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Percepções de usuárias do ambulatório ginecológico sobre o atendimento em um hospital universitário

Perceptions of users of the gynaecological outpatient clinic on care at a university hospital

Resumo:

Introdução:

A graduação no curso de Medicina se dá por meio de uma formação teórico-prática que tem nos hospitais universitários o seu principal cenário de práticas. Nas consultas que envolvem questões da intimidade do paciente, o constrangimento é uma possibilidade. Isso pode comprometer a qualidade da assistência e/ou da formação médica.

Objetivo:

Este estudo teve como objetivo investigar os aspectos psicoafetivos da consulta ginecológica, a partir da percepção das pacientes, de modo a encontrar elementos que possam favorecer a adequação da formação médica à humanização do atendimento.

Método:

Trata-se de um estudo observacional, transversal, de abordagem qualitativa, realizado no ambulatório de ginecologia de um hospital universitário. Foram incluídas as usuárias do ambulatório que estavam na sala de espera para atendimento ginecológico, configurando-se como uma amostra por acessibilidade. A coleta de dados se deu entre os meses de fevereiro e agosto de 2021, por meio de uma entrevista semiestruturada com perguntas norteadoras previamente elaboradas. Realizaram-se 50 entrevistas, cujos discursos foram posteriormente transcritos e analisados pelo software IRaMuTeQ.

Resultado:

Sob a perspectiva das pacientes, o momento da consulta ginecológica envolve duas esferas de interesse principais: a assistência médico-ginecológica dada a elas e o ensino-aprendizado destinado aos estudantes. A partir dessa divisão, emergem duas perspectivas: aquela que parte da demanda pessoal, e a que considera o interesse do outro (o estudante). Nos discursos sobre a assistência ginecológica, as falas concentram o olhar para si, para o constrangimento vivenciado durante a assistência. Já nos discursos sobre o ensino e a aprendizagem dos estudantes, as falas referem-se, em sua maioria, ao reconhecimento da importância da prática clínica na formação médica. Dessa forma, ocorre uma intersecção entre “a assistência fornecida a mim” e o “processo de ensino-aprendizagem do outro”. O constrangimento das pacientes parece ser superado em favor de um objetivo maior: contribuir para a formação de futuros médicos.

Conclusão:

Apesar do constrangimento experimentado na consulta ginecológica em ambiente acadêmico, a compreensão das usuárias acerca da sua contribuição para a formação médica promove um posicionamento colaborativo, revelando-se como elemento facilitador da assistência nesse cenário. Foi revelada também uma atenuação do constrangimento proporcional à experiência da mulher nesse tipo de atendimento.

Palavras-chave:
Ginecologia; Educação Médica; Humanização da Assistência

ABSTRACT

Introduction:

Undergraduate medical training involves both theoretical and practical learnings, with university hospitals being the main practice setting. In consultations involving issues of patient intimacy, embarrassment is a possibility. This may compromise the quality of care and/or medical training.

Objective:

The objective of this study was to investigate the psycho-affective aspects of gynecological consultation, based on the patients’ perceptions, in order to find elements to help shape medical education toward humanized care.

Method:

This is an observational, cross-sectional, qualitative study, carried out in the gynecology outpatient clinic of a university hospital. Outpatient users who were in the waiting room for gynecological care were included, representing a sample for accessibility. Data collection took place between the months of February and August 2021 through a semi-structured interview with previously prepared guiding questions. A total of 50 interviews were conducted, which were later transcribed and analyzed by the IRaMuTeQ software.

Result:

From the perspective of the patients, the gynecological consultation involves two main spheres of interest: the medical-gynaecological assistance given to them and the teaching-learning aimed at students. Within this division, two perspectives emerge: firstly, that which draws on the personal demand and, secondly, that which considers the interest of the other (the student). In the discourses on medical- gynecological assistance, the speakers focus on themselves, on the embarrassment experienced during the assistance. In the discourses on the teaching and learning of the students, the speakers primarily focus on the importance of clinical practice in medical training. Thus, there is an intersection between “the care provided to me” and the “other’s teaching-learning process”. The patient’s embarrassment seems to be overcome in favour of a greater goal: to contribute to the training of future doctors.

Conclusion:

Despite the embarrassment experienced in gynecological consultation in an academic environment, the users’ understanding of their contribution to medical education promotes a collaborative attitude, which is found to facilitate care in this scenario. The attenuation of the embarrassment was also found to be proportional to the experience of the woman in this type of care.

Keywords:
Gynaecology; Medical Education; Humanized Care

INTRODUÇÃO

No Brasil, a graduação em Medicina se dá por meio de uma formação teórico-prática, em que o componente teórico é ensinado nas salas de aula das universidades e o componente prático ganha espaço nos serviços de saúde. O estudante é inserido na realidade hospitalar e ambulatorial desde os primeiros semestres de sua formação. Por vezes, o contexto dessas realidades invade a intimidade do paciente e pode promover constrangimento, seja ao paciente ou mesmo ao aluno. Esse é um ponto de relevância a se considerar, pois, se negligenciado, pode comprometer tanto a qualidade assistencial do serviço de saúde quanto o ensino médico.

