Acessibilidade / Reportar erro

Formação do médico geral: o ambiente de ensino influencia?

O incentivo à formação do médico geral tem sido considerado necessário a uma renovação da assistência médica, especialmente para constituir o nível de cuidados primários, essencial ao sistema de atendimento de saúde (Fry, 19785. Fry, J. - Content and Process Problems in Primary Care: a British Viewpoint. In Ann. N. York Acad. Sci., 310:150-157, 1978.).

Diversas sugestões têm sido oferecidas para desenvolver o ensino de medicina geral, inclusive a utilização de modelos de prestação de serviços de assistência primária (Chaves, 19783. Chaves, M.M. - Formação do Médico Generalista; Novos Rumos. Rev. Bras. Educ. Méd., Suplemento 1, 1978.).

Esta e outras medidas que modificam o contexto habitual do ensino médico devem ser averiguadas em seus efeitos no processo que leva o estudante a escolher uma área de atividade e, eventualmente, a exercê-la (Mitchell, 19759. Mitchell, W.D. - Medical Student Career Choise: A Conceptualization. Soc. Sci. & Med., 9:641-653, 1975.). A detecção do impacto, benefícios e desvantagens das novas situações de aprendizagem poderão servir para guiar uma reformulação mais ampla do sistema educativo.

Este trabalho relata dados de um estudo longitudinal da escolha de carreira por estudantes de medicina da Universidade de Brasília. Seu propósito principal é identificar as interações entre as características pessoais de concluintes e fatores do ambiente de aprendizagem, influenciando a escolha de Clínica Geral.

Métodos

Amostra - O estudo abrange 80 dentre 104 alunos que ingressaram na Universidade nos vestibulares de julho de 1972 e de janeiro de 1973. Desses, 35 já conluíram o curso de medicina e os restantes seguem o estágio de internato, sendo que 43 formam-se em dezembro de 1978 e os outros 2 em julho de 1979. A proporção de mulheres é de 22,5%. A proveniência geográfica é variada e 58,7% dos alunos viveram mais da metade da existência em cidades com mais de 50.000 habitantes, enquanto 32,5% viveram em cidades pequenas ou vilas e, os restantes, referem uma combinação de vivências.

Procedimentos - Um questionário de expectativas e dados demográficos foi preenchido pelos 80 futuros concluintes no início do primeiro período letivo após o vestibular. O estilo de aprendizagem de 40 concluintes foi identificado, durante a fase clínica, mediante um inventário de percepções do modo de aprender (Kolb, 19767. Kolb, D. - Learning Style Inventory Technical Manual, Boston, Me Beer and Company, 1976.) e usando-se a pontuação de Wunderlich & Gjerde (197811. Wunderlich, R. & Gjerde, C. L. - Another Look at Learning Style Inventory and Medical Career Choice. J. Med. Educ. , 53:45-54, 1978.). Este instrumento discrimina 4 estilos: o Adaptativo (prefere aplicar idéias ativamente em situações concretas); o Convergente (prefere aplicar idéias ativamente em situações abstratas); o Assimilativo (prefere criar idéias ou hipóteses pela reflexão sobre conceitos abstratos) e o Divergente (prefere criar idéias pela reflexão sobre sua vivência em situações concretas). Ao início do internato, todos os 80 concluintes completaram um questionário geral (Sobral, 197710. Sobral, D.T. - Alvos de Carreira de Alunos de Medicina de Brasília. Rev. Bras. Pesq. Méd. Biol., 10:265-270. 1977.), contendo indagações sobre dados pessoais, percepções sobre o sistema de ensino e planos de carreira do concluinte. Finalmente, foram também examinados os eventos registrados no histórico escolar de cada concluinte, especialmente a obtenção de créditos na disciplina optativa Estágio em Clínica Rural, desenvolvida no contexto de um programa de assistência em nível primário, de âmbito periférico (Barbosa e cols., 19771. Barbosa, F.S., Carvalho, A.G., Lavor, A.C.H. e Santana, J.F.N.P. - Atenção à Saúde e Educação Médica: uma Experiência e uma Proposição. Educ. Médica y Salud, II :26-40, 1977.).

Resultados

A tabela I mostra a distribuição dos concluintes entre várias opções profissionais, no início e no fim do curso e, também, a origem e a destinação nas mudanças de opção. A preferência inicial foi confirmada no final por 27,5% dos concluintes.

A escolha de Clínica Geral foi indicada por 10% dos concluintes. Dentre os que escolheram Clinica Geral, 25% tinham preferência por esta opção no início do curso, enquanto 58,3% dos que escolheram Cirurgia tinham preferência por esta opção no início. Em contraste, 66,7% dos que tinham preferência inicial por Clínica Geral escolheram esta área no final e, no caso de Cirurgia, o percentual equivalente foi de 25%. Por outro lado, somente a opção por Clínica Médica (Medicina Interna) apresentou um percentual de aumento, do início para o fim do c urso, superior ao da opção por Clinica Geral.

