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Tendências da assistência médica

Dos fatores determinantes de saúde em um país, destacam-se:

  1. a estrutura social e econômica;

  2. o sistema de saúde;

  3. os recursos humanos, sociais e científicos, que são uma conseqüência da ideologia dominante e da escola médica.

I

Desde a origem da moderna Epidemiologia, no século XIX, na Inglaterra, tem sido verificado que há uma relação evidente entre a situação social e econômica e os índices de morbidade e mortalidade. A pobreza é o maior obstáculo ao acesso às mínimas condições vitais e para o exercício pleno da probabilidade de sobrevivência. Como exemplo, a situação de calamidade da nossa população rural que vive em condições sub-humanas, quer sociais, sem mínimas condições de higiene, habitação, drenagem de águas pluviais, suprimento tratado de água, esgoto ou simples instalações de despejo de dejectos. O indice de escolaridade é muito baixo e o analfabetismo supera a taxa dos 50%. Nessa população, cerca de 50% dos óbitos ocorre abaixo dos 5 anos de idade, a esperança de vida é muito curta, as chamadas doenças endêmicas extremamente prevalentes e a disponibilidade de recursos de atenção médica é quase nula, seguindo a lei das necessidades inversas - “inverse care law” -, ou seja, “quanto maior a necessidade, menor o número de recursos” 11. HART, T. - Inverse care law. Lancet, 1:405, 1971..

Nas áreas urbanas, pode ser dito que a situação é pouco melhor, mas persistem imensos bolsões que se designam hoje de áreas desastrosas - “disaster areas” -, onde a mortalidade ainda é excessiva e a morbidade por causas removíveis também exagerada. Para isto concorrem:

  1. a defasagem entre o custo da alimentação e os salários;

  2. constante a exposição a situações propícias à instalação de doenças;

  3. o baixo nível educacional.

Não há descoberta médica capaz de exercer influência sobre as condições observadas nessas áreas: subnutrição, ignorância, alcoolismo, violência, todas indicadoras de uma desagregação social e cultural profundas.

Em 1975, um estudo feito em 105 países 22. NATIONAL Health and its effects. New York Times, Sept., 28, 1975., tomando como parâmetros: renda per capita, expectativa de vida, taxa de mortalidade infantil, concluiu pela existência de correlação linear entre tais variáveis. Assim, países com renda per capita entre 2.000 e 5.600 dólares apresentavam, para o sexo masculino, uma esperança de vida entre 62 e 72 anos; países cuja renda oscilava entre 50 e 170 dólares tinham, para o mesmo sexo, uma esperança de vida ao redor dos 25 anos.

Nos Estados Unidos, em 1973,33. DEPARTMENT OF HEALTH. EDUCATION AND WELFARE - National Center for Health Statistics. Vital Statistics of the US, 1973. (Life tables.) observou-se que a esperança de vida comparativa entre negros e brancos apresentava uma diferença de 6,3 anos em favor dos segundos; igualmente, a mortalidade infantil era 92% mais elevada entre os negros.

Em São Paulo, o atual Secretário de Saúde, Prof. Walter Lezer, demonstrou que o achatamento salarial observado entre 1965 e 1970 provocou um nítido aumento das taxas de mortalidade infantil como conseqüência da queda do poder aquisitivo familiar44. LEZER, W. - Relacionamento de certas características populacionais com a mortalidade infantil no Município de São Paulo de 1950 a 1970. Prob. Bras., 10: 17, 1972..

Recentemente, um interessante estudo epidemiológico55. WEINBLATT, E. e cols. - Relation of education to sudden death after myocardial infarction. New Engl. J. Med., 299: 60, 1978. desenvolvido em Nova York mostrou que um baixo índice de escolaridade eleva o risco relativo de morte por infarto do miocárdio em 2,3 vezes. Este efeito não pôde ser relacionado a menor acesso ao sistema de atenção médica, ao tipo de tratamento ou a outros fatores usuais de risco para doença coronariana. De acordo com os autores, a insegurança econômica existente entre as pessoas de baixa escolaridade seria a causa mais importante da incapacidade desses doentes de enfrentar situações de perigo. Por outro lado, ao contrário do que se procura fazer crer - por exemplo, as doenças dos executivos - são justamente as pessoas de nível social mais baixo que encontram na vida mais situações negativas e as que sofrem mais conflitos internos e externos, submetendo-as a maior risco quando em presença de experiências dolorosas, diminuindo, portanto, sua resistência nos casos de agressão por doença66. LOWN, B. e cols. - Neural and psychologic mechanisms and the problem of sudden cardiac death. Am. J. Cardiol., 39: 890, 1977.. Este estudo confirma um anterior77. OBIER, K. e cols. - Predictive value of psychosocial profiles following acute myocardial infarction. J. Nat. Med. Assoc., 69: 59, 1977., em 57 pacientes infartados de baixo nível sócio-econômico, que evoluíram fatalmente, sugerindo a relação da mortalidade com condições de má adaptação familiar, econômica e social.

