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Performance, Encenação e Paródias: os saberes queer e os modos de uso drag nas narrativas de Márcia Pantera

Performance, Mise en Scène et Parodie: savoir queer et utilisation du drag dans les récits de Márcia Pantera

RESUMO

Performance, Encenação e Paródias: os saberes queer e os modos de uso drag nas narrativas de Márcia Pantera – O artigo almeja discutir as narrativas de Márcia Pantera explorando a performance, a encenação e as paródias de gênero presentes na utilização dos saberes queer e nos modos de uso drag. Utilizando-se de encontros narrativos como ethos metodológico, abraça a poética como possibilidade criativa de tecer uma pesquisa performativa. Em sua ação analítica, o texto enuncia os efeitos do encontro poético junto a Márcia Pantera, que, ao narrar suas experimentações performativas, engendrou a feitura de mobilizações e fabulações potentes para pensar a superfície corporal e sua ação anárquica-performativa. Em sua partida, o artigo conclui seu percurso poético entrevendo a ação criativa da performance de Márcia Pantera na constituição de modos dissidentes de proliferação de afetações educativas.

Palabras-clave:
Gênero; Performance; Drag Queen

RÉSUMÉ

Performance, Mise en Scène et Parodie: savoir queer et utilisation du drag dans les récits de Márcia Pantera – L’article vise à discuter des récits de Márcia Pantera, en explorant la performance, la mise en scène et les parodies de genre présentes dans l’utilisation de la connaissance queer et les façons dont le drag est utilisé. Utilisant les rencontres narratives comme éthos méthodologique, il embrasse la poétique comme une possibilité créative de tisser une recherche performative. Dans son action analytique, le texte énonce les effets de la rencontre poétique avec Márcia Pantera, qui, en racontant ses expériences performatives, a engendré de puissantes mobilisations et fabrications pour penser la surface du corps et son action performative anarchique. L’article conclut son voyage poétique en entrevoyant l’action créative de la performance de Márcia Pantera dans la constitution de modes dissidents de prolifération des affectations éducatives.

Mots-clés:
Genre; Performance; Drag Queen

ABSTRACT

Performance, Staging and Parodies: queer knowledges and the ways of drag use in Márcia Pantera’s narratives – The article aims to discuss Márcia Pantera’s narratives, exploring the performance, staging and parodies of gender present in the use of queer knowledge and drag. Using narrative encounters as a methodological ethos, it embraces poetics as a creative possibility for weaving performative research. In its analytical action, the text enunciates the effects of the poetic encounter with Márcia Pantera, who, in narrating her performative experiments, engendered the making of powerful mobilizations and fabulations for thinking about the body surface and its anarchic-performative action. The article concludes its poetic journey by glimpsing the creative action of Márcia Pantera’s performance in the constitution of dissident modes of proliferation of educational affectations.

Keywords:
Gender; Performance; Drag Queen

Notas introdutórias

Corpo-movimento. Corpo em movimento. Giro. Rodopio. Traçar nos movimentos do corpo as marcas do que foi feito dele, como um arranjo difuso de textos, toques, afetações. O deslocamento possível, como possibilidade crítica, se coaduna no balanço, no dançante gesto da provisoriedade, na contingência da superfície corporal.

Pelos ditos e pelos ritos, os orifícios são fabricados e interditados no corpo. Através de práticas de poder e em suas fissuras produtivas, proliferam-se contracondutas que se levantam contra capturas totalizadoras e naturalizantes. Nesse interminável embate, outras perspectivas visíveis e dizíveis despontam sobre o corpo em seus devires.

Encenações corporais em ritos que naturalizaram e desnaturalizaram formas de estar no mundo, imbuídos de sentidos, afagos, providos de tempestade e luto. Palavras provocadoras que despontaram na terra despida: nem chuva, nem mormaço. Apenas encenações corporais. No balanço do corpo, há uma perene movimentação que precisa dinamitar e reinventar: um ato, um gesto, um toque. Inventando motivos para provocar o que decididamente se apresentava como deslocamento: o corpo dançante, em convite, convidava nosso olhar, nosso toque, nossa afetação.

O corpo, ciente do seu manifestar no giro que empreende, pode parodiar aquilo que lhe conforma e deforma. Nesse problema, algumas questões emergem como formulações possíveis: de quais modos os contornos da superfície corporal, como formas de contraconduta, coadunam atos visíveis que denunciam a facticidade de uma materialidade corporal naturalizada? Quais práticas despontam como possibilidade crítica? O que pode nosso corpo em movimento?

A produção e a conformidade dos contornos corporais buscam escrever e reescrever as fronteiras do corpo e sua inteligibilidade. Os ritos que o governam e o investem desde a modernidade não apenas encadeiam a compreensão naturalizada do que pode o corpo, como também pressupõem igualmente a sua aparência, atrelada a atributos que devem efetivar a identidade como ideação heterossexual e binária.

Esse regime político dos corpos, através de um conjunto decididamente heterogêneo de interpelações performativas, ou seja, palavras, atos, gestos e desejos, de maneiras articuladas “[...] criam a ilusão de um núcleo interno e organizador do gênero, ilusão mantida discursivamente com o propósito de regular a sexualidade” (Butler, 2015, p. 235BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução: Renato Aguiar. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.).

Essa verdade interna do gênero, produzida e naturalizada sobre a superfície corporal, incoa a identidade como causa, conformando uma rede inteligível que circunscreve uma aparência possível para o corpo, o gênero que ele expressará, as formas pelas quais a heterossexualização do desejo decorre e a matriz normativa que lhe legitima uma coerência visível.

Essa fantasia inscrita e instituída sobre os corpos evidencia o gênero verdadeiro como uma produção fictícia, tal como sua condição interna. A fabricação de um corpo generificado torna-se, nas contingências de uma iterabilidade discursiva, vinco de disputas. O sujeito generificado é efeito de um enquadramento normativo que estabelece o corpo abjeto como certo contraste constitutivo.

Cabe salientar que “[...] essa coerência é desejada, anelada, idealizada, e que essa idealização é um efeito da significação corporal” (Butler, 2015, p. 235BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução: Renato Aguiar. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.) ou, dito de outra maneira, que os atos, gestos e atuações que se efetivam no cotidiano das práticas sociais “[...] são performativos, no sentido de que a essência ou identidade que por outro lado pretendem expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e outros meios discursivos” (Butler, 2015, p. 235BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução: Renato Aguiar. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.).

A produção simbólica e discursiva da identidade é perpassada por incontáveis relações de poder. Nos embates com o poder, alguns corpos fustigam as incorporações postas em ato e, por meio dessa postura abjeta, “[...] o ideal regulador é então denunciado como norma e ficção que se disfarça de lei do desenvolvimento a regular o campo sexual que se propõe descrever” (Butler, 2015, p. 234BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução: Renato Aguiar. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.).

Certa acepção de que há no gênero corporificado uma identidade primária e original pode ser subvertida e provocada pela presença de alguns corpos que dinamitam o efeito naturalizado do sexo fictício e denunciam como os códigos de masculinidade e feminilidade são reverberações de práticas sociais e técnicas de sujeitamento.

Os corpos drag em suas performances e suas provocações a uma corporeidade significante parodiam a naturalização do gênero na superfície corporal, tornando contingentes os regimes de aparência que circunscrevem seus efeitos de verdade. Sua performance subverte certa visibilidade sobre o corpo: sua identidade, expressão e anatomia.

A drag “brinca com a distinção entre a anatomia do performista e o gênero que está sendo performado” (Butler, 2015, p. 237BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução: Renato Aguiar. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.), atiçando os discursos que distinguem seu corpo, seu gênero e sua performance, sugerindo “[...] uma dissonância não só entre sexo e performance, mas entre sexo e gênero, e entre gênero e performance” (Butler, 2015, p. 237BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução: Renato Aguiar. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.). Abraçando o corpo como texto, imitando as expressões de gênero e outros regimes da aparência, a performance drag subverte a distinção binária da superfície corporal, produzindo uma identidade pirateada que denuncia pela sua presença o caráter precário e fictício do regime sexo/gênero.

O que mobiliza sua expressão parodística não necessariamente enseja aglutinar uma ação política decidida, isto é, criticamente produzida pelo corpo que se monta drag. Tampouco se trata apenas de uma apropriação acrítica da aparência e expressão de gênero como possibilidade de atuação e trabalho artístico.

As drags, sejam queens ou kings, por meio de suas performances, suscitam o desmantelo de uma identificação primária, tendo em vista que “[...] nossas performances de gênero só podem acontecer dentro de uma cena discursiva plena de constrangimentos que limitam o que conta como inteligível” (Borba, 2014, p. 449BORBA, Rodrigo. A Linguagem Importa?: sobre performance, performatividade e peregrinações conceituais. Cadernos Pagu, v. 43, p. 441-474, jul./dez. 2014.). De maneira provocativa, imitando o gênero, “[...] a drag revela implicitamente a estrutura imitativa do próprio gênero – assim como sua contingência” (Butler, 2015, p. 237BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução: Renato Aguiar. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.), inclusive reside no seu gesto artístico, de seu manifestar, o “[...] reconhecimento da contingência radical da relação entre sexo e gênero diante das configurações culturais de unidades casuais que normalmente são supostas naturais e necessárias” (Butler, 2015, p. 238BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução: Renato Aguiar. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.).