TABELA I
DISTRIBUIÇÃO DOS CONCLUINTES DE MEDICINA ENTRE ÁREAS DE ATIVIDADE DE PREFER NCIA INICIAL E DE ESCOLHA FINAL

A tabela II mostra a distribuição dos concluintes conforme o tamanho da comunidade de vivência prévia e de destinação. Dentre os concluintes que optaram por Clínica Geral, 75% viveram mais de metade da existência em comunidades peque nas (menos de 50.000 habitantes) e 50% no grupo registraram a intenção de exercer a prática profissional neste tipo de comunidade, percentuais mais elevados do que em qualquer outra opção. Para comparação, 37,5% dos outros concluintes viveram em comunidades peque nas e 18% pretendiam exercer a prática nessas comunidades.

TABELA II
DISTRIBUIÇÃO DOS CONCLUINTES CONFORME A COMUNIDADE

Para os 17 concluintes antevendo a prática em comunidade pequena, as opções predominantes foram Clínica Médica (35,3%), Clínica Geral (23,5%), Obstetrícia-Ginecologia (17,6 %) e Saúde Pública (11,8%). A maioria tinha vivência preponderante nessas comunidades.

No início do curso uma maior proporção dos futuros concluintes em todas as opções, exceto Clínica Geral, tencionava exercer a prática em pequenas comunidades.

Dentre 5 perspectivas cotejadas, assumir responsabilidade no trato do paciente (para 62,5%) e os aspectos sociais da medicina (para 25%), são os interesses predominantes, ao término do curso, para os concluintes do grupo de Clínica Geral, enquanto predominam os interesses em assumir responsabilidade (39%), nos aspectos orgânicos (25%) e nos aspectos sociais (18%), para as outras opções reunidas. Do início para o fim do curso o perfil de interesses da totalidade dos concluintes se modificou, pelo aumento dos interessados em assumir responsabilidade no trato do paciente e nos aspectos sociais e diminuição daqueles voltados, predominantemente, para os aspectos orgânicos e de pesquisa, sem alteração na proporção de interesse nos aspectos psicológicos da medicina.

Das respostas da totalidade dos concluintes a uma indagação sobre a ordem de importância de 4 fatores que influenciam a escolha da habilitação profissional, obteve-se a seguinte classificação, pela ordem decrescente de importância: (1o) estudo de disciplinas do ciclo profissional de medicina; (2o) triagem das atribuições dos diversos papéis profissionais; (3o) vivência prática das tarefas de assistêpcia médica e (4o) identificação com uma imagem profissional. Para o grupo de Clínica Geral, isoladamente, a importância atribuída a esses fatores estava numa ordem inversa.

Em conexão com a identificação desse padrão de influências, foram apurados os estilos de aprendizagem da metade dos concluintes (Tabela III).

TABELA III
DISTRIBUIÇÃO PERCENTUAL DOS ESTILOS DE APRENDIZAGEM ENTRE 40 CONCLUINTES

A distribuição encontrada nesta parcela de concluintes era de Convergentes (42,5%), Assimilativos (30%), Adaptativos (22.5%) e Divergentes (5%). Nesta pequena amostra o grupo de Clínica Geral está representado pelos estilos ativos, em concordância com outro levantamento (em andamento), abrangendo 60 estudantes com preferência por Clínica Geral, em que o estilo Assimilativo representa apenas 10% do total.

Todos os optantes por Clínica Geral indicaram preferir que a tônica do conhecimento transmitido no curso fosse situada na sua utilização em rotinas de prática médica. Em contraste, apenas 20% dos optantes por Saúde Pública expressaram essa preferência, enquanto para 80% a preferência era na identificação dos benefícios (do conhecimento) para os pacientes ou no desenvolvimento de estratégias de ação médica. (O estilo de aprendizagem Assimilativo é o mais freqüente entre os optantes por Saúde Pública.) Cerca de 2/3 dos concluintes, em proporções iguais, referem que a utilização do conhecimento em rotinas da prática médica e a descoberta da natureza e significação do conhecimento, representam a tônica da informação transmitida no curso.

A tabela IV registra a frequência da execução de algumas atividades específicas, principalmente no contexto extra­hospitalar, comparando-se o grupo que escolheu Clínica Geral com os concluintes que indicaram outras opções.

