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O ensino médico no Brasil está mudando?

Is medical education changing in Brazil?

Resumo:

A efetividade das mudanças na educação no Brasil é discutida a partir das teorias de currículo. A primeira parte apresenta um breve resumo das teoria de currículo - dos primeiros estudos do início do século XX nos Estados Unidos até as perspectivas críticas dos anos 70 em diante na Europa. Representadas pelos trabalhos de Althusser, Apple e Giroux, entre outros, as abordagens críticas do currículo revelaram as relações entre poder político e conhecimento escolar, currículo e reprodução social. Na segunda parte a autora discute de que forma alguns parâmetros, como as novas metodologias de ensino e a integração de disciplinas, vêm sendo considerados isoladamente como indicativos de mudanças no ensino médico sem que sejam explicitados os referenciais teórico e político mais amplos que fundamentam essas propostas.

Descritores:
Educação médica - tendências

Abstract:

The author discusses the effectiveness of changes in medical education in Brazil based on theories focusing on the curriculum. The first section presents a brief review of such theories, ranging from the first studies in the early twentieth century in the United States to the emergence of critical perspectives in Europe in the 1970s. Represented by such authors as Althusser, Apple, and Giroux, critical approaches to the curriculum itself, and social new teaching methodologies and integration of courses have been considered isolated indications of changes in medical education, without a full analysis of the underlying theoretical or political principles of such proposals.

Descriptors:
Education; medical-trends

INTRODUÇÃO

Nos últimos dez anos, o ensino médico no Brasil tem sido objeto de intensas discussões visando conhecer a diversidade das condições em que ocorre, avaliá-lo por critérios construídos por seus agentes sociais e propor mudanças. Desse modo, foi a estratégia adotada pela Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação das Escolas Médicas (Cinaem), que se constituiu no agente organizador e, porque não dizer, provocador das discussões, estratégia que também vem sendo avaliada durante os congressos anuais da Associação Brasileira de Educação Médica (Abem).

O quadro das escolas médicas encontrado na fase de levantamento de dados da Cinaem mostrou o que muitos já sabiam empiricamente: a maioria dos cursos no Brasil divide-se em ciclos básico, clínico, pré-clínico e internato, com ensino departamental e pouca integração de conhecimentos; o modelo de ensino é centrado na doença, sem visão integradora do indivíduo e da sociedade; a avaliação do aluno privilegia os conhecimentos técnicos e em menor grau as habilidades e a relação com o paciente; há baixa titulação docente; predominam as atividades docentes no ensino e na assistência e em menor proporção na pesquisa; especialização precoce do aluno, decorrente principalmente da associação entre a escola médica e o hospital universitário, cuja organização se baseia na divisão da prática por especialidades e subespecialidades, na utilização acrítica de tecnologia e na concepção de prática da medicina liberal11. Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação das Escolas Médicas. Avaliação das Escolas Médicas no Brasil. Brasília, 1994..

Em momento posterior, as análises passaram a centrar-se na questão da formação do docente de medicina, vista como fator limitante à mudança e/o u à melhoria da qualidade no ensino. No entanto, o docente de medicina, como a maioria dos docentes universitários, tem seu ingresso na docência sem passar por qualquer formação didática, com exceção de disciplina eventualmente existente na pós-graduação. Em geral, os bons docentes referem-se a modelos de bons docentes que tiveram em seus tempos de faculdade e que procuram reproduzir. Os alunos, por seu lado, referem-se aos bons docentes como aqueles que possuem nítido interesse em ensinar; estabelecem boas relações com seus alunos: sabem selecionar o conteúdo de ensino relevante para a formação de graduação e se portam de forma compassiva frente aos pacientes e ética com seus pares. E, claramente, há uma boa dose de paixão embutida nisso22. Balzan NC. A formação do professor universitário em nível de excelência: alcance e limites. VIII ENDIP. Painel: “Discutindo a formação do professor no limiar do século XXI”; 07-10 maio, 1996; Florianópolis, UFSC, 1996..