Sacudindo os naturalizados discursos normativos que buscam capturar os desvios que podemos engendrar no/através do corpo, as performances drag reformulam na superfície corporal outro campo do visível, deslocando a acepção do corpo como unidade única e fadada a um binarismo incontornável do gênero. Dessa maneira, no corpo drag em movimento, podemos perceber que “[...] no lugar da lei da coerência heterossexual, vemos o sexo e o gênero desnaturalizados por meio de uma performance que confessa sua distinção e dramatiza o mecanismo cultural da sua unidade fabricada” (Butler, 2015, p. 238BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução: Renato Aguiar. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.), engendrando outras formas mais fluídas de conceber o corpo e sua relação com o presente.

Cabe igualmente salientar que esses atos e gestos artístico-performativos mobilizam a produção de fissuras produtivas nas formas de conceber o corpo. Esse deslocamento crítico desarranja toda uma inteligibilidade sobre corpo e arte, sobre as artes do corpo e sobre a arte em suas expressões corporais.

Outra questão importante que atravessa as performances drag é a noção de paródia de gênero1 1 É principalmente em Problemas de Gênero (2015) que Judith Butler vai formular a sua teoria da performatividade de gênero. Em Corpos que Importam (2019), a teórica vai buscar aprofundar suas discussões sobre performatividade, ensejando responder às críticas sobre os limites entre performance e performatividade, apontando a materialidade de gênero como um processo discursivo reiterado, amplo e corporificado. . A paródia decididamente como ato criativo é produzida como crítica “[...] da própria ideia de um original [...] a paródia do gênero revela que a identidade original sobre a qual se molda o gênero é uma imitação sem origem” (Butler, 2015, p. 238BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução: Renato Aguiar. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.).

O ato parodístico do gênero em certas performances drag não deve ser confundido com uma política-drag-natural, inclusive quando se presume um construtivismo de gênero ou, em outro prisma, certa militância inata. A paródia de gênero nos corpos drag é tanto a fissura na inteligibilidade binária – expressões e papéis de gênero produzindo uma identidade drag – quanto seu exemplo abjeto-produtivo que “[...] fornece um alívio ritual para uma economia heterossexual que deve policiar constantemente suas próprias fronteiras contra a invasão do queer” (Butler, 2019, p. 217BUTLER, Judith. Corpos que Importam: os limites discursivos do sexo. Tradução: Verônica Daminelli e Daniel Yago Françoli. São Paulo: N-1 Edições; Crocodilo Edições, 2019.).

Não sendo subversiva em si mesma, a paródia deve articular outros atos criativos, tornando “certos tipos de repetição parodística efetivamente disruptivos, verdadeiramente perturbadores” (Butler, 2015, p. 239BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução: Renato Aguiar. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.). Nas relações discursivas que atravessam de maneira arbitrária a materialidade do corpo, pode haver no enlace com a paródia transformações de gênero “[...] na possibilidade da incapacidade de repetir, numa deformidade, ou numa repetição parodística” (Butler, 2015, p. 243BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução: Renato Aguiar. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.) que, em suas reverberações, “[...] denuncie[m] o efeito fantasístico da identidade permanente como uma construção politicamente tênue” (Butler, 2015, p. 243BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução: Renato Aguiar. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.).

Algumas narrativas drag sobre suas vivências com a performance despontam como possibilidade crítica. Elas poderão nos provocar ainda mais a pensar sobre as paródias de gênero, os corpos como instrumentoperformance e as práticas de contracondutas que podem emergir como fissura produtiva nessa relação com a performance. Talvez tal viabilidade investigativa forneça debates vívidos de potência poética, aquendação e metodologias político-performativas.

O que dizem corpos drag sobre suas vivências com a performance? Levemente ouviremos, como reverberação de nossas indagações, o rugir de uma pantera, que urge narrar suas experimentações e suas memórias fortemente nutridas de sentimentos, saberes e afetações. Márcia Pantera, drag queen paulistana, através de seu rugido performativo, nos convida a tecer junto a ela um profícuo encontro nutrido de narrativas, movimentos e batecabelo. Empolgados com tal convite, pretendemos investigar, através dessas narrativas, como alguns corpos estabelecem relações com a performance, percebendo-as como possibilidades formativas. Intentamos aqui tanto perceber os saberes que despontam das narrativas de Márcia Pantera em suas vivências com a performance como igualmente produzir uma escrita poética como efeito criativo do encontro com seu corpo em potente experimentação com a performance.

Encontros narrativos como possibilidade metodológica

Pensar a performance na academia é fomentar contradições produtivas que criam outras maneiras de pensar o conhecimento científico, a relação que a ciência estabelece com a estética e as viabilidades acerca de seus saberes construídos. O gesto que desponta neste texto é o de pensar a performance como um caminho investigativo que produz em torno de si práticas educativas que corroboram pensar o presente e como o corpo se articula e funciona nesse processo contingente de produção de devir.

A pesquisa, nessa perspectiva, deve “[...] incorporar e investigar melhor a teoria aproveitando meios e métodos de performance (no sentido mais ampliado)” (Lagaay; Seitz, 2020, p. 6LAGAAY, Alice; SEITZ, Anna. Que Papel a Presença Poderia Desempenhar nas Práticas Acadêmicas?: sobre a performatividade da teoria no contexto da Filosofia-Performance. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 10, n. 1, 2020.). Através de suas intervenções teóricas e políticas, é estabelecido um “[...] intercâmbio entre disciplinas e cuja premissa básica deve ser o desmonte das hierarquias de culturas do conhecimento e de seus formatos” (Lagaay; Seitz, 2020, p. 6LAGAAY, Alice; SEITZ, Anna. Que Papel a Presença Poderia Desempenhar nas Práticas Acadêmicas?: sobre a performatividade da teoria no contexto da Filosofia-Performance. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 10, n. 1, 2020.).

Trata-se de uma provocativa ação criativa, intentando outros processos de produção de conhecimento nos quais a “[...] criação de uma coisa e geração associada à compreensão de uma ideia correta dessa coisa são, muitas vezes, partes de um único e indivisível processo, partes que não podem separar-se, sob pena de interromper o processo” (Feyerabend, 1977, p. 32FEYERABEND, Paul Karl. Contra o Método. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.). Este, contudo, não é orientado “[...] por um programa bem definido e, aliás, não é suscetível de ver-se orientado por um programa dessa espécie, pois encerra as condições de realização de todos os programas possíveis” (Feyera-bend, 1977, p. 32).

Por meio de uma escrita poética, buscaremos experimentar a performance como um estágio liminar – entendendo a liminaridade2 2 O conceito de liminaridade vai se nutrir da contribuição do antropólogo Victor Turner, que, ao pesquisar os rituais de passagem do povo lunda-ndembus no continente africano, percebe que, no decorrer dos ritos, se apresenta por meio da performance empreendida o que conceitua como momentos liminares, entendendo que eles “[...] não se situam aqui nem lá; estão no meio e entre as posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimonial. Seus atributos ambíguos e indeterminados exprimem-se por uma rica variedade de símbolos, naquelas várias sociedades que ritualizam as transições sociais e culturais” (Turner, 1974, p. 117). Vê com isso a performance como um lugar entre, um momento de transição, variado de possibilidades, indefinido e em constante ressignificação. como um momento potencialmente perigoso, marcado pela ausência de regras bem definidas, algo à margem – em um espaço intermediário que foge da compreensão normativa, sendo tanto isto quanto aquilo, estando lá e aqui. Essa ação se faz necessária para perceber como essa experiência da performance produz processos de afetação aflorados sob reações como alegria, excitação, choro, medo, revolta etc. tanto no sujeito pesquisador quanto nos seus sujeitos da pesquisa.

Articulada com um olhar nutrido pelas pedagogias culturais, a pesquisa performativa em “seu potencial plurivocal” (Haseman, 2015, p. 49HASEMAN, Brad. Manifesto pela Pesquisa Performativa. In: SEMINÁRIO DE PESQUISAS EM ANDAMENTO, 5., 2015, São Paulo. Resumos [...]. São Paulo: PPGAC-ECA/USP, 2015.) busca ampliar as possibilidades de constituir inteligibilidades performativas que rompam com o binômio metodológico que nos é sempre posto. Salienta-se, nesse sentido, a prática como a “principal atividade de pesquisa – e não apenas a prática de performance” (Haseman, 2015, p. 48HASEMAN, Brad. Manifesto pela Pesquisa Performativa. In: SEMINÁRIO DE PESQUISAS EM ANDAMENTO, 5., 2015, São Paulo. Resumos [...]. São Paulo: PPGAC-ECA/USP, 2015.), vendo os resultados da prática como arquivo/efeito evidência dessa ação criativa.

Tendo em vista que o “[...] processo metodológico é o de alquimia mesmo, resultando daí uma bricolagem diferenciada, estratégica e subverte-dora das misturas homogêneas típicas da modernidade” (Corazza, 2007, p. 118CORAZZA, Sandra Mara. Labirintos da Pesquisa, Diante dos Ferrolhos. In: COSTA, Marisa Vorraber (Org.). Caminhos Investigativos I: novos olhares na pesquisa em educação. Rio de Janeiro: Lamparina, 2007.), o que decididamente almejamos é romper “[...] com as orientações metodológicas formalizadas na e pela academia [...] cuja direção costuma ser a das abordagens classificatórias” (Corazza, 2007, p. 118CORAZZA, Sandra Mara. Labirintos da Pesquisa, Diante dos Ferrolhos. In: COSTA, Marisa Vorraber (Org.). Caminhos Investigativos I: novos olhares na pesquisa em educação. Rio de Janeiro: Lamparina, 2007.), muito ao gosto das pesquisas em educação.