TABELA IV
DISTRIBUIÇÃO DA EXECUÇÃO DE ATIVIDADES DE CONCLUINTES DURANTE A FASE CLÍNICA

No grupo de Clínica Geral, em comparação com outras opções reunidas, houve maior freqüência de participação no Projeto Rondon (60% contra 32%) e de execução de uma série de procedimentos médicos simples (100% contra 79%), durante à fase clínica (antes do acesso ao Internato). Em relação ao acompanhamento de pacientes, o grupo participou com maior freqüência no acompanhamento domiciliar e também apresentou maior índice de satisfação com as oportunidades de acompanhamento intra-mural da evolução de pacientes.

Vale registrar que apenas 12,5 % dos optantes por Clínica Geral seguiram o Estágio em Medicina Rural, em contraste com 100% dos optantes por Saúde Pública. Além disso, observou-se que o grupo de Clínica Geral obteve a menor média (43) de créditos em disciplinas optativas, ao longo do curso, comparando-se com cada uma das outras opções. O índice máximo (média de 63 créditos por concluinte) foi obtido pelo grupo de Clínica Médica.

Todos os optantes de Clínica Geral seguiram, ou seguem, o estágio rotatório no Internato, enquanto 34% dos concluintes em outras opções escolheram o estágio eletivo em uma outra das 4 áreas principais.

Comentários

No seu model o da seleção de carreira pelo estudante de medicina, Mitchell (19759. Mitchell, W.D. - Medical Student Career Choise: A Conceptualization. Soc. Sci. & Med., 9:641-653, 1975.) refere que essa seleção envolve a escolha não somente da habilitação (ou especialidade) mas também do tipo de exercício profissional, local de prática, etc., que definiriam o “nicho” de carreira. Essa escolha implicaria um processo em que o estudante procura combinar suas preferências e circunstâncias de vida com um domínio de possíveis opções de carreira, selecionando o nicho que perceba como satisfatório para as suas preferências e prioridades e compatível com as restrições impostas por suas habilidades e circunstâncias de vida. Os componentes desse processo seriam: (1) domínio de características pessoais (vivência prévia, situação atual, personalidade e “moldura” de referência, incluindo valores, crenças e atitudes); (2) enfoque cognitivo; (3) ambiente de ensino (informação e vivências) e (4) domínio de escolha ou nichos de carreira delineados no ambiente de aprendizagem.

Nos termos do presente estudo, as características pessoais são representadas pelo tipo de comunidade de vivência prévia e pelas perspectivas de interesse. O enfoque cognitivo é representado pelo estilo de aprendizagem. O ambiente de ensino inclui a exposição às vivências descritas 101 texto, à moldura de referência propiciada pelo corpo docente, além da informação ministrada nas disciplinas.

Possivelmente, todos esses componentes contribuem para determinar o perfil da escolha das opções de carreira pelos concluintes. A diferença observada na distribuição das opções, do início para o fim do curso, pode ser explicada, em parte, pela distinção entre preferência e escolha, nos termos referidos por Matteson & Smith (19778. Matteson, M.T. & Smith, S.V. - Selection of Medical Specialties: Preferences Versus Choices. J. Med. Educ. , 52:548-554, 1977.). O sentido da variação percentual (aumento ou diminuição) é o mesmo que o descrito por esses autores nas 5 opções principais. Uma implicação dessa observação seria que a mudança de opção (de cirurgia para clínica geral, por exemplo) pode ser atribuída às restrições ou limitações percebidas pelo estudante nas suas habilidades ou situação pessoal. De fato, 2 de 4 concluintes, que mudaram sua preferência inicial por Cirurgia pela escolha de Clínica Geral, identificaram o adestramento de habilidades psicomotoras como a maior dificuldade na formação.

A influência das características pessoais, tanto sócio-demográficas como de personalidades, pode estar refletida não somente na distribuição das escolhas de carreira mas também na associação da opção de escolha, a exemplo de Clínica Geral, com o tipo de comunidade de vivência e de local pretendido para o exercício profissional. Essa associação é referida na literatura (Cooper e cols., 19724. Cooper, J.K., Heald, K. e Samuels, M. - The decision for Rural Practice. J. Med. Educ. , 47:939-944, 1972.) e já fora observada em estudo anterior (Sobral, 197710. Sobral, D.T. - Alvos de Carreira de Alunos de Medicina de Brasília. Rev. Bras. Pesq. Méd. Biol., 10:265-270. 1977.).

No pequeno grupo constante do presente estudo, a influência do enfoque cognitivo é nítida. Em particular, dentre os 9 concluintes de estilo Adaptativo, apenas 1 não indicou preferência ou escolha por Cirurgia ou Clínica Geral.

