Acessibilidade / Reportar erro

Política nacional de ciência e tecnologia e saúde

1. INTRODUÇÃO

É uma das “modas” atuais considerar-se o desenvolvimento da ciência e da tecnologia como um dos principais fatores propulsionadores do desenvolvimento sócio-econômico. Independentemente do exame das relações entre o sistema científico-tecnológico e a estrutura e o funcionamento do sistema social global, aquela consideração corre o risco de se preocupar excessivamente com os aspectos administrativos e quantitativos da ciência e da tecnologia, tornando-se simplista. Ciência e tecnologia não podem ser examinadas como variáveis independentes. Seus efeitos propulsores são limitados ou ampliados pelo contexto político principalmente.11/2. RATTNER, Henrique - Considerações sobre política Cientifica-tecnológica, Revista de Administração de Empresas, F.G.V., 17(4):45-46, jul./ago. 1977.

Deve-se, pois, ter plena consciência de que os fins de uma política científico-tecnológica serão determinados, em grande parte, fora de área. Muitos estudiosos têm evitado o debate da questão supondo, implícita ou explicitamente, que o Estado representa os interesses mais gerais de toda a sociedade, economia e cultura ou está acima dos interesses classistas. Isto significa encará-lo como um absoluto, como um demiurgo, como se as várias camadas sociais fossem passivas diante do conjunto de órgãos políticos, jurídicos e administrativos que o constituem, existindo ele além e acima da sociedade.

Obviamente, tal formalismo e inaceitável. Sem dúvida as autoridades que detêm o poder, constituindo o Governo do Estado, não se dissociam da nação, mas podem ou não representá-la como um todo. O mais das vezes representam tão-somente uma parte dela, a mais influente politicamente. Se o Estado pode constituir um fator limitante, dependendo do ponto de vista do observador interessado, é inegável que seus dirigentes mantêm conexões objetivas com a realidade social. De onde, quando se pensa na ação do Governo, há que se ter em conta os porquês, como e para que da mesma, a razão dos quais pode e deve ser procura da nas condições sociais concretas.

Desse ponto de vista, o Estado moderno reflete o dinamismo de um processo em que a sociedade e a economia se diversificaram e se tornaram mais complexas. Impulsionados por tais transformações, os órgãos dirigentes do Estado tiveram que pôr em prática políticas, no campo científico-tecnológico, condicionadas pelas contingências históricas, representadas principalmente pela internacionalização da economia e da ciência e tecnologia. Por vezes tentaram se opor á tendência desnacionalizadora, ora a ela se atrelaram de um ou outro modo. Em outras palavras, a ciência e a tecnologia não são campos neutros, e sim submetidos, como os demais, ao ritmo de transformações e conseqüentes tensões da sociedade e economia, as quais alteram inevitavelmente a visão que as elites dirigentes têm dos interesses mais amplos do conjunto da população do país.

Se aceitas essas considerações, a discussão sobre a política científico-tecnológica tem que partir de uma definição de alvos na qual intervenha a comunidade científica e tecnológica como representante não só de interesses seus definidos, como de grupos fora do poder que por ela possam ser representados, desde que, evidentemente, ela consiga conquistar tal representação. Essa comunidade, da qual se espera tenha uma percepção mais clara de questões que digam respeito, pelo menos, à ciência e tecnologia e ao adequado aproveitamento destas para o aceleramento do processo de desenvolvimento social, e cuja posição, concretamente, é superior à de muitos outros grupos sociais, como grupo profissional responsável e consciente tem até mesmo o dever de tentar pressionar o Estado para que se engaje numa política que considere construtiva para os destinos do país. Isto significa tomar uma posição política frente ao problema, não se omitindo, através de uma pseudoneutralidade cientifica, que não pode existir em relação afins. Estes não são passíveis de discussão científica, uma vez que a um fim se pode contrapor, validamente, outro. Mas, também, validamente se pode discutir as conseqüências de se optar por um conjunto de fins e não por outro.

2. CIÊNCIA E TECNOLOGIA COMO FATORES DE DESENVOLVIMENTO

A questão que se coloca é: como o desenvolvimento científico-tecnológico pode contribuir para o desenvolvimento (sem adjetivações) do país? Isto significa discutir o próprio conceito de desenvolvimento. Mesmo que suponhamos que o fundamental deste processo está no crescimento econômico (com maior ou menor dependência dos centros econômico e politicamente hegemônicos, etc.), há que se procurar estabelecer, inicialmente, a relação existente entre o avanço científico e tecnológico autônomo, crescimento e desenvolvimento.