O que abraçamos como suposição teórico-analítica é talvez a acepção de “[...] que as artes do pensamento não se separam do próprio pensamento com (e sobre) as diversas artes; ou que, por hipótese, nossas pesquisas se fariam mais vivazes e plenas de movimento” (Fischer, 2021, p. 11FISCHER, Rosa Maria Bueno. Por uma Escuta da Arte: ensaio sobre poéticas possíveis na pesquisa. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 11, n. 1, 2021.) se buscássemos no horizonte de nossas investigações certa “[...] preocupação estética e também política, que nos levaria a olhar o chamado real com imaginação e, ao mesmo tempo, com uma lucidez que nos distancia de nós mesmos” (Fischer, 2021, p. 11FISCHER, Rosa Maria Bueno. Por uma Escuta da Arte: ensaio sobre poéticas possíveis na pesquisa. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 11, n. 1, 2021.).

Nessa tentativa desmanteladora – e não menos (in)disciplinar – como gesto que demarca o atravessamento sujeito pesquisador/sujeito pesquisado, perguntamos aos corpos que constroem o corpo deste texto quais são os enredos poéticos que gostariam que a apresentação de suas narrativas abraçasse. A busca aqui é de um mote poético que possa mobilizar profícuos encontros entre corpos, narrativas e performance, permeados por potentes possibilidades educativas.

A reverberação da provocação posta em enlace com os sujeitos de pesquisa propiciou a tessitura de um texto narrativo não apenas embebido de experimentações com a performance, mas igualmente norteado por um desejo poético suscitado pelos corpos em narrativas. Talvez essa estratégia seja um modo pelo qual tensionamos a necessidade de esses conhecimentos difusos performativos estarem presentes de maneiras urgentes nas formas de pensar e produzir educação.

Márcia Pantera sugere como enredo de encontro ou no nascer do sol ou no pôr do sol, também gosto da praia. A fabricação de uma poética desloca certos enquadramentos, suscitando outras formas pelas quais sentimos, expressamos e nos afetamos. Outra articulação poética que tentaremos tecer é a de entrecruzar, na feitura das alegorias performativas, as imagens presentes em cada cena, numa justaposição que, nutrindo-se de um arquivo múltiplo, fomenta outras tramações investigativas com os corpos em performances. Para o texto, trazemos uma textura que abraça as imagens como fragmentos instigantes que atestam o vinco entre os corpos que narram, a imagem-texto e o texto manifesto, constituindo potentes ressonâncias poéticas.

Márcia Pantera, fazendo poses em suas imagens-movimento, bate cabelo e performa seu corpo em texto. Cada gesto de seu corpo elucida um rosto, um jeito, uma pantera noticiando seu estar no presente. Tal como uma apresentação marcada pela montação e ousadia, anuncia um movimento corporal urdido pelas garras da vida na pantera e das garras da pantera na vida.

Portanto, é nas possibilidades de afetação que esta pesquisa se constitui, tentando construir outras maneiras de produzir saberes em educação e vendo na poética performativa e na ciência as mesmas manifestações do saber. O entrelaçar das narrativas junto às reverberações poéticas emerge neste texto como um aguçado desejo investigativo, articulando conhecimentos, escritas, ditos, sentimentos e intensidades em variadas experimentações com a performance.

Entre o nascente e o poente: Márcia Pantera e os modos de uso drag

Entre o vaivém dos carros, da cidade, dos prédios, do cinza. Havia nossos corpos, mais uma vez desejantes de encontro, narrativas e saberes. Anoitecendo em volta, restava-nos o mar – em sua imensidão em movimento – como possibilidade de tramações, de atravessamentos, de maresia.

Como em um devaneio, vimos correndo solta à noite uma pantera que rodopiava sua cabeça num movimento muito rápido, envolvendo seu corpo, cabelo, desejo, lampejo, tal como chama de pavio de lamparina, necessária para fazer nascer ao redor de seu alcance uma luz, um raio de dia. Seu mobilizar era um gesto potente de enlace entre seu corpo-pantera e seu estar no presente.

Desprender-se de um estatuto humanista e suscitar condutas e identidades animalescas como performance constituída pelo corpo era a notícia que nos provocava. Sentamos nas areias à beira-mar como postura assumida em um percurso de escuta e interrogação, sem traço nem fim.

O corpo-pantera, findando seu bate-cabelo, senta-se próximo a nós, nos diz seu nome, olha para o mar e deixa um silêncio abraçar a cena que se tecia. Márcia Pantera, como nos apresentou, era drag queen. Tinha cabelos longos, unhas afiadas, roupa preta e expressão povoada de um amalgamado de marcas, da vida e da arte.

Reparando cada onda, como um espetáculo que se inicia e finda a cada ato, deixamos nos preencher pelas diversas visibilidades que nos remetia o lugar. Havia ali um encontro: nós, Márcia e o mar. Provocados, ao mesmo passo que já entregues ao contato de tal convergência, interrompemos o silêncio, almejando construir com Márcia Pantera uma partilha narrativa. Como uma movimentação inicial da conversa que ali poderia se constituir, afetados pela presença de um corpo drag queen, buscamos então indagar: como começou a tua história com a performance drag? Ela nos responde:

Bom. A minha história começou quando eu conheci a boate, né. Quando eu fui conhecer a boate por 1986, perto de 1987. Na verdade, eu era atleta de vôlei, e jogava em Suzano-SP, joguei vôlei durante muitos anos. E aí fui pra Suzano e um amigo meu me convidou pra conhecer uma boate. Então, quando eu conheci uma boate pela primeira vez, não tinha visto shows ainda, eu ia para curtir, para dançar, para paquerar, pra beijar… essa coisa toda. E até mesmo, na verdade, eu fui para conhecer, porque quando eu vi dois homens se beijando, para mim foi um espanto, né. Eu era do mundo dos atletas, não conhecia o meio gay. Bom, o primeiro show que eu vi, eu vi alguns shows, mas o primeiro show que me identifiquei e olhei e falei: meu deus, é isso que eu quero fazer! Foi o show da Marcinha do Corinto, na boate Nostromundo. Isso já era 1987, porque 1988 eu já engrenei nessa vida Drag Queen (Márcia Pantera).

Mesmo que estivéssemos sentados junto à Márcia reparando o fluxo do mar, a boate surgia como espaço decididamente curioso de provocação. Ela despontava na narrativa e nos deslocava a pensar nas maneiras difusas de alegria, desejo, movimento, práticas sexuais e outras formas de contracon-duta ou, sob a ótica da norma, no que foi crescentemente enquadrado como certo detrito cultural que se produziu em seus vários ambientes. As boates atravessaram muitas subjetividades queer, apresentando-se, muitas vezes, como espaços possíveis de certa liberdade.

Cabe ponderar que “[...] a liberdade é algo que nós mesmos criamos - ela é nossa própria criação, ou melhor, ela não é a descoberta de um aspecto secreto de nosso desejo” (Foucault, 2004, p. 260FOUCAULT, Michel. Michel Foucault, uma Entrevista: sexo, poder e a política da identidade. Verve, v. 5, p. 260-277, 2004.). Nas boates, através do enlace liberdade-desejo, várias práticas e condutas não normativas emergiram como efeito fissurado de contraposição à norma. “Com nossos desejos, por meio deles, instauram-se novas formas de relações, novas formas de amor e novas formas de criação” (Butler, 2008, p. 260). Portanto, “o sexo não é uma fatalidade; ele é uma possibilidade de aceder a uma vida criativa” (Butler, 2008, p. 260).

As boates eram – e de certa forma ainda são – vistas como espaços próprios para o invertido, que recebe “esse nome porque a meta do seu desejo saiu dos trilhos da heterossexualidade” (Butler, 2008, p. 103). Ele é aquele cuja ótica da heterossexualidade compulsória presume ser um corpo invertido, exatamente “[...] quando não atinge seu objetivo e objeto e se dirige erradamente para seu oposto ou quando se toma a si mesmo como objeto de seu desejo” (Butler, 2008, p. 102), projetando e recuperando essa ideia de si em um objeto decididamente homossexual.

Tais espaços noturnos articularam a emergência de um conjunto de práticas invertidas, poluídas, dissidentes, queer. Sob um olhar genealógico, poderemos entrever a proliferação de corpos-drag a partir dos efeitos dos anos 1960, quando crescentemente “[...] produziu-se um verdadeiro processo de liberação. Este processo foi muito benéfico no que diz respeito às mentalidades, ainda que a situação não esteja definitivamente estabilizada” (Foucault, 2004, p. 262FOUCAULT, Michel. Michel Foucault, uma Entrevista: sexo, poder e a política da identidade. Verve, v. 5, p. 260-277, 2004.).

Essas reverberações são produtivas no feito de mobilizar a utilização dos corpos para poluir alguns regimes de verdade, ensejando nesse ato a criação de outras possibilidades corporais, outras formas de conceber suas forças e limites. Sob esse olhar, “[...] a possibilidade de utilizar nossos corpos como uma fonte possível de uma multiplicidade de prazeres é muito importante” (Foucault, 2004, p. 264FOUCAULT, Michel. Michel Foucault, uma Entrevista: sexo, poder e a política da identidade. Verve, v. 5, p. 260-277, 2004.).