A mudança no ensino vem sendo buscada pelas escolas médicas no Brasil a partir de conceitos vinculados às chamadas teorias tradicionais do currículo: objetivos de ensino, aprendizagem, avaliação, metodologia, didática, organização, planejamento, eficiência. Esses conceitos contra põem-se aos conceitos enfatizados pelas teorias críticas e pós­ críticas do currículo, segundo a abordagem de Silva33. Silva TT. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 1999.. Nessa abordagem, as teorias críticas do currículo enfatizam conceitos de ideologia; reprodução cultural e social; poder; classe social; capitalismo; relações sociais de produção; conscientização; emancipação e libertação; currículo oculto, resistência. As análises das teorias pós-críticas trazem, por seu lado, conceitos como identidade; alteridade; diferença; subjetividade; significação e discurso: saber-poder: representação; cultura; gênero; raça; etnia; sexualidade; multiculturalismo.

Explicitar em primeiro lugar as diferenças conceituais entre as teorias de currículo com que se está tratando pode ajudar a responder à pergunta se o ensino médico está mudando no Brasil, para em seguida analisar criticamente de que forma alguns parâmetros - entre os quais as novas metodologias de ensino e a integração de conhecimentos - vêm sendo considerados isoladamente como indicadores de mudanças no ensino médico sem que sejam explicitados os referenciais teórico e político mais amplos que fundamentam essas propostas.

Origens do Campo de Estudo do Currículo e as Teorias Críticas

O campo de estudo do currículo nasceu nos Estados Unidos na segunda década do século XX a partir da intensificação da educação de massas e do processo de industrialização e urbanização. A primeira publicação neste campo data de 1918 (The curriculum, de Bobbitt), e nela o modelo institucional do currículo escolar era a fábrica, e sua inspiração teórica, a administração científica do taylorismo. No esquema de Bobbitt, o processo educacional era o de input e output fabris, com objetivos, métodos e procedimentos especificados e resultados mensuráveis. Nesta perspectiva, a principal questão do currículo era sua organização, e o conceito central, o de desenvolvimento curricular. O estabelecimento de padrões também era fundamental, visto por Bobbitt como um “processo de moldagem”33. Silva TT. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 1999..

Na mesma década, é publicado nos Estados Unidos o Relatório Flexner. Nesse estudo, encomendado pela Carnegie Foundation, seu autor realizou uma avaliação das mais de cem escolas médicas existentes na época nos Estados Unidos e Canadá. Após concluir por um quadro preocupante em relação ao ensino, qualificação docente, heterogeneidade dos conteúdos e prática fora dos hospitais, Flexner fez recomendações que acabaram por se tornar paradigma para o ensino superior, principalmente nas carreiras biomédicas. Embasado no sucesso do modelo da universidade alemã de Humboldt, com ensino integrado à pesquisa e a crescente especialização por disciplinas, Flexner propôs a divisão do curso em disciplinas básicas e clínicas, a criação dos departamentos e o sistema de créditos.

Em 1949, com a publicação Princípios básicos de currículo e ensino, de Tyler, consolida-se o modelo proposto em 1918 por Bobbitt, dominando este campo até o final da década de 80. Para Tyler, quatro questões básicas deveriam ser respondidas pelo desenvolvimento do currículo: “1. que objetivos educacionais deve a escola procurar atingir?; 2. que experiências educacionais podem ser oferecidas que tenham probabilidade de alcançar esses propósitos?; 3. como organizar eficientemente essas experiências educacionais?; 4. como podemos ter a certeza de que esses objetivos estão sendo alcançados?" (currículo - ensino e instrução - avaliação).

Esta perspectiva tecnicista e fiscalizadora do currículo permeou as ações dos gestores da educação nos Estados Unidos e assim chegou a países como o Brasil, significando a reprodução de modelos e esquemas provenientes de outros contextos, obedecendo a outros pressupostos e necessidades. No Brasil, a reforma universitária de 1968, que extinguiu as cátedras, criou os departamentos e adotou o sistema de créditos, foi muito influenciada pelo modelo norte-americano pós-Flexner44. Moreira AFB. Currículos e programas no Brasil. Campinas: Papirus, 1995..

