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A pós-graduação na área médica: uma visão crítica

Dez anos decorrem da implantação, na área médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, de cursos de pós-graduação stricto sensu (Mestrado e Doutorado), seja na Faculdade de Medicina, seja em Institutos Especializados, que são órgãos suplementares do Centro de Ciências da Saúde. Antes desse fato, havia apenas, nessa área, cursos de especialização, aperfeiçoamento e atualização, hoje enquadrados como de pós-graduação lato sensu.

Nesse período, exercemos de 1974 a 1981 a função de Diretor Adjunto para Ensino de Pós-Graduação da Faculdade de Medicina e, no momento, a de Sub-Reitor de Ensino para Graduados e Pesquisa, ambas na UFRJ. Julgâmo-nos, pois, em condições para emitir uma apreciação crítica do que ocorreu, verdadeiramente tomada de contas de nós mesmos e ponto de partida, talvez, para um reposicionamento.

A PÓS-GRADUAÇAO NA ÁREA MÉDICA: UM SISTEMA INTEGRADO

Pugnamos sempre pela integração de etapas do ensino médico, sintetizada da maneira seguinte: Internato Especialização → Mestrado → Doutorado, cada uma delas podendo ser terminal e se constituindo em pré-requisito da que se segue.

A principal crítica a essa seqüência obrigatória é a de que muito tempo se exige para completar o ciclo. No entanto, tal observação perde muito de sua validade se admitimos que o percurso daquele sistema é uma opção, que se destina a número relativamente pequeno de graduados, que almejam tornar-se professores (mestres), ou pesquisadores (doutores).

Os egressos de cursos de graduação em Medicina devem estar aptos a atender aos problemas de saúde mais comuns, mercê de internatos bem feitos, que lhes propiciem treinamento devidamente supervisionado. Caso desejem diferenciar-se em sua capacitação profissional, aprofundando conhecimentos e aprimorando habilidades técnicas, poderão enveredar pela Residência Médica, que substitui hoje, na área médica, os cursos de especialização.

Se interromperem, ao fim dessa etapa, sua formação pós-graduada, estarão certamente mais preparados para o exercício da profissão, pelo amadurecimento natural e pela consolidação de sua responsabilidade na execução dos atos médicos. Isso lhes terá custado, na maciça maioria dos casos, dois ou três anos.

Pequena porcentagem candidata-se, então, ao Mestrado para atender à vocação para o magistério que lhes é inata e que desejam aperfeiçoar, o que conseguirão, em média, em dois a quatro anos. Contingente ainda menor passa aos cursos de Doutorado, visando a tornar-se pesquisadores, o que consome outros dois a três anos.

Encarada a duração do sistema apenas sob o ponto de vista numérico, pode parecer demasiada - seis a dez anos. Se, contudo, a enfocarmos como processo que busca formar elementos de alta qualificação para o exercício da docência e para a execução de investigações científicas, não nos parece exagerada.

Em nossa opinião, o sistema integrado é a melhor forma de alcançar a meta visada - mestres bem preparados e pesquisadores criativos, compensando o tempo gasto em atingí-la.

OS CURRÍCULOS DOS CURSOS DE PÓS-GRADUAÇÃO “STRICTO SENSU”, NA ÁREA MÉDICA

O Conselho Federal de Educação, complementando seu Parecer no 77/69, aprovou a Resolução n.o 11/77 que estabeleceu as normas de credenciamento de cursos de pós-graduação em Medicina, ao nível de Mestrado e Doutorado11. BRASIL. MEC. CFE. - Resolução no 11/77. Documenta, Brasília (201): 308-309, ago. 1977.. Os currículos desses cursos abrangem disciplinas da Área de Concentração e de Domínios Conexos, além de disciplinas especiais obrigatórias (Estudo de Problemas Brasileiros, Pedagogia Médica e Didática Especial).

Focalizaremos, a esta altura, somente a Área de Concentração, cuja programação nem sempre tem sido bem feita e cuja simples existência sofre até contestação, considerada desnecessária por alguns.

