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Lobos, cavalos, cadelas e outros personagens da violência de gênero no trabalho de Carolina Bianchi

Loups, chevaux, chiennes er autres personnages de violence de genre dans le travail de Carolina Bianchi

RESUMO

Este texto analisa os trabalhos de Carolina Bianchi, principalmente LOBO (2018), O Tremor Magnífico (2020) e Trilogia Cadela Força – Capítulo I: A noiva e o Boa Noite Cinderela (2023). O artigo apre-senta a artista, seus trabalhos mais recentes e discute como Bianchi coloca em cena o debate da violência de gênero, através principalmente de três eixos temáticos: o papel das mulheres na história da arte, exploração de sexualidades não-normativas e presença de seres não humanos em suas obras, que convocam o debate sobre natureza versus cultura. Discute-se como a artista articula esses elementos em cena a partir de estratégias que buscam escancarar tensões e contradições, sem apresentar uma resolução, mas em uma investigação de lingua-gem que fomenta uma reflexão crítica e viva.

Palavras-chave:
Teatro Contemporâneo ; Violência de Gênero ; Teatro Feminista ; História da Arte ; Natureza e Cultura

RÉSUMÉ

Ce texte analyse les œuvres de Carolina Bianchi, principalement LOBO (2018), Le Magnifique Tremblement (2020) et Cadela Força Trilogie – Chapitre I: La mariée et la Bonne Nuit Cendrillon (2023). L’article présente l’artiste, ses œuvres les plus récentes et discute de la manière dont Bianchi met en jeu le débat sur les violences de genre, principalement à travers trois axes thématiques: le rôle des femmes dans l’histoire de l’art, l’exploration des sexualités non normatives et la présence d’êtres non humains dans ses œuvres, qui appellent au débat nature contre culture. Il est question de la manière dont l’artiste articule ces éléments sur scène en utilisant des stratégies qui cherchent à révéler les tensions et les contradictions, sans présenter de résolution, mais qui révèlent une langage et encouragent une réflexion critique et vivante.

Mots-clés:
Théâtre Contemporain ; Violence deGenre ; Théâtre Féministe ; Histoire de l'Art ; Nature et Culture

ABSTRACT

This text analyzes the works of Carolina Bianchi, mainly LOBO (2018), O Tremor Magnífico (2020) and Trilogia Cadela Força – Capítulo I: A noiva e o Boa Noite Cinderela (2023). The article presents the artist, her most recent works and discusses how Bianchi brings into play the debate on gender violence, mainly through three thematic axes: the role of women in the History of Art, exploration of non-normative sexualities and the presence of non-humans in her works, which call for the debate about nature versus culture. It is dis-cussed how the artist articulates these elements on stage using strategies that seek to reveal tensions and contra-dictions, without presenting a resolution, but present an investigation of language and encourage critical and lively reflection.

Keywords:
Contemporary Theater ; Gender Violence ; Feminist Theater ; History of Art ; Nature and Culture

Este artigo pretende analisar como Carolina Bianchi tem, desde 2015, elaborado trabalhos nas artes da cena que refletem, em suas temáticas e poé-ticas, questões fundamentais para o feminismo e para os estudos de gênero, principalmente ao abordar com recorrência o lugar das mulheres na história e nas artes, a sexualidade fora da norma e a violência de gênero.

Acompanho o trabalho de Bianchi desde 2008, quando a artista ainda fazia parte da Companhia dos Outros1 1 A Companhia dos Outros foi um grupo de teatro que existiu de 2006 até 2016, criado na capital do estado de São Paulo por Carolina Bianchi, Tomás Decina, Fernanda Camargo e Pedro Cameron. , em São Paulo, e iniciei uma investigação mais formal de seu trabalho a partir de 2019, quando realizei a primeira entrevista com a artista e analisei seus procedimentos criativos em minha pesquisa de doutorado, defendido no mesmo ano. Além disso e de maneira inseparável, também passei a contribuir com Bianchi dentro de suas criações artísticas, tendo participado de diversas oficinas e residências orientadas por ela e, a partir de 2019, passei a fazer parte do Coletivo Cara de Cavalo, dirigido por ela, como performer e assistente de direção2 2 Sou performer e assistente de direção do trabalho O Tremor Magnífico (2020) e também colaborei com o processo de criação do primeiro capítulo da Trilogia Cadela Força (2023), no qual também fui responsável pela tradução da peça para o inglês. , e incorporo em minha investigação a observação, participação e notações dos ensaios e apresentações dos trabalhos. A análise feita aqui se relaciona com esse acompanhamento e diálogo com a artista nos últimos anos e, ainda que as suas encenações sejam o objeto central deste texto, a análise e participação nos processos criativos relacionados a essas encenações também foram levadas em conta como procedimentos para o entendimento da obra da artista.

Neste trabalho será feita uma apresentação da artista e de seu diálogo com o feminismo e os estudos de gênero de forma geral, seguida de uma análise de seus trabalhos autorais. Primeiro, serão introduzidas suas primeiras obras – Matame de prazer (2015) e Quiero hacer el amor (2017) – e, em seguida, serão descritos, para fim de análise, seus últimos três trabalhos: LOBO (2018), O Tremor Magnífico (2020) e Trilogia Cadela Força Capítulo I: A noiva e o Boa Noite Cinderela (2023). Nesta descrição já serão apontadas as principais estratégias de Bianchi para abordar os temas supracitados e, a seguir, com o auxílio de provocações teóricas feitas por Paul Preciado, em textos do Manifesto Contrassexual - práticas subversivas de identidade sexual e crônicas do livro Um apartamento em Urano: crônicas da travessia, e por Donna Haraway, em seu Manifesto Ciborgue - ciência, tecnologia e feminismo socialista no final do século XX, será analisada como a sua poética se insere nos debates de gênero contemporâneos. Esta análise será feita no sentido de apontar como Bianchi prioriza a investigação de uma linguagem para dar conta de temáticas violentas, e que essa linguagem se dá na justaposição de materiais, dentro do que a artista chama em seu último trabalho de “perspectiva da confusão”, em uma contraposição à busca por soluções definitivas para a violência em si.

Bianchi e a perspectiva feminista na cena contemporânea

Carolina Bianchi é dramaturga, performer e diretora do Cara de Cavalo3 3 O coletivo foi criado na cidade de São Paulo e concentrou seu campo de atuação na capital do estado, mas, desde 2020, com a pandemia de coronavírus e com a mudança da diretora para Amsterdam, na Holanda, o trabalho tem se desenvolvido de forma diversa, com encontros em plataformas on-line e períodos imersivos de processo criativo em São Paulo, em Amsterdam e Avignon (França). , coletivo artístico paulistano com o qual realiza os seus trabalhos nos últimos anos. Formada pela Escola de Arte Dramática de São Paulo e pela DAS -Academy of Theatre and Dance, de Amsterdam, Bianchi desenvolve trabalhos autorais desde 2015 e seu último trabalho, Trilogia Cadela Força -A noiva e o Boa Noite Cinderela, estreou em julho de 2023 no festival de Avignon, na França.

Bianchi é uma encenadora “de corpo presente na cena” (Santos; Carvalho, 2019, p. 80SANTOS, Bárbara Tavares; CARVALHO, Francis Wilker. Rastro como presença de uma ausência: sete movimentos dos corpos de encenadore(a)s. Revista Rascu-nhos - Caminhos da Pesquisa em Artes Cênicas, v. 6, n. 2, 2019.), pois a cena é escrita, encenada, dirigida e também atuada por ela. Em diálogo com a cena contemporânea, a perspectiva de gênero de Bianchi se dá, frequentemente, junto à investigação de poéticas que desafiam estruturas mais convencionais, borrando fronteiras entre a dança, performance, teatro e cinema em uma exploração de formatos como a palestraperformance e a autoficção. Ainda que tais aspectos não sejam explorados exclusivamente por mulheres na cena contemporânea, a autoria em múltiplas camadas, encontrada também nos trabalhos de artistas contemporâneas como Grace Passô, Janaína Leite, Leonarda Gluck e Renata Carvalho, traz, necessariamente, uma perspectiva não universalizante, pessoal e entretanto coletiva, e, desse modo, interessa àquelas que desejam falar a partir de um ponto de vista não hegemônico.