Somente a partir da década de 70 esse campo de estudo viria a ser questionado por autores das mais diversas tendências filosóficas, destacando-se Louis Althusser, Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, Michael Young, Michael Apple e Henry Giroux. No Brasil, é notável a obra de Paulo Freire; no entanto, em face de seu exílio, somente nos anos de redemocratização sua obra foi descoberta para os estudos sobre o currículo no País.

De que forma essas teorias críticas abordaram os fundamentos educacionais sobre o currículo? Pode-se dizer que elas inverteram esses fundamentos. A teoria tradicional tomava o status quo a referência desejável, ocupando-se, portanto, das formas de organização e elaboração do currículo, restringindo-se à atividade técnica de como fazer o currículo. As teorias críticas, por seu lado, questionam precisamente a origem do currículo, responsabilizando o status quo pelas desigualdades sociais, denunciando e/ou problematizando aquilo que o currículo faz.

O ensaio A ideologia e os aparelhos ideológicos de Estado, de Althusser, de 1970, apresentou a base para as críticas marxistas sobre educação, mostrando a conexão da educação com a ideologia. O essencial na argumentação de Althusser é a manutenção da sociedade capitalista por meio da reprodução do aparato econômico (força de trabalho, meios de produção) e do aparato ideológico, entre estes a religião, a escola, a família e os meios de comunicação. A escola é central, pois atinge praticamente toda a população por um período prolongado de tempo.

A transmissão da ideologia pela escola, para Althusser, se dá por meio do currículo, pela seleção de conteúdos mais apropriados às diferentes classes sociais e, sobretudo, pela transmissão, por meio das matérias escolares, de crenças que apresentam os arranjos sociais existentes como bons e desejáveis.

Apple é o autor mais claramente identificado com o início de uma crítica neomarxista às teorias tradicionais do currículo e ao seu papel ideológico. Os trabalhos de Althusser e Bourdieu estabeleceram as bases de uma crítica radical da educação liberal, porém sem tomar como centro do seu questionamento o currículo e o conhecimento escolar.

Tomando como ponto de partida os elementos centrais da crítica marxista da sociedade e da dinâmica da sociedade capitalista em torno da dominação de classe, Apple apontou o vínculo entre reprodução cultural e reprodução social, mostrando a relação entre a forma como a economia está organizada e a forma como o currículo está organizado. Essa ligação não é de determinação simples e direta, e nisso reside a diferença de sua abordagem. Em seu primeiro livro, Ideologia e currículo, de 1979, já havia a preocupação em evitar uma concepção mecanicista e determinista dos vínculos entre produção e educação. Apple procura complementar uma análise econômica com uma abordagem que se apoia solidamente numa orientação cultural e ideológica para entender as formas complexas em que as tensões e contradições sociais, econômicas e políticas são “mediadas” nas práticas concretas dos educadores. O víncu1o entre estruturas econômicas e sociais e educação e currículo é mediado por processos que ocorrem e são ativamente produzidos no próprio terreno da educação e do currículo. Este vinculo é mediado pela ação humana e não pode ser simplesmente deduzido do funcionamento da economia.

Apple recorre ao conceito de hegemonia de Gramsci para enfocar as mediações ideológicas e culturais existentes entre as condições materiais de uma sociedade classista e a formação da consciência dos indivíduos nessa mesma sociedade. Segundo Silva33. Silva TT. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 1999., a respeito das idéias de Apple, “é o conceito de hegemonia que permite ver o campo social como um campo contestado, como um campo onde os grupos dominantes se vêem obrigados a recorrer a um esforço permanente de convencimento ideológico para manter a sua dominação. É precisamente através desse esforço de convencimento que a dominação econômica se transforma em hegemonia cultural. Esse convencimento atinge a sua máxima eficácia quando se transforma em senso comum, quando se naturaliza”.

“O modo como instituições de preservação e distribuição cultural, como as escolas, produzem e reproduzem formas de consciência permite a manutenção do controle social sem que os grupos dominantes tenham que recorrer a mecanismos declarados de dominação” (Roger Dale, citado em Apple, 1982)55. Apple MW. Ideologia e currículo. São Paulo: Brasiliense,1982.. A maneira concreta como o conhecimento oficial representa configurações ideológicas dos interesses dominantes numa sociedade se dá pela organização e seleção do conteúdo feitas pela escola, e para Apple são opções sociais e ideológicas conscientes e inconscientes.