E assim formas criativas e parodísticas emergiram nas boates, espaços limiares que estabelecem viabilidades múltiplas sobre o corpo, fustigando enquadramentos normativos heterossexualizantes como igualmente uma política da identidade. Ali, surgiam através dos atos performativos drag identidades como política, disputando através do aparecimento o borramento dos códigos naturalizados e binários fadados aos corpos.

Atravessados pelos movimentos que Márcia traçava com o gingado do corpo – criando com seu desatino imagens vívidas de suas apresentações drag –, reparamos, quase adentrando ao que víamos, um rodopio em pose: uma mão em apoio a uma argola que segurava entre suas garras/mãos, cabelos em movimento, e uma postura corporal levemente inclinada para o lado, como quem se prepara para o despontar de uma performance.

Figura 1
Márcia Pantera. Fonte: Foto de Ivan Erick Menezes (2020).

Com um olhar no horizonte, talvez atenta a sua história, desejosa de novas experimentações e aberta ao que vem, Pantera é herança e herdeira de toda uma discursividade queer, de ecos educativos – e, com isso, constitutivos –, de práticas artísticas construídas por uma gama de sujeitos dissidentes que abraçaram a arte drag como ação performática possível. Uma cena salta na narrativa de Márcia, que, fervendo o corpo na boate – entre as gays, mariconas, sapatões, travestis, bissexuais e liberados que transitavam e dançavam na NostroMundo –, se afeta no meio de um ato performativo e produz em torno de si: ‘me identifiquei e olhei e falei: meu deus, é isso que eu quero fazer!’.

Para Márcia, ainda atleta de Suzano, a boate lhe proporcionou, para além da liberdade sexual, entre danças, beijos e diversão, encontrar-se ou construir-se pantera. Entre tantos outros shows que frequentou em boates, foi o de Marcinha do Corinto que a deslocou, marcou e mobilizou a querer fazer performances drag.

A produção binária dos corpos, herança do cogito cartesiano, é constantemente instável. Os corpos estão sendo sempre “[...] acometidos por uma ambivalência precisamente porque há um custo na assunção de cada identificação, a perda de algum outro conjunto de identificações” (Butler, 2019, p. 217BUTLER, Judith. Corpos que Importam: os limites discursivos do sexo. Tradução: Verônica Daminelli e Daniel Yago Françoli. São Paulo: N-1 Edições; Crocodilo Edições, 2019.), uma produção normativa que também é contingente na medida em que ela “[...] nos escolhe, mas que nós ocupamos, invertemos e ressignificamos na medida em que ela fracassa em nos determinar por completo” (Butler, 2019, p. 217BUTLER, Judith. Corpos que Importam: os limites discursivos do sexo. Tradução: Verônica Daminelli e Daniel Yago Françoli. São Paulo: N-1 Edições; Crocodilo Edições, 2019.).

Surgia em nós, como indagação, a provocação da acepção de que performar um gênero que não constitui o regime de aparência do corpo que deseja performar poderia quebrar certos padrões na política do visível. Mobilizados por essa inquietação, olhamos para a Márcia Pantera e lhe perguntamos: a tua relação com a performance drag de alguma maneira é questionadora? Márcia, olhando para o mar em meio a escuridão da noite, responde:

De questionamento? Acho que eu nunca percebi isso. Nunca tinha me feito essa pergunta. [pausa pensativa] Talvez sim, eu acho que sim, se eu for olhar, sim. Porque é diferente e não é diferente. Lá naquela época já havia pessoas como eu fazendo esse tipo de trabalho drag queen, né. Já tinha negro, gay, alto… fazendo isso. Tinha Matiba, tinha alguns artistas, né. Mas eu não sei te responder isso de verdade. Eu preciso aprender isso. Se eu questiono alguma coisa fazendo meu trabalho? Eu não sei, de verdade, eu não sei (Márcia Pantera).

A narrativa da pantera havia nos capturado. Nem assumindo, tampouco negando: abrindo-se a aprender. Márcia narra a nós outros corpos que construíram com a performance significativa relação. Pondera, igualmente, sobre como a nossa pergunta nunca havia sido para ela uma questão formulada.

Em meio à noite e às ondas do mar, querendo raiar o dia, Márcia aponta-nos que “talvez sim, eu acho que sim, se eu for olhar, sim” ao pensar sobre o questionamento de certos padrões que sua relação com a performance poderia produzir. “Porque é diferente e não é diferente”; nessa ambivalência que atravessa sua narrativa, poderemos enxergar a presença de certos pontos de equivalência no que chama de trabalho drag.

Cabe ponderar – junto a Butler – que dizer que “[...] a montação é performativa, não significa que toda performatividade deve ser entendida como drag” (Butler, 2019, p. 282BUTLER, Judith. Corpos que Importam: os limites discursivos do sexo. Tradução: Verônica Daminelli e Daniel Yago Françoli. São Paulo: N-1 Edições; Crocodilo Edições, 2019.). Caberia aglutinar a essa afirmação outra de igual importância, a da ausência de certa ação reivindicatória inerente a qualquer artista que abraça as experimentações drag.

Isso porque, no campo da teoria queer, quando pensamos na arte drag, devemos compreender que existem performances drag nitidamente comprometidas com certa política-drag e que existem igualmente corpos que apenas se utilizam da performance drag como meio de sobrevivência e trabalho. Sobre essa perspectiva, explicitando sua teoria da performatividade, ao articular a noção de paródia de gênero, Butler acaba abrindo mão de um evidente repertório analítico, esquivando-se – talvez de modo não intencional – de um debate sobre as implicações biopolíticas das subjetividades drag e sua relação com o trabalho neoliberal.

Outros teóricos vão tecer um conjunto de tensionamentos dos processos conceituais tecidos pela Butler ao construir sua teoria de gênero. Preciado (2014, p. 91), por exemplo, vai “questionar certas ‘figuras’, especialmente a da drag queen”, que, ao seu ver, “apontam os limites de certas noções performativas”.

Uma primeira crítica erguida a Butler por Paul Preciado localiza-se na denúncia de um desaparecimento da presença de travestis de origens latinas e caribenhas3 3 É claro que a própria emergência das identidades travestis – em termos geográficos – situa-se na América Latina e Caribe, mas, dada a crescente migração dessa população em busca de oportunidades de emprego e de vida, países europeus como Espanha e Itália, por exemplo, não apenas foram/são lócus de trânsito para elas, como também foram marcados culturalmente pela força performativa que elas mobilizaram para resistir no presente e tentar construir uma vida possível de ser vivida. em sua análise de gênero. Esse debate – segundo aponta Preciado – lhe era próximo, tendo em vista seu conhecimento acerca dos estudos antropológicos sobre apresentações drag e travestilidade/transexualidade na América4 4 Apresentada como tese de doutorado na Universidade de Chicago, a etnografia Mother Camp: female impersonators in America investigou o universo das female impersonators, ou drag queens, em duas cidades norte-americanas na primeira metade dos anos 1960. Em seu texto, drag queens e female impersonators poderiam ser traduzidas – no português brasileiro – como o termo que um dia chamamos de transformistas. Entretanto, há no estudo de Newton certa ambivalência – no que concerne às identidades de gênero – na medida em que fornece um olhar tênue entre drags, suas experimentações artísticas e o aparecimento de algumas identidades trans/travestis que também atuavam como female impersonators de origem latina e caribenha. Assim, optamos por utilizar os termos travestilidade/transexualidade, tendo em vista o contexto histórico no qual o estudo de Newton se desenvolveu, em que ele acabou usando termos que não mais devemos utilizar para nos referir às comunidades trans/travestis. , desenvolvidos por Esther Newton em meados da década de 1970.

Aqui a ponderação de Preciado se faz necessária, haja vista que Butler até menciona Newton em seus problemas de gênero. Ele parte dela para afirmar que a identidade trans/travesti vai subverter a distinção entre os espaços psíquicos interno e externo, zombando fortemente de uma matriz normativa de um modelo expressivo de gênero e de uma concepção de uma verdadeira identidade de gênero (Butler, 2015BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução: Renato Aguiar. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.). Contudo, não se debruça em maior profundidade, traçando outro percurso argumentativo em sua construção teórica5 5 Outra questão que é importante pontuar são as traduções dos livros Problemas de Gênero (2015) e Corpos que Importam (2019), marcadas fortemente por termos que não mais utilizamos para nos referir à população trans/travesti. De maneira ainda mais equivocada, são apresentados em momentos conceituais em que a Butler ponderava sobre as performances drag, e não sobre as identidades trans/travestis. No primeiro livro, isso acontece quando o tradutor Renato Aguiar desloca em alguns trechos do último capítulo o termo drag do original inglês da Butler para o travesti no português. No segundo, traduzido por Veronica Daminelli e Daniel Yago Françoli e publicado em 2019, o erro se repete ao se referirem às performances drag do livro original da Butler, o travesti no português, e apontando erroneamente as práticas drags como travestismo ambivalente. Nos originais em inglês, Butler é extremamente objetiva nos termos que usa, drag e drag queen, para articular suas acepções sobre a montação drag. Quando a filósofa se refere à população trans nesses livros, utiliza-se de termos como transexual, male to female, female to male. Esses equívocos produzem implicações teóricas complexas no campo da teoria queer no Brasil, associando uma reflexão conceitual sobre a montação drag como certa tradução brasileira das identidades travestis ou, dito de outra maneira, fabricam reverberações transfóbicas. .