O cuidado em saúde da mulher abrange não apenas as patologias de natureza orgânica, mas também aspectos sexuais, afetivos e sociais da paciente. Questões delicadas, como as de foro íntimo, podem ser de difícil abordagem no momento da consulta, e a paciente pode ficar inibida e insegura, principalmente quando atendida por um acadêmico de Medicina, mesmo que ele esteja sob supervisão do médico responsável11. Rio SMP do, Trivellato IM, Caldeira NM, Araujo SF, Rezende DF de. Vivência das mulheres atendidas por alunos de medicina em consulta ginecológica. Rev Bras Educ Med. 2013;37:492 - 500..

Contudo, a participação do estudante na dinâmica dos serviços de saúde é fundamental à construção de habilidades técnicas do ofício médico, bem como à troca de experiências com profissionais mais antigos. Isso constrói a autonomia do futuro médico e o torna mais seguro para a tomada de decisões clínicas e resolução de problemáticas relacionadas à saúde. Para que isso ocorra de forma humanizada, os modelos curriculares atuais não deixam de considerar os aspectos bioéticos implicados nas consultas ginecológicas e urológicas, garantindo que a assistência se dê de maneira respeitosa para o paciente e que o aprendizado esteja apoiado no desenvolvimento de habilidades e atitudes empáticas22. Nunes SOV, Muraguchi EMO, Ferreira Filho OF, Pontes RMA, Cardoso LTQ, Grion CMC, et al. O ensino de habilidades e atitudes: um relato de experiências. Rev Bras Educ Med . 2013;37(1):126-31..

A ginecologia e a obstetrícia, assim como as demais clínicas com as quais o estudante de Medicina tem contato ao longo da graduação, são de grande importância para a formação médica. No entanto, a exemplo da sexualidade, alguns aspectos da intimidade individual são inerentes aos cuidados dessa especialidade. Por isso, o constrangimento é particularmente experienciado, tanto por pacientes quanto pelos estudantes, e é com frequência despertado, seja pelas abordagens necessárias nas consultas, seja durante o exame físico33. Silva LM, França LM, Castro MJP, Rabelo RCM, Maia CC, Rio SMP, et al. Sentimentos envolvidos no atendimento ginecológico prestado pelo estudante de medicina: análise pré e pós- consulta. Rev Fac Ciênc Méd Sorocaba. 2015;17(4):210-21..

Entretanto, alguns estudos revelam que, ao contrário do que se possa imaginar a princípio, as pacientes mostram-se receptivas à presença de estudantes na consulta ginecológica44. Hamza A, Warczok C, Meyberg-Solomayer G, Takacs Z, Juhasz-Boess I, Solomayer EF , et al. Teaching undergraduate students gynecological and obstetrical examination skills: the patient’s opinion. Arch Gynecol and Obstet. 2020 June 1º;302(2):431-8.),(55. Rodrigues LAC, Vasconcellos MB, Bertoco T, Green MTP. A percepção das pacientes atendidas por estudantes de medicina no ambulatório escola na consulta ginecológica. Investigação. 2019; 18 (4):45-9..

Muitos fatores podem contribuir para uma maior aceitação da presença do estudante, por parte das pacientes, na consulta ginecológica. Algumas habilidades inerentes ao próprio indivíduo, como a forma de se comunicar, demonstrando respeito e gentileza, e de transmitir preocupação, agindo profissionalmente durante a consulta, contribuem para a formação de vínculo e a redução do desconforto66. Sobral DT, Wanderley M da S. Receptiveness to students’ presence at gynecological consultations: patients’ motives and appraisal of learners’ interpersonal communication skills. Rev Bras Educ Med . 2021;45(1): e018.. Além disso, estratégias pedagógicas dirigidas às pacientes, como vídeos educativos sobre a formação dos estudantes de Medicina e suas qualificações, revelam- se eficazes no aumento da receptividade delas77. Buck K, Littleton H. Impact of educational messages on patient acceptance of male medical students in OB -GYN encounters. J Psychosom Obstet Gynecol. 2016 Apr 19;37(3): 84-90.. Dessa forma, ao se incluir a mulher no entendimento do seu próprio cuidado, atenua-se o constrangimento, tornando o ambiente da consulta favorável ao aprendizado acadêmico, bem como à assistência médica.

Nesse sentido, o presente artigo investiga os aspectos psicoafetivos que permeiam o momento da consulta ginecológica, a partir da percepção das pacientes, de modo a encontrar elementos que favoreçam a adequação do processo da formação médica com a humanização do atendimento.