A ação básica indicada pelas idéias dos autores da Nova Sociologia da Educação, em especial Michael Apple, implica “problematizar as formas de currículo encontradas nas escolas, de maneira que se possa desmascarar seu conteúdo ideológico latente”. Além de formular as questões “a quem pertence este conhecimento?”, “quem o selecionou?”, “porque é organizado e transmitido desta forma?”, é também necessário que se busque vincular essas indagações “a concepções diversas de poder social e económico e de ideologias para se ter uma apreciação mais concreta das ligações entre o poder econômico e político e o conhecimento que é tornado acessível (e o que não é tornado acessível) aos estudantes” (destaque meu).

A contribuição de Giroux à análise crítica sobre o currículo ocorre a partir dos anos 80, e é o autor que mais se aproximou das idéias da chamada Escola de Frankfurt, por utilizar-se, em sua teoria, de conceitos desenvolvidos por Horkheimer e Adorno. Esta escola de pensamento originou-se de um grupo de intelectuais alemães marxistas não ortodoxos que se propunha, entre outros aspectos, revitalizar o materialismo dialético, denunciar o caráter de exploração do capitalismo e questionar a instrumentalização da razão. As idéias principais desta teoria foram lançadas na obra Teoria tradicional e teoria crítica de 1937, na qual Horkheimer questiona o conceito de objetividade e de neutralidade cientifica no processo do conhecimento. Para ele, o raciocínio lógico­formal de Descartes não consegue captar a dinâmica histórica dos indivíduos e da sociedade, o que é possível por meio do método dialético66. Horkheimer M. Teoria tradicional y teoria crítica. Buenos Aires: Apontamento, 1974.. Em outro texto, Dialética do esclarecimento, partindo da análise de um artigo de Kant, Adorno e Horkheimer questionam a direção em que a razão conduziu a humanidade. Para eles, a razão kantiana conduziu a um saber técnico e cientifico que produziu a alienação, a repressão e a dominação77. Adorno T, Horkheimer M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zanar, 1985..

A análise de Giroux “ataca a racionalidade técnica e utilitária, bem como o positivismo das perspectivas dominantes sobre o currículo”33. Silva TT. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 1999.. Para ele, essas perspectivas deixavam de levar em consideração o caráter histórico, ético e político das ações humanas e sociais e particularmente do conhecimento. Como resultado, ao apagarem o caráter histórico e social do conhecimento, as teorias tradicionais do currículo, assim como o próprio currículo, contribuíram para a reprodução das desigualdades e das injustiças sociais. Em Teoria e resistência em educação, de 1983, Giroux também procurou mostrar que “existem mediações e ações no nível da escola e do currículo que podem trabalhar contra os desígnios do poder e do controle”, devendo haver um lugar para a oposição, a resistência, a rebelião e a subversão88. Feuerwerker, LCM. Mudanças na educação médica e residência médica no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1998..

Giroux acreditava ser possível “canalizar o potencial de resistência demonstrado por estudantes e professores para desenvolver uma pedagogia e um currículo que tenham um conteúdo claramente político e que seja crítico das crenças e dos arranjos sociais dominantes”33. Silva TT. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 1999.. Aqui novamente surge a influência das idéias dos teóricos de Frankfurt, pois compreende o currículo por meio dos conceitos de emancipação e libertação.

O Ensino Médico e a Crise do Paradigma: Algumas Reflexões

No Brasil, os dados levantados e publicados pela Cinaem, a recorrência dos temas presentes nos encontros de educação médica88. Feuerwerker, LCM. Mudanças na educação médica e residência médica no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1998. e uma análise recente sobre as publicações no campo da educação médica em revista especializada99. Rego S. Cinaem, Raem, PBL. Ensino Baseado em Evidências e Telemedicina: o que falta dizer? Rev. Bras. Educ. Med. 2001; 25: 5-6. são indícios deque uma reflexão mais aprofundada e uma ação efetivamente transformadora do ensino médico ainda estão por serem realizadas.