Faltou na teorização de Butler o que Preciado (2014, p. 94) vai chamar de “tecnologias precisas de transincorporação”, ou seja, “[...] clitóris que crescerão até se transformarem em órgãos sexuais externos, corpos que mudarão ao ritmo de doses hormonais, úteros que não procriarão”, assim como “[...] próstatas que não produzirão sêmen, vozes que mudarão de tom, barbas, bigodes e pelos que cobrirão rostos e peitos inesperados, dildos que terão orgasmos, vaginas reconstruídas [...]”.

Outra crítica lançada por Preciado (2014, p. 93-94) à teoria da performatividade butleriana está na afirmação de que a filósofa se esquece de certa materialidade corporal, tendo ignorado “[...] tanto os processos corporais e, em especial, as transformações que acontecem nos corpos transgêneros e transexuais, quanto as técnicas de estabilização do gênero e do sexo que operam nos corpos heterossexuais”. Para o filósofo, “[...] as hipóteses do chamado ‘construtivismo de gênero’ foram aceitas sem produzir transformações políticas significativas”, ao seu ver, desfazendo prematuramente corpo e sexualidade, “[...] tornando impossível uma análise crítica dos processos tecnológicos de inscrição que possibilitam que as performances ‘passem’ por naturais ou não”.

Aqui discordamos fortemente da afirmação de Preciado, haja vista que o corpo não desaparece na teorização de Butler; pelo contrário, está em evidência como efeito de toda uma materialidade discursiva. O corpo é inscrito pelo discurso e não existe pré-discursivamente. É feito e refeito mediante tensões performativas. Dizer que a superfície corporal é reverberação discursiva não é instá-la a uma antagonia de sua possível materialidade e as experimentações com o mundo.

Sobre a crítica a certo construcionismo presente em sua teoria de gênero, Butler responde de modo muito potente em corpos que importam, apontando a inexistência – em sua discussão conceitual sobre performatividade – e um aspecto voluntarista de gênero. Pelo contrário, ela pondera que “[...] a performatividade não deve ser entendida como um ato singular ou deliberado, mas como uma prática reiterativa e citacional por meio do qual o discurso produz os efeitos daquilo que nomeia” (Butler, 2019, p. 16BUTLER, Judith. Corpos que Importam: os limites discursivos do sexo. Tradução: Verônica Daminelli e Daniel Yago Françoli. São Paulo: N-1 Edições; Crocodilo Edições, 2019.).

O que nos atravessa como nova possibilidade de provocação aos debates construídos por Judith Butler em sua teoria da performatividade é o desaparecimento de um olhar investigativo sobre as implicações biopolíticas das subjetividades drag e sua relação com o trabalho neoliberal. Inclusive, isso ocorre porque certamente os arquivos mobilizados pela filósofa em corpos que importam – como o documentário Paris is Burning6 6 Documentário de 1991 dirigido por Jennie Livingston sobre os bailes no Harlem-Nova York, repletos de variadas performances drag. Nos bailes, acontecem competições em diversas categorias, como trajes militares, mulher branca da elite, queen mais masculina, trajes da realeza etc. Os participantes do filme são integrantes de várias houses (casas) que competiam nos bailes. Cada casa construía relações de afetividade e coletividade para com seus participantes, servindo de refúgio e abrigo para a população queer do Harlem, fortemente negra e de origem latina e caribenha. – atestam a perceptível racionalidade neoliberal que governamentaliza as práticas dos bailes drag. Essa questão não se faz evidente para ela na investigação que traçava.

Embora atuante nos espaços noturnos, sentindo fortemente as especificidades do trato com uma profissão artística, o trabalho drag foi gestado na racionalidade neoliberal norte-americana. Butler inclusive aponta que “existem formas de drags que a cultura heterossexual produz para si mesma” (Butler, 2019, p. 216BUTLER, Judith. Corpos que Importam: os limites discursivos do sexo. Tradução: Verônica Daminelli e Daniel Yago Françoli. São Paulo: N-1 Edições; Crocodilo Edições, 2019.), sendo exploradas como entretenimento caricato de desvios de gênero e de políticas de reconhecimento.

Todavia, não elenca operadores importantes que funcionam nos bailes do Harlem, tais como a reiteração da competitividade como ethos de relação com a arte, o modo de vida almejado pelas pessoas queer participantes dos bailes e a gestão governamental de suas vidas no cotidiano da vida norte-americana, engendradas pelo heterocapitalismo7 7 É claro que, ao ponderarmos sobre esses limites na produção conceitual da Butler, ressaltamos que a obra da filósofa é situada em um contexto histórico específico. Cada livro e movimentação conceitual da Butler se inscreve nas urgências que atravessaram seu tempo. . O trabalho drag, precarizado justamente pela identidade que constitui seu exercício, é efeito da “fronteira entre o tempo do trabalho e o local de trabalho” (Bourcier, 2020, p. 144BOURCIER, Sam. Homo Inc.corporated: o triângulo e o unicórnio que peida. Tradução: Marcia Bechara. São Paulo: N-1 Edições; Crocodilo Edições, 2020.) que se tornou embaçada com a emergência do neoliberalismo. A relação drag, trabalho e performance torna-se importante de provocação, principalmente quando pensamos no discurso neoliberal em sua produção de drags empreendedoras de si.

Nessa ação performática, vemos o funcionamento das práticas drag tendo “[...] a função de fornecer um alívio ritual para uma economia heterossexual que deve policiar constantemente suas próprias fronteiras contra a invasão do queer” (Bourcier, 2020, p. 217BOURCIER, Sam. Homo Inc.corporated: o triângulo e o unicórnio que peida. Tradução: Marcia Bechara. São Paulo: N-1 Edições; Crocodilo Edições, 2020.), fortalecendo o regime heterossexual em sua tarefa reiterativa e autoperpetuante. Isso ocorre quando essas expressões – operando junto à matriz heterossexual – são colocadas em condições de visibilidade dentro dos espaços artísticos normativos, haja vista que, mesmo quando certas ações performáticas drag estão em consonância com os códigos de um entretenimento heteronormativo, elas ainda estão – pela mesma inteligibilidade normativa que se entretém – sob o fio da navalha. Essas expressões são renegadas em primeira oportunidade, no primeiro contraste possível entre qualquer outra expressão artística emergida no âmbito heterossexual.

Tal prática drag é desprovida de certa militância tida como inata às performances queer, atendo-se muito mais aos termos e às estratégias para sobrevivência da vida através de apresentações em bares, boates, saunas e paradas LGBT do que a uma política-drag ou artivismo8 8 A noção artivismo elucida, ainda que de maneira contingente, todo um conjunto de práticas dissidentes de arte que, mobilizadas de forma individual ou coletiva, buscam articular modos concretos de atuação política. Essas novas maneiras de militância incluem, por exemplo: “[...] práticas de arte de guerrilha, ocupações artivistas de espaços do Estado, boicotes de instituições de arte e educação, ocupações de fábricas, movimentos de ocupação de praças, hacktivismos, economias e assembleias comunitárias emergentes, espaços, publicações e coletivos artísticos autogestionários, estruturas participativas relacionais e performances experimentais críticas” (Raposo, 2015, p. 9). ou, dito de outra maneira, a proliferação decidida de práticas poluidoras e de contracondutas nas práticas drag. Se na arte drag reside uma multiplicidade, efetivam-se igualmente tecnologias neoliberais de produção de subjetividade. Dessa maneira, vemos drags aglutinando não só repertórios políticos e contestadores, mas também o uso drag como entretenimento e diversão ao público hetero-homossexual, disputando sucesso, lucratividade e eficiência.

Cabe salientar aqui que, nesse vinco que se estabelece nas práticas drag, poderemos perceber como “existem outras maneiras de ver a relação entre gênero, trabalho e performance” (Bourcier, 2020, p. 151BOURCIER, Sam. Homo Inc.corporated: o triângulo e o unicórnio que peida. Tradução: Marcia Bechara. São Paulo: N-1 Edições; Crocodilo Edições, 2020.). Ou seja, em ambas práticas drag, “não há antinomia entre trabalho e produção, por um lado, e performance, por outro” (Bourcier, 2020, p. 151BOURCIER, Sam. Homo Inc.corporated: o triângulo e o unicórnio que peida. Tradução: Marcia Bechara. São Paulo: N-1 Edições; Crocodilo Edições, 2020.). A performance e o espetáculo drag “sublinham o fato de que o trabalho também é uma performance e, então, o desnaturalizar” (Bourcier, 2020, p. 151BOURCIER, Sam. Homo Inc.corporated: o triângulo e o unicórnio que peida. Tradução: Marcia Bechara. São Paulo: N-1 Edições; Crocodilo Edições, 2020.).

No processo de desnaturalizar as performances heteronormativas e binárias que conformam o trabalho capitalista desde a emergência da modernidade, os corpos drag, imbuídos ou não de uma decisão político-corporal de contraconduta, atiçam provocativas ações criativas, mobilizando efeitos constitutivos.

Como reverberação da identidade drag, uma reformulação da política da aparência sobre o corpo se engendra através do espetáculo-trabalho e da performance-instrumento-ferramenta, difusas práticas que em suas realizações tornam visíveis o heterocapitalismo e a produção generificada do trabalho neoliberal. Boate lotada, o bolso e o corpo: “[...] no trabalho, no contexto neoliberal, a noção de performance de gênero recupera seu significado empreendedor, alienante, heteronormativo” (Bourcier, 2020, p. 170BOURCIER, Sam. Homo Inc.corporated: o triângulo e o unicórnio que peida. Tradução: Marcia Bechara. São Paulo: N-1 Edições; Crocodilo Edições, 2020.) e biopolítico, articulando a pacificação da poluição corporal drag.