Reproduz-se assim, mesmo no plano individual, o que se verifica nos planos regional ou nacional, com um a superposição nítida entre a situação sócio-econômica e as condições de vida.

II

O sistema de saúde de uma determinada área ou país depende basicamente da estrutura política da sociedade e das relações de poder entre grupos e instituições. Contudo, existem variáveis que não impede m que regimes de estruturas econômica e politica diversas acabem evoluindo para um mesmo sistema de saúde.

Há um relatório aprovado em 1973 pela Assembléia Mundial de Saúde relevante sobre este aspecto: “The link between health service and political structure is not so intimate that the health service cannot change separately and independentely with in most socio political systems”88. WORDL HEALTH ORGANIZATION - Organizational study on methods promoting the development of basic health services (Anexo II). Geneve, 1973..

Neste particular, no Brasil, o prof. Ernani Braga acaba de fornecer um subsidio importante ao afirmar: “Independentemente da estrutura ou ideologia política, a maioria dos países do mundo caminha para a adoção de sistemas de saúde coordenados pelo Estado”99. BRAGA, E. - O problema saúde no Brasil. Palestra proferida na Universidade de Brasília, 1978..

A própria Organização Mundial da Saúde através da análise comparativa dos sistemas de saúde vigentes em diferentes nações de desenvolvimento econômico variado mostrou, tendo por indicador a taxa de mortalidade infantil, que em nações de índice econômico semelhante e também de investimentos materiaisna área de saúde comparáveis, os indicadores de saúde variavam acentuadamente segundo o modo pelo qual a assistência médica e a medicina preventiva eram distribuídas e executadas.

Tornam-se, portanto, descabidas as teses que advogam a privatização do setor saúde, admitindo que a estatização é um assunto genérico, não podendo ser tratado especificamente.

III

Um dos grandes dilemas atuais da nossa medicina é limitar e dirigir o crescimento dos recursos humanos de modo a tornar a formação de médicos compatível e aceitável para a sociedade, a população e a própria profissão médica.

O Brasil dispõe atualmente de uma rede de 75 escolas médicas. Os fundadores dessas escolas e seus sucessores são altamente treinados nas chamadas Ciências Básicas ou Clínicas; os concursos de cátedra visavam e ainda visam a selecionar os mais aptos tecnologicamente. Reproduz-se a mesma seleção que se verifica em relação aos alunos, ou melhor, que começa desde a época de aluno: quem acumula ciência, tecnologia e títulos no campo estritamente limitado das ciências básicas ou clínicas ganha o lugar e até a cátedra. Praticamente, nenhum professor tem conhecimentos nas áreas da Sociologia ou da Psicologia; poucos se preocupam com a interligação entre a sua prática e os problemas econômicos e sociais. São esses mesmos professores que traçam os objetivos do ensino, que organizam os currículos, comandam as disciplinas e julgam o valor e a orientação das pesquisas. A compreensão e o interesse pelos problemas sócio-econômico-culturais e pelos aspectos psicológicos da medicina podem ser enfatizados em uma ou outra aula, mas não há uma abordagem global dos problemas que se refletem na saúde nas diferentes comunidades do pais. Mesmo nas poucas escolas que têm programas de medicina integral ou comunitária, estes não são suficientemente relevantes a ponto de servirem de modelos de sistemas racionalizados; sua eficácia é meramente simbólica. Os poucos hospitais universitários, mantidos com dificuldades imensas, sob a pressão dos professores, tendem a expandir seus serviços subespecializados e os mesmos professores se afastam não só dos serviços comunitários, mas até dos ambulatórios que subestimam e pelos quais sequer se julgam responsáveis.