Em consonância com a provocação de Grada Kilomba, que pergunta “O que acontece quando falamos? E sobre o que podemos falar?” (Kilomba, 2019, p. 30KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Ed. Cobogó, 2019.), as imagens e temáticas trazidas por Bianchi frequentemente rompem com pactos silenciosos e trazem temas incômodos para a cena, principalmente acerca da sexualidade e da violência. Se “o teatro pode ser também lugar de fala” (Bacellar, 2017, p. 27BACELLAR, Camila Bastos; LEAL, Mara Lucia; ALCURE, Adriana Schneider; AZEVEDO, Maria Thereza. Pedagogias Feministas e de(s)coloniais nas artes da vida. Ouvirouver, Uberlândia, v. 13, n. 1, 2017.), quando o sujeito dessa fala é uma mulher, há uma mudança do que é colocado em cena e, talvez de forma mais importante, do modo como determinados temas são colocados em cena.

No caso de Bianchi, especificamente, não se trata de uma encenação que parte de depoimentos dela como mulher, ainda que em algumas de suas obras ela traga dados autobiográficos de formas mais evidentes, mas de uma criação cênica que investiga formas de comunicar e relacionar temas vinculados a gênero e sexualidade, com centralidade na violência. Essas formas de comunicação investigadas por Bianchi frequentemente escapam da exposi-ção esquemática da violência, e buscam questionar dicotomias entre bom vs. mau, homem vs. mulher; e assim questionar a própria natureza dessas dicotomias e denunciar sua fragilidade.

Juliana Moraes (2022, p. 20)MORAES, Juliana Martins Rodrigues de. Coreografia da Histeria: corpos convul-sivos e empoderamento feminino na cena paulista. Urdimento – Revista de Es-tudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 44, set. 2022., que identifica Bianchi como parte de uma geração de artistas da terceira onda feminista, traz uma perspectiva psicanalítica sobre esse grupo, ao notar nas obras produzidas por essa geração uma tentativa de subversão de uma corporalidade “histérica”, o que se traduz em corpos “convulsivos” que apresentam comportamentos pouco civilizados e pouco “femininos”, em uma aproximação com os animais que “urinam, babam e se contorcem”, mas também se movem com violência, fora do controle, de forma desarmônica e imprecisa.

Já em 2010, Marvin Carlson reconhecia a tendência de temáticas autobiográficas nas performances dos anos 1970 e 1980 dentro das obras feitas por mulheres, como forma de tomarem as rédeas da narrativa até então dominada por artistas homens brancos cisgênero (Carlson, 2010CARLSON, Marvin. Performance – uma introdução crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.). Carlson (2010, p. 168)CARLSON, Marvin. Performance – uma introdução crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. aponta também a tendência de assumir múltiplas funções na criação: “elas criaram seus próprios projetos [...] como escritoras, produtoras, diretoras, desenhistas, elenco e, muitas vezes, também carpinteiras e figurinistas”. Interessante ressaltar essa diferença: enquanto o trabalho dos homens muitas vezes não os implicava em cena ou em funções técnicas, reservando para si o lugar de um criador separado de sua criatura, a tendência das mulheres de se colocarem para executar suas próprias ideias também revela uma outra relação que se trava com a obra de arte, que nega justamente esse lugar supostamente objetivo, distanciado e, ao mesmo tempo, cria a possibilidade de recusar que, mais uma vez, alguém fale em seu nome.

Segundo Carlson, os artistas homens não estariam tão interessados nessa abordagem de matiz autobiográfica, enquanto entre as mulheres há trabalhos recorrentes do tipo, como de Linda Montano, Barbara Smith e Yvone Rainer, artistas estadunidenses as quais Carlson referem para afirmar seu ponto de vista. Acrescento aqui a hipótese que esse aparente desinteresse dos homens em falar de si não se relacionaria tanto com um desejo de falar sobre outros assuntos, mas um entendimento de que todos os assuntos são, em realidade, sobre si – quando se ocupa um lugar hegemônico não é necessário explicitar sua experiência ou sua autoria, pelo contrário, há uma naturalização da experiência pessoal como universal. É o subalterno, é o segundo sexo, é o Outro, que não têm o direito de ter a sua experiência de mundo contada de forma habitual, pois essa experiência é considerada então estranha ao que é universal. Em consonância com essa afirmação, Itziar Pascual (2016, p. 193-205) responde quando perguntada sobre a perspectiva feminista em seu trabalho:

No momento que você coloca atores em cena, com uma interpretação, com um texto, há um ponto de vista. [...] Se pensava que a excelência era aquilo que era objetivo. Acredito que de um tempo para cá, por sorte, muitas teorizações, muitas pessoas têm vindo para evidenciar que quando se falava de objetividade, se falava de uma ideologia dominante, de algo que era, em realidade, a ideologia de um segmento que havia conseguido apoderarse do pensamento e que além disso queria convencer que isso era o correto, o único, o aceito (tradução nossa).

Assim, é compreensível que sejam as artistas mulheres, pessoas trans, racializadas, com deficiência e/ou migrantes que tragam para o palco suas experiências, que sintam a necessidade de debater sobre suas vivências e opressões, inclusive envolvendo por vezes “sua própria performatividade de gênero como obra artística” (Colling, 2021, p. 5 e 6COLLING, Leandro. O que performances e seus estudos têm a ensinar para a te-oria da performatividade de gênero? Urdimento, Florianópolis, v. 1, n. 40, mar./abr. 2021.).

Bianchi dialoga com suas contemporâneas em suas propostas, indireta ou diretamente, tanto através das temáticas abordadas em seus trabalhos, quanto nos procedimentos criativos e práticas performativas desenvolvidas por ela, muitas vezes inspirados em debates vindo dos campos da Filosofia, da Antropologia e dos Estudos de Gênero, com o intuito de trazer essas discussões para a cena e para o corpo.

Primeiros trabalhos autorais: o sexo e o espaço

Desde 2015, quando iniciou suas investigações mais autorais, com o trabalho Mata-me de prazer, Bianchi sempre tocou no tema da violência e da sexualidade de alguma forma. Nesse espetáculo, a artista narra um estranho acontecimento: um abalo sísmico que faz com que um pedaço de terra se desprenda do continente e sua população passe a viver segundo regras próprias, comunicando-se por telepatia e dedicando grande parte do tempo a relações sexuais variadas. No final dessa obra, em suas primeiras versões, Bianchi atirava facas em uma placa de madeira em formato e com um desenho de um lobo e convidava alguém do público a fazer o mesmo. Em uma nova versão do trabalho, com poucas alterações na dramaturgia, a artista veste luvas de borracha e se masturba com um microfone próximo a sua vulva enquanto segue com o texto.