MÉTODO

Trata-se de um estudo transversal, observacional, individuado com análise qualitativa, realizado no período de fevereiro a agosto de 2021, por meio de questionários dirigidos às pacientes do ambulatório de ginecologia do Hospital Universitário Lauro Wanderley (HULW).

Como instrumento de coleta de dados, adotou-se uma entrevista semi estruturada, cujas questões foram fundamentadas em exemplos observados na literatura66. Sobral DT, Wanderley M da S. Receptiveness to students’ presence at gynecological consultations: patients’ motives and appraisal of learners’ interpersonal communication skills. Rev Bras Educ Med . 2021;45(1): e018.),(88. Carmody D, Tregonning A, Nathan E, Newnham JP. Patient perceptions of medical students’ involvement in their obstetrics and gynaecology health care. Aus N Zee J Obstet Gynaecol. 2011 Oct 10;51(6):553-8.)-(1111. Alawad AAM, Younis FH. Patients’ attitude towards undergraduate medical students at University Charity Teaching Hospital in Sudan. Int J Med (Dubai). 2014 Apr 16;2(1): 28-31. seguindo as técnicas recomendadas para estudos com abordagens qualitativas1212. Aaker DA, Kumar V, Day GS. Marketing research. 7th ed. New York: John Wiley & Sons; 2001.)-(1414. Mattar FN. Pesquisa de marketing: metodologia, planejamento, execução e análise. São Paulo: Atlas; 1994.. As questões contemplaram nove itens cujos temas podem estar relacionados ao constrangimento, como: experiência nesse tipo de consulta; informação prévia sobre a participação de acadêmicos no atendimento; sexo do estudante; habilidades comunicativas do aluno; e possibilidade de aceitação dos discentes caso o serviço fosse privado. Por fim, coletaram-se relatos de experiências, sugestões ou queixas, caso a mulher desejasse compartilhar.

A amostra do estudo foi por acessibilidade1515. Richardson RJ, Peres JA, Wanderley JC, Correia LM, Peres MH. Pesquisa social: métodos e técnicas. São Paulo: Atlas ; 2008., composta pelas pacientes atendidas no ambulatório de ginecologia do Hulw ou que estivessem aguardando na sala de espera para uma consulta de primeira vez ou de seguimento. Incluíram-se todas as pacientes que estavam na sala de espera para atendimento no momento da coleta dos dados. Por questões éticas, excluí ram-se as pacientes menores de 15 anos, bem como aquelas com comprometimento psiquiátrico ou cognitivo, que pudessem apresentar limitações à coleta dos dados.

As entrevistas ocorreram de forma presencial, e as falas foram gravadas e posteriormente transcritas. Incluíram-se no estudo, exclusivamente, as pacientes que leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A pesquisa seguiu os critérios éticos estabelecidos pela Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 466/20121616. Brasil. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Diário Oficial da União; 2012. e teve a aprovação do Comitê de Ética para Pesquisas com Seres Humanos - CAAE nº 12753619.0.0000.8069.

As respostas foram transcritas, e seu conteúdo textual constituiu o corpus submetido à análise lexicográfica pelo software IRaMuTeQ 0.7 alpha 2. Esse programa apresenta funcionalidades que permitem, de modo estatístico, analisar discursos e questionários de pesquisas, e ajudam na interpretação textual, a partir da identificação do contexto, do vocabulário, da separação e especificidade de palavras, da diferença entre autores, além de outras possibilidades, como confecção de gráficos e nuvens de palavras. Os discursos foram então organizados na classificação hierárquica descendente (CHD) obtida pelo software. A partir dessa análise, obtiveram-se os segmentos de texto (ST) para comparação entre as diferentes classes de palavras1717. Camargo BV, Justo AM. IRAMUTEQ: um software gratuito para análise de dados textuais. Temas Psicol . 2013;21(2):513-8..

RESULTADOS

Realizaram-se 50 entrevistas. A maioria das mulheres já havia sido atendida na presença de estudantes (94%), tinha mais de 40 anos (68%) e exercia atividades laborais (58,8%): donas de casa (16,2%), trabalhadoras autônomas (16,2%) e trabalhadoras contratadas (26,4%). As demais eram estudantes (12,2%) ou aposentadas (29%). Quanto ao domicílio, 60% das entrevistadas residiam na capital, enquanto as outras (40%) eram de cidades do interior do estado.

A análise lexicográfica reconheceu 50 unidades de texto, 227 ST aproveitados, com uma retenção de 84,14%, e 7.651 registros de ocorrência, entre palavras, formas e vocábulos. O conteúdo foi categorizado em seis classes: 1 com 26 ST (13,6%); 2 com 29 ST (15,2%); 3 com 37 ST (19,4%); 4 com 31 ST (16,2%); 5 com 42 ST (22%); e 6 com 26 ST (13,6%).

O corpus de análise foi dividido em subcorpora até que se chegasse às classes finais. É o que mostra o dendograma da Figura 1. