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EVOLUÇÃO DO INGRESSANTE DA ESCOLA MÉDICA DO BRASIL COM VISTAS AO ATENDIMENTO DAS NECESSIDADES DA COMUNIDADE BRASILEIRA

É forçoso reconhecer que o atendimento das necessidades da saúde da comunidade pelo médico tem a sua qualidade relacionada com vasto número de condicionantes. De início, importa considerar alguns daqueles que se vinculam diretamente ao papel que a escola médica pode desempenhar. A esse respeito, é relevante considerar dois ângulos do problema: de um lado, o papel informador da escola médica, traduzido no oferecimento dos elementos essenciais à plena visão do que significam as necessidades da população brasileira, no campo da saúde; mas, de outro lado, o papel formador que a escola médica pode e deve desenvolver, no sentido de permitir, d e facilitar, de favorecer o desenvolvimento da personalidade do ingressante, com vistas à meta representada por seu equilíbrio emocional e psicológico, igualmente condicionador do padrão de atendimento à saúde da comunidade.

1. A tarefa informativa

A primeira linha de preocupação deve voltar-se para a tarefa clara de fornecer ao jovem ingressante da escola médica as informações essenciais à tarefa fundamental que irá desenvolver, de atendimento à saúde da comunidade. É notório o grau de desinformação do jovem que inicia o curso médico; mesmo a respeito de aspectos básicos da saúde da população brasileira ou de questões vinculadas a seu futuro exercício profissional. Para superar tal nível de desinformação, é necessário que se desenvolva um esforço global de conscientização para que os resultados possam ser positivos. Nesse sentido é essencial reconhecer que "a educação médica não pode ser considerada como processo à parte, mas como aspecto fundamental do sistema de atendimento à saúde"55. BRASIL MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Comissão de Especialistas do Ensino Médico. Ensino médico: bases e diretrizes para sua reformulação, Doc. n.º 6, 1987..

As grandes interrogações colocam-se no momento da execução de programas e projetos, ainda quando vinculados ao propósito exposto. A razão essencial é que para muitos professores o conceito de competência profissional - sinônimo e condição de capacitação para o atendimento das necessidades da população - reporta-se exclusivamente à formação científica e tecnológica no campo da medicina. É certo que "o compromisso com a formação científica é inquestionável, porque não se pode admitir bom atendimento à saúde por médicos incompetentes"55. BRASIL MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Comissão de Especialistas do Ensino Médico. Ensino médico: bases e diretrizes para sua reformulação, Doc. n.º 6, 1987.. A aquisição dessa competência fica sendo, então, visualizada como decorrente apenas do contato com o que existe de mais avançado na ciência e na tecnologia médicas.

É essencial que se desenvolva o esforço necessário para escapar dessa armadilha, na qual tantos se enredam, e caminhar para a visão holística de que tanto se carece hoje, na educação médica contemporânea.

Visão holística, inicialmente no sentido de encarar contínuo saúde/doença sem tentar isolar as determinantes da doença em seus componentes biológico e emocional-psicológico, mas também em seu componente social, apenas trabalhando sobre a apresentação ao estudante da realidade concreta sobre a qual ele irá atuar no futuro é que será possível definir objetivos educacionais calcados sobre qualquer modelo taxonômico que se deseje adotar. Tal realidade concreta é que coloca a necessidade da rejeição do conceito mecanicista de saúde, do qual decorre a visão da medicina exclusivamente sob a ótica individual, orgânica e curativa, para abrir-se para a prática da medicina comunitária e preventiva.

Nessa linha, caminho muito rico a ser trilhado é o representado pelos programas de Integração Docente-Assistencial, em desenvolvimento em tantos pontos do Brasil. Nesse campo, a ASEM tem podido desempenhar papel relevante, não apenas por meio de reuniões e seminários de estudo, mas também pelas atividades de seus Núcleos Regionais. Exemplo expressivo é o do Núcleo de Minas Gerais, com programa que conta inclusive com o apoio da Fundação Kellogg. O Núcleo Regional de São Paulo tem igualmente participado desse esforço pela realização, nos últimos anos, de três seminários regionais de que participaram representantes das dezoito escolas médicas de São Paulo, bem como especialistas vinculados à ASEM e ao Conselho Federal de Educação. O processo culminou com a criação de um Conselho de Integração dos Programas de IDA em São Paulo, do qual faz parte a ASEM, ao lado de representantes das escolas médicas e da área de serviços especificamente INAMPS, Secretaria do Estado da Saúde e Secretaria de Higiene da Prefeitura do Município de São Paulo.

Visão holística também no reconhecimento do complexo representado pela pessoa humana, que ultrapassa largamente sua dimensão biológica ou social, para debruçar-se sobre o emocional. Daí a necessidade de uma sólida formação no campo das virtudes morais, no desenvolvimento de um comportamento ético nas relações com o doente, com os colegas e com outros participantes do processo.

