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O perfil do clínico geral

O Seminário “A Formação do Médico Generalista” (Campinas, 24-27 de maio, 1978), deixou uma pergunta básica sem resposta, previamente sugerida para tópico de discussão. Efetivamente, no presente momento parece-me cada vez mais fundamental conceituar o “perfil ocupacional” do clínico geral, esboçando uma delimitação precisa de suas “atribuições e responsabilidades”.

A omissão é estranha, uma vez que foram pródigas as sugestões com respeito ao processo de formação deste clínico geral, com a inclusão de genética, economia médica, administração, demografia, sociologia, antropologia, etc., no currículo, como se com isso, modificada a forma do curso de Medicina, automaticamente assegura-se ampla mudança no seu conteúdo, no seu espírito. Se bastasse a reformulação do currículo para a renovação do ensino médico, há muito tempo este estaria à salvo de críticas. Confesso que no calor da discussão vi-me tentado a incluir no currículo a Prática de Laboratório Clínico, mas bastou um pouco de reflexão para demonstrar que tal disciplina facilmente poderia ser incluída na Clínica Médica.

Discutir se esse profissional deva chamar-se generalista, médico de família, clínico geral ou meramente médico geral, pode não passar de um interessante exercício de semântica. Mas uma definição mais ou menos precisa daquilo que se espera que este redescoberto profissional venha a fazer não me parece acadêmica, pois o seminário de Campinas, depois de um início um tanto acanhado, terminou por brindar o médico geral com entusiasmo e unânime endosso. Possivelmente estamos presenciando o término da fase restritiva da profissão, aquela do especialista ou do “especialóide”. Mas há um risco igualmente temível: o de resvalar para o extremo oposto, para a armadilha do “o que cai na rede é peixe”, e torna­se urgente definir e delimitar o campo de atuação do clínico geral.

De início, dois fatos merecem ser lembrados:

  1. Com a crescente urbanização da população brasileira, a maioria dos profissionais terá que ser treinada para trabalhar nas cidades, e serão poucos aqueles chamados a exercer o seu ofício em regiões totalmente isoladas dos recursos médico-hospitalares mínimos;

  2. A nossa meta, defendida pela maioria dos participantes da recente reunião, é a formação do médico geral em regime de graduação; só uma reduzida minoria, constituída, talvez, daqueles que ambicionam uma carreira acadêmica deveria submeter-se a uma pós-graduação.

Assim, por ser desnecessário preparar o clínico geral para fazer face à totalidade da demanda, e por este não ficar na escola o tempo suficiente para adquirir habilidades técnicas maiores, penso que tranqüilamente podemos excluir a média e a grande cirurgia do perfil ocupacional que procuramos definir. Desse modo, já estamos a traçar os limites superiores das atribuições do clínico geral, o que concorre para salvaguardar a sociedade daquela minoria que porventura sinta -se tentada a exorbitar das prerrogativas que lhe dá o diploma de médico. Verdade é que, desde que haja abundância de material humano, a escola pode ensinar a extrair um apêndice ou operar uma hérnia umbelical; mas o que nos assegura que, uma vez adquirida a confiança e a habilidade manual, o novo médico não venha a exercitar-se num bócio ou numa resecção de alça?

Positivamente, acredito que a cirurgia tenha que ficar por fora do nosso perfil.

A mim parece suficiente que o clínico geral faça a drenagem de abscessos e flegmões, realize alguma pequena sutura, e, eventualmente, a excisão de um cisto ou a realização de uma biópsia de mama.

Em nosso meio ainda é tão exótica a idéia do clínico geral que, temo, cada um de nós tenha uma imagem privativa a respeito nem sempre compatível com a sua real definição. Se me permitem, gostaria de exibir algumas das conceituações que me parecem equivocadas.

Saudosismo

A figura venerável do velho médico de família, que uns poucos ainda guardam na lembrança, e que os mais jovens pelo menos conhecem do cinema ou da literatura, serve de modelo para alguns. Foi, contudo, excelente termos, nesse seminário, rejeitado a denominação “médico de família” pois, seja ou não desejável ressucitar tal figura romântica, os fatos demonstram que isso seria utópico.

Mesmo na Grã-Bretanha, mesmo nos Estados Unidos, raro é o médico que tem toda a família sob seus cuidados. Geralmente os avós moram numa localidade onde têm seu médico, os pais noutra cidade, os filhos estão na universidade, e quem deles cuida é o serviço médico dos estudantes. Rara é a ficha de arquivo, mesmo nos centros para treinamento dos futuros médicos de família, que registre mais de 2 ou 3 nomes da mesma “família”.

Convenhamos também, que os bons tempos da visita domiciliar já ficaram para trás. Penso que jamais voltaremos a conviver com ela.

“Internista” como sinonímia

Há aqueles que limitam o processo de “desespecialização” na figura do internista, encarado como um generalista da clínica médica.

