compartilhadas (entusiasmo, dificuldades e conexões);

  2. quatro modos de fala (para si, para o outro, juntos e novamente);

  3. todas as ideias merecem ser compartilhadas.

Desenho do enfoque: perguntas condutoras

Diante das reflexões teóricas e das premissas que introduzem a proposta de mediação de leitura literária na escola, de antemão, para propor o enfoque Diga-me, os professores precisam mais do que um repertório de perguntas para ajudar os leitores a aprofundarem a leitura coletiva. Há a necessidade da criatividade e da escuta atenta das respostas das crianças para que o “roteiro” não se torne uma “camisa de força” ou uma lista de perguntas inquisitivas que levem a uma resposta única. Antes, é recomendável que o professor tenha as questões prontas na cabeça e em um roteiro preestabelecido, mas esteja em sintonia com a conversa, ouvindo, reformulando, provocando novas perguntas.

A conversa literária não tem o intuito de conduzir para uma “leitura única”, como mencionado, aquela determinada pelo chamado “cânone escolar”; pelo contrário, a intenção é “[...] ensinar as crianças a construir sentido e ao mesmo tempo mostrar para elas como estão fazendo” (Chambers, 2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b., p. 108, tradução nossa). Portanto, a chave da confiança e da troca entre os membros do grupo está no professor conhecer muito bem o livro antes de compartilhar a leitura com os alunos (Chambers, 2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b., p. 71) e, talvez, conhecer muito bem o grupo para o qual se lê.

Em vista disso, as perguntas básicas geradoras da conversa são formuladas segundo a descrição de Auden (1999 apudChambers, 2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b.) sobre quais são os motivadores iniciais de um crítico literário ao ler, interpretar e expor ao público sua leitura: o que gostou no livro? O que não gostou no livro? O que considera impactante, estranho, surpreendente, enigmático (sharing puzzles)? Quais conexões estabelece? Há algum padrão no livro? A partir dessas indagações, similares à prática social da crítica, o professor pode começar a conversar sobre literatura com as crianças.

Para que a socialização se desenvolva e se torne mais profunda, Chambers (2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b.) prevê perguntas gerais, às quais se pode recorrer sempre, independentemente das características particulares do texto lido. Alguns exemplos de perguntas são: quais outras histórias você lembrou enquanto lia o texto? Essa questão leva à comparação de similaridades e diferenças entre o material lido e o repertório do leitor, colocando ênfase na repetição ou na originalidade da narrativa (o que o texto conta) ou na forma de contar (como o texto diz o que diz).

Outro questionamento que aciona o conhecimento prévio é: quando você viu o livro, qual foi sua expectativa? Em que medida sua expectativa se confirmou (ou não) ao longo da leitura? Ambas as perguntas anteriores levam à apreciação individual do leitor, retomando o entendimento da teoria da recepção no que diz respeito ao ato de leitura, quando Iser (1999ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1999. , p. 51) afirma que “[...] o que acontece durante este processo (ato de leitura) apenas pode ser experimentado se nossas sensações, padrões, concepções e valores do passado são evocados neste processo, amalgamando-se com a nova experiência”.

Durante o ato de leitura, passa-se de uma percepção individual ao compartilhamento de ideias e pensamentos, provocando o diálogo entre os integrantes do grupo. Para tanto, lança-se mão das seguintes perguntas: o que você diria ao seu companheiro sobre o livro? Você se surpreendeu com algo que seus colegas falaram? Tais interpelações estimulam as crianças a escutar atentamente, a formular e reformular hipóteses de leitura ao aderir ou rechaçar a interpretação do outro, procurando compreender que a conversa é um espaço solidário e cooperativo, no qual todas as ideias merecem ser compartilhadas.

Na sequência, e com o propósito de aprofundar mais as percepções das especificidades da linguagem literária, as perguntas especiais são formuladas com o intuito de destacar as singularidades da narrativa em relação à linguagem, à forma, ao conteúdo e à combinação entre todos os elementos referidos. Assim sendo, perguntas como: a história se passou em quanto tempo? Qual personagem se destaca na história? Quais as características do personagem que mais te interessou? O que há de original no lugar onde a história acontece? Essas perguntas especiais geram reflexões pontuais e particulares da narrativa, a partir das quais os leitores coletivos podem partilhar os sentidos e elaborar respostas como: “tal personagem é interessante porque tem medo de monstros, mas finge que não tem”; ou “este lugar não existe, mas na história pode existir, porque nas histórias ‘tudo’ pode”. Na primeira resposta, a criança revela entender, em alguma medida, que o narrador sabe mais do que o personagem conta e, na segunda, o leitor traz à tona a noção de ficcionalidade. Ambas as respostas demonstram consciência sobre a linguagem literária, sobre os recursos próprios da literatura, sem nomeá-la propriamente, mas cientes dos procedimentos da linguagem literária e da metalinguagem muitas vezes necessária para “falar melhor” sobre o livro.