A história dos atuais países desenvolvidos demonstra essa relação, mas ela varia de país para pais, sendo, em razão das condições históricas vinculadas às relações de dominação-subordinação ao nível internacional, muito mais frouxa nos atuais subdesenvolvidos. Alguns motivos podem ser alinhados para explicar o fato: a) o processo substitutivo de importações, característico do processo de industrialização por que passaram ou passam esses países, foi, em grande par­ te, baseado na utilização tanto de capitais como de tecnologia estrangeira; b) não há pressões societárias suficientemente fortes para o aproveitamento do “know-how” produzido no país. Em decorrência os pesquisadores nacionais tendem a se concentrar na pesquisa “pura”, imitando as comunidades científico-tecnológicas dos países mais altamente desenvolvidos ou em pesquisas irrelevantes em termos de contribuição para o processo; por outro lado, dado o não aproveitamente de suas possíveis contribuições, os pesquisadores nacionais se concentram, freqüentemente, na carreira pessoal (produzindo teses para concursos) e em trabalhos individuais. 21/2. RATTNER, Henrique - Considerações sobre política Cientifica-tecnológica, Revista de Administração de Empresas, F.G.V., 17(4):45-46, jul./ago. 1977.

Ainda que frouxa, em nosso caso, a relação entre crescimento econômico e desenvolvimento científico-tecnológico, a política referente à segunda variável tem que partir de uma definição clara e viável de seus objetivos. Esta definição, contudo, será condicionada pela política econômica global. Questões do tipo: como serão aproveitadas as contribuições geradas pela comunidade científico­tecnológica, como será planejada a pós-graduação, a carreira universitária e, principalmente, que opções tecnológicas fará o país, são fundamentais para lastrear uma política científico-tecnológica.

Só depois de definidos os alvos é que se poderão determinar, agora com base objetiva (geralmente confundida como a única científica), os meios de que se lançarão mão para melhor atingir tais fins. A esse nível, a racionalidade dos meios usados será mensurada tendo em conta sua adequação àqueles fins com o mínimo de esforços, o domínio das reações negativas da ação que possam ser previsíveis, a alteração da situação, as correções que se farão necessárias quando da avaliação dos resultados alcançados, a criação de uma situação favorável à consecução dos objetivos programados etc. Esta tarefa deveria caber, em grande parte, às universidades, onde, no Brasil, é produzido quase todo conhecimento original no país, aos institutos de pesquisa, órgãos governamentais responsáveis pela distribuição de recursos para a pesquisa e políticos voltados para as áreas sociais (como a saúde), econômicas e outras que serão beneficiadas, direta ou indiretamente, pela política científico-tecnológica pela qual se optou.

3. O DIAGNOSTICO DA SITUAÇÃO

Na discussão sobre uma política científico-tecnológica devemos, necessariamente, partir de um diagnóstico da situação existente, especialmente dos problemas que, definidamente, constituam um obstáculo à consecução dos alvos tidos como desejáveis pela parcela lúcida da comunidade científico-tecnológica, no sentido de se preocupar com as conseqüências sociais de sua atividade específica e com os entraves que dificultam o aproveitamento socialmente construtivo de seus esforços. Ao apontá-los ou deles tomar consciência, damos um primeiro passo para sua superação.