O trabalho seguinte, Quiero hacer el amor, de 2017, tratase de uma performance em que um grupo de aproximadamente dez mulheres4 4 Inicialmente, na chamada para a residência, Bianchi não especificou se as performers seriam mulheres cisgênero ou transgênero. Existem pessoas que fizeram parte do trabalho que já não se identificam mais como mulheres, mas como pessoas não-binárias ou homens trans. Para além de complexificar o entendimento de Bianchi de gênero, acredito que essa nota é importante no sentido de não deslegitimar as identidades de pessoas envolvidas no trabalho. O mesmo se aplica ao grupo de LOBO, que também engloba pessoas transgêneras. se move por um local público com a orientação de “transar com o espaço”. As performers não buscam simular uma relação sexual, mas genuinamente investigar corporalmente como dar prazer ao espaço e sentir prazer nessa interação, e assim descobrir quais movimentos e estados corporais são possibilitados a partir dessa orientação. Novamente o sexo aparece como tema central a partir de uma tentativa de causar ruptura na prática sexual normativa – feita por apenas dois corpos, preferencialmente de um homem e de uma mulher cisgêneros, em um ambiente privado, seguindo um script previsível associado à reprodução sexual, ou seja, com penetração do pênis na vagina e finalizando na ejaculação do homem. Tomando Paul Preciado e George Bataille (1987)BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987. como importantes referências nesse momento, Bianchi levou para a performance o debate da relação sexual e do erotismo como campo político fundamental para a manutenção do sistema colonial, patriarcal e capitalista. Se esse sistema se baseia no núcleo familiar cis-heterossexual e monogâmico, o que acontece quando são exploradas práticas subversivas à norma? Bianchi estava, nesse momento, interessada em propor novas formas de comunica-ção, de relação, tanto entre pessoas como entre pessoas e natureza, pessoas e espaço. Esse interesse segue se manifestando em seus trabalhos, de distintas formas, como veremos mais adiante.

Um teatro de lobos e fantasmas

Em seguida, Bianchi retoma a imagem final de Matame de prazer no espetáculo LOBO, em uma obra que retorna ao edifício teatral e à própria teatralidade, ainda que sempre em tensão com a performatividade5 5 Aqui entendemos performatividade como propõe Josette Féral (2008), em seu texto Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. Ferál propõe o termo “teatro performativo” em uma afirmação de que o teatro feito a partir dos anos 1960 passa a incorporar muitas características da arte da performance. Féral aponta como um dos aspectos centrais dessa influência do campo da performance no teatro a importância da execução de ações, em oposição à representação de ações. A autora Érika Fischer-Lichte também já havia apontado para essa aproximação do teatro com a performance em seus trabalhos The Transformative Power of Performance A New Aesthetics e Estética do Performativo, na defesa de que o teatro não seria mais, a partir dos anos 1960, entendido como um espaço para a representação de uma ficção. . LOBO é permeada por momentos de representação e artificialidade bastante significativos, mas também engloba propostas mais performativas, inclusive com uma nova realização do sexo com o espaço, desta vez feita pelos performers no teatro.

Em uma estrutura organizada em capítulos, sem compor uma narrativa linear, mas com uma sobreposição cumulativa de imagens e texto, em sua parte inicial LOBO traz a obra de Artemísia Gentileschi6 6 Artemisia Gentileschi foi uma pintora barroca italiana, primeira mulher a fazer parte da Academia pintura de Florença. (1593-1656), Judite decapitando Holofernes. A pintura de Gentileschi é um marco importante na história da arte para discutir violência de gênero: Gentileschi foi estuprada por um professor que, contrariando a convenção já bastante violenta da época, recusou-se a casar com ela e foi então processado por seu pai. Durante os sete meses de julgamento, Gentileschi teve seu corpo e vida escrutinados, pois, de acordo com as leis vigentes, era necessário provar sua virgindade para que o estuprador fosse condenado. No quadro, especulase que o professor estaria retratado nessa imagem como Holofernes, enquanto ela fizera um autorretrato na mulher que o decapitava, como uma forma de vingança imagética criada por Gentileschi.

Figura 1
Artemisia Gentileschi, Judite decapitando Holofernes (1620), Florença, Itália. Fonte: Website da Uffizi Gallery.

Em LOBO, um grupo de cerca de 20 homens se organiza em coro, formando uma série de oposições em relação a Bianchi: eles nus/ela vestida, eles sem falas/ela com todo o texto (em cena e na locução da projeção), eles em grupo/ela sozinha etc. As tensões entre ela e o coro são construídas de diversas formas ao longo da peça, tanto denunciando como subvertendo estruturas de opressão de gênero: inicialmente ela entra em cena remetendo a uma femme fatale do faroeste, com duas armas em punho, pronta para atirar contra todos eles e, no momento seguinte, eles a perseguem e a tocam de forma crescente até tornar-se sufocante, um assédio. Em outro momento da peça é criada uma cena de par romântico, fazendo referência a clichês dos romances de cinema, em que Bianchi persegue um performer específico, repetindo que ela lhe deu os melhores anos de sua vida, até jogar-se sobre ele e devorar seus intestinos.

Há, ainda, intermezzos na peça, em que aparece uma raposa empalhada que diz textos remetendo a uma natureza estranha, em que narra, por exemplo, sua experiência de ter botado um ovo e quebrado todos os ossos da bacia. Nas cenas finais, Bianchi traz a figura de Mary Shelley, autora do primeiro livro de ficção científica, Frankenstein, cuja obra foi por muitos anos atribuída ao seu marido – o que é dito em cena. Podemos pensar em LOBO como uma forma bem interessante de trazer o debate de natureza x cultura para a cena. Discussão que se desenvolve entre os campos da Filosofia, da Antropologia e da Biologia e explorada por várias/os autoras/es, em uma tentativa de delimitar o que seria natural e o que seria construído socialmente, tal debate, enfim, é crucial para os estudos de gênero. Se historicamente o argumento dos atributos naturais foi utilizado para subjugar aqueles que não eram homens europeus cisheterossexuais, a partir de trabalhos como o de Simone de Beauvoir e, posteriormente, de Judith Butler, surge o questionamento do que seria, realmente, uma natureza feminina e de como a feminilidade poderia ser, então, algo artificial, criado em oposi-ção ao homem e performado enquanto gênero.

LOBO remete-se a aquilo que é selvagem, no sentido de referir-se a um animal não domesticado, potencialmente perigoso, mas também ao animal vilão dos contos de fada – seria a violência dos homens contra as mulheres algo natural ou seria parte de uma construção histórica? Ainda que o debate não esteja colocado explicitamente na obra e Bianchi não ofereça uma resposta conclusiva a essa pergunta, as imagens criadas em LOBO dão continuidade a sua tentativa de organizar as relações de modo diverso.

Figura 2
Cena de LOBO, em cena Carolina Bianchi e Gabriel Bodstein. Apresentação no SESC Pompeia, em São Paulo, 2019. Fonte: Foto de Mayra Azzi.

Em seu trabalho seguinte, O Tremor Magnífico, Bianchi se aproxima mais do campo da história, sob as figuras de fantasmas, bruxas e vampiros, assombrações que remetem a um passado colonial macabro não superado, permeado de mortes violentas, perseguições às mulheres e relações parasitá-rias. No libreto da obra podemos encontrar o seguinte texto que reafirma a relação entre esses seres fantásticos e a história:

É impossível enterrar a História por completo. A História pode ser escondida, esquecida, adulterada, mas enterrá-la é inútil. Sempre haverá criaturas emergindo da terra, das tumbas, das paredes ou dos livros. Sempre haverá seres a atravessar os tempos, que ressuscitam e se alimentam de nova vida (Dalgalarrondo, 2020DALGALARRONDO, Luísa Jacques de Moraes. In: BIANCHI, Carolina (Org.). O Tremor magnífico/The Magnificent tremor [libreto]. São Paulo: Acampamento, 2020., local MMXIX.II).