Nessa perspectiva, ao ponderarmos o exercício do poder sobre a relação entre corpo e trabalho, devemos compreender que o debate marxista em torno do trabalho “[...] toma como referências a relação do trabalhador com o objeto produzido (que é de alienação), a intervenção em nível da produção e o consumo enquanto valor” (Bourcier, 2020, p. 167BOURCIER, Sam. Homo Inc.corporated: o triângulo e o unicórnio que peida. Tradução: Marcia Bechara. São Paulo: N-1 Edições; Crocodilo Edições, 2020.). As discussões do campo queer deslocam tal objeto – efeito da relação corpo-trabalho – exatamente quando “[...] enfocam a questão da subjetividade produzida pelo trabalho, e a busca de modos produtivos e reprodutivos de valores diferentes, de modos de produção e de consumo alterado” (Bourcier, 2020, p. 167BOURCIER, Sam. Homo Inc.corporated: o triângulo e o unicórnio que peida. Tradução: Marcia Bechara. São Paulo: N-1 Edições; Crocodilo Edições, 2020.).

O que desponta como afirmação das drags como empreendedoras de si é a acepção de que o regime de trabalho que vem sendo realizado por elas é uma das novas modalidades precárias de trabalho neoliberal. Tais modalidades são marcadas pelo esvaziamento da organização coletiva em torno do trabalho (luta sindical, carreira, identidade político-profissional etc.), pela flexibilidade, adaptabilidade e competitividade.

Quando RuPaul aponta que “todos nós nascemos nus. O resto é drag” (RuPaul, 2015RUPAUL. Born Naked. Chicago: RuCo, Inc, 2014. 38min15s. (álbum musical)., n. p., tradução nossa), de certa forma converge-se com a concepção de que a generificação dos corpos sempre é exercida por todo um conjunto decididamente heterogêneo de práticas discursivas, produzindo sobre os corpos regimes de aparência para o feminino e para o masculino.

Há na performance drag alguns deslocamentos no regime da aparência de gênero, atuando precisamente sobre as visibilidades corporais femininas e masculinas. Sobre isso, inclusive, RuPaul afirma: “[...] eu não penso que eu poderia nunca me assemelhar com uma mulher. Elas não se vestem dessa forma. Somente Drag Queens se vestem assim” (Baker, 1994, p. 258BAKER, Roger. Drag: a history of female impersonation in the performing arts. Nova York: New York University Press, 1994.).

Sob essa perspectiva, a produção feminina ou masculina drag é singular e diferente, pois parodia a naturalização da identidade através dos códigos de feminilidade e masculinidade. Esse efeito elucidado na afirmação de RuPaul, entretanto, não impossibilita “[...] um verdadeiro mergulho no abismo da lógica da seleção, de seleção de elenco e entrevista de emprego”, racionalidade cada vez mais presente em apresentações e eventos drag, principalmente norte-americanos, como o Drag Race de RuPaul9 9 Reality show de competição drag liderado por RuPaul. Consiste na disputa de drag queens de vários estados norte-americanos com várias provas que exigem desde a apresentação de habilidades sobre costura, moda e maquiagem até a batalha entre as participantes por meio de suas performances, duelando pelo pódio de melhor drag estadunidense. .

Márcia Pantera, ao nos narrar sua abertura em aprender a questionar, denota sua assertiva acepção do trabalho drag queen ou, dito de outra forma, da drag queen como trabalho. Indagando como se pode questionar algo realizando um trabalho, ela noticia uma passabilidade do trabalho, cada vez mais comum nos artefatos produzidos por corpos queer, que desvinculam o trabalho como significativo operador de gênero.

E, erguendo em pleno espetáculo suas garras, uma nova imagem-pantera despontava: mãos erguidas; pose; cabelos ao chão; cabelos-cauda. Curvas de um corpo em performance. Márcia, modelando sua ação, articula em torno de si um gesto performático na visibilidade que aglutina em sua experimentação perene com a arte.

Sua postura corporal ressoa performance, suas mãos abertas sobre os arcos extrapolam uma mera pose, seu olhar em direção ao que vem atesta uma belicosidade difusa: sem grito, nem chamas, nem guerra. Sua revolução é sobreviver, bater cabelo contra um mundo que devora panteras e silencia drag queens.

Figura 2
Márcia Pantera. Fonte: Foto de Ivan Erick Menezes (2020).

Estimulados pela sua narrativa, nem fomos percebendo que o dia já brotava da imensidão do mar. O sol erguia-se na nossa conversa como mais um corpo envolvido no encontro. Afetados pela troca que ali se constituía, querendo ouvir ainda mais as vivências com a performance drag, meio que impelidos pelas narrativas, começamos a pensar sobre os saberes engendrados através da experimentação com a arte. Márcia repara nesse nosso gesto, levanta-se e caminha um pouco, aproximando-se do mar. Repara em cada movimento das ondas e afirma:

Eu com a escola da vida, eu aprendi muita coisa, e ainda me permito hoje estar aprendendo muita coisa. Eu não acho que sei tudo. Eu não acho que sou a drag queen nº1. Eu não acho que sou a drag mais maravilhosa. Eu não acho nada disso. Eu acho que estou sempre aprendendo muita coisa. Porque eu tive que aprender com as outras, que quando eu comecei mais nova e tinha as mais velhas... Eu tive que aprender com elas. Eu tive que olhar para elas e ser humilde o suficiente pra falar: ‘olha, que legal! É assim?’ E hoje talvez, muda tudo. Eu entendo que o tempo todo muda, né. Mudou os anos 90, os anos 2000, mudou tudo isso, o ano de 2010, agora estamos em 2020. É muito tempo pra gente entender, olhar pra trás e se permitir aprender. Olha, não tem coisa melhor do que você poder aprender, sabe (Márcia Pantera).

Nos modos de uso drag, é possível utilizar os saberes construídos com a performance como possibilidade de subjetivação, de devir-outro. Ora, a narrativa de Pantera enseja apontar os objetivos da transformação drag, ou seja, as perenes mutações que se sucedem sobre o corpo na atitude de abertura aos processos educativos que sua trajetória aglutinou.

No gesto inquietante que tecia nossa possibilidade de encontro, Márcia não somente associa suas incertezas à resposta que nossa indagação mobilizou. Ela ressalta esse saber-fazendo do corpo drag e pondera sobre os modos pelos quais utiliza a performance drag. “Olhar pra trás e se permitir aprender” são, na narrativa da Pantera, seus atributos potentes.

Figura 3
Márcia Pantera. Fonte: Foto de Ivan Erick Menezes (2020).

“Eu tive que aprender com elas. Eu tive que olhar para elas e ser humilde o suficiente pra falar: olha, que legal! É assim?” É no campo do sensível que entrevemos, precisamente, “[...] um modo de articulação entre as maneiras de fazer, as formas de visibilidade dessas maneiras de fazer e os modos de pensabilidade de suas relações” (Rancière, 2005, p. 13RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível: estética e política. Tradução: Mônica Costa Netto. São Paulo: Editora 34, 2005.). Afetos, emoções. Diversão, alegria. Produções sensíveis que crescem como reverberação de nossa relação com os outros e com o mundo. No bojo desses atravessamentos, perceberemos que “[...] a política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem ‘ficções’, isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer” (Rancière, 2005, p. 59RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível: estética e política. Tradução: Mônica Costa Netto. São Paulo: Editora 34, 2005.). Tornando evidente que “hoje talvez, muda tudo”.

Como uma lembrança visível de sua força performática, Márcia, mobilizando sua imagem vogue, munida de seu rugido corporal e seu bate-cabelo, reescreve em torno de si um jeito próprio de circular entre as drags. É princesa. Rainha. Plebeia. Drag. É marcada de textura dissidente e, em sua pose, ecoa um texto belo que desafia seu tempo.

Sua afirmação de que “mudou os anos 90, os anos 2000, mudou tudo isso, o ano de 2010, agora estamos em 2020” é nitidamente marcada pelo embate em torno das temporalidades e sua afetação no corpo. A relação corpo-performance e corpo em performance é contingente na narrativa de Márcia, como se uma desapropriação da relação entre seu corpo e sua drag produzisse regimes de tempo descontínuos.

O tempo, esse regime discursivo que produz “[...] o nosso tempo, o presente, não é, de fato, apenas o mais distante: não pode em nenhum caso nos alcançar” (Agamben, 2009, p. 65AGAMBEN, Giorgio. O que É o Contemporâneo? e Outros Ensaios. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.). Ele não pode porque “[...] o seu dorso está fraturado, e nós nos mantemos exatamente no ponto da fratura. Por isso somos, apesar de tudo, contemporâneos a esse tempo” (Agamben, 2009, p. 65AGAMBEN, Giorgio. O que É o Contemporâneo? e Outros Ensaios. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.).

No jogo de transformações que produzem nosso tempo, várias acepções sobre o corpo e subjetividade despontaram, especialmente pela reiterada inteligibilidade cultural generificada. Os saberes naturalizados sobre o corpo, as capturas incontornáveis da subjetividade e as fissuras que podem desnaturalizar as diferenças sexuais apresentam-se no tempo em práticas difusas urgentes.