Existem algumas características na situação total de aprendizagem, do curso de medicina desta Universidade, que poderiam favorecer a opção por Clínica Geral e a prática em pequena comunidade, a saber, o estágio rural supervisionado (Grimes e cols., 19776. Grimes, R.M., Lee, J.M., Lefko, L.A. e Hemphill, F.M. - A Study of Factores influencing the Rural Location or Health Professionals. J. Med. Educ. , 52:771-772, 1977.; Barr. 19782. Barr, D. M. - Primary and Specialized Care: Implications for Learning Situations. J. Med. Educ., 53:176-185, 1978.), a orientação de ensino na fase clínica (Sobral, 197710. Sobral, D.T. - Alvos de Carreira de Alunos de Medicina de Brasília. Rev. Bras. Pesq. Méd. Biol., 10:265-270. 1977.), inclusive a ênfase na utilização (da informação transmitida) em rotinas da prática médica e a moldura de referência fornecida por um núcleo do corpo docente. Para o grupo acompanhado neste estudo, os principais fatores associados com a escolha de Clínica Geral foram a identificação com a imagem dessa função profissional e a vivência de tarefas, a exemplo do acompanhamento de pacientes (intra e extramural) e da execução de procedimentos médicos. O estudo de disciplinas não teve influência preponderante, inclusive pelo não seguimento da optativa Estágio em Medicina Rural - baseada em modelo de prestação de serviços de saúde a nível primário - aparentemente por não constituir modelo de prática médica direta (Barbosa e cols., 1974).

Uma possível interpretação geral das tendências detectadas neste estudo implica a conclusão de que o ambiente educacional da instituição têm efeito deficiente, mas positivo, no processo de escolha preliminar do “nicho” de carreira pelo concluinte: não se observam distorções de vulto nas preferências e prioridades do alunado ou no perfil de distribuição das opções finais (considerando as preferências iniciais), em que prevalecem as 4 áreas principais. Esse resultado é consistente com as características sócio-demográficas prevalentes dos estudantes e com o sistema de ensino adotado no curso de medicina que, do ponto de vista estrutural (Zuckerman, 197812. Zuckerman, H.S. - Structural Factors as Determinants os Carcer Patterns in Medicine. J. Med. Educ. , 53: 453-463, 1978.), representa um modelo clinico (e não acadêmico), com ênfase em programa de assistência médica em nível secundário e desdobramentos em outros níveis.

Referências Bibliográficas

  • 1
    Barbosa, F.S., Carvalho, A.G., Lavor, A.C.H. e Santana, J.F.N.P. - Atenção à Saúde e Educação Médica: uma Experiência e uma Proposição. Educ. Médica y Salud, II :26-40, 1977.
  • 2
    Barr, D. M. - Primary and Specialized Care: Implications for Learning Situations. J. Med. Educ., 53:176-185, 1978.
  • 3
    Chaves, M.M. - Formação do Médico Generalista; Novos Rumos. Rev. Bras. Educ. Méd, Suplemento 1, 1978.
  • 4
    Cooper, J.K., Heald, K. e Samuels, M. - The decision for Rural Practice. J. Med. Educ. , 47:939-944, 1972.
  • 5
    Fry, J. - Content and Process Problems in Primary Care: a British Viewpoint. In Ann. N. York Acad. Sci., 310:150-157, 1978.
  • 6
    Grimes, R.M., Lee, J.M., Lefko, L.A. e Hemphill, F.M. - A Study of Factores influencing the Rural Location or Health Professionals. J. Med. Educ. , 52:771-772, 1977.
  • 7
    Kolb, D. - Learning Style Inventory Technical Manual, Boston, Me Beer and Company, 1976.
  • 8
    Matteson, M.T. & Smith, S.V. - Selection of Medical Specialties: Preferences Versus Choices. J. Med. Educ. , 52:548-554, 1977.
  • 9
    Mitchell, W.D. - Medical Student Career Choise: A Conceptualization. Soc. Sci. & Med, 9:641-653, 1975.
  • 10
    Sobral, D.T. - Alvos de Carreira de Alunos de Medicina de Brasília. Rev. Bras. Pesq. Méd. Biol, 10:265-270. 1977.
  • 11
    Wunderlich, R. & Gjerde, C. L. - Another Look at Learning Style Inventory and Medical Career Choice. J. Med. Educ. , 53:45-54, 1978.
  • 12
    Zuckerman, H.S. - Structural Factors as Determinants os Carcer Patterns in Medicine. J. Med. Educ. , 53: 453-463, 1978.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1979
Associação Brasileira de Educação Médica SCN - QD 02 - BL D - Torre A - Salas 1021 e 1023 | Asa Norte, Brasília | DF | CEP: 70712-903, Tel: (61) 3024-9978 / 3024-8013, Fax: +55 21 2260-6662 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: rbem.abem@gmail.com