Já é um passo na direção certa, ainda longe, porém, de onde queremos chegar, pois a clínica médica, no seu sentido mais estreito, não atende a mais de metade da demanda que a população lhe faz. O internista tradicional não faria um toque retal, nem um exame ginecológico, não trataria de uma conjuntivite epidêmica nem se aventuraria a fazer uma paracentese de tímpano, não medicaria uma acne supurada, nem realizaria uma in filtração na síndrome do ombro doloroso.

Mas são habilidades que se espera do clínico geral.

Para trazer dados tangíveis a essa discussão, revi os últimos cem prontuários de nosso Ambulatório Geral, e anotei as modalidades de exame físico utilizados por ocasião da consulta inicial dos pacientes:

  • Exame otorrinolaringológico - em 13%

  • Exame ginecológico - em 11%

  • Exame oftalmológico - em 7%

  • Exame ortopédico - em 7%

  • Exame de pele - em 7%

  • Exame proctológico (incluindo toque retal) - em 4%

Essas são as manobras efetuadas por nossos clínicos gerais (e não incluem aqueles pacientes que tiveram de ser enviados ao especialista).

Vê-se que apenas em 51% das situações o internista seria auto-suficiente.

A perspectiva do sanitarista

É igualmente incompleta a concepção que se faz do clínico geral nos círculos que se ocupam de Saúde Pública, ou de Medicina Preventiva.

É-me penoso criticá-los, pois trata-se do grupo mais idealista e visionário (no bom sentido) dentro da classe médica, e que sempre se tem situado na vanguarda do planejamento de sáude. Imbuídos dos mais elevados propósitos, têm uma visão clara dos problemas prioritários da população. Infelizmente a sua “prioridade” implica numa concepção de saúde vista por atacado.

Com isso cegam-se a uma Medicina praticada a varejo, campo de trabalho obrigatório do médico que ocupa a linha de frente do sistema de saúde, em contato com o público e sua demanda (nem sempre “importante”, em termos de morbidade ou mortalidade).

Já trabalhei em ambos os campos, e sei que as duas perspectivas são irreconciliáveis.

A prioridade do clínico geral é o paciente que a define. Saneamento, vacinação, cuidados materno-infantis, são atos que o clínico geral pode eventualmente participar, mas só em escala reduzida, a varejo. Tais previdências, quem as norteia é a Administração, quem as executa é a equipe de saúde, e dela participam em posição de destaque os elementos “paramédicos”

“Cuidados primários” - o clínico geral como “triador”

O clínico geral jamais poderá limitar-se a fazer triagem, e querer dar-lhe tal característica é contribuir para a degradação de seu status.

É verdade que o grosso de seu trabalho envolverá os cuidados primários, a rotina do dia-a-dia. Nas épocas de gripe, por exemplo, lidará com uma sucessão de banais casos de febre e dores musculares, e sabera como reconhecê-los. Mas que não se espere, por isso, que deva mandar ao especialista as “febres e esclarecer”, não abrangidas pelo diagnóstico presuntivo de influenza. O clínico geral saberá diagnosticar e tratar uma septicemia, ou uma doença de Weil.

Ninguém sentir-se-á feliz e conseqüentemente não prestará serviço eficiente se suas funções se limitarem às doenças comuns. Ninguém gozará de status, com a população e junto à profissão se for um mero intermediário entre o paciente e os especialistas (e não foi esta questão de status o tema mais controverso do seminário de Campinas?)

Basta folhear livros ou revistas estrangeiras (por exemplo o “Modern Medicine”, o “Familly Physician”, o “Jornal of the Royal College of General Practitioners”), para ver como estão equivocados aqueles que equacionam a clínica geral com os “cuidados primários”

Além do mais, como poderá esse pretenso “triador” saber a quem triar para o especialista se não for, ele sim, um exímio fazedor de diagnósticos?.

O clínico geral saberá cuidar de 85-95% dos pacientes que lhe chegam, o que quer dizer que se ocupará principalmente de doenças comuns. Mas é um erro acreditar que essas afecções são também, doenças simples (equívoco que decorre, em primeira linha do malfadado termo “cuidados primários”).

Todos sabemos como é difícil o diagnóstico diferencial, e complicado o tratamento de doenças tão comuns como a cefaléia, as vertigens, a acne, a depressão e a dor lombossacra.

Um exemplo prático: a cefaléia

Para decidir quais os pacientes que podem ficar com ele e quais aqueles que deverá enviar a alguém mais capacitado, o clínico geral terá que conhecer toda a fisiopatologia das cefaléias.

Precisará, cm primeiro lugar, poder identificar as emergências, como a meningite, o glaucoma, algum processo intracerebral expansivo. Deverá em seguida analisar se não se trata de uma variante menos comum da banal dor de cabeça: vícios de refração, problemas dentários, arterite temporal, artrite temporomandibular, forma maligna da hipertensão arterial, cefaléia histamínica, neuralgias faciais (há pelo menos 7 tipos diferentes), etc.

