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O que É um Tutor? Representações do Papel em um Grupo de Professores de Medicina durante o Processo de Seleção

What Is a Mentor? Social Representations about the Tutor's Role Among Medical Faculty During the Selection Process

Resumo:

Na seleção de professores da FMUSP para o Programa Tutores foram investigadas, em um subgrupo de candidatos, as representações associadas ao futuro papel de tutor. As respostas foram categorizadas tendo como eixo de análise dois pontos: 1) a simetria ou assimetria na relação tutor-aluno; e 2) a esfera de atuação do tutor (ampla ou puramente acadêmica). Nas associações produzidas, predominaram relações assimétricas, especialmente aquelas referentes a papéis profissionais (orientador e conselheiro) e a papéis afetivo-familiares (principalmente o da figura paterna). Nas associações de caráter relacional simétrico, foram enfatizados os aspectos de vínculo, proximidade, apoio, suporte, disponibilidade e amizade entre tutor e aluno. Aspectos negativos associados ao papel do tutor (disciplina, repressão) foram pouco explicitados pelo grupo como um todo. Não surgiram diferenças estatisticamente significativas entre os candidatos do sexo masculino e do sexo feminino em nenhuma das categorias, mas observou-se uma tendência de os homens se concentrarem mais nos papéis profissionais e 35 mulheres nos papéis afetivo-familiares. As esferas de atuação dos diferentes papéis apresentados explicitaram principalmente ações amplas, isto é, direcionadas tanto à vida acadêmica quanto à vida pessoal.

Palavras-chave:
Tutoria; Papel Profissional; Seleção Pessoal; Educação Médica

Abstract:

In the selection of medical professors for the Tutorial Program at the Medical School of the University of São Paulo (FMUSP), representation about the future role were explored in a subgroup. The social representation given were classified and analyzed through two aspects: 1) the symmetrical or asymmetrical characteristics of the tutor-student relationship and 2) the tutor's area of performance (broad or strictly academic). Asymmetrical relationships prevailed in the associations produced, especially those referring to professional roles (advisor and counselor) and affective-familiar roles (especially the father figure). Symmetrical relationships emphasized proximity support availability, and friendship between tutors and students. There was little mention of negative aspects of the tutor role (discipline, repression). No statistical difference was found between men and women in any of the categories. However, male teachers tended to emphasize professional roles (especially counselor and advisor), while women prioritized affective-familiar roles. In the symmetrical relationships, professors emphasized proximity, support and help. Negative aspects associated with the tutor's role were mentioned less frequently in the group as a whole. The tutor's performance was considered to be broad for most professors, i.e., focused on both academic and personal life.

Key-words:
Mentorship; Professional Role; Personal Selection; Education, Medical

INTRODUÇÃO

Cada vez mais, as escolas médicas reconhecem a necessidade de suporte pessoal e social ao aluno durante o curso.

No processo educacional do futuro médico, vivido muitas vezes de modo solitário pelo aluno, há vários momentos geradores de ansiedade: a chegada à universidade, o grande volume de estudos e conhecimentos a aprender, a distância entre os cursos teóricos e a aplicação clínica, a experiência com a morte e o morrer, a entrada no ambiente hospitalar, os primeiros contatos com pacientes e a escolha da especialidade médica.

Considerando esse contexto, a presença de uma figura de suporte para o caminhar pessoal e profissional do aluno - um tutor ou mentor - tem surgido freqüentemente no cenário da educação médica por meio de propostas denominadas “Faculty Mentoring Programmes"; "Tutoring Systems", "Personal Tutoring Systems” e "Student Counseling Systems”11. Freeman R. Faculty mentoring programmes. Med Educ 2000; 34: 507-508..

O PROGRAMA TUTORES FMUSP

O Programa Tutores FMUSP, em funcionamento desde junho de 2001, tem como objetivo principal estabelecer para os alunos da faculdade a figura de um tutor que os acompanhará ao longo do curso. Por intermédio de encontros periódicos para a discussão e orientação de questões acadêmico-profissionais e pessoais, o programa busca favorecer um vínculo mais próximo e intenso entre professores e alunos, e promover a troca organizada de experiências entre os alunos dos diferentes anos22. Bellodi PL, Martins MA. Projeto Tutores: da proposta à implantação na graduação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Rev HU 2001; 11: 52-58..