É sob essa ótica que, “no tempo cronológico, algo que urge dentro deste e que o transforma” (Agamben, 2009, p. 66AGAMBEN, Giorgio. O que É o Contemporâneo? e Outros Ensaios. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.) rearranja acepções múltiplas sobre práticas tidas como decididamente políticas, mesmo que não sejam visualizadas pelo corpo que a sucede. “E essa urgência é a intempestividade, anacronismo que nos permite apreender o nosso tempo na forma de um ‘muito cedo’ que é, também, um ‘muito tarde’: de um ‘já’ que é, também, um ‘ainda não’” (Agamben, 2009, p. 66AGAMBEN, Giorgio. O que É o Contemporâneo? e Outros Ensaios. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.).

Pode ser que seja a alegria e a diversão, aparatos fissurados produzidos pelo corpo-pantera que se levantam contra a heterossexualização do riso, da alegria, do divertir. Tais aparatos são necessários para uma efetiva mobilização do pensamento, que está longe de se alegrar e divertir sobre o corpo abjeto, estranho, drag. Essa mobilização produz novas aberturas, novas dinâmicas, novas possibilidades paradoxais – não se propõe culminante, válvula de escape – na medida em que aniquila de forma ágil suas pretensões próprias.

Nessa errância contingente, curiosos por aquilo que ainda não ouvimos, abertos a um relato-pantera, buscamos então, como postura de encontro, nos lançar ao mar, aprendendo outras formas de sentir e ouvir, deslocados pela força performativa da presença de Márcia junto a nós. Entramos no mar. As águas abraçaram nosso corpo, tal como um abraço quente. O sal sacudia o corpo, como uma purificação, expelindo de nós os mais perigosos caprichos da norma. Márcia não nos acompanha, permanecendo à beira-mar e fitando o movimento das ondas.

Fomos levados a pensar – no vinco da relação de seu corpo com a performance drag – nos saberes construídos por ela nesse percurso e se a escola – não a da vida, mas sim a institucionalizada – poderia, em alguma medida, marcar, afetar ou deslocar a sua relação com a arte. Logo, perguntamos a ela: teu percurso escolar teve alguma contribuição ou te aproximou da arte, da performance? Márcia responde:

Eu acho que na escola talvez eu já tinha uns vestígios dessa arte na veia. Porque eu gostava muito da quadrilha, eu gostava do esporte, eu gostava de assistir o teatro na escolinha. Quando tinha alguma coisa, eu gostava de participar. Então, tudo o que dentro da arte, na escola, eu gostava de estar. Só que eu nem imaginava que isso iria transformar a minha vida mais pra frente. Mas eu acho que é isso mesmo, a escola me ajudou sim, a enxergar algumas coisas. Que depois muda tudo, né. Tudo se transforma. É um outro universo, né. Na verdade, é um universo paralelo talvez, né. Porque na escola existia todos os preconceitos que existem no mundo. Eu não podia ser, por exemplo, na hora do teatro, eu não podia ser princesa, eu tinha que ser um príncipe. Talvez eu queria pegar um papel onde eu me identificasse, né. Mas aí naquela época talvez isso não cabia, a professora também não deixava. Talvez se eu pegasse o papel eu teria o olhar das pessoas. Então tudo isso influencia lá naquela época, e que poderia influenciar mais pra frente. Mas eu sempre busquei estar dentro da arte, dentro da bagunça da arte, da grandiosidade da arte. A bagunça que eu falo é de estar no meio mesmo (Márcia Pantera).

Procurando vestígios no passado através da força da narrativa, Márcia apresenta a nós um percurso nas suas memórias, carregando-as de sentidos do presente. Ela se lança afoita, brincando quadrilha, praticando esportes e assistindo a apresentações teatrais. Ela tece o gosto – tornando-o vívido – daquilo que lhe remetia como próximo à arte no cotidiano escolar.

A escola, como cena discursiva, produz e regula sua inteligibilidade normativa. Ela conforma no corpo a escolarização, e este se contrapõe à/na escola. “Tudo se transforma. É um outro universo, né. Na verdade, é um universo paralelo talvez, né”. A instituição escolar na narrativa de Márcia é um outro universo, justamente “porque na escola existia todos os preconceitos que existem no mundo”.

Ao tensionarmos o funcionamento e a produção da materialidade de gênero, operando mediante rituais próprios ao cotidiano escolar, notamos uma coexistência discursiva10 10 A noção de coexistência, para Foucault (2012, p. 68), remete a “[...] todos os enunciados já formulados em alguma outra parte e que são retomados em um discurso a título de verdade admitida, de descrição exata, de raciocínio fundado ou de pressuposto necessário”. Tais enunciados são igualmente “criticados, discutidos e julgados, assim como os que são rejeitados ou excluídos”. A coexistência discursiva delineia um campo de presença. compondo o entrecruzamento narrativo e o discurso pedagógico no que pondera Márcia Pantera: “Eu não podia ser, por exemplo, na hora do teatro, eu não podia ser princesa, eu tinha que ser um príncipe. Talvez eu queria pegar um papel onde eu me identificasse, né”.

Cabe salientar que os rituais estão associados “[...] a um conjunto de condutas individuais ou coletivas, relativamente codificadas, com suporte corporal (verbal, gestual ou de postura), com caráter repetitivo e carga simbólica” (Carvalho, 2016, p. 1048CARVALHO, Rosângela Tenório de. O Ritual da Lição na Pedagogia: o aspecto performativo. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 42, n. 4, p. 1045-1060, out./dez. 2016.). Criativos em suas reverberações performativas, os rituais “[...] devem ser vistos como um complexo de palavras e ações, e nesse sentido interessa saber como se dá a interconexão entre palavras e ações” (Carvalho, 2016, p. 1048CARVALHO, Rosângela Tenório de. O Ritual da Lição na Pedagogia: o aspecto performativo. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 42, n. 4, p. 1045-1060, out./dez. 2016.).

Na instituição escolar, em seus artefatos, os rituais “podem constituir elementos da cena” (Carvalho, 2021, p. 9CARVALHO, Rosângela Tenório de. Rituais da Escolarização e Gênero. Cadernos Pagu, Campinas, n. 61, 2021.) e, quando falamos de rituais envolvendo a lição, percebemos como “[...] ocorrem a institucionalidade de quem ensina e a autoridade para dizer o verdadeiro sobre as crianças e reafirmar o que foi dito sobre o sexo da criança na hora do nascimento” (Carvalho, 2021, p. 11CARVALHO, Rosângela Tenório de. Rituais da Escolarização e Gênero. Cadernos Pagu, Campinas, n. 61, 2021.).

Narrando como uma interdição discursiva funciona através dos rituais de escolarização em seus processos de subjetivação, Márcia elucida outro efeito naturalizado do discurso pedagógico quando afirma: “Mas aí naquela época talvez isso não cabia, a professora também não deixava. Talvez se eu pegasse o papel eu teria o olhar das pessoas”.

O discurso pedagógico, ou seja, aquele “[...] que formula a racionalização dos processos formadores relativos ao sujeito a ser educado, aos objetivos da educação e às modalidades educativas” (Carvalho, 2016, p. 1049CARVALHO, Rosângela Tenório de. O Ritual da Lição na Pedagogia: o aspecto performativo. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 42, n. 4, p. 1045-1060, out./dez. 2016.) articula a fabricação de variados rituais de gênero. Engendram-se através deles práticas de sujeição que conformam um estatuto binário ao corpo, assim como uma política da aparência sobre o feminino e masculino. Dessa maneira, os exercícios teatrais, esportivos e recreativos na escola são marcados por regras discursivas que regulam e interditam tudo o que pode poluir a matriz de inteligibilidade que a forma-escola constitui.

O medo dos olhares apontados na narrativa de Márcia noticia como, no cotidiano da escola, vários atravessamentos normativos produzem no corpo enquadramentos difusos. Nosso corpo é ortopedicamente modificado, alvejado de interpelações, é efeito de relações sofisticadas de poder, naturalizando um funcionamento binário e compulsório como consolidação e continuidade de um regime político mais amplo.

Permitir no cotidiano escolar práticas que possam dinamitar a matriz normativa generificada certamente perturbaria “[...] o saber convencional a respeito da aparência que o gênero masculino e/ou feminino deveria ter” (Spargo, 2017, p. 47SPARGO, Tamsin. Foucault e a Teoria Queer. Tradução: Heci Regina Candiani. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.), além de mobilizar a reivindicação de “[...] outras formas de viver que não estejam instadas a um estatuto do reconhecimento. Resultados não previstos, formas de vida que desafiam os esquemas e as táticas normativas” (Silva, 2020, p. 9SILVA, Robson Guedes da. Biopolítica, Precariedade e Educação: um ensaio de pensamento com Butler e Foucault. Linhas Críticas, v. 26, p. 1-17, ago. 2020.).

Márcia prolifera em seu narrar, mesmo de maneira não decidida, paródias dissidentes de gênero que reivindicam outros saberes possíveis nas tessituras das performances drag. Saberes queer que se nutrem de percepções de si na ação performativa e de práticas de sobrevivência como ato de enfrentamento contra uma intensa vulnerabilização dos corpos drag.

Postos em evidência nesse encontro narrativo, os saberes queer presentes na performance de Márcia Pantera evidenciam a multitude criativa tecida nas experimentações drag, que, não se fadando a gestos de totalização, fustigam os termos da identidade naturalizada, difundindo “uma identidade que problematiza os limites administráveis da identidade” (Bash Back, 2020, p. 24BASH BACK!: ultraviolência queer – antologia de ensaios. São Paulo: N-1 Edições; Crocodilo Edições, 2020.) mediante múltiplas paródias de gênero.

