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AS CIÊNCIAS HUMANAS E A SAÚDE: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

The Human Sciences and Health: Some Considerations

Resumo:

Apresentam-se as relações entre as ciências humanas e as ciências da saúde, enfatizando-se algumas questões gerais sobre a relevância das ciências humanas. Retornam-se alguns pontos sobre as origens do estudo das ciências e as ciências naturais. Apresentam-se, ainda, os eixos que geralmente são relacionados ao campo das ciências humanas, os eixos da física, da biologia e da história. Discorre-se, ainda, sobre as possibilidades da abordagem do ‘paradigma qualitativo’, construtivismo social, positivismos e teoria crítica.

Palavra-chave:
Ciências naturais; Histórias; Metodologia; Formação de conceito

Abstract:

This paper presents the relations between human sciences and health stressing some general issues on the relevance of the human sciences. The article focuses on several highlights in the origins of human sciences as studied by Dilthey and the human-versus-natural sciences controversies. It presents the axes that are generally related to the field of human sciences: physics, biology and history. The final section provides some notes on the possibilities of a ‘qualitative paradigm’: social construtivism, post-positivism and critical theory.

Key-words:
Natural sciences; History; Methods; Concept formation

As ciências humanas, com efeito, dirigem-se ao homem na medida em que ele produz. É como ser vivo que ele cresce, que tem funções e necessidades, que vê abrir-se um espaço cujas coordenadas móveis estabelece em si mesmo. - Foucault.

INTRODUÇÃO

Muitos aspectos podem ser abordados quando se equacionam as relações entre as ciências humanas e as ciências da saúde, para o estudo tanto dos processos saúde e doença, como da organização dos serviços de saúde, ou, ainda, na vertente pedagógica, voltada mais especialmente para o ensino. Revisitar estas relações e analisar o papel de reciprocidade, de pendência ou inter-relações entre os dois campos e entre as disciplinas que os constituem têm sido um espaço aberto para estudiosos que localizam suas análises ora na filosofia da ciência, ora na sociologia do conhecimento, ora na história das ideias, ora na epistemologia.

Dada a amplitude das possibilidades de incursionar neste meandro de relações, optamos por apresentar algumas questões gerais, que, em nossa opinião, continuam circulando quando se procura “detectar a importância deste segmento do entendimento humano que chamamos de ‘ciências humanas’”11. Foucault M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Lisboa: Portugália; (s.d.)., cuja presença no horizonte dos saberes data do século 19, tomando o próprio homem como centro do interesse científico.

Estas ciências tornam-se fortemente presentes, levando muitos autores, como o professor de filosofia Hilton Japiassu, a dizer, e m seu livro Nascimento e morte das ciências humanas que:

As ciências humanas invadem todo o nosso espaço mental. Até parece que nossa cultura assinou um contrato com tais disciplinas, estipulando que lhes compete resolver tecnicamente boa parte dos conflitos gerados pela aceleração das mutações sociais. É em nome do conhecimento objetivo que elas se julgam no direito de explicar os fenômenos humanos e de propor soluções de ordem ética, política, ideológica ou simplesmente humanitária, sem se darem conta de que, fazendo isso, podem facilmente converter-se em "comodidades teóricas" para seus autores, e em "comodidades práticas" para sua clientela22. Japiassu H. Nascimento e morte das ciências humanas. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1978..

Esta constatação que se instala no interior do conhecimento das ciências humanas, na medida em que estas buscam o conhecimento objetivo, "renunciando aos seus apelos e as suas significações”, é um dos pontos básicos dos argumentos que o autor utiliza a fim de entender a desumanização das ciências humanas.

Esse texto alertou-me para o fato de que, para tratar da importância das ciências humanas para a saúde, eu necessitava reportar-me a momentos anteriores, quando foram levantados alguns problemas que demarcaram profundamente a emergência dessas ciências. A revisão, mesmo que sumária, desses momentos toma-se essencial, considerando-se que muitos problemas se estendem até os dias atuais. A recente publicação em português da coletânea organizada por Giddens e Turner33. Giddens A, Turner J, org. Teoria social hoje. São Paulo: Editora UNESP; 1999.) é marcante nesse sentido, pois, em muitos dos textos, ao repensarem a construção da teoria social, tanto a clássica como a mais recente, os autores revisitam muitos pontos das relações entre as ciências humanas e as ciências naturais.