Era e é “natural”, portanto, que a excessiva massa de médicos que se forma, passando por essa máquina educativa, procure exercer a profissão em instituições assemelhadas ao local onde se formaram e que se sintam incapacita dos de enfrentar filas de doentes ou problemas para os quais não contam com grande apoio técnico.

As novas escolas que se criaram, algumas carentes de mínimos requisitos em termos de recursos materiais e humanos, não produziram, até hoje, “o médico que necessitamos”, seguem um currículo que se destina ao atendimento individual das elites, são influenciadas por teorias, que Candau chama de “imperialismo cultural” - a princípio europeu, hoje, norte-americano, ditados por professores muitos dos quais formados em residências e pós-graduação nos Estados Unidos.

Em resumo: foram médicos para ontem, competentes técnicos e especialistas, que tiram os primeiros lugares nos concursos públicos, mas que não estão preparados para atender as necessidades de saúde da população.

A expansão da produção de médicos no Brasil resultou não apenas do crescimento da rede médico-educacional, mas também do aumento global de vagas na maioria das escolas. Em 1970, formamos 3.306 médicos e, em 1980, deveremos formar 9.109. Em 1970, o recenseamento de médicos era de 47.080 e, dez anos depois, será de 101.495. Ainda em 1970, a relação médico/habitante era de 1:2.349 e, em 1980; será de 1:1.212, atingindo-se em 1987 a perseguida proporção de 1:1.000 habitantes 1010. SACRAMENTO, E. - O médico brasileiro esse desconhecido. Res. méd., 7: 21, 1978.. Contudo, o significado destas relações deve ser contemplado diante de taxas como a de 1:419 (Rio de janeiro), 1:442 (Brasília), 1:4.188 (Acre) ou 1:4.083 ( Maranhão); esta tendência ao acúmulo de médicos nas áreas mais desenvolvidas só tende a se agravar como conseqüência da concentração de renda.

Por outro lado, o número de especialistas predomina. Há apenas 15% de pediatras e 12% de ginecologistas e obstetras. O número de cardiologistas é o dobro do de cirurgiões-gerais. Em conjunto, os médicos que chamaríamos de atendimento primário (clínicos gerais, pediatras, ginecologistas e obstetras) representam apenas 58% do total, mas ainda assim esses dados são otimistas, uma vez que muitos subespecialistas estão registrados como clínicos gerais e já existe razoável proporção de pediatras exercendo uma limitada especialização dentro de seu campo.

A maioria dos médicos e dos estudantes no Brasil tem sua origem na chamada “classe média alta”; há uma representação muito limitada da “classe média baixa” e das “classes trabalhadoras”. Mesmo os provenientes destas, procuram através da profissão uma possibilidade de alteração de “status” econômico e social. Não é de estranhar, portanto, que a maioria dos estudantes de medicina tenha um comportamento “idealista” nos primeiros anos de estudos, lutando por uma medicina adequada ás nossas realidades sociais, mas evoluindo para uma posição “prática” nas últimas séries, exigindo, por exemplo, o internato especializado.

A principal sedução é: ganhar mais dinheiro, com menos trabalho; isto parece ocorrer nas especialidades e subespecialidades. Ou o medo de que em futuro próximo, o mercado fique tão dividido que só os especialistas poderão trabalhar em serviços especializados: só os cardiologistas ingressarão nas unidades coronarianas, só os pneumologistas em centros de terapia intensiva, só gastroenterologistas realizarão biópsias hepáticas. O medo é racionalizado com a lógica de que a subespecialização confere a quem a possui maior capacidade cientifica e maior potencial de pesquisa, conseqüentemente maiores ganhos materiais e, apesar dos nobres ideais dos primeiros anos, a especialização e sua racionalização prevalecem nos últimos anos do curso.