Como mencionado anteriormente, esse roteiro de perguntas não é uma receita, mas sim um caminho e, como em qualquer percurso, o leitor pode se deparar com obstáculos, silêncios, desinteresse etc. A habilidade do docente, nesses e em outros casos, é fundamental na condução da conversa. O propósito de diferenciar as qualidades das perguntas (básicas, gerais e especiais) é chegar, coletivamente, a leituras mais profundas, de modo que os leitores crianças tornem-se críticos literários.

O professor, por isso, deve ser conhecedor dos aspectos mobilizadores e hábil para transformar os impasses em oportunidades de aprofundamento para a construção de sentidos compartilhados. Para tanto, alguns procedimentos são sugeridos por Chambers (2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b.) para o desenvolvimento e a manutenção do diálogo: 1) levar continuamente o leitor de volta ao texto, indagando: como você sabe disso?; 2) entender que as perguntas gerais podem fazer com que o leitor avance na leitura; 3) ajudar os leitores a encontrarem um caminho de leitura que até então não conseguiram chegar; 4) sintetizar, quando considerar oportuno, para que cada um tenha a possibilidade de lembrar, de encontrar alguma coerência e eventualmente chegar à compreensão interpretativa.

Vale reforçar que a conversa literária não tem por objetivo compartilhar opiniões, mas propõe-se como um espaço para aprender com os outros. Sugere-se, também, evitar perguntas, como “por quê?” e “o que você acha que isso significa?” (e suas variações, como: sobre o que é mesmo? O que você acha que o autor está tentando dizer?), enraizadas no antigo estilo interrogativo dos professores, pois essas perguntas direcionam a uma resposta certa ou errada e, por vezes, evasivas, impossibilitando o prosseguimento da construção coletiva de sentido. A proposta é fazer perguntas cujas respostas o professor não sabe, e não impor uma leitura particular. O intuito é que todas as crianças possam cooperar para uma leitura coletiva mais profunda, mas que também possam fazer o percurso inverso ao anterior, no qual do coletivo volta- se ao individual.

Chambers (2011aCHAMBERS, A. The reading environment: how adults help children. Woodchester: Thimble Press, 2011a.) propõe ao professor que ele nunca tente esgotar o livro inteiro, mas deixe algo para outra ocasião. Deixar algumas perguntas sem resposta é importante, para que a criança tenha vontade de ler mais o livro, de conversar mais sobre ele, tornando-se um leitor assíduo, frequente e atento às qualidades literárias.

Com o objetivo de propiciar esse contexto de aprendizagem, Chambers (2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b.) destaca que, ao completar a experiência do círculo de leitura proposto como eixo estruturante da dinâmica, a leitura transcende o entretenimento-passatempo ou a leitura acolhedora antes de dormir e reafirma que a literatura oferece imagens para pensar, criar e recriar a própria essência da vida (Chambers, 2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b., p. 35). Em consonância com esse princípio, a literatura na escola implica a leitura para si, a leitura com os outros, para encontrar possibilidades e caminhos de interpretação e o retorno às considerações individuais.

A abordagem elaborada pelo escritor e pedagogo inglês se torna uma proposta de intervenção educativa significativamente sustentada pelas teorias da recepção da literatura, da experiência artística e da semiologia amalgamadas às práticas pedagógicas, como buscou-se apresentar.

Considerações finais

Ao longo da discussão, foi possível descrever a contribuição de Aidan Chambers (2007aCHAMBERS, A. El ambiente de la lectura. Tradução de Ana Tamarit Amieva. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica, 2007a., 2007bCHAMBERS, A. Dime: los niños, la lectura y la conversación. Tradução de Ana Tamarit Amieva. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica , 2007b., 2008CHAMBERS, A. Conversaciones: escritos sobre la literatura y los niños. Tradução de Ana Tamarit Amieva. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica , 2008., 2011aCHAMBERS, A. The reading environment: how adults help children. Woodchester: Thimble Press, 2011a., 2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b.) para pensar a literatura na escola. Como seus estudos ainda não estão traduzidos para o português, este artigo procurou sistematizar os alicerces teóricos do autor, estabelecer relações com a teoria da recepção e do efeito de Iser (1999ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1999. , 2002ISER, W. O jogo do texto. In: JAUSS, H. R. et al. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Tradução de Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. p. 105-118.), as concepções de linguagem e a literatura de Barthes (2000BARTHES, R. O grau zero da escrita. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2000., 2004BARTHES, R. Da obra ao texto. In: BARTHES, R. O rumor da língua. Tradução de Mario Laranjeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes , 2004. p. 65-75., 2013BARTHES, R. O prazer do texto. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2013.), as reflexões de Dewey (2010DEWEY, J. Arte como experiência. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes , 2010. (Todas as Artes).) com respeito à experiência com arte e, finalmente, a associação da fundamentação teórica às reflexões sobre as práticas pedagógicas de leitura literária e a proposição do enfoque Diga-me(Chambers, 2011b)CHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b..