Em nossa perspectiva de análise, é importante retomar alguns pontos do passado, trazer a discussão para as questões sobre a pesquisa qualitativa e relacioná-la com o tema da saúde.

AS CIÊNCIAS HUMANAS E AS CIÊNCIAS NATURAIS

Em 1883, o filósofo e historiador Wilhelm Dilthey (1833- 1911) publicou um livro que seria fundamental para a pesquisa sobre a epistemologia das ciências humanas: Introdução ao estudo das ciências do espírito: ensaio sobre o fundamento que se poderia dar no estudo da sociedade e da História. Dilthey concebe uma epistemologia autônoma das ciências humanas, no momento em que essas ciências começam a esboçar os contornos de um novo mundo intelectual. Dentro da escola historicista, proclama-se a independência dessas disciplinas. Como escreve Japiassu22. Japiassu H. Nascimento e morte das ciências humanas. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1978., é o momento em que "a força catalisadora, em favor da autodeterminação epistemológica das ciências humanas (se revela na) tomada de consciência da dimensão Histórica das atividades humanas". Os problemas que constituem os objetos das ciências humanas- a política, o estado, a sociedade, o direito, a religião, as línguas, a arte- tornam-se motivo de intensos debates. Ao tomar parte nesses debates, Dilthey centraliza a questão em relativizar todo o sistema de pensamento como objeto de estudo e reflexão. Além disso, vai buscar a corrente hermenêutica (que já vinha sendo aplicada no campo da teologia, da filosofia e da história) como um método capaz de conferir unidade às ciências humanas. Dilthey toma a hermenêutica como o método comum das ciências humanas e como o fundamento de uma teoria geral dessas disciplinas. Nesse momento é que se fixa a ideia que irá centralizar os debates metodológicos nas ciências humanas; ou seja, que, diferentemente do método das ciências naturais, eminentemente explicativo, o método das ciências humanas deve ser compreensivo - "Die Natur erklären wir, das Seelenleben verstehen wir" (a natureza, nós a explicamos; a vida do espírito, nós a compreendemos). Explicar é encontrar, do exterior, uma relação entre duas coisas, como, por exemplo, a dilatação pelo aquecimento; compreender é apreender uma significação. Ao atacar a concepção positivista, acha que é preciso renunciar a esse pensamento causal e racionalista que conduz a uma realidade abstratamente reconstruída, para se tentar compreender a realidade humana, que é essencialmente social e histórica. Lembre-se que Dilthey focalizou a psicologia como ciência de base no estudo da sociedade e da história - uma "psicologia científico-espiritual", longe do naturalismo presente nessa disciplina.

Sem dúvida, a grande contribuição de Dilthey é o fato de valorizar as circunstâncias históricas, mas também os sistemas racionais, portanto o conhecimento científico. Acredita, entretanto, que o vivido é algo incomensurável ao puro racional (22. Japiassu H. Nascimento e morte das ciências humanas. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1978.. Empenhou-se em mostrar que as ciências humanas são positivas, não no sentido de que devem se subordinar aos métodos das ciências naturais, mas no sentido de que devem reivindicar uma metodologia que lhes seja adequada, não excluindo certos procedimentos que se revelem fecundos; não estava interessado em discutir o caráter científico das ciências humanas, mas que as ciências nasceram e cresceram no meio da prática da vida; o homem não criou a natureza, mas o mundo social, donde a originalidade das ciências humanas: todas são obras do homem e, por conseguinte, são ciências históricas. "Enquanto tais, não analisam apenas um objeto exterior ao homem, mas é a própria razão dos cientistas que se torna histórica; vale dizer, é o homem criador das obras humanas que constituo objeto das ciências do espírito". A realidade é uma; não existe cisão entre espírito e matéria; o espírito é orgânico na natureza, e a natureza é orgânica no espírito. A unidade última da vida, o próprio homem, não é espírito descorporizado nem uma reunião fortuita de átomos; é uma entidade psicológica inseparavelmente encadeada ao mundo da natureza, animada e inanimada, porque é parte desse mundo como esse mundo é parte dele próprio44. Barnes HE, Becker H. História de pensamiento social II. México: Fondo de Cultura Económica; 1945..