Talvez uma das questões fundamentais diga respeito à dependência, que tende a se ampliar, quando um país em desenvolvimento propende à imitação dos padrões vigentes nos desenvolvidos quanto à orientação dada ao seu sistema científico-tecnológico. O exemplo concreto dos países subdesenvolvidos mostra que essa dependência constitui como que um pecado original: estabelecida no passado a desigualdade entre as nações nesse campo, ela tende a se ampliar por fatores econômicos e políticos. Particularmente ilustrativo é o exemplo brasileiro no que se refere a pesquisas na área médica e farmacêutica. Dada a necessidade de combate às doenças tropicais, foram criados Institutos como o Butantã, Oswaldo Cruz, Manguinhos etc., que se voltaram para a solução de problemas brasileiros sem perder sua qualidade e seus padrões universais. Estas experiências, porém, tenderam a se conflitar com poderosos interesses estabelecidos. Além do mais, a crescente influência de capitais estrangeiros acabou impedindo maiores esforços na direção inicial. O mesmo se pode dizer da dominação da indústria farmacêutica e de instrumentos médicos-por esses capitais. Evidentemente, a política cientifica e tecnológica é inevitavelmente afetada, uma vez que não é do interesse desses capitais o desenvolvimento de uma ciência e tecnologia próprias aos países em desenvolvimento. Agravando-se a carência de recursos, em virtude, inclusive, do desinteresse, por omissão ou não, das camadas dirigentes, a ciência e tecnologia desenvolvidas nesses países torna-se mais e mais dependente e alienada dos problemas do próprio país. Os laboratórios dos países de origem fornecem às filiais as últimas invenções e novos produtos, pouco se preocupando em estimular os laboratórios e universidades locais autônomas e elaborar pesquisas visando os interesses da população nativa. Os centros de pesquisa mencionados podem interessar a esses capitais apenas na medida em que, financiados do exterior, passam a realizar pesquisas encomendadas ou estimuladas de fora, de que é triste recordação a experiência do projeto Camelot. 33. LOPES, J. Leite - Ciência e Universidade no Terceiro Mundo: a experiência frustrada do Brasil. In: FURTADO, Celso - Brasil: tempos modernos. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1968. p. 140-50.

A situação a que se referiu acima prejudica, igualmente, a utilização de cientistas e técnicos formados no país por indústrias nele instaladas. Tornando-se as oportunidades de emprego muito limitadas, muitos dos mais bem dotados dirigem-se para os países desenvolvidos, uma vez que só nestes encontram emprego produtivo para seus conhecimentos e habilidades. Esta “evasão de cérebros”, por sua vez, constitui mais outra contribuição, no caso relativamente sutil, dos subdesenvolvidos para a manutenção e ampliação da desigualdade científica e cultural entre os países, concentrando-se a ciência, ou assim parecendo, naquele reduzido universo de nações ditas desenvolvidas. Em tais condições precárias, pesquisadores de valor vêem-se desestimulados para se dedicar à ciência aplicada por não ter ela utilização no país de origem. Por outro lado, vêem-se também frustrados no terreno da ciência "pura", dada a quase impossibilidade de competir com os laboratórios e universidades dos países avançados, com sua vastidão de recursos materiais e humanos.

Entendido isso percebe-se o quanto é freqüentemente errôneo criticar toda a comunidade científica e tecnológica, ou conjuntos de pesquisadores de um país subdesenvolvido, pelo que podemos considerar descaminhos de seu sistema científico-tecnológico. As exigências culturais, sociais e econômicas do meio ambiente condicionam amplamente o desenvolvimento desse sistema, só em parte podendo-se dizer que as condições são estabelecidas pelos modelos científicos e por seus cultores. É a sociedade, as exigências culturais do meio ambiente, que compelem os cientistas a desenvolver seus projetos de investigação e de aplicação. 44. FERNANDES, Florestan - O Cientista brasileiro e o desenvolvimento da Ciência. In ________ -. A Sociologia numa era de revolução social. São Paulo, Ed. Nacional, 1963. cap. 1. Se estes projetos estão dissociados das necessidades práticas de alcance social, é porque a ideologia dominante condicionadora da interpretação dessas necessidades e do modo de aproveitamento das contribuições da produção cientifica e tecnológica estão operando em sentido inadequado. No caso brasileiro, especificamente aquela produção voltada para a melhoria ou manutenção das condições de saúde da população, as limitações referidas e ainda outras, como escassez de recursos, falta de autonomia dos centros de pesquisa etc., existem em alto grau.

4. A TAREFA SOCIAL DOS CIENTISTAS E TÉCNICOS

Estas condições desfavoráveis não eximem, contudo, o cientista e o técnico (voltados ou não para o campo da saúde), de suas responsabilidades sociais. E o primeiro passo para que alguma coisa se faça é, como foi dito atrás, a tomada de consciência dessa responsabilidade. De fato, não se pode conceber que o rumo das pequisas, os problemas abordados, a utilização dos conhecimentos acumulados e descobertas feitas não dependam, em boa parte, das atitudes e comportamentos dos agentes sociais citados. Alhear-se sob a justificativa de que uma tomada de posição representa uma manifestação “extracientífica” é um preconceito “científico” e como tal pode e deve ser combatido. Os obstáculos existentes deveriam, antes, servir de estímulo a cientistas e tecnólogos para se voltarem à tarefa de, manejando os valores mais altos da ciência e da tecnologia, transformarem o Brasil num país mais saudável, mais desenvolvido, cultural, social e economicamente.