Como se isso não bastasse, terá que ter o dom, nada desprezível, de saber como tratar os tipos mais corriqueiros de cefaléia: a enxaqueca, os problemas de coluna cervical, a cefaléia “psicossomática” e ter bastante perseverança, caso a primeira tentativa de terapêutica não for bem sucedida.

Percebe-se que o clínico geral não pode limitar-se a receitar aspirina, em seguida mandando ao especialista aqueles que não respondem à droga, como querem aqueles que não têm uma visão clara de cuidados primários.

Ao reconhecer no clínico geral um profissional dotado de uma primorosa capacidade para o diagnóstico, e dono de uma sofisticada visão do paciente como um todo, automaticamente lhe restituímos o status que julgávamos perdido (e não era justamente o problema do status profissional que preocupava a todos, por ocasião do debate graduação versus pós-graduação?).

Formar clínicos gerais implica numa ampla reforma; não basta legislar a respeito, mudar o currículo, ou simplesmente burilar uma nova definição desse profissional. Seu pré-requisito mandatório é a formação dos professores de clínica geral. Num relatório que apresentei à ABEM em 1976, vê-se quão distante encontramo-nos desta meta. Uma pequena e maliciosa pergunta faz parte do inquérito. “Uma senhora de 40 anos queixa-se de cefaléia desde a juventude, na média de uma vez por semana. Não há outras queixas, nem sinais clínicos dignos de nota. Qual a conduta que se impõe? A que especialista será enviada, ou não há necessidade?” Analisadas as respostas percebe-se que metade dos acadêmicos de 6.o ano da USP enviariam a paciente diretamente ao especialista, que em 2/3 dos casos seria um neurologista.

Especialista x “Generalista”

Um clínico geral, formado por quatro universidades européias, conta com um a frase favorita: “O especialista é melhor do que eu quando toca seu clarinete ou seu violoncelo; mas quem dirige a orquestra sou eu.”

Eis definido, bem explicitamente, o perfil que procuramos.

Cada vez que algum de meus alunos me pergunta se determinado paciente não se daria melhor nas mãos do especialista replico-lhe com uma série de indagações: “Exigirá o diagnóstico recursos técnicos com os quais não contamos? Será preciso, para uma terapêutica eficaz, de alguma habilidade técnica ou manual que não está a nosso alcance? Ou simplesmente não sabemos o que fazer com ele?”.

Se for este o caso, se no momento ignoramos o diagnóstico e a conduta mais imediata, então ponhamos a estudar, aluno e professor, pois a nossa ignorância não é motivo justo para nos desfazermos do paciente. Nas outras eventualidades, é lógico que o especialista será exigido; não me proponho a fazer urna arteriografia ou uma gastroscopia, a operar hemorróidas ou administrar eletro­choques.

Esboça-se, assim, uma conceituação preliminar, com a maior parte das definições, um tanto grosseira: o campo em que milita o clínico geral será o diagnóstico; a província do especialista, por outro lado, a terapêutica mais complexa.

Não esperamos que o clínico geral faça cirurgia, reduza uma fratura, receite óculos ou empreenda um tratamento pela psicanálise. Embora constantemente deva atualizar-se em terapêutica medicamentosa, não se aventurará a orientar a quimioterapia da leucemia ou fazer o tratamento da esterilidade primária. Eventualmente encarregar-se-á da fisioterapia, em casos de dor lombossacra, mas casos mais complicados prefirirá mandar a serviço especializado. Quanto à psicoterapia elementar, as opiniões estão divididas.

Em resumo:

  1. ao clínico geral cabe o primeiro contato com o paciente, e a sua conceituação em termos de problema ou diagnóstico;

  2. mesmo naqueles casos em que não for possível chegar ao diagnóstico presuntivo, saberá identificar o especialista mais indicado;

  3. são mais limitadas suas atribuições no campo da terapêutica, resumindo-se estas, a grosso modo, à terapêutica medicamentosa menos complexa, aos conselhos, à psicoterapia de apoio;

  4. os processos terapêuticos que requeiram, sejam habilidades técnicas maiores, sejam a disponibilidade de equipamento especializado, ficarão por conta do especialista.

Para finalizar, falta acrescentar a conceituação da “American Academy of Family Physicians”, segundo a qual a responsabilidade e as atribuições do clínico gerai não são limitadas “pela idade ou sexo do paciente, nem por um determinado sistema de órgãos ou patologia”.

O Seminário ofereceu-nos ainda um espetáculo que a muitos deixou perplexos: embora ainda indeciso se a formação do clinico geral devesse realizar-se dentro da escola, ou ao nível de residência, de repente o hiato entre sonho e realidade parecia ter-se estreitado, o mercado de trabalho generosamente se abria, estávamos à beira de uma Nova Era!

Não parece, porém, que melhor seria começarmos por formar os primeiros professores de clínica geral?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 1979
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