Apesar da unidade do homem com a natureza, as ciências naturais são completamente diferentes das ciências humanas. Há dois tipos de experiências a serem apreendidas: a externa e a interna.

O mundo do espírito é ao mesmo tempo objeto de representação, de experimentação e da experiência vivida. Os fenômenos sociais e psíquicos não são inteiramente inteligíveis pelos procedimentos das ciências da natureza. O objeto das ciências humanas consiste em apreender a realidade histórica e social naquilo que ela tem de singular e de individual, bem como em estabelecer as regras e os fins de seu desenvolvimento. Desse modo poderão integrar-se nas ciências do espírito não somente as ciências de caráter empírico (sociologia, economia, política), mas também as disciplinas normativas (moral, estética, poética)22. Japiassu H. Nascimento e morte das ciências humanas. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1978..

Como assinalado anteriormente, para Dilthey, o que distinguia as ciências naturais das humanas era o conteúdo, pois estas últimas estudam o espírito do homem (Geist); para elas, o mais importante é a experiência vivida ou imediata (Erlebnis), cuja expressão exterior, quando interpretada, permite compreender (Verstehen) os outros. Nessa direção, como sintetizam Sarnes e Becker44. Barnes HE, Becker H. História de pensamiento social II. México: Fondo de Cultura Económica; 1945., para Dilthey.

Não pode haver uma sociologia válida do tipo de ciência natural, objetiva, comtiana; a compreensão da vida pessoal e social é uma tarefa infinita que muda para planos sempre novos e mais complexos à medida que o investigador social em questão adquire, subjetivamente, a capacidade de penetrar de forma compreensiva estes planos.

Esta foi uma rica tradição, e a ela houve muitos acréscimos, como o de estudar os produtos culturais e as instituições, o que concorreu para que os valores se tornassem centrais para o campo das ciências humanas. Filia-se a esse pensamento o desenvolvido por Heinrich Rickert (1863-1936), para quem a noção de valor era considerada como elemento definidor da cultura.

Porém, a discussão da delimitação do campo das ciências humanas e das naturais não se esgotou na proposta do final do século 19 e início do século 20, e seria reativada nos anos 90, no que se denominou a "Guerra das Ciências". Comoveremos, não se trata somente de demarcar territórios, mas de verdadeiras batalhas marcadas por acirrados ataques dos cientistas contra as humanidades, e destas em relação à hard science. No dizer de Hilary Rose55. Rose H. My enemy's enemy is - only perhaps - my friend. ln: Rose a (ed.) Science Wars. London: Duke University Press; 1996..

Os que se autodenominam defensores da Ciência estão procurando policiar as fronteiras do conhecimento e ressuscitar o conhecimento canônico da natureza, contra as tentativas dos Outros - incluindo feministas, antirracistas, psicanalistas, pós-colonialistas, esquerdistas, multiculturalistas, relativistas, modernistas, etc., etc. em toda nossa desconcertante diversidade-para estender, transformar ou talvez mesmo dissolver as fronteiras entre as privilegiadas pretensões de verdade da ciência e os outros conhecimentos.

De outro lado, um certo ceticismo em tomo das ciências humanas seria, na fala de Raymond Boudon66. Boudon R. Les sciences humaines sont-elles des sciences? Encyclopédie Philosophique Universelle. Paris: Presses Universitaires de France; 1991. o preço que elas estariam pagando pelo excesso de otimismo que cercou suas possibilidades de intervenção e de previsão.

Assim, muitos trabalhos escritos nos anos noventa irão defender a ideia de que as ciências humanas devem seguir os padrões das ciências naturais, embora, em alguns casos, como aponta Alves-Mazzoti77. Alves-Mazzotti AJ, Gewandsznajder F. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pioneira; 1998.) sem que estas ciências tenham de abandonar métodos que lhes são próprios. De modo geral, os autores defendem a ideia de que há princípios básicos que devem encaminhar o trabalho científico.