De fato, a obrigação mais alta do verdadeiro cientista é a atividade criadora em todos os níveis e a integridade intelectual. Ambas representam um papel de primeiro plano numa luta (que não precisa ser necessariamente partidária, ainda que política) para a definição dos alvos da política científico-tecnológica adequada para a área da saúde e para conseguir os meios para alcançá-los. Essa luta é travada em vários terrenos. E, talvez, a principal barreira a ser vencida, encontrada pelos trabalhadores intelectuais, seja a própria sociedade global, muitas vezes acanhada para fazer valer suas reinvidicações em determinadas áreas, de que é exemplo a de melhor saúde. Em face disso, a motivação indispensável à realização das tarefas necessárias pode esmorecer. Esta é, pois, a primeira tarefa: vencer a insuficiente plasticidade da sociedade brasileira para aproveitar eficientemente o resultado de um labor intelectual realmente profícuo em termos desse alvo. Não sentindo exploradas construtivamente suas contribuições, muitos cientistas e técnicos desanimam. Cria-se um círculo vicioso na relação entre esses trabalhadores e a sociedade: não produzindo conhecimentos tidos como úteis pela sociedade inclusiva (ou por suas camadas mais influentes), ela nega prioridade ao saber científico e tecnológico, inclusive ao saber médico. Não conseguindo obter satisfações morais (como o reconhecimento do próprio valor por exemplo) e materiais, as pessoas voltadas para as várias áreas do saber deixam de dedicar a elas o máximo de seus esforços porque lhes falta estímulo. Uma possível saída para o impasse seria tentar produzir uma ciência e tecnologia claramente relevantes para o desenvolvimento nacional e, em nosso caso específico, para a melhoria da saúde coletiva, e tentar mostrar, através dos meios disponíveis de comunicação, essa relevância, a fim de que grupos e camadas sociais com influência sobre a política científico-tecnológica se disponham a apoiar aquela preconizada pela comunidade científica.

5. O PAPEL DA UNIVERSIDADE

Devemos reconhecer, no entanto, que muito do descrédito de que goza a ciência e a tecnologia nacionais tem sua razão de ser nas características passadas e presentes do ensino superior brasileiro. No passado se atribuía pouca importância à pesquisa (“pura” ou “aplicada”) nas universidades, havendo uma nítida negligência em desenvolver no corpo quer docente quer discente “hábitos de pensamento produtivos”. Atualmente, a pletora de cursos de pós-graduação acabou tendo o mesmo efeito, embora tenha havido um extraordinário aumento quantitativo de pesquisas. É que se substituiu o desinteresse anterior por um afã ardoroso de pesquisar, mas de pesquisar qualquer coisa “não importa com que fito ou com que proveito”.55. ________ - Pesquisa e Ensino. In: Educação e ensino superior. São Paulo, Dominus; Ed. da USP, 1966. cap. 2. parte 2. p. 209-10. Ou melhor, produz-se pesquisas em série visando, tão-somente, alcançar títulos acadêmicos, hoje uma espécie de “doença infantil” que avassala a instituição universitária. Em decorrência, há um desperdício de recursos materiais e humanos incompatível com uma política científico-tecnológica socialmente produtiva e também incompatível com a integridade intelectual de uma comunidade científica atenta às suas responsabilidades sociais e empenhada, de fato, na solução dos problemas nacionais e no desenvolvimento do corpo teórico da ciência e em seus desdobramentos práticos. Ao se produzir uma pseudociência, estribada numa rede invisível de interesses extracientíficos, dificulta-se o avanço da verdadeira ciência, detendo-se suas tendências mais frutíferas.66. ________ - A Sociologia numa era de revolução social, op. cit., p. 22.

A grave sintomatologia descrita é causada, por sua vez, em larga medida, como já nos referimos, pelos vários tipos de obstáculo ao aproveitamento construtivo das contribuições científicas e tecnológicas de valor. Basicamente eles decorrem do fato de sermos econômica e culturalmente dependentes, mas também de fatores institucionais (por exemplo, a estrutura e funcionamento do sistema educacional brasileiro), políticos, sociais, culturais etc. Quanto aos obstáculos institucionais, alguns, como a falta de entrosamento entre os vários núcleos universitários e congêneres onde se faz pesquisa cientifica e o desconhecimento mútuo do que cada grupo está realizando e que comprometem a formulação de uma política científico-tecnológica como se pretende, ou seja, “racional”, socialmente safisfatória e, o que é extremamente importante, viável dentro das condições existentes ou que possam a vir ser criadas, poderiam ser sanadas por um interesse mais ativo da comunidade cientifica por estas questões de suma valia. À falta de estímulos como os mencionados, principalmente os provenientes do sistema econômico, correr-se-á o risco de os pesquisadores continuarem desenvolvendo “suas atividades muito mais com vistas à sua carreira pessoal (teses, concursos) do que em função dos problemas relevantes da comunidade nacional”.77. RATTNER, Henrique - op., p. 46.