O Tutor FMUSP é alguém que:

  • Está disponível para discussões sobre as escolhas do dia-a-dia da faculdade, da futura especialidade e também para questões mais pessoais de cada aluno (orientador, conselheiro);

  • Acompanha a trajetória de cada aluno e conhece os desafios surgidos durante o curso (pessoa próxima, referência dentro da faculdade, ponte entre o aluno e a graduação);

  • Compartilha suas próprias histórias, contando os obstáculos que encontrou ao longo do caminho e como superou os desafios (papel de modelo);

  • Encoraja a assumir riscos e explorar novas oportunidades de aprendizagem (papel suportivo);

  • Encoraja a refletir sobre a experiência e a dividir esses momentos-chave com os colegas (papel reflexivo).

Tutor e Mentor

Nos contextos educacionais americanos e europeus, o termo "tutor" é destinado ao professor que se ocupa de ensinar o aluno a "aprender a aprender", especialmente na abordagem denominada Aprendizagem Baseada em Problemas (Problem Based Learning). Já o termo "mentor" é dirigido ao professor ou profissional mais experiente que guia, orienta, aconselha um jovem no início de sua carreira. O objetivo da relação mentor-aluno vai além da orientação para estudo, e sua função é ampla, compreendendo a conquista tanto dos objetivos do curso quanto dos pessoais11. Freeman R. Faculty mentoring programmes. Med Educ 2000; 34: 507-508..

Existe ainda, em alguns trabalhos, uma terceira denominação, que parece condensar também esses dois aspectos: o personal tutor ou "tutor pessoal"33. Cottrell DJ, McCrorie P, Perrin F. The personal tutor system: an evaluation. Med Educ 1994; 28:544-9..

Na língua portuguesa, tutor e mentor são termos que, muitas vezes, se misturam em seus significados. Nos dicionários, tutor é o indivíduo legalmente encarregado de tutelar alguém, seu protetor e defensor. Em formas alternativas de ensino, é também aquele designado como professor de outros alunos. Tutorar é exercer tutela sobre, cuidar de, proteger, amparar, defender. Mentor, por sua vez, é a pessoa que guia, ensina ou aconselha outra; é um guia, mestre, conselheiro. Mentorear é servir de mentor a44. Ferreira ABH. Novo Aurélio Século XXI. [CD-ROM]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2001..

Por conta disso, provavelmente, a palavra “tutor" vem sendo utilizada nas instituições brasileiras de ensino para ambas as funções - de tutor, propriamente dito, e de mentor-, como ocorre com o tutor da FMUSP.

Em outras palavras, e deixando mais clara essa questão, o tutor FMUSP é, na realidade, a partir do que foi concebido nas diretrizes do programa, um mentor. A adoção do termo "tutor" ocorreu por duas razões: pela não familiaridade das pessoas em geral com o termo “mentor" em nossa língua e cultura e, além disso, pelo fato de não ser possível uma versão do termo mentoring para a língua portuguesa.

Definição do Papel: uma Odisséia

A tentativa de definição dos atributos relevantes para o conceito de mentor é objetivo freqüente em trabalhos da área. A complexidade e diversidade do papel, a pluralidade de suas funções, as diferentes conotações e representações associadas ao termo são inevitavelmente apontadas e geram discussões. Alguns autores preocupam-se bastante com a definição mais precisa do termo, justificando que a falta desta leva a confusões no próprio exercício da tarefa, com reflexos negativos na avaliação desta tanto pelo mentor quanto pelo aluno55. Brad JW. The Intentional Mentor: Strategies and Guidelines for the Practice of Mentoring. Prof Psychol Res Pr 2002; 33: 88-96..

Outros autores, reconhecendo e aceitando a pluralidade inerente ao papel, procuram identificar de que maneira as diferentes funções do mentor estão mais ou menos presentes cm sua prática, e, fundamentalmente, quais delas se correlacionam com a satisfação do aluno e do próprio mentor em sua atividade66. Ramanan RA, Phillips RS, Davis RB, Silen W, Reed JY. Mentoring in Medicine: Keys of Satisfaction. Am J Med 2001; 112: 336-341..