Em relação a raciocínios com base em dados numéricos, convêm desmascarar a correlação entre saúde e total de médicos. Nos Estados Unidos, a relação médico/habitante é de 1,5:1.000; esta taxa os deixa em inferioridade em relação a União Soviética, Bulgária, Itália e Argentina, países que dispõem de mais médicos para menos habitantes em termos relativos. Contudo, os indicadores de saúde e a distribuição da assistência médica são comprovadamente melhores nos Estados Unidos. Por outro lado, a Holanda com 1,7 médicos para cada 1.000 habitantes apresenta letalidade muito inferior a países com muito mais médicos. Finalmente, com mais um dado adicional, o Estado de Nova York com o mais elevado índice médico-habitante do mundo tem morbidade e mortalidade superiores às dos estados da área das Montanhas Rochosas, onde os médicos não são tão numerosos.

Nos países considerados em desenvolvimento intermediário - renda per capita entre 101 e 647 dólares - o gasto, por habitante, de 10 dólares em medicina preventiva faz cair a mortalidade infantil em 3,2%. Para cada milhão de habitantes, necessitaríamos um acréscimo de 300 médicos para reproduzir o mesmo efeito 1111. ELLING, R.H. e col. - Selection of contrasting national health systems for interdepth study, Inquiry, 12: 25, 1975..

A formação de maior número de médicos e, principalmente, a formação de maior número de especialistas resulta em estímulo ao desenvolvimento de atividades desnecessárias e em diminuição da produtividade individual e portanto em aumento de custos. Já se torna ocioso falar do imenso número de exames, cirurgias, internações e procedimentos desnecessários que oneram o sistema de atenção médica no Brasil.

O QUE DEVE SER FEITO COM URGÊNCIA:

  1. Ao nível do Ministério da Educação e Cultura: desestimulo à expansão de vagas nas escolas médicas e interdição da autorização para funcionamento de novas escolas;

  2. Ao nível de professores e alunos: maior dedicação aos programas de cuidados primários e uma reformulação completa dos objetivos e da prática;

  3. Ao nível da escola médica: uma continuidade dos programas de pesquisa mesmo se em especialidades, mas um controle “anticoncepcional” do desenvolvimento das especialidades e subespecialidades;

  4. Ao nível do INAMPS: um reajustamento de prioridades de modo que o sistema de remuneração - fixo ou não - e o sistema de organização do trabalho não favoreçam os especialistas em detrimento dos clínicos gerais.

  5. Ao nível do Governo: uma compreensão do papel da escola médica - fonte nacional de recursos para a saúde - requerendo não só recursos suficientes para desenvolver a qualidade de seu projeto educacional, mas um vínculo muito mais estreito com os órgãos oficiais de saúde: INAMPS e Ministério da Saúde.

IV

Em relação à organização do sistema de saúde, a Lei 6.229, de 17 de julho de 1975, manteve a dicotomia histórica, geográfica, educacional e, sobretudo, financeira entre os serviços de saúde pública - chamados a partir da VI Conferência Nacional de Saúde de serviços de atendimento às necessidades não sentidas - e os serviços de medicina curativa - chamados de serviços de atendimento às necessidades sentidas. Os primeiros, na área do Ministério da Saúde, deverão receber em 1979 uma verba em torno de 10 bilhões de cruzeiros; a medicina curativa, na área do Ministério da Previdência e Assistência Social, deverá ter uma disponibilidade em torno dos 100 bilhões de cruzeiros, ou seja, dez vezes mais.

Para os adeptos desta divisão, cumpre relembrar sempre: OS GASTOS EM MEDICINA PREVENTIVA E NA RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS BÁSICOS DA VIDA DÃO UM RETORNO MUITO MAIOR DO QUE OS GASTOS EM MEDICINA CURATIVA.

Para ilustrar a observação poderíamos dizer que o custo para manter um paciente em hemodiálise periódica é de Cr$ 500.000,00 por ano; com o mesmo dinheiro, poderíamos evitar 100 a 150 mortes precoces por causas conhecidas entre 0 a 18 anos, ou ainda, 210 a 300 mortes até o quinto ano de vida1212. GROSS, R. - Cost benefit analysis of health service. Acad. Pol. Soc. Sci., 399: 98, 1972.:

