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(Des)encontro do médico com o paciente: o que pensam os médicos?

Doctor and patient (mis)matches: what the doctors think

Mauricio Tostes, em seu livro (Des)encontro do médico com o paciente: o que pensam os médicos?11. Tostes M, org. (Des)encontro do médico com o paciente: o que pensam os médicos? Rio de Janeiro: Rubio; 2014. 346p., nos coloca enquanto leitores diante de uma tarefa interessante; acompanhar o testemunho de 47 médicos, de diversas especialidades, com diferentes perfis, crenças e características pessoais, sobre a relação médico-paciente. Seguindo um roteiro construído com base em sua experiência profissional como psiquiatra e professor da disciplina de Psicologia Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e com uma postura amistosa e acolhedora, o autor cria um clima que permite que seus entrevistados discorram sobre o que caracteriza essa relação e os desafios envolvidos: o que seria um paciente difícil; como lidar com os pacientes que não seguem as prescrições, orientações e recomendações; pessoas que exerceram influência na formação profissional; sugestões para a formação médica; qual seria a melhor maneira de ensinar sobre a relação médico-paciente; e o que um médico recém-formado deve saber sobre essa relação.

Os depoimentos dos entrevistados vão envolvendo o leitor. Passa-se de uma entrevista para outra com a curiosidade de saber o que o próximo profissional irá falar sobre os diversos assuntos contemplados. O roteiro é ajustado segundo a especialidade dos entrevistados – anestesiologia, cardiologia, clínica geral, cirurgia cardiovascular, cirurgia geral, cirurgia plástica, dermatologia, hepatologia, homeopatia, infectologia, medicina de família, nefrologia, neurocirurgia, oncologia, pediatria, pneumologia, psiquiatria, radiologia, saúde pública – ou campo de interesse, como bioética e educação médica, havendo predomínio dos psiquiatras (12), formação de Mauricio Tostes.

O grande mérito do entrevistador foi mostrar, por meio das falas dos sujeitos, a importância da escuta na prática médica e a necessidade de mudanças na prática educacional. Assim como os entrevistados destacam a importância da escuta, do acolhimento, do diálogo, da comunicação, Mauricio cria um ambiente de confiança e de atenção, permitindo que esses profissionais, de modo geral, se sintam confortáveis para falar sobre temas importantes, mas também bastante delicados e controversos. Parafraseando José Ricardo Ayres, um dos entrevistados, Mauricio Tostes possibilita que cada um dos médicos construa sua própria narrativa, dando sentido ao que vivenciam como prática médica para além da ideologia profissional.

São destaques nas entrevistas várias questões que talvez mereçam uma ou diversas linhas de pesquisa. Por exemplo, o descompasso de interesses e vivências entre médicos e pacientes. Enquanto o paciente procura o alívio da dor e um possível adiamento da morte, o interesse do médico engloba a produção do conhecimento, o prestigio e o reconhecimento profissional. A experiência do encontro e a intensidade da vivência de um e de outro são desiguais. A maioria dos profissionais pontua a importância da mediação identificada no campo da bioética (através da disciplina de Bioética e de comissões hospitalares de Bioética). Será isso suficiente?

Outro aspecto interessante é a difícil relação de um profissional tradicionalmente “autônomo” com a expansão tecnológica, que envolve não só as inovações diagnósticas, mas a gestão virtual do diagnóstico e da terapêutica. Algumas transcrições evidenciam o desconforto entre sujeito profissional e tecnologia, e também assinalam uma simplificação da complexa relação entre a medicina e a tecnologia, além da dificuldade na gestão desse conhecimento na rotina assistencial (“Cresceu o espaço ocupado pela tecnologia, o médico perdeu o protagonismo, e os pacientes parecem confiar mais na tecnologia do que no médico”, p.114). As evidências que podem ser citadas dizem respeito, muitas vezes, a soluções artesanais (“É como pai e mãe: você ensina mais pelo que faz do que pelo que fala”, p.196), mas não menos complexas, para o ensino da profissão num mundo mediatizado e de formação apoiada em teles e tecnologias virtuais.

O fato de o autor deixar os entrevistados livres para expandir os temas do roteiro suscitou pontos muito importantes referentes à adesão dos pacientes ao tratamento e às mudanças de estilo de vida. Os entrevistados tocam apenas levemente na influência das condições de vida, nas possibilidades individuais de mudança de rotinas e práticas que possam aumentar a chance de adoecimento. O foco principal dessas mudanças se localiza na relação inter-humana entre o médico e o paciente. Alguns dos entrevistados reforçam o papel predominante do médico nessa equação, mas outros enfatizam a dificuldade pontuada por Michel Foucault22. Foucault M. O nascimento da clínica (tradução de Roberto Machado). 5.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2001. noNascimento da clínica, quando o autor enfatiza a rara possibilidade do encontro entre o discurso sobre a doença e a experiência do adoecimento. O imperativo da saúde instaura a predominância da terapêutica moral, qualificando o paciente e os modos de viver sem levar em consideração os limites e possibilidades de escolha33. Santos EM. E agora: somos todos marqueteiros de cyborgues eternos? In: Sergio Arouca, organizador. O dilema preventivista. Rio de Janeiro/São Paulo: Ed. UNESP-Fiocruz; 2003. p. 203-208..