Há pouco, a Associação Americana de Escolas Médicas publicou os resultados preliminares de ampla pesquisa desenvolvida, com a participação de 82 escolas médicas e 21 entidades científicas, a respeito das perspectivas emergentes da educação médica nos Estados Unidos11. ASSOCIAT ION OF AMERICAN MEDICAL COLLEGES. Emerging perspectives on the general profissional education of the physician, s.l., 1983.. Quando se procurou identificar as deficiências identificadas no currículo das escolas a me rica nas, três elementos ficaram em igualdade de condições: a necessidade de melhor capacitação nos campos da informática médica, da economia, da saúde e da ética médica.

Não se pense, contudo, que o problema possa ser resolvido apenas com os cursos clássicos de Deontologia Médica, que felizmente já integram nossos currículos. A proposta é de que tal esforço seja completado por uma preocupação permanente com a ética médica, a ser vivenciada no âmbito dos diversos Departamentos e de cada Disciplina, por uma participação explicitada de seus docentes.

Última visão holística a ser desenvolvida no processo de educação médica, no sentido de preparar desde seu ingresso o estudante de medicina para o atendimento adequado da população, volta-se para o contexto global de profissionais comprometidos com a saúde da comunidade Trata-se do reconhecimento de que já se superou a fase histórica em que o médico detinha o monopólio do atendimento do doente: ainda que ele possa continuar retendo a hegemonia desse processo, no sentido de que lhe cabe firmar o diagnóstico da afecção em curso e definir a conduta terapêutica a ser adotada, o tratamento do doente será executado com a participação de ingressantes de muitas outras categorias profissionais.

Tal objetivo exige, para ser atendido, a superação de preconceitos culturais e de limitações profissionais; mas não há como negar a evidente participação que nutricionistas, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos, físicos, matemáticos, analistas de sistemas, entre tantos outros, trazem para o atendimento do doente. Todos eles integram a equipe de saúde, um todo a serviço de um objetivo comum. Daí â proposta de uma visão holística para a análise do problema e encaminhamento para sua solução. Em certas regiões e determinadas situações, a preocupação deve voltar-se inclusive para a formação de agentes da comunidade, os quais poderão executar tarefas simples e proporcionadas às suas possibilidades, desde que devidamente treinados e capacitados.

2. A tarefa formativa

Tal como dizíamos é fundamental que se considere, ao lado do papel informador, o papel formador que a escola médica deve desenvolver. Não se trata apenas de capacitação científica e tecnológica, nem de imaginar que o conhecimento das últimas aquisições represente a garantia de bom atendimento do doente, no futuro. Especialmente não se trata de imaginar qualquer vinculação desse bom padrão de atendimento com o desempenho escolar, durante o curso médico. Tal tentativa de correlação pode conduzir a decepções ou a enganos desastrosos. Trata-se, isto sim, de procurar contribuir para o desenvolvimento de personalidade maduras e equilibradas, capazes de atender adequadamente a complexa estrutura biológico-emocional-social do homem doente. Nesse sentido é que cabe o questionamento agudo que nos é dirigido: que estamos fazendo - nós, docentes médicos - com a personalidade de nossos estudantes.

Em outro contexto44. LIMA-GONÇALVES. E. A ecologia do estudante de medicina, Ponto e Vírgula: Boletim da Assessoria Pedagógica da Fac. Med. Univ. São Paulo (2), out. 1985., foi lembrado que a maioria dos estudantes está sujeita a emoções negativas como angústia, medo e frustração e que sua aprendizagem pode sofrer com isso. As relações humanas dentro de uma instituição ou no seio de uma classe fazem diferença nessa aprendizagem, o que permite deduzir que o melhor clima para os alunos se projetarem como pessoas é o da franca aceitação da sua personalidade. Nesse sentido é relevante salientar que o estudante atual é tão dedicado ao estudo quanto o das gerações anteriores; ele apenas enfrenta hoje situações diferentes, muitas das quais capazes de inquietá-lo ou até de angustiá-lo.

Alguns desses fatores de ansiedade prendem-se a elementos formais do processo educacional de que o aluno participa. É certo que o laboratório de anatomia não pode ser eliminado simplesmente porque pode gerar tensão, mas o professor tem que se lembrar de que as visões e os odores, que já não mais o atingem, talvez desencadeiem no aluno mecanismos de defesa emocional. O primeiro contato com o doente encerra igualmente outros problemas: de um lado, a obtenção da anamnese pode chocar o jovem, na medida em que envolva uma nítida invasão da intimidade de uma pessoa com quem se encontra pela primeira vez; tal como o exame clínico introduz o problema da exposição do corpo humano, em paradoxal conflito com a noção habitual de pudor e de recato.

Outras vezes o fator de ansiedade situa-se no próprio processo de ensino-aprendizagem. Inicialmente porque tal processo toma-se muitas vezes massificado, esquecido o professor de que o ensino pode ser feito em grupos, mas o aprendizado é individual, baseado que está na reflexão e interiorização pessoal. Outras vezes o fator de ansiedade situa-se no sistema de avaliação adotado, em particular, os aspectos relativos ao tipo de provas, à sua frequência ou ao clima em que desenvolvem os exames e as verificações. A razão é que muitas vezes o docente esquece-se de que o processo de avaliação não julga exclusivamente o aluno, mas o próprio esquema de ensino e, no fundo, o professor, ele mesmo.