Vale notar que Chambers (2011aCHAMBERS, A. The reading environment: how adults help children. Woodchester: Thimble Press, 2011a., 2011bCHAMBERS, A. Tell me: children, reading and talk. Woodchester: Thimble Press , 2011b.) sempre esteve em diálogo com professores da educação básica, os quais ofereceram relatos dos processos vivenciados por eles nas salas de aulas em diversos contextos de aprendizagem. Tais relatos foram utilizados pelo investigador, a fim de discutir sobre os desafios da abordagem da literatura na sala de aula. Reforça-se, nessa perspectiva, que é necessário pensar na escola (Chambers não esquece de outros lugares de aprendizagem, como a biblioteca), e é notável que ela continua, no Brasil, a ser o espaço privilegiado do encontro entre as crianças e a leitura. Contudo, muitas vezes, as intervenções pedagógicas estão preocupadas em oferecer a leitura com vistas a desenvolver habilidades para decodificar o código escrito ou impor leituras prontas. Às classes populares, a leitura se restringe a um fim prático, e a literatura se constitui como matéria de linguagem apenas para a elite, sempre entendida como ambiente para a fruição individual e como “algo além” do conteúdo escolar, não sendo necessário para sobreviver no mundo do trabalho.

O que se reivindica, neste artigo, é a literatura para todos, como um direito, e a abordagem descrita visa propiciar espaços de diálogo democrático e cooperativo, com apoio em uma seleção de livros transformadores, ambíguos, desafiadores e metafóricos, exemplos do que se entende por literatura e oportunos para tornar as crianças leitoras críticas de textos ficcionais em um movimento contínuo de leitura individual para a coletiva, e de volta ao individual.

A leitura literária compartilhada, nesta esteira, permite aos leitores ampliar seu olhar, discutir pontos de vista, abandonar estereótipos, avançar a sensibilidade para o material estético propriamente, permitindo e estimulando que os leitores exercitem a tarefa inata de crítico literário.

Referências

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  • BARTHES, R. O grau zero da escrita Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
  • BARTHES, R. Da obra ao texto. In: BARTHES, R. O rumor da língua Tradução de Mario Laranjeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes , 2004. p. 65-75.
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  • CHAMBERS, A. Dime: los niños, la lectura y la conversación. Tradução de Ana Tamarit Amieva. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica , 2007b.
  • CHAMBERS, A. Conversaciones: escritos sobre la literatura y los niños. Tradução de Ana Tamarit Amieva. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica , 2008.
  • CHAMBERS, A. The reading environment: how adults help children. Woodchester: Thimble Press, 2011a.
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  • SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004.
  • SOUZA, S. J. Infância e linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamin. 2. ed. Campinas: Papirus, 1995.
  • 1
    Algumas referências a traduções. Disponível em: <http://www.aidanchambers.co.uk/translations.htm>.
  • 2
    Utilizamos como referência, além dos originais em inglês, as versões em espanhol: DIME. Los niños, la lectura, y la conversación, publicada em 2007, e Conversaciones. Escritos sobre literatura y los niños, de 2008, ambas publicadas pela editora Fondo de Cultura Económica, na coleção “Espacios para la lectura”.
  • 3
    Ao longo do artigo as citações do corpo do texto estão traduzidas para o português, mas nas notas as citações estão transcritas conforme o original em inglês: “Please note: an approach - not a method, not a system, not a schematic programme. Not a rigid set of rules, but simply a way of asking particular kinds of question which each of us can adapt to suit our personality and needs of our students”.
  • 4
    “The ‘Tell Me’ approach grew out of the lesson learned from studying the phenomenology of reading (Wolfgang Iser helped us here) […] and the writing of various thinkers, including especially Roland Barthes)”.
  • 5
    “Without an act of recreation the object is not perceived as a work of art”.
  • 6
    No original, em inglês: “In essence, talking about literature is a form of shared contemplation”.
  • 7
    No original: “Surely it is this passionate adventure with language we want for our children before all else. We therefore help them explore literature as its own story, and the story of literature is discovered in the story of our own and others reading of it. [...] reading is a construct of language we use in telling ourselves about it”
  • 8
    Chambers (2011b), em seus estudos, utiliza a expressão enabling adult (em espanhol foi traduzido como adulto facilitador), para designar aquele adulto mais experiente que propõe a conversa literária, tendo em vista o círculo de leitura. O termo mediador, muito comum nas discussões atuais sobre ensino de literatura, não é utilizado por ele e mereceria maior aprofundamento nesta distinção.
  • 9
    No original: “All writing is a kind of playscript. To enjoy a story or a poem you have to know to convert print into the movement of action, the sound of characters thinking and talking, while giving every ‘scene’, every sequence, the right pace (slow, fast or a silent pause) that will turn printed information into vivid drama”.
  • 10
    No original: “Ours is a talkative era. Never before have people talked so much. The telephone, blogs, twitter, text messages, radio, cinema, television, audio and digital recording have all increased our opportunities for speaking to one another not only when we are together but across distance and across time as well”.
  • 11
    No original: “The sensation is of ‘lift off’, of flight into the hitherto unknown: the experience of revelation”.
  • 12
    No original: “Cómo mediar entre los libros y sus lectores de modo que no sólo sean mejor apreciados los libros en la forma individual sino que también coadyuve a que los niños se conviertan en lectores de literatura”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    01 Mar 2022
  • Aceito
    16 Jan 2023
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