Apesar das várias qualidades do livro, não poderíamos deixar de registrar alguns problemas. O autor não nos oferece a história da construção da obra. Não descreve, por exemplo, como elaborou o roteiro, as dificuldades e facilidades encontradas, as surpresas e as decepções. O leitor sente falta de referências que caracterizem a metodologia de trabalho utilizada. Para resgatar e subsidiar análises posteriores deveríamos entrevistar o autor?

Em suas falas, os entrevistados tangenciam diferentes concepções de época sobre a relação médico-paciente, especialmente sobre o paciente nessa relação. Desde o Corpus Hippocraticum44. Hippocrates. Corpus Hippocraticum, vol 1, Loeb Classical Library (translated by WHS Jones), London: Harvard University Press; 1995., cerca de 2.500 anos atrás, já existiam registros sobre o criticismo dos médicos a respeito de seus pacientes, seja por utilização de remédios não convencionais, seja por desobediência às ordens médicas. A história da medicina é rica em documentos em que os pacientes são considerados obstáculos ou problemas a administrar. Do ponto de vista do médico, os pacientes são sempre encarados como fonte de ansiedade e dúvida. O tom dessas histórias é usualmente de desafio e tensão, que continua ao longo do tempo até a sociedade contemporânea55. Freidson E. Dilemmas in the doctor-patient relationship. In: Human Behavior and Social Processes: An Interactionist Approach (Arnold M. Rose, org). Boston: Houghton Mifflin Company; 1962..

Do paciente como problema, o século XIX consolida o paciente como o caso de doença a ser abordado no espaço hospitalar22. Foucault M. O nascimento da clínica (tradução de Roberto Machado). 5.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2001.. Uma das grandes questões não contempladas nas entrevistas é como esta relação inter-humana que lida com o “caso em sofrimento” se insere numa prática profissional regulada e legitimada pelas leis de mercado em um mundo globalizado. Mesmo no Corpus Hippocraticum44. Hippocrates. Corpus Hippocraticum, vol 1, Loeb Classical Library (translated by WHS Jones), London: Harvard University Press; 1995., é discutida a remuneração direta médico-paciente, mas essa questão é referida apenas como “baixos salários” (p. 54) ou “o médico não gosta do convênio, que, por sua vez, não gosta do paciente, e o paciente não gosta do seu plano” (p. 91), não se explorando essa temática nas entrevistas.

Contudo, um número significativo de entrevistados reclama das mudanças nas condições e processos de trabalho, decorrentes da proliferação da medicina de grupo, e das dificuldades encontradas na assistência médica no nível público, que interferem na relação médico-paciente. Esta desvalorização profissional seria uma situação bastante diferente da encontrada por Pereira Neto66. Pereira Neto A. Ser médico no Brasil: o presente no passado. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2001. 232p. em seu estudo sobre os médicos no Brasil no começo do século XX, quando imperava uma situação de maior prestígio e autonomia.

Estamos certas de que a leitura destes depoimentos de médicos, tanto por profissionais de saúde como pelo público leigo, contribuirá de forma inquestionável para uma discussão aprofundada e uma reflexão sistematizada sobre o secular e conflitivodesencontro entre médicos e pacientes.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Tostes M, org. (Des)encontro do médico com o paciente: o que pensam os médicos? Rio de Janeiro: Rubio; 2014. 346p.
  • 2
    Foucault M. O nascimento da clínica (tradução de Roberto Machado). 5.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2001.
  • 3
    Santos EM. E agora: somos todos marqueteiros de cyborgues eternos? In: Sergio Arouca, organizador. O dilema preventivista. Rio de Janeiro/São Paulo: Ed. UNESP-Fiocruz; 2003. p. 203-208.
  • 4
    Hippocrates. Corpus Hippocraticum, vol 1, Loeb Classical Library (translated by WHS Jones), London: Harvard University Press; 1995.
  • 5
    Freidson E. Dilemmas in the doctor-patient relationship. In: Human Behavior and Social Processes: An Interactionist Approach (Arnold M. Rose, org). Boston: Houghton Mifflin Company; 1962.
  • 6
    Pereira Neto A. Ser médico no Brasil: o presente no passado. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2001. 232p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2015

Histórico

  • Recebido
    11 Abr 2015
  • Aceito
    24 Abr 2015
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