No caso dos ingressantes na escola médica, fatores de ansiedade podem ser localizados no próprio ambiente em que são introduzidos os jovens: o contexto marcada pela recepção amistosa ou, ao contrário, às vezes até violenta; os conflitos, em geral vinculados à competição; a sensação de isolamento ou solidão, quando não encontra companheiros das etapas anteriores do processo educacional.

Diante de tantos fatores de desestabilização emocional é que se coloca o desafio que a escola médica tem que necessariamente enfrentar: ignorar que os agravos apontados, apenas alguns entre outros, podem reduzir ou bloquear o processo de crescimento do aluno da escola médica significa ignorar o óbvio. Significa não querer enxergar que a capacidade de atendimento à saúde da comunidade exige desenvolvimento harmonioso e equilibrado da personalidade do futuro médico. Daí porque a preparação do jovem que ingressa na escola médica não deve voltar-se apenas para a transmissão de conhecimentos científicos e de natureza técnica, ou para o desenvolvimento de habilidades: deve, pelo contrário, ter como preocupação o processo de amadurecimento do educando.

Importa assumir a convicção de que a preparação do aluno de Medicina, para que possa adequadamente participar do atendimento da comunidade, deve iniciar-se desde o primeiro momento de seu ingresso na escola médica. Talvez até antes, com a preocupação pelo respeito a dispositivos que permitam o uso de critérios adequados para a seleção dos candidatos, como salienta a Federação Mundial de Educação Médica22. FEDERAÇÃO MUNDIAL DE EDUCAÇÃO MÉDICA. Comissão de Planejamento. Documentos preparatórios da Conferência Mundial de Educação Médica (1988), 1987. (trad. ABEM)..

A verdade é que a análise da relação entre o ingressante na escola médica e o atendimento satisfatório da população não pode ser desenvolvida com base apenas em aspectos quantitativos e no processo de seleção, ainda que vinculado à definição de um "numerus Clausus". O problema complica-se com a necessidade de se tentar definir o número de profissionais necessários ao atendimento das necessidades da população: mesmo o atingimento de metas internacionalmente aceitas não pode garantir a qualidade do padrão assistencial que se deseja indispensavelmente atingir33. LIMA-GONÇALVES, E. O ensino médico e os médicos no Brasil: aspectos quantitativos. Rio de Janeiro, ABEM, 1984. Série Documentos da ASEM, n.º 8.; porque, mesmo quando tais metas são atingidas em nível nacional, outros fatores restritivos, em particular a distribuição irregular dos médicos pelas diferentes regiões, contribuem para comprometer aquela qualidade.

Mas existe o outro lado do problema, ou seja, a definição do que seja o adequado atendimento à saúde e das exigências que ele coloca para o preparo do ingressante da escola médica deve receber. Trata-se de processo que deve ser encarado dentro de uma visão holística do complexo biológico-psicológico-social que é a pessoa humana doente, objeto daquele atendimento.

O processo deve igualmente ser desenvolvido reconhecendo a necessidade de oferecimento de condições indispensáveis ao amadurecimento da personalidade do educando, ao seu equilíbrio psicológico e emocional. Apenas assim ele poderá oferecer adequado atendimento à saúde da comunidade, uma vez que essa tarefa supõe "um trabalho que permita a realização pessoal" do médico33. LIMA-GONÇALVES, E. O ensino médico e os médicos no Brasil: aspectos quantitativos. Rio de Janeiro, ABEM, 1984. Série Documentos da ASEM, n.º 8.).·Para atingir esse objetivo, cabe à escola médica oferecer ao futuro profissional, desde o seu ingresso, apoio para que aquele amadurecimento se concretize.

Referências Bibliográficas

  • 1
    ASSOCIAT ION OF AMERICAN MEDICAL COLLEGES. Emerging perspectives on the general profissional education of the physician, s.l., 1983.
  • 2
    FEDERAÇÃO MUNDIAL DE EDUCAÇÃO MÉDICA. Comissão de Planejamento. Documentos preparatórios da Conferência Mundial de Educação Médica (1988), 1987. (trad. ABEM).
  • 3
    LIMA-GONÇALVES, E. O ensino médico e os médicos no Brasil: aspectos quantitativos. Rio de Janeiro, ABEM, 1984. Série Documentos da ASEM, n.º 8.
  • 4
    LIMA-GONÇALVES. E. A ecologia do estudante de medicina, Ponto e Vírgula: Boletim da Assessoria Pedagógica da Fac. Med. Univ. São Paulo (2), out. 1985.
  • 5
    BRASIL MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Comissão de Especialistas do Ensino Médico. Ensino médico: bases e diretrizes para sua reformulação, Doc. n.º 6, 1987.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 1990
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