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Aprendizagem sem ensino, assistência com identificação e pesquisa heterodoxa.

Esta apresentação tem por finalidade definir o marco conceituai em função do qual, neste momento, a Clínica Médica 2 do HC-UERJ tenta desenvolver seus trabalhos nas três áreas de ação, a saber: atenção médica a pacientes ambulatoriais e internados; aprendizagem a nível de graduação e pós-graduação e pesquisa.

Entendemos doença como um processo multifatorial, físico, mental, social e histórico, que, regra geral, apresenta, como elemento comum, o sofrimento. Esta opinião resulta da compreensão de processo como algo em contínuo andamento e permanente modificação, sofrimento como uma sensação subjetiva de mal-estar e conflito com a natureza e suas relações conseqüentes, histórico como algo permanentemente variável no tempo e no espaço e multifatorial como um conjunto de variáveis que, em certas circunstâncias, adquirem um arranjo determinado que seja capaz de promover ou desencadear o processo patológico. Esta compreensão dinâmica de doença opõe-se à idéia de estado como estático e imutável, a-histórica, portanto, e unifatorial, como algo proporcionado por um único agente etiológico.

Este processo conceituai básico da doença, primariamente resulta de um desarranjo no complexo conjunto nas relações sociais de trabalho do homem. Estas relações, por sua vez, são conseqüências de um determinado tipo de relação homem-homem o que pode, num sentido mais amplo ainda, situá-lo em conflito (artificial) com a natureza não­ humana. A doença é uma das formas de expressão das relações sociais de trabalho em determinada sociedade e em determinado momento de evolução desta. Evolui historicamente com aquelas, indicando, o seu perfil, a estrutura social onde o doente homem está implantado. A doença e o seu estudo, assim, são muito mais integrantes das chamadas ciências sociais do que das ciências biológicas.

Assim, em nossa Clínica, apesar de reconhecer as dificuldades de operacionalização deste conceito, em qualquer atividade, tentamos fazer presente esta idéia de doença, mesmo que, em determinado momento de trabalho de cada um, possa predominar uma atividade, isto é, destreza, que pareça desvinculada desta visão, isto é, atitude. Na avaliação continua a que cada um deve submeter seu trabalho diário, a primeira pergunta se refere à atitude e não à destreza ou ao conhecimento isolado. Estas duas últimas categorias são meios: a atitude é o fim.

Desta posição não escapa, evidentemente, a aprendizagem médica. É fundamental que, a cada instante, tenhamos claro em nossas mentes o processo conceitual de doença, como foi exposto, e mais o processo conceitual de educação (trata-se de Hospital vinculado à Universidade), a posição social do médico ou qualquer outro profissional de saúde e à posição social do doente. Como reflexo de uma instituição (a Universidade, que representa um esforço de manutenção dos valores sociais vigentes), a educação que, para nós, é igualmente um processo multifatorial e histórico, está balizada por determinantes supra-educacionais. Igualmente, por idênticos determinantes oriundas do poder e dos valores que impregnam as ambições populares, a posição do médico é (a nosso ver, falsamente) dominante, enquanto a do doente é (a nosso ver, verdadeiramente) dominada. Assim, forma-se a constelação de trabalho em nossa clínica, com as variáveis doença, educação, médico (ou qualquer outro profissional de saúde, inclusive, naturalmente, o estudante) e doente em permanente conflito entre si e com a instituição imediata (Hospital-Faculdade-Universidade) e mediata (Sociedade). A compreensão deste complexo é o objetivo da aprendizagem (e dentro dela ressaltada a relação médico-paciente) em nossa Clínica.

Para cumprir tal desideratum, buscamos a aplicação de três métodos básicos: aprendizagem sem ensino, assistência com identificação e pesquisa heterodoxa. Em relação ao primeiro item, consideramos a aprendizagem ativa, vivenciada, participante, como o mais indicado caminho, no momento, para a formação do pessoal de saúde. O ensino é considerado uma forma superada de aprendizagem, na medida em que é compreendido como a passagem intelectual de conhecimentos, destrezas e atitudes daquele que tem o poder (o professor, porque sabe, como ser dominante) para aquele que não tem o poder (o aluno ou o doente, porque não sabem, como seres dominados). Entendemos que a aprendizagem é singular, única, individual e intransferível. Ninguém ensina a ninguém. Alguém pode relatar a sua experiência a respeito de tal ou qual problema (ou inculcá-la), porém não pode transmiti-la. Ninguém aprende sem viver o problema: consciente ou inconscientemente. O professor é, no máximo, um participante do grupo.