Por outro lado, não se deve esquecer que a denominada medida preventiva nasceu da medicina clínica. Em 1892, um obstetra, Pierre Boudin, fundou no Hospital La Charité de Paris um programa pedindo às mães que trouxessem ao Hospital seus filhos periodicamente. Com isso, observou que a mortalidade infantil poderia ser reduzida caso a criança fosse vista pelo médico com mais freqüência independentemente de apresentar sintomas. Oitenta anos depois, em 1972, o Governo da França determinou que as mães devem levar seus filhos ao médico aos 8 dias, 9 meses e aos 2 anos de idade (13). A partir dessa obrigação, verificou-se que mesmo pais de escolaridade acima da primária deixavam de reconhecer sintomas de 10% das doenças graves do sistema nervoso, 98% de doenças otorrinolaringológicas e 85% das doenças respiratórias. No caso da surdez infantil, 50% dos pais não a percebiam. Assim, as “necessidades sentidas” não eram sentidas e em 10 % dos casos as crianças careciam de cuidados urgentes sob pena de comprometimento da vida futura. Com este programa, o diagnóstico precoce da surdez trouxe para a França uma economia anual de mais de 50 milhões de dólares e o diagnóstico precoce da subluxação, uma economia de 2.000 dólares por caso detectado.

A separação entre necessidades sentidas e não-sentidas é, portanto, completamente artificial, inócua, sem nexo e antieconómica, porque nada impede que medidas preventivas - o aconselhamento, por exemplo - possam ser tomadas durante uma consulta “curativa” ou que durante atividades de vigilância, epidemiológica se preste à população um mínimo de cuidados médicos.

Nos últimos anos, o Governo decidiu. investir intensamente no setor da assistência médica, a cargo da Previdência Social. Isto se traduziu, em 1978, por cerca de 150 milhões de consultas médicas e por 7 milhões de internações e em gastos crescentes que devem atingir mais de 40 bilhões de cruzeiros. Deve ser recordado que, em 1975, gastou-se 11 bilhões e em 1977, cerca de 30 bilhões de cruzeiros.

A concentração desses investimentos é feita com a intenção de aumentar o acesso da população ao sistema de atenção médica. O grande problema é saber o quanto dessa ampliação resultará em benefício da saúde do povo, ou em outros termos, o que esperar em matéria de saúde deste capital investido.

A experiência de outros países talvez traga alguns subsídios para esclarecer a questão. Nos Estados Unidos, nos últimos 25 anos, a expansão dos recursos destinados à assistência médica foi imensa, passando de 25 dólares per capita em 1953 para mais de 600 dólares no ano passado. Contudo, os indicadores de saúde não acusaram respostas significativas. A esperança de vida pouco se alterou. Em termos de longevidade, aquele país continua nos últimos 20 anos, a ocupar o 25.o lugar entre os demais países; sua taxa de mortalidade situa-se num modesto 19o lugar, a despeito de em termos de gastos absolutos, por habitante e por PBI destacar-se em 1o lugar, afastado dos demais. A Inglaterra, gastando em saúde assistencial por habitante a terça parte do que fazem os americanos, ocupa o 6o lugar nas escalas de longevidade, enquanto a Alemanha Ocidental, destinando per capita quantia quase idêntica a dos Estados Unidos, permanece no 16o lugar.

A abrangência e amplitude do INAMPS crescem a cada dia e pode ser dito que atualmente mais de 75% da nossa população a ele recorre. Só ficam à parte: a elite econômica, que para os casos comuns se utiliza de profissionais autônomos que formam uma rede cada dia mais precária - mesmo assim nas grandes catástrofes (hemodiálise), grandes cirurgias (pontes de safena) se vale do INAMPS -, os militares, os funcionários estaduais e os marginais da Previdência que ainda assim podem ser socorridos através do Plano de Pronta Ação. A abrangência tende à universalidade, mas o atendimento é precário em sua essência porque se baseia numa política de atendimento episódico, só socorre o doente durante a crise o que, na realidade, é uma forma ineficiente de assistência. Há finalmente o perigo de que esse investimento represente, como tem acontecido em outros países, uma política eventual para fazer frente aos clamores da sociedade relacionados com a baixa renda e com as dificuldades econômicas crescentes. Esse incremento, por um lado, reduz a legitimidade da crise e, por outro, restaura a confiança de que o sistema pode atender às necessidades básicas do povo. Assim, nos Estados Unidos, os ciclos de preocupação política voltados à atenção médica têm sido paralelos a ciclos de intenso descontentamento popular 1515. NAVARRO, V. - Social class, political power and the state and their implication medicine. Soc. Sci. Med., 10: 437, 1976. e, recentemente, o ex-ministro Roberto Campos, depondo sobre o Governo Castello Branco, referiu-se à ampliação da Previdência Social como uma forma indireta de fazer face à determinação de não aumentar os salários1616. CAMPOS, R. de O. - Revista VEJA, 11 de dezembro de 1978..