Nesse trabalho, a artista tensiona a violência perpetrada contra as mulheres com a figura da mulher violenta, através da história de Elizabeth Bathory7 7 A história de Bathory é contada pela poeta argentina Alejandra Pizarnik, em seu livro La Condesa Sangrienta (1966). , a condessa que teria matado centenas de pessoas – quase todas mulheres jovens torturadas cruelmente. Jota Mombaça (2016, p. 12)MOMBAÇA, Jota. Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e antico-lonial da violência. Cadernos de Imaginação Política, São Paulo, 2016., ao afirmar a necessidade de uma “redistribuição da violência”, aponta que

[...] a simples evocação imaginativa de outras formas de violência tem já um efeito disruptivo sobre essa gramática que visa garantir a estabilidade da representação da violência masculina a partir de um paralelo negativo com as posições afeminadas – de mulheres cis, bichas, travestis e outras corporalidades marcadas como femininas e representadas como necessariamente frágeis e passivas frente a violência.

Também realizada em quadros, a peça se inicia com Bianchi montada em um cavalo – um performer posicionado em quatro apoios com uma toalha ilustrada com um cavalo, que o esconde, estendida à frente por duas pessoas que remetem a Adão e Eva – e, em seguida, é apresentada a peça que as pessoas estão por ver: uma bad trip de uma relação sadomasoquista que teríamos com a história colonial, com o eurocentrismo. Essa bad trip revela a nossa atração por conteúdos europeus que navega junto a uma rejeição profunda desses mesmos materiais, pois a própria atração é fruto da colonialidade, que nos compõe e nos fere simultaneamente.

Os quadros seguintes apresentam um sabbath de bruxas, uma coreografia de fantasmas e uma festa de vampiros, entremeada por um momento em que Bianchi narra uma tentativa de estupro que ela sofreu, articulando essa violência com a invasão dos portugueses no território brasileiro e o golpe sofrido pela presidenta Dilma Rousseff em 2016. O terror, outro tema ao qual Bianchi se dedica, tem marcadores de gênero claros, seja na história ou no cinema: na pe-ça, a mulher é simultaneamente a primeira vítima e a final girl, personagem da cultura pop que consegue sobreviver ao monstro. A final girl de O Tremor Magnífico pode ser a América Latina saqueada e escravizada, pode ser Dilma Rousseff e pode ser também a própria Bianchi, que escapou de ser violada em um carro em Recife em 2018, segundo ela conta na peça. A peça finaliza com um cavalo morto sendo jogado de cima para o centro do palco que dava lugar, até então, a uma encenação do funeral da própria Bianchi.

Figura 3
Cena de O Tremor Magnífico, em cena estão Carolina Bianchi, Chico Lima, Larissa Ballarotti e Tomás Decina. Apresentação no Teatro de Contêiner, em São Paulo, 2020. Fonte: Foto de Mayra Azzi.

Se em LOBO Bianchi parece lançar a pergunta se a violência de gênero seria algo natural ou algo construído socialmente, em O Tremor Magnífico, a questão de reformula para investigar em que momento da história essa violência se inicia e qual é a extensão de sua presença no decorrer do tempo.

Cadela Força – a violência enigmática e escancarada

O seu trabalho mais recente, Trilogia Cadela Força - A noiva e o Boa Noite Cinderela, é o primeiro capítulo de uma trilogia8 8 Bianchi está atualmente desenvolvendo outros dois trabalhos previstos para compor essa trilogia. e é dividido em duas partes. Descrito por Kate Wyver (2023)WYVER, Kate. Dredging, destruction and date rape drugs: Take Me Somewhere’s daring performance art in The Guardian, 17 de outubro de 2023. Disponível em https://www.theguardian.com/stage/2023/oct/17/take-me-somewhere-daring-performance-art-glasgow-festival. Acesso em: 18 out. 2023.
https://www.theguardian.com/stage/2023/o...
como um “[...] nocaute, uma odisseia de pesadelo” (tradução nossa), a obra se inicia com Bianchi sozinha, em um espaço e com um figurino todo branco e lê um texto longo em formato de palestra. Ela inicia a peça afirmando não ser a protagonista da obra, porque a protagonista estaria morta, já introduzindo uma temática central do trabalho, o feminicídio. Nesse início, a artista anuncia também que a perspectiva que ela trará sobre esse tema é a “perspectiva da confusão”, revelada na justaposição de materiais que não possuem uma relação muito evidente e reafirmada na impossibilidade de conclusão dos problemas levantados.

No texto lido nessa primeira parte, ela trata justamente da violência de gênero e de performances realizadas por artistas mulheres, trazendo como referências centrais a história de Pippa Bacca, performer italiana que foi assassinada e estuprada durante a sua performance Sposa in viaggio9 9 Noiva em viagem ou noiva viajante (2008), e a performance La Siesta, de Regina José Galindo. A performance de Bacca consistia em pedir carona vestida de noiva, junto com sua companheira de trabalho, Silvia Moro, em um trajeto que se iniciava no norte da Itália e rumava até Jerusalém. Em uma tentativa de explorar uma relação de confiança com a bondade dos desconhecidos, elas cruzavam zonas em que havia forte tensão sociopolítica e utilizavam a metáfora do casamento entre as na-ções através das imagens das noivas. A performance de Galindo, por sua vez, consistia na artista tomar um medicamento sedativo e dormir em um colchão diante do público, deixando seu corpo vulnerável e exposto para uma audiência, também criando uma relação de confiança com desconhecidos. Bianchi dialoga com Galindo de forma bastante direta, ao trazer para cena a prática do Boa Noite Cinderela, uma forma de violência de gênero em que uma mulher é induzida a tomar fármacos sedativos de forma velada, é violada e, de modo geral, não consegue acessar as memórias dessa violência nos dias que seguem o do crime.

Enquanto Bianchi lê o texto, que inclui uma canção em italiano – as canções e o karaokê também estão presentes nas duas obras anteriores –, ela toma um coquetel de drogas sedativas com vodka, o seu próprio Boa Noite Cinderela. A performer segue lendo seu texto e, ao longo de aproximadamente 40 minutos, vai confundindo palavras e tornandose sonolenta, até que não tem mais condições de seguir e dorme em cena, finalizando a primeira parte da obra. Na segunda parte, o cenário muda completamente: o corpo de Bianchi é deixado em cena inerte e são trazidos elementos que remetem a um deserto e tumbas, com um carro ao fundo. Um grupo de performers entra em cena e parece se mover em uma dança pouco eficiente, uma outra forma de encenar a confusão em uma coreografia que se parece mais com um borrão de uma coreografia, sem um tônus ou um ritmo preciso. Como se fossem os flashbacks de uma pessoa que foi dopada, a segunda parte se segue em um clima de festa perturbadora, com uma energia sexual difusa e tensa, uma violência sempre iminente e com forte intertextualidade com a obra 2666, de Roberto Bolaño, romance no qual o escritor chileno dedica toda uma parte a uma narrativa dos numerosos feminicídios acontecidos a partir de 1993 na região da Ciudad de Juarez, no norte do México. Durante toda essa parte, sobrepõe-se a presença das pessoas em movimento, muitas vezes dançando, com um texto que é projetado continuamente, como se fosse a continuidade do que Bianchi lera na primeira parte e, ao mesmo também, como se o texto fosse também parte desse pensamento entrecortado da memória da pessoa dopada.

Nesse trabalho, ao invés do lobo ou do cavalo, é a imagem de um carro que vem como assombração – uma máquina mortífera, como os carros em que Pippa Bacca entrava, como o último carro que ela entrou. No romance de Bolaño, muitas vezes a última vez que a vítima teria sido vista era quando ela teria entrado em um carro, assim como é descrito em muitos casos de feminicídio. Na parte final da peça, é feito um exame ginecológico em Bianchi, ainda dopada, em que ela é colocada sobre o capô do carro e uma câmera é inserida em seu útero, com as imagens projetadas em um telão enquanto uma das performers diz um texto com uma análise de Rita Segato, antropóloga argentina, sobre o feminicídio como prática de aniquilamento e também como uma forma de comunicação entre grupos de homens, que demonstram seu poder e a descartabilidade dos corpos através do estupro e do assassinato. A violência se revela ela própria então como uma linguagem, como uma forma de comunicar poder, não somente sobre os corpos violentados, mas também sobre o espaço e sobre a narrativa.