Historicamente, o termo "mentor" tem origem na mitologia grega e foi retirado do clássico A Odisséia, de Homero. Mentor era um sábio e fiel amigo de Ulisses, rei de Ítaca. Quando Ulisses partiu para a Guerra de Tróia, ele confiou a Mentor seu filho Telêmaco e sua esposa Penélope. Mentor foi largamente responsável pela educação da criança, formação de seu caráter, valores e sabedoria de suas decisões. Sua presença era particularmente importante quando decisões práticas eram necessárias ou quando escolhas críticas tinham de ser feitas. Mentor foi uma importante figura de transição na vida de Telêmaco durante sua jornada da infância à maturidade, quando já tomava decisões independentemente77. Loop FD. Mentoring. J Thorac Cardiovasc Surg 2000; S45-48..

O sucesso dessa relação indica a razão pela qual o conceito tem sobrevivido até hoje, e muitos dos traços apresentados por Mentor na Odisséia - amadurecimento, sabedoria, amizade, educação e orientação - permaneceram fundamentais para a definição do papel.

Em medicina, dentro de uma variedade de estilos e de interesses, os mentores têm servido como pontos críticos de referência e provêem algum grau de orientação por meio do exemplo, educação, colaboração, aconselhamento, apadrinhamento e amizade88. Rodenhauser P, Rudisill J, Dvorak R. Skills for Mentors and Protégés Applicable to Psychiatry. Acad Psychiatry 2000; 24:14-27..

Também as diferentes funções de um mentor se entrelaçam, mas, segundo Kram99. Kram K. Improving the mentoring process. Train Dev J 1985; 44:40-42., todas acabam por se concentrar em dois domínios primários: a carreira e o psicossocial. A função "carreira", segundo ele, inclui ajudar na aprendizagem "do caminho das pedras" e a preparar o iniciante para que avance e se desenvolva na carreira escolhida. Envolve treinamento, proteção, assinalamentos desafiadores e transmissão de ética aplicada à profissão. A função “psicossocial", por sua vez, busca estimular e aumentar o senso de competência do jovem, sua identidade e efetividade no papel profissional. Envolve modelagem, aceitação, aconselhamento e amizade.

Vários outros autores11. Freeman R. Faculty mentoring programmes. Med Educ 2000; 34: 507-508.),(66. Ramanan RA, Phillips RS, Davis RB, Silen W, Reed JY. Mentoring in Medicine: Keys of Satisfaction. Am J Med 2001; 112: 336-341. também apontam que um mentor é um parceiro ativo que ajuda o aluno a alcançar seus objetivos tanto pessoais quanto profissionais e que o sistema de mentoring é uma ferramenta útil ao desenvolvimento do aluno como um todo.

A Seleção dos Tutores na FMUSP

O perfil definido para o Tutor FMUSP englobava:

  • Ser docente da universidade ou médico de um dos hospitais-escola e centro de saúde;

  • Ter inserção no ensino de graduação e bom relacionamento com os alunos;

  • Ser disponível para contato com alunos quando necessário;

  • Estar disposto a participar de treinamento inicial e ser supervisionado em sua atuação;

  • Ter horário disponível para uma ou duas reuniões mensais com seu grupo de alunos e uma reunião mensal com seu grupo de supervisão;

  • Apresentar comportamento técnico e ético adequado para ser "modelo".

Como resultado do recrutamento, 364 pessoas se inscreveram para o programa, 238 candidatos compareceram às entrevistas de seleção (realizadas em pequenos grupos), e, destes, 170 foram escolhidos para a fase inicial de implantação e convidados para o treinamento. Todas as especialidades médicas estiveram presentes, e a proporção de candidatos acompanhou a distribuição de gênero presente na instituição como um todo: 75% do sexo masculino e 25% do sexo feminino.

A seleção foi baseada no perfil definido, na concordância do candidato com os objetivos do projeto e em suas atividades na instituição, especialmente quanto ao contato próximo do candidato com os alunos de medicina na graduação.

Expectativas e motivações foram investigadas durante as entrevistas de seleção, assim como, especialmente, em um grupo aleatório de candidatos, as representações a respeito do papel de tutor (mentor) - objeto deste estudo.