Pernas ao alto, cabelos ao chão. Unhas, dentes, garras. Lambidas e balanços. Cauda ao vento exalando uma vontade animalizada e um sabor de pirataria corporal, roubando uma viabilidade capenga que decreta delito a sua anormalidade evidente. A pantera – nesse devaneio-encontro – não precisa morder para devorar.

Sem órgãos, nem humanidade, batendo cabelo contra o governo do corpo, Márcia Pantera, querendo trabalhar e viver uma vida possível de ser vivida, narra suas experimentações com a performance drag. De boate em boate, prolifera saberes performativos queer, engendrando pelo seu corpopantera, pela paródia que constitui múltiplos efeitos constitutivos, articulando a proliferação de conhecimentos anárquicos sobre a performance fortemente queerizados.

Partida?!

É olhando para Márcia Pantera à beira-mar que nos deixamos submergir, mergulhando no azul salgado que tecia o enredo de nosso encontro. O amanhecer, promessa de todos os dias, cristaliza as bolhas de oxigênio que íamos devolvendo dos pulmões aos céus como singela oferta ao sol.

Ela nos afetou com sua presença, ecoando seu texto-corpo, partilhando conosco o que foi tornando isso que ela está sendo. Drag-pantera. Pantera-drag. Sorrindo, reparando em nosso lançar-se em mergulho, se despede daquilo que desde a madrugada suscitava nosso encontro: a possibilidade de narrar sobre si.

Ao partir, Márcia Pantera, através de suas narrativas, elucidou os modos pelos quais os contornos da sua superfície corporal engendraram formas de contraconduta, querendo com isso denunciar a facticidade de uma materialidade corporal naturalizada, parodiada em sua ação drag. Articulando em torno de si práticas que despontam como viabilidade crítica, ao narrar sobre si mesmo e sobre as possibilidades do que pode o corpo em movimento, a pantera Márcia inscreve uma ação performativa singular, fruto de suas vivências com a performance.

Concluindo tal percurso narrativo-poético, afetados pela sua presença, entrevemos a ação criativa da performance de Márcia Pantera como potente experimentação queer, agindo fortemente na constituição de modos dissidentes de afetações educativas, suscitando outras maneiras de vivenciar a performance em sua ação contingente e plurívoca.

Notas

  • 1
    É principalmente em Problemas de Gênero (2015) que Judith Butler vai formular a sua teoria da performatividade de gênero. Em Corpos que Importam (2019), a teórica vai buscar aprofundar suas discussões sobre performatividade, ensejando responder às críticas sobre os limites entre performance e performatividade, apontando a materialidade de gênero como um processo discursivo reiterado, amplo e corporificado.
  • 2
    O conceito de liminaridade vai se nutrir da contribuição do antropólogo Victor Turner, que, ao pesquisar os rituais de passagem do povo lunda-ndembus no continente africano, percebe que, no decorrer dos ritos, se apresenta por meio da performance empreendida o que conceitua como momentos liminares, entendendo que eles “[...] não se situam aqui nem lá; estão no meio e entre as posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimonial. Seus atributos ambíguos e indeterminados exprimem-se por uma rica variedade de símbolos, naquelas várias sociedades que ritualizam as transições sociais e culturais” (Turner, 1974, p. 117TURNER, Victor W. O Processo Ritual: estrutura e anti-estrutura. Tradução de Nancy Campi de Castro. Petrópolis: Vozes, 1974.). Vê com isso a performance como um lugar entre, um momento de transição, variado de possibilidades, indefinido e em constante ressignificação.
  • 3
    É claro que a própria emergência das identidades travestis – em termos geográficos – situa-se na América Latina e Caribe, mas, dada a crescente migração dessa população em busca de oportunidades de emprego e de vida, países europeus como Espanha e Itália, por exemplo, não apenas foram/são lócus de trânsito para elas, como também foram marcados culturalmente pela força performativa que elas mobilizaram para resistir no presente e tentar construir uma vida possível de ser vivida.
  • 4
    Apresentada como tese de doutorado na Universidade de Chicago, a etnografia Mother Camp: female impersonators in America investigou o universo das female impersonators, ou drag queens, em duas cidades norte-americanas na primeira metade dos anos 1960. Em seu texto, drag queens e female impersonators poderiam ser traduzidas – no português brasileiro – como o termo que um dia chamamos de transformistas. Entretanto, há no estudo de Newton certa ambivalência – no que concerne às identidades de gênero – na medida em que fornece um olhar tênue entre drags, suas experimentações artísticas e o aparecimento de algumas identidades trans/travestis que também atuavam como female impersonators de origem latina e caribenha. Assim, optamos por utilizar os termos travestilidade/transexualidade, tendo em vista o contexto histórico no qual o estudo de Newton se desenvolveu, em que ele acabou usando termos que não mais devemos utilizar para nos referir às comunidades trans/travestis.
  • 5
    Outra questão que é importante pontuar são as traduções dos livros Problemas de Gênero (2015) e Corpos que Importam (2019), marcadas fortemente por termos que não mais utilizamos para nos referir à população trans/travesti. De maneira ainda mais equivocada, são apresentados em momentos conceituais em que a Butler ponderava sobre as performances drag, e não sobre as identidades trans/travestis. No primeiro livro, isso acontece quando o tradutor Renato Aguiar desloca em alguns trechos do último capítulo o termo drag do original inglês da Butler para o travesti no português. No segundo, traduzido por Veronica Daminelli e Daniel Yago Françoli e publicado em 2019, o erro se repete ao se referirem às performances drag do livro original da Butler, o travesti no português, e apontando erroneamente as práticas drags como travestismo ambivalente. Nos originais em inglês, Butler é extremamente objetiva nos termos que usa, drag e drag queen, para articular suas acepções sobre a montação drag. Quando a filósofa se refere à população trans nesses livros, utiliza-se de termos como transexual, male to female, female to male. Esses equívocos produzem implicações teóricas complexas no campo da teoria queer no Brasil, associando uma reflexão conceitual sobre a montação drag como certa tradução brasileira das identidades travestis ou, dito de outra maneira, fabricam reverberações transfóbicas.
  • 6
    Documentário de 1991 dirigido por Jennie Livingston sobre os bailes no Harlem-Nova York, repletos de variadas performances drag. Nos bailes, acontecem competições em diversas categorias, como trajes militares, mulher branca da elite, queen mais masculina, trajes da realeza etc. Os participantes do filme são integrantes de várias houses (casas) que competiam nos bailes. Cada casa construía relações de afetividade e coletividade para com seus participantes, servindo de refúgio e abrigo para a população queer do Harlem, fortemente negra e de origem latina e caribenha.
  • 7
    É claro que, ao ponderarmos sobre esses limites na produção conceitual da Butler, ressaltamos que a obra da filósofa é situada em um contexto histórico específico. Cada livro e movimentação conceitual da Butler se inscreve nas urgências que atravessaram seu tempo.
  • 8
    A noção artivismo elucida, ainda que de maneira contingente, todo um conjunto de práticas dissidentes de arte que, mobilizadas de forma individual ou coletiva, buscam articular modos concretos de atuação política. Essas novas maneiras de militância incluem, por exemplo: “[...] práticas de arte de guerrilha, ocupações artivistas de espaços do Estado, boicotes de instituições de arte e educação, ocupações de fábricas, movimentos de ocupação de praças, hacktivismos, economias e assembleias comunitárias emergentes, espaços, publicações e coletivos artísticos autogestionários, estruturas participativas relacionais e performances experimentais críticas” (Raposo, 2015, p. 9RAPOSO, Paulo. “Artivismo”: articulando dissidências, criando insurgências. Cadernos de Arte e Antropologia, v. 4, n. 2, p. 3-12, 2015.).
  • 9
    Reality show de competição drag liderado por RuPaul. Consiste na disputa de drag queens de vários estados norte-americanos com várias provas que exigem desde a apresentação de habilidades sobre costura, moda e maquiagem até a batalha entre as participantes por meio de suas performances, duelando pelo pódio de melhor drag estadunidense.
  • 10
    A noção de coexistência, para Foucault (2012, p. 68)FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Tradução: Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012., remete a “[...] todos os enunciados já formulados em alguma outra parte e que são retomados em um discurso a título de verdade admitida, de descrição exata, de raciocínio fundado ou de pressuposto necessário”. Tais enunciados são igualmente “criticados, discutidos e julgados, assim como os que são rejeitados ou excluídos”. A coexistência discursiva delineia um campo de presença.
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Disponibilidade dos dados da pesquisa:

o conjunto de dados de apoio aos resultados deste estudo está publicado no próprio artigo.

Referências

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  • BUTLER, Judith. Corpos que Importam: os limites discursivos do sexo. Tradução: Verônica Daminelli e Daniel Yago Françoli. São Paulo: N-1 Edições; Crocodilo Edições, 2019.
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  • SILVA, Robson Guedes da. Biopolítica, Precariedade e Educação: um ensaio de pensamento com Butler e Foucault. Linhas Críticas, v. 26, p. 1-17, ago. 2020.
  • SPARGO, Tamsin. Foucault e a Teoria Queer Tradução: Heci Regina Candiani. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
  • TURNER, Victor W. O Processo Ritual: estrutura e anti-estrutura. Tradução de Nancy Campi de Castro. Petrópolis: Vozes, 1974.
Editora responsável: Fabiana de Amorim Marcello

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2023
  • Aceito
    24 Set 2023
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