Figura 4
Cena de ensaio de Trilogia Cadela Força - A noiva e o Boa Noite Cinderela, em cena está Carolina Bianchi à frente de uma projeção que mostra parte da performance Sposa in Viaggio, de Pippa Bacca. Fonte: Foto de Christophe Raynaud de Lage.

A história (violenta) da arte

Nos seus três últimos trabalhos, há referências frequentes às mulheres na história da arte, seja ela erudita, pop, antiga ou contemporânea: Artemisia Gentileschi, Mary Shelley, Ana Mendieta, Pippa Bacca, Regina José Galindo, Daniela Perez, Tania Bruguera, Lygia Clark, Virginia Woolf. Além de denunciar o apagamento de grande parte dessas figuras no ensino e na construção da história das artes, grande parte das mulheres artistas citadas sofreram violências de gênero inseparáveis de sua trajetória artística. Gentileschi, estuprada pelo tutor, Mendieta, assassinada pelo marido10 10 Ana Mendieta morreu em 1985, após cair do 34º andar do prédio onde estava. Carl André, então seu marido, foi acusado pela morte da performer, mas absolvido posteriormente, prevalecendo juridicamente a tese de que Mendieta teria cometido suicídio. A autora deste artigo, bem como muitas outras artistas e teóricas feministas que conheciam Mendieta e seu trabalho, não acredita nessa versão. , Bacca, estuprada e morta durante a sua performance, Daniela Perez, assassinada pelo companheiro de trabalho. Bianchi as nomeia e dialoga com elas através de distintas estratégias e apontando diferentes relações. São tentativas de homenagem, rituais de ressuscitação, reescrita da história, um diálogo com as mortas, com pontos de referência para entender-se ela própria, Bianchi, como parte de um grupo de artistas, de mulheres violentadas e silenciadas.

As formas como essas referências aparecem são variadas, sendo tanto referências que Bianchi usou no processo criativo como inspiração para as cenas, quanto momentos de intertextualidade e apresentação das artistas explicitamente na dramaturgia. Em O Tremor Magnífico, por exemplo, há uma cena em que todos os performers estão virados de costas, apoiados contra o fundo do palco, com as calças abaixadas, em um aceno à obra Rape scene, de Ana Mendieta.

Em A noiva e o Boa Noite Cinderela, há um momento de karaokê em italiano, como uma homenagem a Pippa Bacca e a própria estética do primeiro capítulo – toda de branco – remete à estética de Bacca. Não se trata somente de nomear e homenagear as artistas em uma relação meramente elogiosa, no entanto: à medida que é feito o diálogo com essas referências, também se revelam importantes pontos de tensão. Há, nesse último trabalho, a exposição de um tensionamento entre Bianchi e Bacca a partir da explicitação da marca colonial em seus discursos e crenças. Bacca, italiana e cristã, acreditava poder cruzar os Balcãs em um ato de fé na humanidade. Bianchi, como mulher latinoamericana, afirma que não se disporia a esse ato de fé, e revela como a sua relação com Bacca é multifacetada: há admiração e carinho, mas também há certo rechaço pela sua postura de mulher branca europeia, a acreditar-se fora de perigo. Bacca se mantém distante de uma perspectiva feminista, corroborando com a imagem de pureza atribuída à mulher e faz um elogio à posição normativa de mãe e esposa em seu trabalho, ao passo que Bianchi recusa a norma e se pergunta em cena “Mulher existe? Estaríamos performando uma impossibilidade?”, retomando então questões postas por Beauvoir, Lacan e Butler.

Na segunda parte, Bianchi retoma essa tensão, colocando a si mesma como uma mulher que goza dos privilégios da cisgeneridade e da branquitude, quando Blacky, performer negra e travesti, dirige-lhe a palavra na tentativa de fazê-la sair do estado de torpor do Boa Noite Cinderela. Não é uma coincidência que justo essa performer seja a figura a trazê-la de volta a consciência. É evidente, como afirma Dodi Leal, que “[...] a presença de pessoas transgêneras em processos cênicos promove, consigo, uma guinada nos estudos culturais, pondo em xeque assunções matizadas no século XX, em especial a antropofagia oswaldiana” (Leal; Rosa, 2020, p. 5LEAL, Dodi; ROSA, André. Transgeneridades em Performance: desobediências de gênero e anticolonialidades das artes cênicas in Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 10, n. 3, e97755, 2020.) e Bianchi se coloca diante dessa antropofagia com evidente náusea, pois não se trata mais, de fato, de simplesmente digerir conteúdos e transformá-los, mas lidar com a própria indigestão desses conteúdos.

Colocando em questão os limites da performance e fazendo um paralelo entre ações de artistas homens e mulheres, Bianchi nos recorda que o risco louvado como ousadia e coragem para os primeiros é o mesmo que é visto como ingenuidade nas últimas, e questiona a ideia de segurança, de superação, de digestão nesses materiais. O carro colocado em cena contém em sua placa a inscrição fuck catharsis11 11 “Foda-se a catarse”. , e aponta justamente para essa rejeição a ideia de uma cura ou purgação do mal através da obra cênica.

Bianchi frequentemente se depara com questões insolúveis, e muitas vezes essa impossibilidade de conclusão é característica da própria violência e reflexo da extensão de seus efeitos no mundo. Assim como os feminicídios de Juarez, que parecem enigmas impossíveis de resolver, a violência parece estar em todos e em nenhum lugar ao mesmo tempo: o estuprador que dopa a vítima com o Boa Noite Cinderela retira dela também a possibilidade de lembrar o seu rosto, saber sua identidade e de saber, inclusive, exatamente qual crime sofreu. Bianchi parece afirmar constantemente que assim é a violência de gênero: de tal maneira estruturante para a nossa sociedade que é difícil livrar-se dela sem romper com a própria sociedade.

Práticas sexuais em performance

Desde o primeiro trabalho descrito aqui, em Matame de prazer, Bianchi já abordava o tema do erotismo, principalmente por meio de práticas sexuais que fossem, de alguma maneira, subversivas. A artista afirma que:

[...] eu tinha 30 anos e comecei a me fazer algumas perguntas como eu faço o sexo que eu realmente quero fazer? Como a maneira que eu faço sexo afeta a maneira como eu danço, como eu escrevo? Estou fazendo isso ou eu estou fazendo eternamente o mesmo teatro das coisas que eu aceitei? (Bianchi, 2019, p. 223BIANCHI, Carolina. Entrevista. São Paulo, 29 de março de 2019.).

Os processos criativos conduzidos por Bianchi são particularmente centrados no desenvolvimento de práticas que aproximem o coletivo de performers às sensações e imagens que a artista pretende criar, e a diretora afirma que “grande parte dos procedimentos elaborados surgiram por uma necessidade de encontrar práticas que a aproximassem de uma ‘outra lógica’”, em uma tentativa de “transformar seus desejos em exercícios”, e encontrar práticas que tornassem seu “imaginário ser praticável” (Dalgalarrondo, 2019, p. 140DALGALARRONDO, Luísa Jacques de Moraes. Anatomia Imaginada: imagina-ção na construção do corpo nas artes da cena. 2019. Tese (Doutorado em Artes da Cena) – Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2019.). É assim que surge, por exemplo, a proposta de “transar com o espaço”.