METODOLOGIA

Com uso da técnica de associação livre, um subgrupo de candidatos (n =114,84 do sexo masculino e 30 do sexo feminino, correspondente a 48% do total de entrevistados e reproduzindo a proporção entre os gêneros do total de candidatos ao programa) foi convidado a responder, durante a entrevista de seleção, a seguinte pergunta: "O que lhe vem à mente com a palavra TUTOR?".

As respostas obtidas foram categorizadas em classes e sub­classes, e suas freqüências estabelecidas para o grupo como um todo e para os candidatos do sexo masculino e do sexo feminino. As categorias de análise não foram mutuamente excludentes, e uma mesma pessoa poderia dar mais de uma resposta dentro dos seguintes eixos de análise:

  • Tipo de relação: assimétrica e simétrica (presença de maior ou menor poder e autoridade na relação tutor­ aluno);

  • Papéis: afetivo-familiar, afetivo-social, profissional, ideal e não afetivo;

  • Ações: amplas, acadêmicas (puras) e não explicitadas;

  • Beneficiário da atividade: aluno, tutor, ambos.

Na análise estatística dos resultados utilizou-se o teste qui­quadrado (p < 0,005) para comparação entre os grupos masculino e feminino.

RESULTADOS

Tipo de Relação (Simétrica x Assimétrica) e Papel do Tutor

As associações produzidas e sua distribuição entre as categorias de análise Tipo de Relação (Assimétrica e Simétrica) e Papel do Tutor encontram-se nos Quadros 1 e 2. Observa-se que as associações classificadas no grupo Relações Assimétricas superaram as do grupo Relações Simétricas.

A grande maioria dos candidatos (91%) produziu respostas que implicam uma diferença entre o tutor e o tutorando, seja esta de idade (figuras familiares), de experiência e conhecimento (figuras profissionais), de qualidades (figuras ideais) ou de poder (figuras disciplinadoras).

Em menor proporção (48%), o grupo apresentou associações em que a simetria na relação tutor-tutorando estava presente. No grupo Relações Assimétricas, destacam-se dois subgrupos de papéis: o Afetivo-Familiar (24%) e, especialmente, o Profissional (51%). Dentre eles, sobressaem as categorias Orientador/Conselheiro (36% do total, 38% masc. x 30% fem.) e Figura Paterna/Figura Materna (15% do total, 14% masc. x 17% fem.). Embora não haja diferenças estatisticamente significantes entre homens e mulheres em nenhuma das categorias individualmente, observa-se uma concentração dos professo res do sexo masculino no subgrupo Profissional (56% masc. x 36% fem.) e de suas colegas do sexo feminino no subgrupo Afetivo-Familiar" (18% masc. x 34% fem.).

Quadro 1
Relações Assimétricas

Quadro 2
Relações Simétricas

Os homens, além de concentrarem suas associações no papel Orientador, Conselheiro (38% masc. x 30% fem.), apresentaram um número maior de respostas em todas as demais categorias do subgrupo Profissional.

O mesmo ocorreu em relação às mulheres em todas as categorias das Relações Assimétricas Afetivo-Familiar. Embora também privilegiem em suas associações o papel da Figura parental (14% masc. x 17% fem.), apontam mais que os homens outros papéis, como "Irmão mais velho", "Outras figuras familiares" e "Padrinho”.

No grupo Relações Simétricas, foram pouco freqüentes as associações no subgrupo Profissional (13% do total), e a maioria das associações está concentrada no subgrupo Afetivo-Social (35%). Neste último, destacam-se os papéis "Figura de suporte, apoio, ajuda, proteção e cuidado" (12% do total) e "Pessoa próxima, vinculo, ligação" (10% do total).

Embora não haja diferenças estatisticamente significantes entre homens e mulheres em nenhuma das categorias individualmente, observa-se que os homens, um pouco mais que as mulheres, enfatizaram aspectos de vínculo, proximidade (11% masc. x 7% fem.). Os aspectos de apoio, suporte, disponibilidade e amizade concentraram igualmente os professores de ambos os sexos.

No subgrupo Profissional, o papel do tutor como "Ponto de referência na faculdade" aparece em10% do total, e não há diferença entre os professores dos sexos masculino e feminino. O mesmo é observado no papel "Parceiro na aprendizagem", pouco presente no grupo como um todo (3% do total) e sem diferença entre os sexos.