John Ziman88. Ziman J. O conhecimento confiável: uma exploração dos fundamentos para a crença na ciência. São Paulo: Papirus; 1996. aponta como básica a consensualidade - a necessidade de se expressar por meio de uma linguagem formalizada, que encontra na linguagem matemática seu ponto mais alto: é inequívoca e universal. Como diz o autor, nem por isso torna a mensagem mais significativa ou verdadeira, acrescentando o fato de ter um potencial descritivo muito limitado. Isto restringe sua utilização nas ciências sociais, pois seus objetos, conteúdos e relações são difíceis de traduzir em linguagem matemática. Para Ziman88. Ziman J. O conhecimento confiável: uma exploração dos fundamentos para a crença na ciência. São Paulo: Papirus; 1996. a exigência fundamental é que a mensagem seja significativa, clara, criando a possibilidade de interlocução frutífera entre os estudiosos do campo. O autor fala, também, do valor preditivo da ciência, o que não é o caso das ciências sociais, pois lhes faltam categorias mais nítidas.

Outro autor que defende para as ciências sociais os princípios das ciências naturais é Kincaid99. Kincaid H Philosophical foundations of social sciences. Cambridge: Cambridge University Press; 1996. Para ele, a ciência como produto deveria apresentar as seguintes características: a) ser baseada em evidências que sustentem a teoria; b) ser explanatória e não apenas descritiva; c) produzir teorias com algumas propriedades formais. De outro lado, ao analisar a ciência como processo, aponta que não há um método único, a priori, que seja adequado a qualquer problema, não havendo também um modo efetivo de avaliar que processos resultarão em "bons produtos" do ponto de vista científico (apud Alves Mazzotti77. Alves-Mazzotti AJ, Gewandsznajder F. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pioneira; 1998.).

Devemos citar, ainda, nessa linha de estudos sobre a questão, o de Raymond Boudon66. Boudon R. Les sciences humaines sont-elles des sciences? Encyclopédie Philosophique Universelle. Paris: Presses Universitaires de France; 1991., quando discute as possibilidades de as ciências humanas serem consideradas ciências, situando alguns critérios, como o da universalidade e da formalização matemática. Para ele, este segundo critério não se aplica, embora certos fenômenos possam ser mais bem tratados com essa linguagem. Para Boudon, uma teoria é científica "quando consegue explicar o fenômeno localizado, a partir de uma teoria constituída por um conjunto de proposições plausíveis" e que "seria um absurdo medir a cientificidade das ciências sociais por seu grau de matematização”77. Alves-Mazzotti AJ, Gewandsznajder F. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pioneira; 1998.. Diferentemente dos autores anteriores, Boudon conclui que não se pode definir a cientificidade de uma disciplina por sua capacidade preditiva e aplicativa. Volta-se, então, Boudon para o ponto inicial desta exposição: o caráter interpretativo e não explicativo das ciências humanas. Contesta que as ciências humanas sejam apenas interpretativas, dizendo que inúmeros estudos têm objetivos explicativos e procuram alcançá-los por meios diferentes daqueles das ciências da natureza. Diz, ainda, que em certos estudos os dois objetivos aparecem conjugados.

RETOMANDO AS ORIGENS DAS CIÊNCIAS HUMANAS

As questões expostas acima conduzem-nos, ainda, a pensar um pouco sobre as origens das ciências humanas. Em realidade, se fôssemos buscar sob que eixos epistemológicos as ciências humanas foram constituídas, verificaremos, seguindo a proposta de Georges Gusdorf, tão bem sintetizada por Japiassu22. Japiassu H. Nascimento e morte das ciências humanas. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1978. que três são esses eixos: o da ciência rigorosa, o da biologia e o da história.

No primeiro, o modelo de cientificidade foi fornecido pela física. Esta cientificidade é que vai aos poucos substituindo "o mundo da realidade" por "um universo do discurso formalizado", na tentativa da “adoção de uma integridade racional”22. Japiassu H. Nascimento e morte das ciências humanas. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1978.. É o momento da adoção dos métodos quantitativos, da análise estatística. Como vimos anteriormente, esta marca irá acompanhar a trajetória das ciências humanas e a da sua constituição seguindo o modelo das ciências naturais. Vimos, inclusive, que há tentativas claras de ruptura com esta pretensão.