Um olhar panorâmico sobre o volume de trabalhos apresentados nos últimos anos sobre novas metodologias de ensino adoradas por diversas faculdades de medicina poderia levar ao argumento de que estão ocorrendo verdadeiras revoluções no ensino médico no País. De fato, a grande maioria das reformas curriculares recentemente implementadas em cursos de medicina teve como principal fundamento a promoção de metodologias de ensino centradas no aluno, na resolução de problemas e no aprendizado contínuo, Passado o primeiro momento, entretanto, percebe-se aqui também a adoção acrítica de modelos importados de ensino, desenvolvidos para uma população estudantil dotada de outros padrões educacionais, culturais e etários, inadequados, contudo, à maioria das estruturas universitárias do nosso país. O objetivo explícito desses novos métodos de aprendizagem nos próprios países de origem foi aumentar a eficácia no processo de ensino por meio da integração de conhecimentos e autonomia dos alunos que buscam promover. O critério é, pois, o da eficiência.

Um ponto que não tem merecido destaque nas discussões sobre mudanças no ensino médico é o ingresso no curso de medicina. Inúmeros estudos analisaram as deficiências dos vestibulares, e devem-se ressaltar as experiências alternativas que já vêm sendo realizadas em algumas universidades do País. Uma questão, no entanto, continua intocada: o vestibular não permite avaliar algo importante, a vocação, ou, em medicina, a aptidão e sensibilidade para se dedicar ao bem-estar físico e mental de indivíduos e comunidades.

Na maioria das escolas médicas, o principal critério na definição do ingresso no curso ainda é o das “disciplinas prioritárias”, que pouco variam entre biologia, química e matemática, discriminando toda uma gama de conhecimentos absolutamente necessários a uma profissão que vai lidar essencialmente com vidas humanas.

Assim, matérias como português, filosofia, história, geografia humana e econômica e ciências sociais ainda são consideradas de menor importância na formação dos futuros profissionais médicos. E o único mérito dos alunos ingressantes nas melhores escolas de medicina do País, após anos de estudos árduos e na maior parte em cursinho preparatórios, é o melhor preparo apresentado para respondera um padrão desgastado de questões adotadas nos vestibulares. E, uma vez na faculdade, o currículo médico continua privilegiando a formação técnica, o conhecimento biológico, dissociado dos aspectos históricos, sociais, econômicos e culturais.

Como bem enfatizado em recente publicação sobre os desafios do ensino superior1010. Vercesi A, Hogan DJ, Chambouleyron I, Martinez JM, Arruda JRF, Alves OL, Arruda P, Hoffmann R. A questão do aumento de vagas na Unicamp: idéias para uma reestruturação do ensino de graduação. In, Chambouleyron I, org. Mais vagas com qualidade: o desafio do ensino superior no Brasil. Campinas, Editora da Unicamp, 2001. p.29-39., “formamos físicos e engenheiros [eu acrescentaria médicos] que interromperam no colégio o estudo sistemático da filosofia, da literatura e da sociedade, alijando-os no desenvolvimento futuro do país. Da mesma maneira, formamos sociólogos, historiadores, economistas e humanistas que interromperam no colégio o estudo sistemático dos rumos da ciência e da tecnologia, alijando-os de um debate fundamental sobre os rumos da sociedade contemporânea”.

A influência do mercado de trabalho e da adoção de recursos tecnológicos cada vez mais avançados na prática médica traz reflexos inegáveis para o ensino. A solução para a crise da saúde, no entanto, não será encontrada apenas nos projetos de mudança na educação médica, dependendo muito mais da maneira como a sociedade encara a construção da saúde. Nos dizeres de Feuerwerker88. Feuerwerker, LCM. Mudanças na educação médica e residência médica no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1998., “o processo de produção de alternativas ocorrerá nos dois campos: educação e prática. E os processos de mudança deverão ter um grau de simultaneidade. É parte da dialética das transformações”. Já para Schraiber, citada em Lampert1111. Lampert JB. Currículo de graduação e o contexto da formação do médico. Rev. Bras. Educ. Med . 2001; 25: 7-19. a educação é concebida como instrumento “na medida em que poderá alterar padrões econômicos e sociais, e como produto na medida em que fica condicionada aos padrões de produção existentes”, admitindo a relevância da escola médica como instrumento de formação deum profissional “comprometido com a concepção ideológica de saúde como qualidade de vida”.