Aspectos negativos associados ao papel do tutor (disciplina, repressão) foram pouco explicitados no grupo como um todo (apenas 6% do total, 5% masc. x 6% fem.).

Também não surgiram diferenças importantes entre os sexos quando a figura do tutor era associada a um papel idealizado como modelo, exemplo (6% do total) e professor à moda antiga, entre outros (4% do total).

Ações: Ampla x Acadêmica

As associações produzidas e sua distribuição entre as categorias de análise Papel do Tutor e Ação encontram-se no Quadro 3. Em todas as categorias, com exceção da Não Afetivo, os diferentes papéis associados ao termo tutor se concentram na esfera de ação Ampla, isto é uma atuação do tutor dirigida ao desenvolvimento tanto pessoal quanto profissional do aluno.

Quadro 3

Independentemente da simetria ou não da relação, foi estatisticamente significante esta ênfase na Ação Ampla do Tutor (p =0,047), independentemente do papel a ele atribuído.

Beneficiário da Relação

Alguns candidatos, ao produzirem suas associações, mostraram também suas expectativas quanto aos beneficiários deste tipo de relação. Embora a maioria não tenha explicitado esse aspecto, 15% do total d esses candidatos acreditam que a tutoria será de grande valor não apenas para o aluno, como também para o tutor. Não houve diferenças entre os sexos, como mostra o Quadro 4.

Benefício de tutoria Masc (84) Fem (30) Total (114) P Aluno + Tutor 13 15% 4 13% 17 15% 0,78

DISCUSSÃO

Atribuir significados aos elementos da experiência é um aspecto fundamental na adaptação do homem ao mundo que o cerca.

Para Bruner1010. Witter GP, Lomônaco JF. Psicologia da Aprendizagem. São Paulo: EPU, 1984.) (apud Witter e Lomônaco), importante teórico da Psicologia da Aprendizagem, os conceitos permitem reduzir a complexidade do ambiente por meio da identificação de propriedades definidoras (atributos relevantes) e, especialmente, possibilitam orientar a atividade.

Entretanto, diversas investigações apontam uma grande dificuldade em definir o papel de mentor em seus atributos fundamentais e definidores. Segundo Naomi1111. Naomi WA. Mentoring today - the students views. J Adv Nurs. 1999, 29: 254-262., o conceito de mentor tem sido definido geralmente de acordo com a compreensão individual, e, mesmo quando há diretrizes organizacionais, ele é interpretado de forma variada, não oferecendo nenhum consenso geral para a aplicação na prática.

Será tal diversidade necessariamente um problema? Ou ela é inerente à tarefa do mentor (tutor no esquema da FMUSP)?

Quais seriam os atributos relevantes do conceito de mentor para as pessoas interessadas em desempenhar tal papel?

O que esses atributos revelam sobre as futuras ações que os candidatos imaginam desenvolver ou desejam realizar?

Em geral, as associações apresentadas frente ao termo "tutor" por um subgrupo de candidatos da FMUSP foram concordantes com outras presentes na literatura da área, especialmente quanto aos papéis de conselheiro, supervisor, amigo, assessor, facilitador e modelo1212. Connor MP, Byone AG, Redfern N, Pokora J, Clarke J. Developing senior doctors as mentors: a form of continuing professional development. Report of initiative to develop a network of senior doctors as mentors: 1994-99. Med Educ 2000; 34: 747-753..

Além disso, todas as associações apresentadas podem também ser incluídas nos três papéis básicos de um mentor descritos no tradicional trabalho de Darling1313. Darling L. What do nurses want in a mentor? J Nurs Adm 1984; 14:42-44.: o papel inspirador (modelo), o papel investidor (aquele que orienta, guia) e o papel suportivo (aquele que ajuda, referência, vínculo).

Em relação às categorias de análise deste estudo (Tipo de Relação, Papel e Ação do Tutor), podemos destacar, nesta discussão, os seguintes resultados:

Predomínio da Assimetria na Relação

O subgrupo de candidatos a tutor deste estudo mostrou em suas associações um predomínio de relações assimétricas, isto é, o tutor é alguém que tem mais idade, maior experiência, conhecimento, poder ou qualidades profissionais que seu aluno - seja ele apresentado como figura paterna, orientador, conselheiro, clínico antigo ou mesmo figura repressora e disciplinadora.