Trazer o questionamento sobre suas práticas sexuais para seus procedimentos criativos e para a própria cena é uma forma de romper com o pacto de silêncio sobre esse aspecto da vida e aproximá-lo das questões sobre teatralidade e performatividade em relação a gênero e sexo. É também uma tentativa de experimentar o que Paul Preciado (2017, p. 21)PRECIADO, Paul B. Manifesto Contrassexual. Tradução Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1 edições, 2017. propõe como contrassexualidade, a saber, uma suplantação de um contrato social tido como “natural”, que prevê uma relação entre dois gêneros divididos de forma binária, para formas de exploração e relação que reconheçam outros corpos não como homens ou mulheres, mas como “corpos falantes”12 12 Seria então uma recusa à ideia de gênero como “verdade biológica” (Butler, 2001), uma dissolução da binaridade e uma compreensão de gênero como performatividade, alinhada às proposições de Judith Butler. e busquem as possibilidades apresentadas no desvio dessa norma, desse contrato social tacitamente aceito. Se, segundo o autor, devemos considerar todo o corpo como “uma superfície, terreno de deslocamento e localização do dildo” (Preciado, 2017, p. 49PRECIADO, Paul B. Manifesto Contrassexual. Tradução Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1 edições, 2017.), a possibilidade de fazer sexo com o espaço não é uma fantasia, uma impossibilidade ou uma metáfora, mas um real ato contrassexual.

Se a sexualidade das mulheres e outros corpos de alguma forma desviantes foi transformada historicamente em zona de repressão e/ou foi patologizada, é também com o intuito de explorar formas de erotismo e modos de prazer distantes das expectativas convencionais que Bianchi traz o sexo como temática e prática em seus trabalhos. É também um campo em que a possibilidade de desorientação e descontrole estaria mais acessível: assim como o sono e o sonho, em que há, do ponto de vista psicanalítico, uma certa suspensão do julgamento e das restrições sociais, há na sexualidade, uma vez que o sujeito se permita desvencilhar-se dessas restrições, esse espa-ço de descontrole, desordem da organização cotidiana. Apresentase em cena então a possibilidade da sexualidade também como uma possível linguagem e como campo de invenção de outras formas de comunicação e relação.

Animais, monstros e máquinas

Há um elemento recorrente em todos os trabalhos, que é a presença de seres não-humanos: animais, monstros e máquinas. Em Mata-me de prazer, há em toda a narrativa seres humanos que parecem se comportar como animais não-humanos, com uma comunicação não-verbal, uma sexualidade amoral e uma validação da intuição como agente na tomada de decisões – seria possível, na nova realidade instaurada pelo abalo sísmico, desmarcar um compromisso por ter uma forte intuição de que não se deve sair de casa, por exemplo. Em Quiero hacer el amor é o espaço, as escadas, corrimãos, portas, bancos, balcões – que são elevados a um outro estatuto, já que as performers se propõem a ter uma relação sexual com eles.

Em LOBO, além do próprio título da obra, há a figura da raposa empalhada, que entra em cena como um interlúdio, mas com um texto pró-prio e, ao final, há uma cinta-lagosta – um acessório semelhante a um brinquedo erótico que consiste em um pênis artificial atrelado a uma cinta, mas que nesse caso substitui o pênis por uma lagosta e é colocada por Bianchi enquanto os demais performers pintam seus pênis com uma tinta fluorescente colorida. Em O Tremor Magnífico, temos a réplica de um cavalo em tamanho real, já citada anteriormente, e são frequentes as criaturas monstruosas: as bruxas, fantasmas, vampiros. Em Trilogia Cadela Força, os animais aparecem no título e no texto inicial, quando Bianchi narra uma histó-ria de uma mulher que foi morta, esquartejada e os pedaços de seu corpo devorados por cães – a história de Nastagio dels Onesti, do Decamerão, retratado por Botticelli em uma série de quadros e também relembrando a história do assassinato de Eliza Samudio13 13 Eliza Samudio era uma modelo carioca que teve um filho com Bruno Fernandes, então goleiro do Flamengo. Bruno recusou assumir as responsabilidades legais pela criança e ordenou o assassinato de Eliza, que foi então assassinada e teve os restos mortais entregues para ser devorados por cachorros em 2010. em 2010. Ao contrário dos dois trabalhos anteriores, não há animais compondo o cenário, que é organizado como diversas tumbas e de onde se veem vestígios de cadáveres: ossos, peda-ços de roupas e cabelos. No entanto, há um carro que também tem o seu estatuto de máquina tensionado a partir das relações estabelecidas com as performers: ora uma delas transa com o carro, ora é o local do crime onde uma delas é morta, ora é a maca sobre a qual o corpo de Bianchi é examinado.

No trabalho de Bianchi, como dito anteriormente, parece surgir constantemente perguntas que nos levam ao debate entre natureza e cultura, com o intuito de perguntar: afinal, o que é um ser humano? Há humanidade em não humanos? É mais humano um homem que mata sua amante e entrega seu corpo para cachorros do que os próprios cachorros? Ser humano é algo positivo afinal? Onde está a origem, a razão de toda essa história de violência? Sem trazer conclusões para essas perguntas, Bianchi aponta para discussões fundamentais da atualidade.

Os monstros e os bichos parecem ser figuras importantes para questionar o próprio estatuto da mulher e do humano em geral no antropoceno. Preciado conclama uma aproximação do feminismo com a animalidade, afirmando que o feminismo não é um humanismo: “o feminismo não é um humanismo. O feminismo é um animalismo. Ou, para dizer de outro modo, o animalismo é um feminismo expandido e não antropocêntrico” (Preciado, 2021, p. 125PRECIADO, Paul B. Un apartamento en Urano - crónicas del cruce. Barcelo-na: Editoral Anagrama, 2021.). O filósofo ainda articula o animal à máquina, lembrando o quanto historicamente os animais foram utilizados como máquinas na produção e reprodução do capital e, nesse mesmo processo, as mulheres e as pessoas não-brancas foram reduzidas, primeiramente, a animais, e, em seguida “ao estatuto de máquina (re)produtiva” (Preciado, 2021, p. 126PRECIADO, Paul B. Un apartamento en Urano - crónicas del cruce. Barcelo-na: Editoral Anagrama, 2021.), oferecendo uma possível conexão entre as figuras nãohumanas como seres próximos também da condição de mulher.

Em dado momento, nesse mesmo texto, Preciado (2021, p. 126)PRECIADO, Paul B. Un apartamento en Urano - crónicas del cruce. Barcelo-na: Editoral Anagrama, 2021. escreve o que poderia ser uma descrição bastante próxima da cena final de O Tremor Magnífico:

Posto que a modernidade humanista não soube senão fazer proliferarem tecnologias de morte, o animalismo necessita inventar uma nova maneira de viver com os mortos. Viver com o planeta como cadáver e fantasma. Ou seja: transformar a necropolítica em necroestética. O animalismo deve ser uma festa fúnebre. A celebração de um duelo. Um rito funerário. Um nascimento. Em consequência, uma relação com a morte e uma iniciação à vida. Uma assembleia solene de plantas e flores em torno das vítimas da história do humanismo (tradução nossa).

Poderíamos entender os animais, máquinas e monstros, essas figuras nãohumanas, também sob a ótica do ciborgue, de Donna Haraway. Em seu Manifesto Ciborgueciência, tecnologia e feminismosocialista no final do sé-culo XX, Haraway (2009, p. 36)HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismosocialista no final do século XX. In: TADEU, Tomaz (Org.). Antropologia do Ciborgue: as vertigens do pós-humano. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. P. 33-118. descreve o ciborgue como “[...] uma maté-ria de ficção e também uma experiência vivida [...] uma luta de vida e morte, mas a fronteira entre a ficção científica e a realidade social é uma ilusão de ótica” ou como “[...] criaturas que são simultaneamente animal e máquina, que habitam mundos que são, de forma ambígua, tanto naturais quanto fabricados”. Nesse sentido, o ciborgue funcionaria como uma forma de elaborar a nossa realidade coletiva e individual, uma figura que une a imagina-ção e a realidade material em um corpo só.