O ensino integrado das disciplinas requer um profissional que seja ele próprio um professor-integrador, e este profissional ainda não se encontra nas faculdades de medicina ou mesmo de outras áreas. Os processos de interlocução dos profissionais de diferentes áreas de conhecimento, com o objetivo de configurar novas disciplinas nas quais o ensino se dê de forma integrada, devem passar por uma compreensão do que foi legitimado como disciplinas essenciais que possibilite uma ruptura e uma transgressão das barreiras disciplinares. No entanto, os relatos que temos de experiências vividas nos processos de reformas curriculares onde se buscou a integração de conhecimentos apontam para resultados muito aquém da ruptura necessária. De maneira pouco variada, estas novas disciplinas, normalmente rebatizadas de “módulos” ou “blocos”, constituem uma justaposição dos enfoques de cada professor para o mesmo objeto, o mesmo se dando na avaliação, onde cada área elabora a “sua questão”.

Se a integração de áreas que tradicionalmente compartilham do currículo pleno do curso de medicina ainda esbarra na falta de abertura para o entendimento de outras visões do objeto do conhecimento médico, esta abertura tem sido praticamente inexistente para as ciências humanas e sociais, sem as quais, hoje, não se explica o processo saúde-doença. Esta falta de abertura, por vezes traduzida em verdadeiros preconceitos, provém de uma visão segundo a qual a legitimidade da ciência está diretamente associada à pesquisa laboratorial, avaliada por métodos quantitativos, como se outros campos não tivessem legitimidade científica. Num momento em que se procura dotar o ensino médico de aportes de disciplinas de conteúdo humanístico, há que perguntar até que ponto a medicina está realmente aberta a uma mudança paradigmática desta ordem, aceitando compartilhar com a educação, a filosofia, a sociologia, a história da ciência, a linguagem, apenas para citar algumas, a construção de novos significados para o ensino e a prática médica.

Agradecimento

Ao Prof. Dr. Carlos Alberto Lobão Cunha, pela revisão e sugestões, para fins de publicação do original apresentado ao Prêmio Abem 2001.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1
    Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação das Escolas Médicas. Avaliação das Escolas Médicas no Brasil. Brasília, 1994.
  • 2
    Balzan NC. A formação do professor universitário em nível de excelência: alcance e limites. VIII ENDIP. Painel: “Discutindo a formação do professor no limiar do século XXI”; 07-10 maio, 1996; Florianópolis, UFSC, 1996.
  • 3
    Silva TT. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 1999.
  • 4
    Moreira AFB. Currículos e programas no Brasil. Campinas: Papirus, 1995.
  • 5
    Apple MW. Ideologia e currículo. São Paulo: Brasiliense,1982.
  • 6
    Horkheimer M. Teoria tradicional y teoria crítica. Buenos Aires: Apontamento, 1974.
  • 7
    Adorno T, Horkheimer M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zanar, 1985.
  • 8
    Feuerwerker, LCM. Mudanças na educação médica e residência médica no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1998.
  • 9
    Rego S. Cinaem, Raem, PBL. Ensino Baseado em Evidências e Telemedicina: o que falta dizer? Rev. Bras. Educ. Med. 2001; 25: 5-6.
  • 10
    Vercesi A, Hogan DJ, Chambouleyron I, Martinez JM, Arruda JRF, Alves OL, Arruda P, Hoffmann R. A questão do aumento de vagas na Unicamp: idéias para uma reestruturação do ensino de graduação. In, Chambouleyron I, org. Mais vagas com qualidade: o desafio do ensino superior no Brasil. Campinas, Editora da Unicamp, 2001. p.29-39.
  • 11
    Lampert JB. Currículo de graduação e o contexto da formação do médico. Rev. Bras. Educ. Med . 2001; 25: 7-19.
  • 1
    *Este artigo foi o vencedor do III Prêmio Abem De Educação Médica na categoria “Aluno de Pós-Graduação”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2001

Histórico

  • Recebido
    05 Set 2001
  • Aceito
    25 Set 2001
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