Tais representações estão de acordo coma maioria de outras definições do termo em que o mentor é, geralmente, um indivíduo mais velho e maduro que dá suporte a indivíduos jovens e inexperientes, ajudando-os em seu desenvolvimento1111. Naomi WA. Mentoring today - the students views. J Adv Nurs. 1999, 29: 254-262..

Para Rodenhauser e colaboradores88. Rodenhauser P, Rudisill J, Dvorak R. Skills for Mentors and Protégés Applicable to Psychiatry. Acad Psychiatry 2000; 24:14-27., a distribuição desigual de poder é, assim como em outras díades, uma das características genéricas da relação de mentoring: supervisores e empregados, professores e alunos, treinadores e jogadores, pais e filhos, e irmãos mais velhos e mais novos compartilham algumas das mesmas dinâmicas de interação que mentores e pupilos. Entretanto, diz ele, o vínculo, a reflexão e o processo e identificação estabelecidos na relação devem promover ao longo do tempo a autonomia e o progresso rumo à independência. A relação de mentoring evoluiria, segundo esse autor, pelos seguintes estágios: Iniciação/Interação (6 meses a 1 ano); Cultivo/Investimento (1 ano-3 anos); Maturação/Facilitação (3 anos - 5 anos); Separação/Adaptação e, por fim, Redefinição.

Nesse sentido, é esperado e até compreensível que entre candidatos a este papel estejam presentes papéis dentro das chamadas relações assimétricas, as quais, entretanto, tenderiam ao longo do tempo a evoluir para uma relação menos desigual entre o tutor e o tutorando.

A Figura Paterna

Um aspecto em especial merece destaque nesta análise: a marcante presença do papel da figura paterna (mesmo entre as candidatas do sexo feminino) entre as associações produzidas na categoria Figura parental.

É preciso sublinhar o fato de que, na maioria dessas associações, esta figura paterna era acompanhada de forte conotação afetiva ("paizão"), numa tentativa de retirar ou diminuir um possível caráter autoritário associado a ela.

Tal resultado vai de encontro à consideração preocupação de Bligh1414. Bligh J. Mentoring: an invisible support network. Med Educ 1999; 33:2-3., para quem muitos dos modelos atuais de mentoring são paternalistas e encorajam uma adolescência prolongada ou reforçam a dependência. Para esse autor, é fundamental que, à medida que o tutorando desenvolva confiança e independência, o papel de mentor evolua também de um papel de autoridade que guia, para outro, de coleguismo e companheirismo.

Embora os candidatos também tenham apresentado em suas associações o papel de amigo, companheiro, parceiro e até mesmo irmão mais velho, estes foram muito menos freqüentes, mostrando que, para o grupo como um todo, o tutor teria menos uma função fraterna do que paterna - pelo menos nesse momento inicial da relação.

Nesse sentido, vale ressaltar a importância da transformação desse padrão inicial paternalista ao longo do tempo. Para Freeman11. Freeman R. Faculty mentoring programmes. Med Educ 2000; 34: 507-508., quando um programa desse tipo faz parte de uma rede não hierárquica de suporte, ele teria inclusive a capacidade de transformar a cultura profissional.

Predomínio de uma Ação Ampla para Além do Acadêmico

Foi marcante entre os candidatos entrevistados a ênfase dada, independentemente do papel e do tipo de relação (simétrica ou não), a uma Ação Ampla do tutor, isto é, dirigida tanto à vida acadêmica e profissional do aluno, quanto a aspectos psicossociais da formação.

Para Freeman11. Freeman R. Faculty mentoring programmes. Med Educ 2000; 34: 507-508., é fundamental este modelo holístico de mentoring: uma vez que "o self profissional e o pessoal são entrelaçados" - diz ela -, a qualidade de suporte oferecido por um mentor não pode fazer falsas divisões entre as duas dimensões. O contrário - continua - toma a tarefa mais fácil para o mentor, mas menos eficaz e de curta duração em efeito paro o aluno.