Um outro objetivo desse investimento é proteger e reforçar a área privada, bastando dizer que o INAMPS optou nos últimos anos por comprar mais de 70% de seus serviços nas instituições particulares, sem qualquer plano preestabelecido de hierarquia de prioridades, sem regionalização, sem racionalização, sem racionalidade. Reforça-se assim o chamado “complexo médico-industrial” em que a base é o lucro e que beneficia especialmente quatro setores: a indústria farmacêutica, a indústria de equipamentos, os proprietários de casas-de-saúde e de empresas médicas e os próprios médicos, que recebem por serviços prestados.

Em relação à indústria farmacêutica, todos conhecem as críticas que se fazem a interferência que elas exercem sobre a educação médica de graduação e continuada, aos gastos em propaganda direta e indireta e à política de fixação de preços e mercados. Em artigo recente, Kunin1717. KUNIN, C. M. - Clinical investigation and the farmaceutical industry. Ann. Int. Med., 89 (part. 2): 842, 1978. mostra corno os laboratórios de produtos farmacêuticos promovem seus produtos procurando influenciar sutilmente os hábitos de prescrição dos médicos. O objetivo a nível dos estudantes é de criar confiança na eficácia da medicação por drogas; oferecem amostras e brindes, livros, equipamentos, visitas às fábricas e até módicas bolsas. Já em relação ao corpo médico permanente dos hospitais, o objetivo é desenvolver confiança em produtos específicos; além dos atrativos destinados aos estudantes, acrescentem-se amostras para uso em pacientes, cuidadosos anúncios inseridos nas revistas técnicas, separatas, ajudas para comparecimento a congressos, financiamento para pesquisas de resulta­ dos previamente óbvios. Quanto ao médico prático, o objetivo é estabelecer a imagem de que há uma finalidade comum que liga e garante a sobrevivência do médico e da indústria, uma espécie de mútua dependência; há uma ênfase especial no contato e camaradagem com os propagandistas, além de presentes como blocos, agendas, receituários, adornos para casa ou consultório, etc.

Esta política de infiltração avança a nível de hospitais e sociedades médicas com o objetivo de conquistar a “boa vontade” para fácil entrada dos representantes da firma e, assim, facilita-se a vinda de conferencistas em geral, transmitindo a mensagem dos produtos da indústria que os emprega -, ajuda para realização de congressos, do nativos para fins educacionais, filmes, livros - estes também sutilmente demonstrativos das vantagens de produtos - e remédios gratuitos, em geral “novos” ou muito caros, para o tratamento de certos doentes. Quanto ao grande público, o objetivo é elevar a expectativa pela ação de novas drogas, obtida por novos lançamentos e com artigos sobre tais lançamentos na imprensa leiga, criando uma atmosfera favorável a que os pacientes exijam a prescrição das drogas supostamente novas.

Os professores de medicina são influenciados para que influenciem os estudantes e os médicos sob sua supervisão. O método lhes financia estudos sobre as novas conquistas terapêuticas, dá suporte para pesquisas orientadas, ajuda viagens para congressos internacionais. Os médicos passam a ser cativados para os novos produtos e as críticas são obscurecidas; há o anúncio direto em revista - que vivem sem assinantes, apenas com a verba da publicidade; são comuns os simpósios sobre as novas drogas e os artigos pseudocientíficos sobre a eficácia de determinados produtos. Finalmente, os próprios laboratórios de análises clínicas são envolvidos para a utilização de antibióticos que teriam uma ação mais eficaz sobre os gérmenes.

Um exemplo marcante da propaganda direta e indireta para influenciar o meio médico e não-médico foi a recente campanha contra a hipertensão arterial, quando os laboratórios interessados dispenderam quantias fabulosas para obviamente tirarem proveito com o aumento do receituário de anti-hipertensivos. Os estudos da epidemiologia da hipertensão já demonstraram sobejamente que tais métodos de detecção de casos são absolutamente inúteis e inócuos e que a doença tem raízes sociais e etiológicas que não se resolvem com a simples prescrição de drogas.