Quanto ao eixo da biologia, o que ocorreu foi a transposição do mecanicismo da física matemática para o entendimento da ordem interna - "da ordem humana da consciência, com suas intenções, significações e motivações", convertendo as ciências humanas em "ciências sem o homem"22. Japiassu H. Nascimento e morte das ciências humanas. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1978.. Como aponta Japiassu, no mesmo trecho de sua exposição, “contra essa irredutibilidade da vida enquanto pressuposto humano" surge uma nova abordagem, cujo centro é a teoria da evolução que fornece um esquema de explicação que se estende à história natural, à psicologia, à moral, à religião22. Japiassu H. Nascimento e morte das ciências humanas. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1978.).

Quanto ao eixo da cultura e da história, verifica-se que, desde o século 18, há pensadores que enfatizam a linguagem, a sociedade e as instituições, mas é a partir do século 19 que o historicismo, tanto filosófico como epistemológico, marca presença. Citando Japiassu22. Japiassu H. Nascimento e morte das ciências humanas. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1978. o historicismo filosófico "faz da história o fundamento de uma concepção geral do mundo, julgando que todos os fenômenos sociais e humanossão inteligíveis sob o ângulo de visão da categoria 'histórica'", Este historicismo pode ser dogmático: o devir humano a partir de um princípio, a priori, que pode ser a Providência, o Progresso, a luta de classes e um historicismo relativizado - a história não fornece nenhuma certeza, nenhuma verdade. Quanto ao historicismo epistemológico, este "recusa-se a ser uma concepção do mundo. Defina-se como uma das condições de inteligibilidade do real". Sobre este historicismo, já assinalamos alguns pontos e a sua clara posição de que "a inteligibilidade matemática e biológica não explica completamente a realidade humana". Como diz Dilthey, "é a cultura que constitui nosso mundo".

Sabemos que estes eixos impregnaram as ciências humanas em seus primórdios no século 19 e se estenderam peloséculo 20: na física social de Quételet e sua concepção do demografia, na sociologia de Comte, na biologia evolucionista de Herbert Spencer e na história e economia política de Marx, como também na psicologia experimental e na sociobiologia.

Quando introduzimos em nossa fala este sumário sobre os eixos, interrompemos o desenvolvimento da questão explicar versus compreender, mas, ao mesmo tempo, confirmamos que os dois grandes esquemas explicativos - o explicativo e o compreensivo- atravessam nossa história. Concordamos com Japiassu2 quando diz que cada um desses eixos pode reivindicar suas validades, mas que ́a enorme confusão metodológica das ciências humanas deve-se ao fato de seguirem no mesmo tempo, em seu desenvolvimento, uma tríplice perspectiva metodológica: em primeiro lugar, ficam fascinadas pelo modelo da clínica rigorosa(...) tomam de empréstimo os modelos biológicos e(...) reduzem a investigação a uma simples análise de ordem histórica".

Estando a nossa proposta neste trabalho relacionada à construção do conhecimento, verificamos que o momento atual nos aproxima de outros momentos históricos, pois a relação natural/humano, social/ humano continua a ser uma problemática para cientistas, filósofos, epistemólogos, historiadores. Há pouco, citamos inúmeros problemas; uma ideia que parece circular entre os estudiosos é a de que devem ser ultrapassadas, de um lado, as distinções entre as ciências naturais e sociais e, de outro, entre ciências humanas e sociais, questionando a validade entre as "duas culturas". A expressão "duas culturas" foi cunhada por Charles Pierce Snow em 1959, numa conferência proferida em Cambridge, e apareceu cinco anos mais tarde no livro The two cultures: a second look. A tese básica é que a quebra de comunicação entre as ciências e as humanidade será o maior obstáculo para a solução dos problemas do mundo1010. Yee D. Danny Yee’s Review - The two cultures. (Capturado em 31.07.2002) Disponível em: Disponível em: http://dannyreviews.com/
http://dannyreviews.com/...
e, portanto, das bases epistemológicas do nosso trabalho coletivo.