É mal feita, sem dúvida, a programação quando se constitui em mera repetição da matéria de conteúdo do currículo de graduação. Incrível que pareça, isso aconteceu e não raramente, contrariando o conceito de que as disciplinas da Área de Concentração devem representar “acréscimo significativo à formação especializada obtida em programas de Residência Médica, com ênfase científica na abordagem aprofundada da matéria” (Art. 6.o da Resolução no 11/77/CFE). De fato, julgamos que o conteúdo programático dessa área deve possibilitar a apreciação crítica dos temas, principal característica a exigir-se do futuro mestre. Este deve conhecer, é claro, e a fundo, os aspectos teóricos e práticos do ramo da Medicina que escolheu, mas é essencial que saiba avaliar criticamente as bases desse conhecimento e, também, suas aplicações. Só assim poderá, mais além, ser um professor verdadeiro, não simples repetidor de dados memorizados, mas um elemento capaz de formar discípulos que nele reconheçam o crítico construtivo apto a estimular a aprendizagem, a conseguir que os alunos apreendam as noções transmitidas, a incentivar o desenvolvimento da capacidade intelectiva pelo exercício constante dessa mesma crítica.

Há quem pense que nem devia existir uma Área de Concentração no currículo de cursos de pós-graduação em Medicina. Bastaria, para eles, que se exigisse a Residência como pré-requisito, completando-se a formação de mestres e doutores com disciplinas pedagógicas e de domínios conexos (de áreas básicas). O residente já conheceria de maneira suficiente a matéria que pretende ensinar mais tarde e, se deseja no futuro ser um pesquisador, já disporia de bastante conhecimento para selecionar um tema para investigação.

Não concordamos com tal posicionamento, pelas razões já há pouco arroladas quanto à avaliação crítica a exigir-se do mestrando, o que bem o diferencia, a nosso ver, do residente, cujo objetivo último é capacitar-se melhor para o exercício profissional e tão somente isso. Não vemos como igualar os objetivos dos dois cursos, evidentemente díspares: acadêmico, o do Mestrado, técnico-profissional, o da Residência. Estamos convictos de que a Residência Médica deva preceder obrigatoriamente o Mestrado em Medicina, como aliás já foi reconhecido pelo Conselho Federal de Educação (§ 1o do Art. 4.o da Resolução no 11/ 77). Dissemos, em outro artigo nosso, que não entendemos que possa um Mestre em Medicina ensinar algo em que não se tenha especializado previamente33. NERY, A.L. BOAVISTA - A estrutura atual dos cursos de Pós-Graduação e seu papel na formação do profissional de alto nível para a área das Ciências da Saúde. HSN (Anais do Hospital da Siderúrgica Nacional), jan-mar 1975, p. 6 a 9.. Daí, porém, a dispensar o estudo de disciplinas de Áreas de Concentração, no Mestrado, considerando suficiente o aprendido na Residência - vai distância demasiado longa, inadmissível em nosso entender.

O PAPEL DO ORIENTADOR

O orientador é a figura básica da pós-graduação; ele é que determina o bom, ou mau, desenvolvimento dos cursos. Em qualquer área, podemos dizer: com bons orientadores teremos bons cursos.

Ao nos aventurarmos a uma visão crítica, é, portanto, indispensável a imediata indagação: dispusemos de bons orientadores? Dentre aqueles que, como nós, lidam com a coordenação de cursos para graduados na área médica, quantos serão capazes de responder com um sim a essa pergunta?

A nosso ver, a maior falha na implantação desses cursos terá sido, provavelmente, o despreparo dos que foram indicados para ser orientadores. Benéfico teria sido para todos que houvessem aprofundado seus conhecimentos de Pedagogia, Didática, Metodologia da pesquisa, Estatística aplicada, antes que lhes fossem atribuídas funções de orientação de alunos.

O que se viu foi o prosseguimento do auto­didatismo, de resultados reconhecidamente desastrosos em não pequeno número de casos, a despeito da boa vontade e, não raro, empenho em bem executar essas tarefas. Com o passar dos tempos, estamos seguros de que diminuiu o número dos que apenas apuseram sua assinatura no trabalho final do aluno, sem que orientação alguma fosse dada durante a elaboração do mesmo.

Não é suficiente titulação adequada para o exercício de tal função. Exige a lei que o orientador possua nível de Doutor, na presunção evidente de que tal título represente a capacitação hábil. Infelizmente, nem sempre esse é o caso.

Orientar é nortear, conduzir, dar o rumo. Portanto, é preciso que o orientador esteja apto a fazê-lo, porque conhece o caminho a trilhar, porque possui noções de metodologia, porque sabe instruir. E isso porque tem vivência do processo, pois é, acima de tudo, um professor e um pesquisador que certamente atingiu uma posição de realce mercê de sua produção cientifica, ou seja, de trabalhos planejados, executados e publicados segundo as boas normas.