Nesta mesma linha, a indústria farmacêutica age na indução de suposta eficácia e inocuidade das drogas sem que um controle real seja exercido sobre os efetivos benefícios finais de seus produtos. Neste particular, há centenas de exemplos de drogas colocadas em uso e, a seguir, evidenciadas como deletérias.

Os centros de tratamento intensivo, as unidades coronarianas, os complexos aparelhos de raios X, a tomografia computarizada, as angiografias renais, as cineangiocardiografias são procedimentos de custo e manutenção elevadas. Cresce a discussão a respeito da eficácia de tal aparelhagem ou procedimentos e um deles, por exemplo, a angiografia renal para controle de hipertensos já foi abandonada por inútil, ap6s gastos imensos. A questão quanto a maior sobrevida de infartados após a realização do implante de pontes de safena é hoje uma controvérsia que atinge inclusive o grande público.

Naturalmente, o único meio de conhecer a eficácia destes recursos seria sua utilização apenas nos hospitais próprios do INAMPS, nos universitários e nos demais oficiais. Infelizmente, o Ministério da Previdência não remunera tais serviços nos hospitais universitários e tal tecnologia se concentra nos hospitais privados, onde antes de se testar o método ou aparelho, o objetivo é amortizar o custo.

O setor das casas-de-saúde privadas é outro que merece atenção pela precariedade das instalações e pela desonestidade. Há pouco, 6 hospitais privados na área de São Paulo foram sumariamente descrenciados por desonestidade.

Finalmente, em relação ao atendimento do médico, estimula-se a medicina individualista ou o domínio da medicina cientifica que estimula o tratamento da doença no individuo como problema individual e não como problema social, que mereceria uma abordagem coletiva. A ciência médica seria assim uma ciência individual, baseada em gradientes de excelência, quer na prática, quer na pesquisa e na qual os médicos constituem uma elite dominante, a única a decidir nos casos de saúde/doença. Dentro dessa filosofia, estimula-se o pagamento por serviços prestados - ou por U.S. - que dá lugar a uma avalancha de serviços desnecessários dá ainda ao médico um cheque cm branco para a sua ação, pois no cômputo geral em que participam - o segurado, o hospital, a fonte financiadora (em geral, o INAMPS) e o médico só este último tem a decisão sobre remédios, exames, internações, cirurgias.

V

Diante deste quadro é difícil esboçar a tendência para um futuro próximo ou mesmo mediato. Contudo, não é difícil prever que advirão importantes mudanças, porque as atuais estruturas não atendem às necessidades da sociedade, são demasiado caras, superando às nossas possibilidades econômicas.

Algumas medidas que deveriam merecer um estudo mais aprofundado seriam as seguintes:

  1. criação de um sistema nacional de saúde, iniciado com a união dos institutos no INPS, que teve seqüência com o INAMPS e deverá evoluir para a unificação total de todos os órgãos de saúde quer sejam da previdência, dos estados, do Ministério da Saúde. A pulverização na administração dos serviços de saúde além de elevar os custos dificulta a racionalização e a regionalização, o estabelecimento de prioridades e o aumento da cobertura.

  2. restringir a obtenção de lucro na prestação da assistência médica, trazendo gradativamente para a esfera governamental as casas-de-saúde privadas e extinguindo-se a modalidade de pagamento por U.S.

  3. privilegiar um formulário nacional de drogas que poderia ter base em estudos já realizados pela CEME.

  4. controle centralizado dos equipamentos sofisticados existentes e em instalação, estabelecidos critérios de regionalização e de prioridades.

  5. implantação de um sistema de financiamento de assistência médica baseada em taxação progressiva da renda individual e não por contribuições autolimitadas ou voluntárias.

Trata-se de um programa mínimo, com riscos evidentes de distorções, alterações administrativas e excessiva concentração de poderes. De qualquer forma, acreditamos que caso se pretenda evoluir da atual situação para um plano mais adequado às necessidades nacionais, alguns desses passos deverão ser dados. Talvez os riscos sejam compensadores.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1979
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