7. A SUPERAÇÃO DOS OBSTÁCULOS

A ruptura do círculo vicioso poderia ocorrer tanto pelo lado da sociedade global, na qual podemos incluir a “classe” política, corno pelo lado da comunidade científica, estabelecendo uma compreensão mútua melhor de seus interesses e capacidades. À medida que camadas sociais mais amplas possam fazer ouvir suas reivindicações e pressionar os órgãos governamentais responsáveis, essa ruptura tenderá a ocorrer, potenciando os esforços dos dois grupos estrategicamente situados acima assinalados. A “classe” política, por exemplo, dispõe de urna grande capacidade de “vocalização”, enquanto os cientistas e tecnólogos, corno grupo profissional consciente da importância de suas contribuições para o desenvolvimento do país, receberão os estímulos que lhes estão faltando atrás mencionados. A ação decisiva da sociedade global levaria à formulação conjunta, por parte de ambos os grupos pelo menos, de uma política científico-tecnológica definida, encorajando pesquisas socialmente orientadas, pois, como já se afirmou, as descobertas, tanto no campo da ciência pura como aplicada, inexistindo essa política acabam sendo sobretudo ocasionais; a assistematização no relacionamento entre os que trabalham nas mesmas áreas ou afins tornase a regra: dificulta-se a percepção das conseqüências produtivas do labor intelectual para a sociedade e a economia. Sem essa política definida, não podemos esperar a manutenção da descontinuidade de esforços, do subaproveitamento de recursos materiais e humanos, da falta de rumos, igualmente definidos, na orientação da pesquisa científica, da carência crônica de recursos etc. Em conseqüência, os problemas de saúde do país tenderão a continuar sendo enfrentados não pela remoção de suas causas fundamentais, mas através do combate aos efeitos e causas aparentes.

Há, contudo, uma outra possibilidade de interpretação do quadro negativo e pessimista que traçamos. Segundo uma perspectiva otimista poderia tratar-se, simplesmente, de uma situação passageira, consubstanciando uma crise de crescimento da ciência e da tecnologia no Brasil. Mas, então, a crise poderia ser mais rapidamente superada se os problemas fossem enfrentados com maior vigor, discutindo-se os alvos da política científico-tecnológica (em nosso caso voltada para o campo da saúde) a partir de questões cruciais como a dependência nessa área. Ela constitui uma simples imitação ou representa algo mais sério, como a manifestação, no âmbito científico, da subordinação, que cremos real, dos sistemas sócio-econômicos “periféricos” aos centrais? Se a ciência e a tecnologia que estamos produzindo e ensinando não são adequadas à sociedade e economia como um todo, a quem ou a que elas então aproveitam? A comunidade cientifica-tecnológica nacional está atrelada aos interesses, manifestos ou disfarçados, de alguns grupos? De quais? Por quê? Deve-se dar mais ênfase, ou não, à produção de conhecimentos científicos originais, competindo no nível internacional, ou dar prioridade à adaptação dos existentes à realidade brasileira? E assim por diante.

A comunidade científica e tecnológica tem responsabilidades especiais, às quais, como já insistimos, ela não pode fugir através de uma pseudoneutralidade. Contribuindo para definir uma política, ela poderá encontrar soluções para o problema, por exemplo, da existência de canais, institucionais ou não, para o aproveitamento produtivo, da ciência médica por exemplo, que está sendo ou vier a ser produzida. Se os recursos são escassos, eles também podem estar sendo mal utilizados naqueles projetos de pesquisa improdutivos a que nos referimos. Há, pois, que sensibilizar os que podem fornecer esses recursos, desenvolvendo uma produção científica e tecnológica organizada, visando campos em que temos amadurecimento e capacidade para realizar contribuições profícuas. Neste ponto, os cientistas e tecnólogos têm de atentar para duas ordens de fatores: viabilidade dos projetos e significação dos resultados alcançados.