AS CIÊNCIAS HUMANAS E O TEMA DA SAÚDE

Os pontos abordados até o momento permitem-nos situar a centralidade do tema saúde no interior desse debate. Não somente como problema a ser enfrentado, mas como objeto que possibilita o encontro das duas culturas e da ampliação do campo das ciências sociais para as ciências humanas.

Como todos sabem, não existe uma teoria geral da saúde totalmente construída, o mesmo ocorrendo em relação à doença. Em relação à saúde, pode-se citar a tese de Sarnaja1111. Samaja J. Fundamentos epistemológicos de las ciencias de la salud. tese Rio de Janeiro, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz,1997., que desenvolve de forma detalhada as possibilidades da construção de uma teoria da saúde, articulando a objetividade dos problemas reprodutivos, com as construções discursivas em lodos os graus do saber: intuição, narração e explicação. A existência ou não de uma teoria de saúde não invalidaria a discussão que se faz do encontro das culturas, pois, como sabemos, os campos dessas culturas se estabelecem como "o espaço de jogo de uma luta concorrencial”, para usarmos a linguagem de Bourdieu1212. Bourdieu P. Algumas propriedades dos campos. In: Bourdieu P. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco zero; 1983, p. 89-94. Isto do ponto de vista epistemológico, pois o encontro, a interdisciplinaridade, a interface, a hibridação de saberes e a transdisciplinaridade continuam questões em aberto.

Penso que a abordagem mais recente que pode ser vislumbrada para a saúde refere-se ao chamado "paradigma qualitativo" e, dentro dele, aos modelos que, especialmente a partir dos anos noventa, vêm enfrentando a oposição ao positivismo. Como poderá ser visto, reencontraremos, nesse momento, ideias que vinham sendo postas já há algum tempo. Conforme Guba (apud Alves-Mazzotti77. Alves-Mazzotti AJ, Gewandsznajder F. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pioneira; 1998., três são os paradigmas apresentados como sucessores do positivismo: o construtivismo social, o pós-positivismo e a teoria crítica. Parece-me que eles podem ser orientadores nas abordagens sobre a saúde e, por isso, faremos rápidas considerações sobre cada um deles.

O construtivismo tem suas raízes na fenomenologia e enfatiza a intencionalidade dos atos humanos e o "mundo vivido" pelos sujeitos, privilegiando as percepções dos atores e a não adoção de teorias a priori. Alfred Schutz é especialmente referenciado pelos construtivistas no que se convencionou chamar de sociologia interpretativa. Outra característica é a de descartar qualquer possibilidade de objetividade no conhecimento. Guba sintetiza os pressupostos básicos do construtivismo: ontologia relativista, epistemologia subjetivista, metodologia hermenêutico-dialética.

O pós-positivismo, como escreve Alves-Mazzotti77. Alves-Mazzotti AJ, Gewandsznajder F. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pioneira; 1998., “costuma ser caracterizado nas ciências sociais como a abordagem que enfatiza o uso do método científico como a unica forma válida de produzir conhecimentos confiaveis, defendendo a adoação desse metodo também por aquelas ciências, uma vez que não haveria qualquer obstáculo que impidisse que isto fosse feito”. Modelos experimentais, quase-experimentais com teste de hipóteses, com a formulação de teorias explicativas de relações causais, permeiam a adoção desta abordagem. Negam os adeptos desta abordagem que isto signifique uma continuação do positivismo. A questão central desta corrente é a possibilidade de objetividade nas ciências sociais, como "ideal regulatório subjacente a qualquer investigação" (Phillips, apud Alves-Mazzotti77. Alves-Mazzotti AJ, Gewandsznajder F. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pioneira; 1998.). Este seria um pressuposto básico, aliado a uma ontologia crítico-realista (existência de uma realidade externa ao sujeito, regida por leis naturais, embora a realidade não possa ser totalmente apreendida) e a uma metodologia experimental manipulativa (recorre a várias fontes de dados, usando métodos qualitativos, teorias de base - grounded theories), reintroduzindo a descoberta no processo de investigação (a descoberta era vista, no positivismo tradicional, como um mero precursor e não como parte integrante do trabalho científico, cujo propósito seria apenas a verificação).