O Gênero em Questão: Candidatos e Candidatas

Estudos anteriores que examinaram a associação entre gênero e mentoring não são conclusivos. Vários mostram que, na medicina e fora dela, as mulheres têm menor probabilidade de encontrar relações satisfatórias com um mentor, mas também há trabalhos que não encontraram diferença na qualidade da atenção recebida por elas.

Raggins1515. Raggins BR. Barriers to mentoring: the female managers dilemma. Hum Relat 1989; 2: 1-22. relata que as mulheres citam mais benefícios relacionados a ganhos em autoconfiança, aconselhamento útil na carreira e feedback sobre fragilidades. Os mentores servem mais a funções psicossociais para as mulheres, especialmente porque, para esse autor, as mulheres são socializadas a negar traços agressivos, e esta negação pode produzir conflitos intrapsíquicos numa carreira competitiva como a medicina.

Ainda segundo Raggins, há uma série de barreiras no avanço das mulheres em medicina e na carreira acadêmica, como discriminação e não disponibilidade de modelos, o que torna o sistema de mentoring essencial para este grupo. Mulheres com mentores publicam mais, dedicam mais tempo à pesquisa e apresentam maior satisfação na carreira.

Entretanto, embora o número de mulheres disponível para servir como mentores na medicina seja muito menor, o gênero em si não tem se mostrado tão importante, isto é, ter um mentor do mesmo sexo não é necessariamente uma condição para o sucesso da relação.

Algumas diferenças de ênfase em alguns papéis entre os grupos masculino e feminino podem ser observadas neste estudo (as mulheres um pouco mais presentes por meio de associações no subgrupo Afetivo-Familiar, e os homens no Profissional). Entretanto, do ponto de vista estatístico, não foram encontradas diferenças significativas em nenhuma categoria isoladamente. Tal resultado parece indicar que as dinâmicas estabelecidas pelos futuros tutores dependerão mais de sua percepção pessoal do papel e serão menos influenciadas pelo gênero.

A Mão Dupla

Em várias associações apresentadas pelos candidatos, a tutoria esteve presente como uma relação de "mão dupla", isto é, que beneficia o aluno e também o tutor.

Outros estudos também constatam que, além dos alunos (desenvolvimento de habilidades profissionais, aumento na confiança e identidade profissional, maior produtividade acadêmica, suporte, encorajamento), os mentores também se beneficiam com a tarefa.

Brad5 mostra que mentores aceleram sua produtividade acadêmica, aumentam sua rede de relações no trabalho, têm aumentado seu reconhecimento profissional, têm maior satisfação na carreira e, especialmente, há um rejuvenescimento da energia criativa, derivada da relação com os alunos, e um senso de geratividade.

Para Woessner e colaboradores1616. Woessner R, Honold M, Stehr SN, Steudel WI. Support and faculty mentoring programmes for medical students in Germany, Switzerland and Austria. Med Educ 2000; 34:480-482., também a universidade, com essa aproximação alunos-professores, acaba por ter melhor compreensão dos objetivos de ensino e provê um suporte mais individualizado às aspirações acadêmicas de seus estudantes.

CONCLUSÃO

Os resultados deste estudo reafirmaram a diversidade do conceito de tutor, tal como presente na literatura, mostrando também pouca influência do gênero na representação desse papel.

Orientador, professor, conselheiro, padrinho, modelo, referência, amigo, parceiro, assessor: um tutor/mentor parece poder "usar vários chapéus", isto é, diferentes estilos e abordagens.

As esferas de atuação dos diferentes papéis apresentados explicitaram principalmente ações amplas, direcionadas tanto à vida acadêmica quanto à vida pessoal, mostrando o candidato a tutor FMUSP com disponibilidade para orientar e auxiliar integralmente seus tutorandos, independentemente do papel associado - pai, conselheiro, amigo, referência.

A aproximação com o aluno e o estabelecimento de vínculos mais estreitos apresentaram-se como uma demanda também dos professores, que revelaram claramente em suas falas o desejo não apenas de promover transformações, mas especialmente de ser alvo delas também.

Agradecimentos

Agradeço especialmente à professora Hillegonda Maria Dutilh Novaes, do Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP, que, com sua grande experiência, ajudou na construção das categorias de análise das respostas produzidas neste trabalho.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2003

Histórico

  • Recebido
    28 Jul 2003
  • Aceito
    07 Out 2003
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