Haraway nos recorda que a distinção entre o humano e o animal vem, desde o final do século XX, tornando-os imprecisa e um terreno de imprecisão. Se antes definíamos o homo sapiens pela linguagem, pela capacidade de utilizar instrumentos ou por sua organização social, atualmente as investiga-ções no campo científico demonstram que há várias espécies que compartilham essas mesmas capacidades e, ainda que haja diferenças em como isso é expresso na prática, tornouse mais complexa a separação conceitual entre humanos e outros animais e “muitas pessoas nem sequer sentem mais a necessidade dessa separação” (Haraway, 2009, p. 40HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismosocialista no final do século XX. In: TADEU, Tomaz (Org.). Antropologia do Ciborgue: as vertigens do pós-humano. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. P. 33-118.). Assim, o mito do ciborgue ocupa justamente o lugar dessa dissolução de fronteiras entre humano, animal e também da máquina, já que, para Haraway (2009, p. 41)HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismosocialista no final do século XX. In: TADEU, Tomaz (Org.). Antropologia do Ciborgue: as vertigens do pós-humano. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. P. 33-118., a segunda separação que se fragiliza é entre o organismo vivo e a máquina. Para a pensadora, “as máquinas pré-cibernéticas poderiam ser vistas como habitadas por um espírito”.

A fantasmagoria das máquinas e, adiciono aqui, dos animais, reside justamente nessa tensão com a suposta humanidade que estaria em oposição a eles, mas que é, em realidade, formada por características encontradas em pessoas, animais e máquinas. Ainda que possamos colocar animais e máquinas em dois polos opostos, o animal como aquele fora do nosso controle, o símbolo da nãocivilização, da selvageria, do instinto e da imprevisibilidade, e as máquinas como o resultado e meio da dominação da natureza, com uma existência funcional, previsível e mecânica, ambos são, de alguma forma, o não-humano. Há também em ambos um nível de funcionamento que parece estar além do nosso controle: ao sintonizar um rádio ou ver os faróis de carros piscando, sugerese uma manifestação de um vestígio de vida, de alguma agência alheia aos desejos humanos, à fantasmagoria. Ao verificarmos capacidades convencionalmente humanas em criaturas nãohumanas (e verificamos isso o tempo todo), antes de teorizar sobre a fracasso da tentativa de separar humano de não humano, assombramo-nos e podemos pensar que aquilo – seja uma máquina ou um animal – está possuído por um espí-rito. Mas o espírito, por sua vez, é justamente a própria humanidade negada desses seres, em forma de vontade, de agência e de outras características que considerávamos exclusivas, primeiro dos homens brancos e depois das outras pessoas. Quando Preciado (2021, p. 83)PRECIADO, Paul B. Un apartamento en Urano - crónicas del cruce. Barcelo-na: Editoral Anagrama, 2021. afirma a expansão do feminismo para os animais, é possível ler um apelo pelo fim dessas hierarquias: “Colhamos as bananas e subamos nas árvores. Todas as jaulas devem ser abertas, todas as taxonomias desarticuladas”.

Se pensadoras como Angela Davis e bell hooks questionam, nos anos 1980, como a categoria mulher do feminismo não era suficiente para dar conta de questões de raça e classe, e Butler problematiza, no início dos anos 1990, o fato de a mulher ser o sujeito do feminismo, trazendo outras identidades para a discussão, há uma tendência, a partir principalmente dos anos 2000, com os estudos decoloniais e de epistemologias indígenas, de se pensar como essa discussão se amplia para além da categoria “humano”.

O trabalho de Bianchi é também uma forma de relacionar questões atuais do feminismo, do debate natureza/cultura e do pensamento decolonial com toda a violência e terror da sociedade moderna e contemporânea. Talvez o mais terrível não seja um cavalo caindo sobre nossas cabeças, um carro nos ameaçando, mas a violência que a própria humanidade foi e é capaz de imaginar e executar.

Considerações Finais

A partir da articulação desses três elementos, o percurso histórico, a sexualidade e os seres nãohumanos, Bianchi encontra formas de, em cena, questionar radicalmente o que nos constitui enquanto pessoas, enquanto sociedade e depara-se repetidamente com a violência nessas relações, principalmente a violência de gênero e a violência sexual. Em sua escrita e encena-ção, Bianchi frequentemente está a se perguntar qual é a origem da crueldade e de que formas podemos lidar com os acontecimentos terríveis que presenciamos e vivemos, coletiva e individualmente.

A cena final de A Noiva e o Boa noite Cinderela, em que o corpo dopado de Bianchi passa por um exame ginecológico, talvez seja uma das mais violentas imagens produzidas pela diretora. Como muitas mulheres cis e trans, pessoas nãobinárias, pessoas não-brancas e pessoas com deficiência que atuam na área da performance, Bianchi coloca seu corpo como objeto de seu próprio trabalho e, ao fazê-lo, denuncia violências dirigidas a esses corpos, buscando abrir outras possibilidades de relação que rompam com esses pactos de violência. Wyver (2023)WYVER, Kate. Dredging, destruction and date rape drugs: Take Me Somewhere’s daring performance art in The Guardian, 17 de outubro de 2023. Disponível em https://www.theguardian.com/stage/2023/oct/17/take-me-somewhere-daring-performance-art-glasgow-festival. Acesso em: 18 out. 2023.
https://www.theguardian.com/stage/2023/o...
aponta como o corpo inconsciente da artista no decorrer de toda a segunda parte da peça faz com que “Bianchi se torne não somente um sacrifício para ilustrar a história, mas um símbolo físico do fardo de sua pesquisa” (tradução nossa) a ser carregado pelos demais performers em cena.

Se historicamente foram sempre esses os corpos considerados como objetos, como “máquinas” produtivas e reprodutivas e mais passíveis a serem violados e violentados, não é de se surpreender que haja uma reivindicação da presença desses mesmos corpos a partir de seus próprios termos. Afastando-se de perspectivas supostamente universais e generalistas, Bianchi traz elementos fundamentais para a atualização do debate entre artes da cena, performance, feminismo e gênero.

Como identifica Dodi Leal, as artes performativas têm “[...] se apresentado nas últimas décadas como campo de elaboração de complexidades sociais que põem em risco os próprios perigos políticos do cotidiano” (Leal; Rosa, 2020, p. 7LEAL, Dodi; ROSA, André. Transgeneridades em Performance: desobediências de gênero e anticolonialidades das artes cênicas in Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 10, n. 3, e97755, 2020.), e que, por meio da instauração de imaginários e práticas se “operam mutações e intervenções nos corpos, em atos que produzem efeitos de estranhamentos [...] questionando o normal e a sua padronização” (Leal; Rosa, 2020, p. 7LEAL, Dodi; ROSA, André. Transgeneridades em Performance: desobediências de gênero e anticolonialidades das artes cênicas in Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 10, n. 3, e97755, 2020.). O campo das Artes Cênicas nos incita então à reformulação de questões sociais e traz para o centro dessas questões o corpo e a presença, como formas que não são alheias a essas questões, mas também são uma construção “epistemológica, política e estética” (Leal; Rosa, 2020, p. 8LEAL, Dodi; ROSA, André. Transgeneridades em Performance: desobediências de gênero e anticolonialidades das artes cênicas in Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 10, n. 3, e97755, 2020.). Através da performance e do teatro é possível então instaurar processos imaginativos que reorganizem modos de existência.

Em todos os trabalhos analisados, há uma sobreposição de materiais que pode parecer a princípio excessiva. Bianchi sobrepõe imagens de quadros barrocos, canções populares cantadas em karaokê, teorias da Filosofia e da Antropologia, Literatura, seção de crimes do noticiário e organiza todos esses elementos junto a um coletivo de performers normalmente numeroso, em dramaturgias de texto praticamente ininterrupto em obras de longa duração. Essa justaposição de elementos vai conformando estratégias para tratar da temática sem intenções nem heroicas nem conformistas. De forma mais significativa, Bianchi parece afirmar, por meio de suas encenações, quão excessiva é a violência, como ela permeia todas as nossas relações, repetese através da história de forma injustificável e é, ao mesmo tampo, elementar para a manutenção da dinâmica social que vivemos.