A teoria crítica engloba dois sentidos: o de crítica interna (análise rigorosa da argumentação e do método) e o de análise das condições de regulação social, desigualdade e poder. Trata-se de abordagem relacional, "investigando o que ocorre nos grupos e instituições, relacionando as ações humanas com a cultura e as estruturas sociais e políticas, tentando compreender como as redes de poder são produzidas, mediadas e transformadas”77. Alves-Mazzotti AJ, Gewandsznajder F. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pioneira; 1998.. Os adeptos desta corrente questionam a dicotomia objetivo subjetivo por ser simplificadora, pois a subjetividade deve ser compreendida como parte da construção dos significados inerentes às relações sociais. Para Cuba (apud Alves-Mazzotti77. Alves-Mazzotti AJ, Gewandsznajder F. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pioneira; 1998., esta abordagem caracteriza-se por uma ontologia crítico-realista (transformar o mundo, controlar e predizer); por uma epistemologia subjetivista (os valores do investigador estão presentes na escolha do problema e no processo de investigação), o que é contraditório com a adoção de uma ontologia realista, o que enfraquece a perspectiva subjetivista; e por uma metodologia dialógica, ou seja, que vise aumentar a consciência dos sujeitos, objetivando a transformação social.

Todas essas abordagens sofrem críticas, mas, de modo geral, o que as diferencia é a ênfase que atribuem a pontos fundamentais no construtivismo social: o papel da teoria, dos valores e da interação pesquisador/ pesquisado na configuração dos "fatos". Para os construtivistas, há inúmeras realidades, predominando, portanto, relativismo; para os pós-positivistas e teóricos-críticos, o fato de que a realidade é socialmente construída é um dado importante, mas não traz como consequência o relativismo. De outro lado, tem havido grandes discussões sobre a possibilidade de compatibilização de aspectos de diferentes paradigmas. Para um grupo de autores, a coexistência de vários paradigmas é reconhecida, ao passo que, para outro grupo, isto é insustentável. Para Austin (apud Alves-Mazzotti) pertencente ao primeiro grupo, há três níveis de acomodação: o nível filosófico, o nível de comunicação social e o nível de pessoal. Em cada um desses níveis tenta-se: a) responder perguntas sobre a possibilidade de chegar a um acordo em questões de fundo; b) utilizar conhecimentos gerados por outros paradigmas; c) dar conta de problemas específicos valendo-se de diferentes paradigmas. Para Smith e Heshusius (apud Alves-Mazzotti77. Alves-Mazzotti AJ, Gewandsznajder F. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pioneira; 1998., não é possível a acomodação entre paradigmas, pois isto "resultaria no encerramento de um debate provocativo sobre problemas essenciais, não resolvidos pela pesquisa".

Em geral, na área da saúde podemos encontrar a adoção desses três modelos, talvez com maior densidade de uns em relação aos outros, dependendo do campo específico, do tema e dos objetivos da investigação. Sem dúvida, o olhar antropológico tem utilizado com maior ênfase o construtivismo social, quer seja em pesquisas sobre representações sociais, quer seja em estudos sobre sentidos e significados da doença, da dor, do sofrimento. O olhar epidemiológico tem ido em busca de associar a pesquisa quantitativa e qualitativa, incluindo-a no modelo pós-positivista. Muito do que se pesquisa na área das políticas de saúde e educação em saúde pode ser incluído no modelo teórico-crítico.

O material exposto neste trabalho mostra que, mesmo enfrentando críticas, as humanidades continuam a oferecer um amplo leque de possibilidades ao pesquisador. Fixamos a questão em torno da possibilidade da construção de modelos mais relacionados às ciências sociais, mas isto não exclui a importância de trabalhar com os outros olhares, como o da filosofia, história, estética, ética sobre a saúde, aos quais se associa o estudo da saúde como conceito, o que transfere a questão para o campo epistemológico. Esta riqueza de possibilidades é que continua a mostrar como o campo das ciências humanas se cruza inexoravelmente com o da saúde, demandando, cada vez mais, a presença diversificada de profissionais de ambas as áreas, na busca de uma fertilização mútua dos conhecimentos.