O engajamento da comunidade científica nesse processo de mudança, enfrentando responsabilidades e desprendendo-se de um intelectualismo estéril, é fundamental, ainda, porque essa comunidade tem, pelo menos virtualmente, maiores condições de tentar frear as tendências negativas assinaladas. Para isso, os cientistas têm de abandonar a neutralidade cômoda e a restrição à sua especialidade, preocupar-se com o essencial (que está nas contribuições societárias e propriamente científicas) e não com o acessório, abandonar a com petição improfícua entre grupos e pessoas, fonte lamentável de individualismos e facciosismos, e, ao contrário, formar grupos coesos, lutando por interesses comuns.

A responsabilidade social dos cientistas e tecnólogos da área da saúde é muito grande quando se analisam as conseqüências negativas para a sociedade brasileira da ruinosa prioridade que tem sido dada, em muitos casos, à tecnologia em si mesma ou à utilização, também excessiva, de técnicas importadas, quando nossos problemas sociais e econômicos exigiriam um maior desenvolvimento do pensamento inventivo em todos os campos, criando ou adaptando tecnologias. Inclusive porque, muitas vezes, ao se insistir na imitação canhestra do uso de produtos e técnicas de uso comum nos países economicamente desenvolvidos, ---- estaremos mostrando uma incapacidade injustificável, sob qualquer ângulo que se a examine, de levar a cabo um desenvolvimento autônomo da sociedade brasileira.

8. O ESTABELECIMENTO DE PRIORIDADES E SUA IMPLEMENTAÇÃO

O estabelecimento das prioridades envolvidas dependerá, em larga medida, como se deixou claro, dos comportamentos e atitudes da comunidade cientifico­tecnológica brasileira. É evidente que a discussão permanecerá em aberto quanto aos reais interesses coletivos, tarefa que não é apenas dos cientistas e técnicos, mas, numa sociedade pluralista e aberta, de todas as camadas sociais. Na determinação desses interesses e prioridades, entretanto, é inquestionável que esta comunidade muito poderá contribuir, tanto para estabelecê-los, como para, uma vez realizada essa tarefa fundamental, coordenar os meios materiais e humanos necessários, especialmente no tocante à racionalização desses meios, já que, sabidamente, a produção científica e tecnológica de alto nível é um empreendimento caro, não se podendo barateá-lo além de certos limites. Esta colocação nos leva a uma outra questão, que é a de expandir organizadamente a Universidade brasileira e outros centros de produção de conhecimentos científicos e tecnológicos originais. Urge, numa política científico-tecnológica nacional, global, da qual a Saúde é um componente de raro significado sócio-econômico, rediscutir as possibilidades criadoras da instituição universitária, hoje sofrendo uma crise de crescimento desordenado, com os resultados negativos assinalados em outra parte deste trabalho.

Isto porque, sendo na Universidade onde se produz o “grosso” dos conhecimentos mencionados, o sistema universitário, no que diz respeito ao recrutamento, seleção, formação e aperfeiçoamento de pessoal, precisa ser reestudado, verificando-se sua adequação quanto aos objetivos da política que se proporá. Como são inegáveis as relações entre o ensino universitário e o mercado de trabalho na formação do pessoal técnico­científico, será necessário proceder-se a um diagnóstico dos recursos de que o sistema de atenção médica carece, permanecendo o modelo em voga, como a um prognóstico quanto às possibilidades de sua alteração e conseqüentes futuras necessidades de recursos humanos. É ponto relativamente pacífico de que quando é grande a incerteza quanto a tal evolução, é preferível formar pessoal treinável, com boa formação geral, do que pessoas treinadas em determinadas especialidades, que poderão se tornar ociosas ou supérfluas, não se ajustando ou se ajustando com dificuldade a novas situações.

A Universidade, igualmente, deveria ser reestruturada no que diz respeito à criação de condições institucionais para o desenvolvimento da pesquisa. De fato, a rigidez vigente na maioria das Universidades brasileiras faz com que os investigadores precisem, freqüentemente, dedicar maiores esforços e energias para criar condições adequadas à realização de pesquisas (obtenção de verbas, contratação de pessoal, obtenção de meios técnicos, etc.), condições estas que deveriam estar institucionalizadas, do que com a própria pesquisa. E evidente a esterilidade da repetição de tais esforços por parte dos pesquisadores. 88. FERNANDES, Florestan - A Universidade e a pesquisa científica. In: ________. A Universidade brasileira; reforma ou revolução. São Paulo, Alfa-Omega. 1975. cap. 9. p. 248-9. Acreditamos, também, que uma das principais missões da Universidade, depois de formulada e posta em prática a política científico-tecnológica preconizada, é realizar a avaliação continuada da eficácia dos esforços que estejam sendo feitos. Diga-se, a propósito, que, ao contrário das empresas privadas, quase todos os serviços, ligados direta ou indiretamente ao Estado brasileiro, têm uma visível aversão a se auto-avaliarem.

