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CARTA AO EDITOR

Foi com grande satisfação e interesse que li o artigo de Del Ciampo e colaboradores sobre uma proposta de um programa de formação de "médicos generalistas"11. Del Ciampo LA, Ricco RG, Daneluzzi JC. Residência médica em medicina geral e comunitária: proposta de um programa de formação de médicos generalistas. Res Bras Educ Med 2003; 27: 200-4.. Como preceptor na especialidade de Medicina de Família e Comunidade (MFC), tenho sustentado a necessidade de discutir de maneira mais consistente a formação médica realizada pelos programas de residência, pois acredito que esta é uma área da educação médica ainda pouco explorada em nosso país.

Contudo, no meu entender, o referido artigo apresenta vários pontos que merecem esclarecimentos, a começar pelo próprio nome da especialidade utilizado no trabalho. Apesar de ter sido enviado para publicação e publicado no ano de 2003, utiliza a nomenclatura antiga da especialidade. A Resolução 05/2003 (e posteriormente atualizada pela 04/2003) da Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM) já havia adotado o nome proposto, ainda em 2002, pela Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, ou seja, Residência Médica em Medicina de família e Comunidade22. Comissão Nacional de Residência Médica. Resolução CNRM 02/2004. Disponível em: <Disponível em: http://www.mec.gov.br/sesu/residencia/legis.shtm >. Acesso em: 19/04/2004.
http://www.mec.gov.br/sesu/residencia/le...
), (33. Falk JW. A medicina de família e comunidade e sua entidade nacional: histórico e perspectivas. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade 2004; 1: 1-10..

O trabalho suscita, entretanto, o debate sobre outras questões mais importantes, forçando uma reflexão mais aprofundada sobre o ensino desta especialidade, que não é nova (a resolução anterior era de 1981) mas que, mais recentemente, passou a ter maior projeção a partir do Programa de Saúde da Família, lançado pelo Ministério da Saúde em 1994.

Em primeiro lugar, estranha o fato de que o Programa de Residência Médica em Medicina Geral e Comunitária (sic) esteja, pelo que se deduz a partir da vinculação institucional dos autores, ligado ao Departamento de Pediatria da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto. Não questiono a legitimidade dos pediatras e de outros especialistas em atuar em Atenção Primária à Saúde, mas não podemos confundir os campos de atuação, as especificidades e as práticas de cada especialidade médica.

Bem sabemos da falta de médicos de família e comunidade na rede assistencial brasileira, mas parece que chegamos ao ponto em que já é inadmissível, especialmente em instituições de ensino, que outros especialistas digam o que e como o médico-residente em MFC deve aprender para se tornar um especialista. Essa, seguramente, é uma discussão antiga que não acontece apenas no Brasil44. Weiss BD. Teaching family medicine: not dependent enough on family physician. Fam Med 1993; 25:90-1.. Sem querer desprezar a contribuição de outros especialistas na formação dos médicos de família e comunidade -seus conhecimentos e suas habilidades são e permanecerão importantes na interface com a MFC -, o ensino dos princípios e da prática da MFC, mesmo em áreas de conhecimentos específicos, é uma tarefa inalienável dos próprios médicos de família e comunidade, apesar da sua momentânea inferioridade numérica. É simplesmente insustentável tutelar médicos de família e comunidade na área em que eles são especialistas.

Essa é, para mim, uma das questões fundamentais que temos de enfrentar no processo de consolidação da Medicina de Família e Comunidade como especialidade médica no Brasil. E convém salientar que não somos poucos porque queremos, mas, sim, pela falta, já crônica, de uma política governamental consistente e que priorize, de fato, a formação desses especialistas em número suficiente e com qualidade adequada. E o mesmo argumento vale para a sua inserção docente nas escolas médicas.

Outro aspecto não menos importante apresentado no artigo refere-se à organização curricular do programa de residência, que faz com que o médico-residente realize vários estágios em "pediatria", "gineco-obstetrícia" e "clínica médica", entre outros. Alerto que, com essa estratégia, corremos o risco de repetir um erro frequente na graduação, que muitas vezes organiza o currículo em uma sequência de estágios dissociados entre si e ministrados sob a responsabilidade de outros especialistas e subespecialistas. Desta forma, espera-se que o próprio estudante faça, sozinho, a integração dos conteúdos e práticas a partir do que lhe foi exposto ao longo do tempo. Alguns alunos da graduação têm chamado esse processo pelo inventivo nome de "pedagogia do liquidificador", já que são acrescidos "ingredientes" (conteúdos e práticas) um a um em um "recipiente" (a cabeça do aluno), esperando-se que, ao colocar o aparelho em funcionamento, seja possível obter um "caldo homogêneo" (o suposto conhecimento integrado). Acredito que já deveríamos ter maturidade suficiente para propor alternativas pedagógicas consistentes a esse modelo.

O que pareceria mais racional e adequado seria a organização do currículo em termos de campo do conhecimento e orientados pela prática: saúde da criança no lugar de pedia­tria, saúde do mulher no lugar de gineco-obstetrícia e assim por diante, sob a supervisão de preceptores que sejam médi­cos de família e comunidade.

Há ainda uma outra confusão induzida pelo artigo quando se refere à "formação de um médico generalista". Na minha opinião, essa é uma discussão já resolvida: na graduação, formam-se médicos ("médico geral" é urna redundância); nos programas de residência médica, formam-se especialistas. No caso em referência, formam-se especialistas em medicina de família e comunidade. Nunca é demais enfatizar, portanto, que o médico de família e comunidade não é apenas um médico generalista: é um especialista - no mesmo patamar que os demais - mas com uma forte atuação em Atenção Primária à Saúde. Poderíamos acrescentar que é um especialista em pessoas, nas suas famílias e suas comunidades, e não em patologias ou procedimentos.

Por fim, a ênfase dada pelo artigo no sentido de formação para o Programa de Saúde da Família (PSF), apesar de necessária, soa um pouco exagerada e contribui para aumentar a confusão sobre a especialidade, pois já é frequente ouvir o termo "residência em PSF". Em que pese representar atualmente um mercado de trabalho promissor para o médico de família e comunidade - e desgraçadamente, no momento, também para qualquer médico, mesmo os sem especialização -, o PSF está longe de constituir um mercado único de trabalho. Experiências na esfera privada e em alguns planos de saúde bem demonstram que, felizmente, há outras alternativas para o exercício de uma prática médica mais humana, integral e resolutiva.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1
    Del Ciampo LA, Ricco RG, Daneluzzi JC. Residência médica em medicina geral e comunitária: proposta de um programa de formação de médicos generalistas. Res Bras Educ Med 2003; 27: 200-4.
  • 2
    Comissão Nacional de Residência Médica. Resolução CNRM 02/2004. Disponível em: <Disponível em: http://www.mec.gov.br/sesu/residencia/legis.shtm >. Acesso em: 19/04/2004.
    » http://www.mec.gov.br/sesu/residencia/legis.shtm
  • 3
    Falk JW. A medicina de família e comunidade e sua entidade nacional: histórico e perspectivas. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade 2004; 1: 1-10.
  • 4
    Weiss BD. Teaching family medicine: not dependent enough on family physician. Fam Med 1993; 25:90-1.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2004
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