Quando falamos em assistência com identificação queremos dizer que, em nossa atividade na área da saúde, sem compreensão integral e identificação com o problema, seja enquanto conversando com o doente, seja enquanto estudando o seu quadro clínico, seja enquanto discutindo as dificuldades com outrem, ou em qualquer outra circunstância, ou estamos procurando penetrar e sentir o doente como nós próprios ou o estaremos atendendo seja como um computador, seja como um sei insensível.

Não há atendimento médico sem identificação, isto é, sem sentimentos. Fora disto, o que fazemos é dar uma receita, isto é, dizer ao doente que ele tem que fazer o que mandarmos porque nós sabemos e por isto somos o poder e porque ele não sabe e por isto não é o poder.

Com pesquisa heterodoxa queremos significar que qualquer atividade dentro da Clínica (e idealmente fora também) é motivo de indagação e pesquisa. Desde um gesto, uma palavra, uma destreza, um exemplo, até a preparação de um cuidadoso protocolo de investigação com os mais simples ou sofisticados meios de busca são motivos de pesquisa e considerados no mesmo nível. Uma reunião é uma pesquisa. Um olhar do doente é uma pesquisa. Uma monografia é uma pesquisa. Um plano de curso é uma pesquisa. Tentamos ser uma Clínica que pergunta ininterruptamente. E tentamos respeitar igualmente todas as perguntas e todas as respostas que encontramos. Tentamos ser uma Clínica inquieta e inconformada. Buscamos sempre algo diferente e novas respostas. Procuramos jamais ficar satisfeitos com qualquer resposta, trabalho, planejamento ou atendimento médico. Muito menos com qualquer texto que escrevemos. Inclusive, este.

Aloysio Amancio morreu, aos 47 anos de idade, no dia 13 de dezembro de 1978. Na Associação Brasileira de Educação Médica, foi Diretor-Executivo entre outubro de 1966 e dezembro de 1968. Como tal, Amancio coordenou a implantação do Programa Livro-Texto de Medicina em convénio com a OPAS; propiciou as condições para a modernização dos Departamentos de Medicina Preventiva; estimulou e comandou a série de estudos descritivos realizados pela então Seção de Pedagogia Médica, até hoje citados e utilizados em trabalhos empíricos; deu forma e sentido à incipiente Residência Médica patrocinando a causa da criação da ANMR; proporcionou condições concretas para que as escolas então fundadas não se transformassem, de fato sociológico compreensível e controlável, em catástrofe social procurando dar sentido e razão à capacidade humana de renovar, inovar, recriar, mudar. Saldo da Direção-Executiva, manteve-se um participante ativo e um atento crítico-colaborador. Como testemunho do quanto amava a ABEM, o último Congresso do qual Amancio participou não poderia ter deixado de ser o XVI de Educação Médica, em Londrina. Nele, mais uma vez, não permaneceu como mero expectador; atuou intensamente defendendo o que considerávamos mais justo e correto.

Falar do que Amancio representou para as Faculdades de Ciências Médicas da UERJ e de Medicina de Petrópolis seria um interminável enumerar de idéias, realizações, inovações, lúcidas insanidades, tudo dentro daquela generosidade de ver crescer os companheiros.

De Amancio, os discípulos guardamos muito: recordações, ensinamentos, conselhos existenciais, uma forma particular, meio envergonhada, de sorrir. Continuaremos a encontrá-lo em cada aluno, em cada paciente, em cada inválido, em cada servente ou copeira, naquela gente humilde que o procurava no Hospital e em cada um que vive e anseia, pela transformação.

Entre os guardados, os inéditos, as idéias começadas, os rabiscos, os rascunhos, divulgo um. Este documento havia sido adrede preparado por Amancio para discussão no próximo início do ano letivo. Seria e será debatido entre (como ele dizia) o “povo” do Serviço.

A Revista Brasileira de Educação Médica o publica como uma inevitável demonstração de saudade. Nós o lemos com a certeza de que a vontade e a capacidade humanas são mais fortes do que qualquer adversidade; mesmo sendo doloroso ver e principalmente aceitar a partida do companheiro-guia, quando ainda somos tão poucos e tanto por fazer, por causa dele seremos sempre mais, sempre melhores e caminharemos até o muito mais longe.

Pela estrada que ele nos abriu e pelo caminho que ele continua seguindo...

Antonio Augusto F. Quadra

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1979
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