O próprio modelo de universidade brasileira e a importância que, normalmente, confere à pesquisa cientifica original também se coloca em questão, no caso. A Universidade, para realizar sua parte nessa política científico-tecnológica para a área da saúde, não poderia, simplesmente, limitar-se a uma passiva transmissão de conhecimentos e habilidades prontos e acabados. “A ciência, como sistema institucionalizado de conhecimento, reconstrói-se e aperfeiçoa-se de modo incessante, em função do progresso do homem no domínio e na utilização de suas formas de conhecimento. Para poder transmitir essas formas de conhecimento, a universidade tem que absorver o ensino das técnicas de pesquisa cientifica; para poder acompanhar os progressos incessantes dos diversos ramos do conhecimento científico, a universidade precisa produzir, por meios próprios, pelo menos algumas parcelas daqueles progressos...”(9)

9. CONCLUSÕES

Em face do exposto entendemos que a Política Nacional de Saúde se interliga, em boa parte, à política de ciência e tecnologia, e que, uma e outra, se integram, por sua vez, na política social e econômica global. Ou seja, os objetivos específicos de grandes campos de atuação como a educação e a saúde serão, sobretudo, decorrência daquilo que tenha sido definido em nível societário. Só depois dessa definição pode-se propor para esses campos uma estratégia específica. Por outro lado, para que os grupos encarregados de executar os objetivos propostos se empenhem decisivamente em sua tarefa é necessário que participem de sua formulação. Só assim eles os assumirão como seus. Igualmente, como nenhum grupo social pode se arrogar o monopólio da verdade, a definição desses amplos objetivos a nível político, deveria se realizar de um modo democrático. A participação de cientistas e técnicos nessa formulação, como grupo social com interesses definidos, com respostas próprias às questões que se coloca m é de suma importância, como já se afirmou. Mas a eles também cabe, freqüentemente e sobretudo, traçar meios alternativos. Ainda que a decisão quanto ao uso destes meios seja igualmente política, ela poderá se lastrear, em maior grau, em argumentos menos emotivos, ocorrendo a participação mencionada. Outro aspecto a assinalar é que a opção por uns e não por outros gera subprodutos os quais são capazes, inclusive, de produzir conseqüências não desejadas da ação planificada, contrariando os objetivos propostos. Talvez os mais sensíveis a estas conseqüências sejam os políticos e não os cientistas e técnicos. Contudo, estes, muitas vozes, são mais aptos a antecipar tais conseqüências e, ainda, a avaliar com certa isenção a consecução dos ditos objetivos. Nesse sentido, a Universidade poder-se-ia constituir numa espécie de auditoria externa, obviando o costumeiro defeito (não só nosso) de deixar que os próprios executantes se auto-avaliem.