Em relação ao ensino, os cursos de graduação em medicina foram a porta de entrada das ciências sociais desde a metade dos anos sessenta do século 201313. Nunes ED. As ciências sociais em saúde na América Latina: tendências e perspectivas. Brasília (DF): Organização Pan-Americana da Saúde; 1995.) e, hoje, as humanidades são referidas como fundamentais nas reformas curriculares das escolas médicas brasileiras. O documento da Cinaem1414. Comissão interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico - CINAEM. Preparando a transformação da educação médica brasileira. Relatório 1999-2000. Pelotas: UFPel; 2000. explicita de forma clara que:

A crescente importância dos aspectos psicológicos, sociológicos e antropológicos da medicina torna a inclusão destes conteúdos uma prioridade para os novos currículos. Da mesma forma, seria uma temeridade deixar fora dos currículos conteúdos de história da medicina que mostram a constituição dos saberes e técnicas médicas ao longo do tempo, permitindo melhor compreensão do presente e redimensionamento do futuro.

Nessa linha de pensamento, o documento assinala que:

[Se] a anatomia e a fisiologia foram fundamentos da medicina clássica, a física e química foram as disciplinas básicas da medicina do século XIX, as disciplinas sociais ou ecológicas serão essenciais para a medicina do terceiro milênio. Antropologia Médica, História da Medicina, Psicologia e Pedagogias Sociais, Sociologia e Epidemiologia, Estatística e Ética Médicas, dentre outras, serão fundamentais para erigirmos uma nova teoria da medicina, preocupada com as tarefas curativa, preventiva e reabilitadora, mas também com a melhoria da natureza humana e o bem-estar social, através do atendimento adequado a necessidades de saúde de indivíduos e populações.

Ao lado desta preocupação, deve-se registrar que tem sido crescente a produção científica na área da saúde que utiliza referenciais teóricos das ciências humanas, resultado, em grande parte, de dissertações e teses produzidas nos cursos de pós graduação em saúde coletiva, em maior número, e em alguns cursos na área de ciências humanas. Destaque-se que cerca de 50% dos conteúdos de ensino nos cursos de pós-graduação em saúde coletiva podem ser incluídos na rubrica de ciências humanas.

Sem dúvida, as duas questões centrais para o campo da saúde- o estudo do processo saúde-doença e a organização das práticas de saúde - não poderão ser compreendidas em toda a sua extensão e complexidade sem as ciências humanas; assim como, para a formação dos profissionais de saúde, toma -se fundamental a presença dos estudos humanísticos em seus planos de estudo. Nesse sentido, compartilhamos das ideias de Leyla Perrone-Moiséss1515. Perrone-Moisés L. Para que servem as humanidades. Folha de São Paulo 2002 Jun 30; Mais!: 9-10., em sua resposta à pergunta "para que servem os estudos humanísticos?", que estendemos ao campo da medicina e da saúde. Como escreve a professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo:

Servem para que a universidade continue a ser, além de um local de pesquisas científicas e tecnológicas, um lugar onde se exerce também o pensamento crítico sem o qual esses avanços procederiam às cegas. Sem a compreensão da história dos homens, de seu habitat natural e social, de suas línguas, culturas e religiões, as conquistas científicas e tecnológicas são utilizadas ou inviabilizadas num mundo guerreiro e repartido de forma injusta. As humanidades servem para estudar os problemas de nosso país e do mundo, para humanizar a globalização. Tendo por objeto e objetivo o homem, a capacidade que este tem de entender, de imaginar, de criar, esses estudos servem à vida tanto quanto a pesquisa sobre o genoma.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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    Foucault M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Lisboa: Portugália; (s.d.).
  • 2
    Japiassu H. Nascimento e morte das ciências humanas. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1978.
  • 3
    Giddens A, Turner J, org. Teoria social hoje. São Paulo: Editora UNESP; 1999.
  • 4
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2003

Histórico

  • Recebido
    08 Ago 2002
  • Aceito
    11 Fev 2003
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