A própria narração da violência, que vem frequentemente atrelada às figuras histórias, não parece ser o ponto final da artista, pois não se trata simplesmente de expor a ferida e afirmar a sua existência. Em suas peças, Bianchi busca experimentar a violência, sem necessariamente encená-la de maneira direta ou realista. Não há, em nenhum de seus trabalhos, por exemplo, a encenação de uma mulher sendo morta ou violentada. Há alusão a uma inversão dos sujeitos da violência em alguns casos, há imagens da violência extrema na narração de eventos históricos e há, sobretudo, uma violência escorregadia, implícita dentro dos imaginários colocados. Quando é feito o exame ginecológico, o corpo de Bianchi é tocado de forma extremamente cuidadosa e há, em toda a obra, uma certa ternura das pessoas em cena para com a diretora inconsciente. Mas essa relativa ausência da artista, produzida por ela mesma, alude a muitas outras ausências, de pessoas violadas e assassinadas ao longo da história.

A violência e sua tematização em cena trazem em si um problema recorrente de como retratá-la sem perpetuá-la, sem fomentar o imaginário que estabelece quem são os agentes e quem são as vítimas de forma estável. Na encenação da violência há sempre a possibilidade de estabelecer uma relação também violenta com o público, o que pode ser intencional ou não e pode se dar de distintas maneiras. No caso de Bianchi, o público não é poupado, principalmente na produção de imagens que é convidado a evocar, mas, ao mesmo tempo, a perspectiva da confusão, revelada em suas estratégias excessivas e muitas vezes contraditórias, não permite que a obra imprima uma sensação unívoca em seus participantes, não se conclui com a defesa de uma tese cabal sobre os assuntos tratados. Trata-se de uma investigação de como criar uma linguagem para dar conta desse tema sem pretender esgotá-lo, perseguindo uma rede complexa de elementos que compõem e são compostos pela violência. Se a violência está em todos e em nenhum lugar ao mesmo tempo, há também violência em como entendemos o amor e a paz, por exemplo. A contradição e a recusa a esquemas dicotô-micos são marcas dessa linguagem investigada por Bianchi e estão presentes em sua obra como encenadora.

O ato de tomar um sedativo e permanecer sedada durante grande parte da peça, além de remeter a uma prática hedionda, também é um grande gesto de confiança com os desconhecidos que vão assistir à peça, mas, sobretudo, com as pessoas que fazem parte do coletivo em cena. Embora recuse veemente sugerir soluções definitivas para problemas estruturais, Bianchi aponta como o teatro e a performance podem criar formas próprias de abordar tais questões e abrir possibilidades para a imaginação de novos pactos sociais.

Notas

  • 1
    A Companhia dos Outros foi um grupo de teatro que existiu de 2006 até 2016, criado na capital do estado de São Paulo por Carolina Bianchi, Tomás Decina, Fernanda Camargo e Pedro Cameron.
  • 2
    Sou performer e assistente de direção do trabalho O Tremor Magnífico (2020) e também colaborei com o processo de criação do primeiro capítulo da Trilogia Cadela Força (2023), no qual também fui responsável pela tradução da peça para o inglês.
  • 3
    O coletivo foi criado na cidade de São Paulo e concentrou seu campo de atuação na capital do estado, mas, desde 2020, com a pandemia de coronavírus e com a mudança da diretora para Amsterdam, na Holanda, o trabalho tem se desenvolvido de forma diversa, com encontros em plataformas on-line e períodos imersivos de processo criativo em São Paulo, em Amsterdam e Avignon (França).
  • 4
    Inicialmente, na chamada para a residência, Bianchi não especificou se as performers seriam mulheres cisgênero ou transgênero. Existem pessoas que fizeram parte do trabalho que já não se identificam mais como mulheres, mas como pessoas não-binárias ou homens trans. Para além de complexificar o entendimento de Bianchi de gênero, acredito que essa nota é importante no sentido de não deslegitimar as identidades de pessoas envolvidas no trabalho. O mesmo se aplica ao grupo de LOBO, que também engloba pessoas transgêneras.
  • 5
    Aqui entendemos performatividade como propõe Josette Féral (2008), em seu texto Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. Ferál propõe o termo “teatro performativo” em uma afirmação de que o teatro feito a partir dos anos 1960 passa a incorporar muitas características da arte da performance. Féral aponta como um dos aspectos centrais dessa influência do campo da performance no teatro a importância da execução de ações, em oposição à representação de ações. A autora Érika Fischer-Lichte também já havia apontado para essa aproximação do teatro com a performance em seus trabalhos The Transformative Power of Performance A New Aesthetics e Estética do Performativo, na defesa de que o teatro não seria mais, a partir dos anos 1960, entendido como um espaço para a representação de uma ficção.
  • 6
    Artemisia Gentileschi foi uma pintora barroca italiana, primeira mulher a fazer parte da Academia pintura de Florença.
  • 7
    A história de Bathory é contada pela poeta argentina Alejandra Pizarnik, em seu livro La Condesa Sangrienta (1966).
  • 8
    Bianchi está atualmente desenvolvendo outros dois trabalhos previstos para compor essa trilogia.
  • 9
    Noiva em viagem ou noiva viajante
  • 10
    Ana Mendieta morreu em 1985, após cair do 34º andar do prédio onde estava. Carl André, então seu marido, foi acusado pela morte da performer, mas absolvido posteriormente, prevalecendo juridicamente a tese de que Mendieta teria cometido suicídio. A autora deste artigo, bem como muitas outras artistas e teóricas feministas que conheciam Mendieta e seu trabalho, não acredita nessa versão.
  • 11
    “Foda-se a catarse”.
  • 12
    Seria então uma recusa à ideia de gênero como “verdade biológica” (Butler, 2001), uma dissolução da binaridade e uma compreensão de gênero como performatividade, alinhada às proposições de Judith Butler.
  • 13
    Eliza Samudio era uma modelo carioca que teve um filho com Bruno Fernandes, então goleiro do Flamengo. Bruno recusou assumir as responsabilidades legais pela criança e ordenou o assassinato de Eliza, que foi então assassinada e teve os restos mortais entregues para ser devorados por cachorros em 2010.
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Disponibilidade dos dados da pesquisa:

Todo o conjunto de dados de apoio aos resultados deste estudo está publicado no próprio artigo.

Referências

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  • PRECIADO, Paul B. Manifesto Contrassexual Tradução Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1 edições, 2017.
  • PRECIADO, Paul B. Un apartamento en Urano - crónicas del cruce Barcelo-na: Editoral Anagrama, 2021.
  • SANTOS, Bárbara Tavares; CARVALHO, Francis Wilker. Rastro como presença de uma ausência: sete movimentos dos corpos de encenadore(a)s. Revista Rascu-nhos - Caminhos da Pesquisa em Artes Cênicas, v. 6, n. 2, 2019.
  • WYVER, Kate. Dredging, destruction and date rape drugs: Take Me Somewhere’s daring performance art in The Guardian, 17 de outubro de 2023. Disponível em https://www.theguardian.com/stage/2023/oct/17/take-me-somewhere-daring-performance-art-glasgow-festival. Acesso em: 18 out. 2023.
    » https://www.theguardian.com/stage/2023/oct/17/take-me-somewhere-daring-performance-art-glasgow-festival.
Editor responsável: Marcelo de Andrade Pereira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2023
  • Aceito
    29 Nov 2023
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