Para finalizar, queremos destacar o que consideramos principal na discussão até aqui estabelecida para a formulação de uma política de ciência e tecnologia, nela incluída a área da saúde, definida e válida para o Brasil. À guisa de conclusão, mencionaríamos os seguintes pontos: 1) a redução ou mesmo eliminação da pesquisa inútil, que não contribuí para o avanço do corpo teórico da ciência, para o conhecimento mais aprofundado ou específico de determinadas questões, nem visa a aplicação, nisso não se incluindo as pesquisas de treinamento; 2) a diminuição do desperdício de recursos materiais e humanos; 3) o confrontamento da dependência científica e tecnológica; 4) a atenuação do domínio da economia nacional por empresas multinacionais que dificulta ou mesmo impede o aproveitamento construtivo da produção científica e tecnológica nacional-original e dos recursos humanos formados; 5) a superação dos obstáculos sócio-político­culturais a esse aproveitamento; 6) maior resistência à tendência à importação de soluções tecnológicas inadequada s às condições brasileiras ou que levam a uma maior subordinação do país às economias centrais do sistema capitalista; 7) a luta contra o vício arraigado, em boa parte dos membros do sistema universitário, de maior preocupação com interesses individuais e de grupos do que com os objetivos mais altos da ciência; 8) o encontro de soluções, ainda que parciais, para vencer a tendência, também comum, de os grupos se degladiarem numa competição estéril, isolando-se e conflitando-se, em vez de se associarem para um trabalho profícuo; 9) a conscientização, dos grupos e pessoas mencionados atrás, de que a integridade intelectual é matéria a ser vivenciada, repelindo-se, o dogmatismo existente em certas áreas com relação não só quanto aos alvos e métodos da ciência, como quanto aos problemas sociais, políticos e econômicos envolvidos na solução dos problemas da saúde, dogmatismo esse que se traduz numa limitação da liberdade de pesquisa de temas e uso de métodos; 10) o estímulo à responsabilidade social dos cientistas e técnicos no tocante ao aproveitamento dos resultados dos avanços da ciência e da técnica ocorridos na área; 11) o abandono, pelos mesmos, da carapaça de uma neutralidade inexistente, como justificativa “racionalizadora” de seu próprio comodismo em face dos problemas cruciais de saúde no Brasil; 12) a falta de entrosamento entre instituições, grupos e pessoas para debaterem problemas que dizem respeito à comunidade científico-tecnológica, ao sistema de atenção médica e ao sistema social inclusivo, procurando soluções concretas para os mesmos; 13) o debate a respeito do tipo de conhecimentos a serem produzidos; 14) a criação de canais institucionais através dos quais esses conhecimentos possam ser aproveitados construtivamente pelos sistemas de atenção existentes ou a serem criados; 15) a coordenação nacional do sistema científico-tecnológico, a fim de evitar descontinuidade de esforços e subaproveitamento dos resultados produzidos; 16) a apresentação de projetos viáveis e significativos, não só do ponto de vista científico e técnico, como do ângulo societário; 17) a criação de condições para que os cientistas e técnicos formados no país, na área e em outros, encontrem nele emprego produtivo, evitando a “evasão de cérebros”; 18) o exercício de pressões coletivas sobre empregadores (estatais e privados) para que os elementos humanos que constituem (e vierem a constituir) quadros com propostas alternativas, recebam estímulos adequados, sobretudo econômicos (devendo-se deixar claro que o fazer ciência não pode ser concebido como sacerdócio); 19) a reavaliação dos objetivos e funções da universidade, pois sendo o principal centro de pesquisas do pais, necessita, para cumprir adequadamente sua missão, não só reformar velhas estruturas, como impedir que quaisquer alterações nas mesmas, através da manutenção e mesmo expansão de interesses extracientíficos venham impedir (ou dificultar) o alcançar aquela missão; 20) a avaliação continua dos resultados da política posta em prática, cotejando-os com os objetivos propostos e realizando, conforme o caso, alteração destes ou dos meios que estejam sendo utilizados.

Referências Bibliográficas

  • 1/2
    RATTNER, Henrique - Considerações sobre política Cientifica-tecnológica, Revista de Administração de Empresas, F.G.V., 17(4):45-46, jul./ago. 1977.
  • 3
    LOPES, J. Leite - Ciência e Universidade no Terceiro Mundo: a experiência frustrada do Brasil. In: FURTADO, Celso - Brasil: tempos modernos Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1968. p. 140-50.
  • 4
    FERNANDES, Florestan - O Cientista brasileiro e o desenvolvimento da Ciência. In ________ -. A Sociologia numa era de revolução social São Paulo, Ed. Nacional, 1963. cap. 1.
  • 5
    ________ - Pesquisa e Ensino. In: Educação e ensino superior. São Paulo, Dominus; Ed. da USP, 1966. cap. 2. parte 2. p. 209-10.
  • 6
    ________ - A Sociologia numa era de revolução social, op. cit., p. 22.
  • 7
    RATTNER, Henrique - op, p. 46.
  • 8
    FERNANDES, Florestan - A Universidade e a pesquisa científica. In: ________. A Universidade brasileira; reforma ou revolução. São Paulo, Alfa-Omega. 1975. cap. 9. p. 248-9.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1980
Associação Brasileira de Educação Médica SCN - QD 02 - BL D - Torre A - Salas 1021 e 1023 | Asa Norte, Brasília | DF | CEP: 70712-903, Tel: (61) 3024-9978 / 3024-8013, Fax: +55 21 2260-6662 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: rbem.abem@gmail.com