De outra parte, é necessário levar em conta a disponibilidade de orientadores, atendendo ao que determinou o Conselho Federal de Educação em sua Resolução n.o 11/77 (§ 3o do Art. 9o): “O número de alunos orientados por determinado docente não poderá, quer na orientação exclusiva, quer na conjunta, ultrapassar os seguintes máximos: a) dois por orientador que trabalhe em regime de 20 horas semanais; b) cinco por orientador que trabalhe em regime de 40 horas semanais”11. BRASIL. MEC. CFE. - Resolução no 11/77. Documenta, Brasília (201): 308-309, ago. 1977..

Recentemente documento da Comissão de Consultores Científicos da CAPES, na área de Medicina, datado de 12 de novembro de 1981, estabeleceu que a relação desejável aluno/orientador seja igual, ou melhor, do que 4:122. CAPES - Documento da Comissão de Consultores Científicos da CAPES na área de Medicina, Brasília, nov. 1981.. É evidente que, embora não o citando literalmente, tal relação se refere a orientadores em regime de 40 horas semanais.

QUANTIDADE versus QUALIDADE

Ninguém discute que a qualidade dos produtos da pós-graduação, em qualquer área do conhecimento, é mais importante do que a quantidade dos mesmos. Não menos óbvio, porém, que a preocupação em apresentar muitos produtos foi, e talvez ainda seja, uma constante em número apreciável de cursos, com previsível pre­juízo da qualidade. Por que isso acontece? Não se faça mau juízo apressado das coordenações que porventura agiram dessa forma, que culpa muitas vezes não lhes coube, pressionadas que foram pelas direções de suas próprias unidades e por agentes externos a estas. É que havia que produzir, havia que mostrar resultados concretos que se pudesse mensurar a fim de obter boas avaliações pelos órgãos superiores e pelas agências financiadoras, sem o que não se receberiam recursos para manter em bom nível os cursos e, assim, permitir melhorar o valor das pesquisas e o mérito das dissertações, ou teses.

Não se pode deixar de lamentar que verdadeira febre de avaliação acomete, hoje em dia, os mentores do ensino de 4o grau. Cursos recebem graus expressos em letras do alfabeto, as quais lhes imprimem marcas profundas, que esperamos não sejam indeléveis. Até reitores de universidades federais são avaliados, já agora com graus numéricos. Podemos considerar válida essa atitude de medir programas e dirigentes se ela é feita como crítica construtiva, como processo de verificação da qualidade em determinado momento, com o fito de aquilatar o que foi feito, o que está sendo feito e o que se pretende fazer. Não podemos aceitá-la quando serve a outros fins, quando resulta de disputas de cunho pessoal, ou quando assume características de sensacionalismo (infelizmente é o que ocorre com indevida freqüência quando tais avaliações são fornecidas à imprensa leiga e esta as publica sem antes conferir sua veracidade).

Julgamos impossível mensurar a qualidade de um curso por parâmetros quantitativos, ou avaliar o mérito de um projeto de pesquisa pelo tempo que consome. Não seria melhor levar em conta o destino dos egressos dos cursos de pós-graduação, a maneira pela qual foram úteis para o aprimoramento do ensino e da pesquisa, quais foram as contribuições das teses, ou dissertações, para o conhecimento das respectivas áreas do saber?

CONCLUSÕES

Ao final das considerações apresentadas, não se pense que as conclusões serão pessimistas. Pelo contrário, achamos que os resultados estão sendo positivos, a despeito dos entraves, das incompreensões e, por que não confessar, dos erros cometidos.

A própria CAPES, através de sua Comissão de Consultores, registrou que o Mestrado e o Doutorado em Medicina têm atingido seus objetivos - formar mestres bem preparados e pesquisadores com poder criativo.

Há, pois, que prosseguir, atentanto para os seguintes pontos que julgamos importantes:

  1. Necessidade de firmar conceitos.

  2. Implantar um sistema integrado de ensino.

  3. Definir bem o objetivo de cada curso.

  4. Colocar em prática o sistema, sempre prontos a efetuar mudanças, se necessário for; a aproveitar a experiência dos mais antigos, para não repetir erros; a analisar, com autocrítica fria e rigorosa, os resultados.

Só o tempo dirá se estamos no caminho certo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1
    BRASIL. MEC. CFE. - Resolução no 11/77. Documenta, Brasília (201): 308-309, ago. 1977.
  • 2
    CAPES - Documento da Comissão de Consultores Científicos da CAPES na área de Medicina, Brasília, nov. 1981.
  • 3
    NERY, A.L. BOAVISTA - A estrutura atual dos cursos de Pós-Graduação e seu papel na formação do profissional de alto nível para a área das Ciências da Saúde. HSN (Anais do Hospital da Siderúrgica Nacional), jan-mar 1975, p. 6 a 9.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 1982
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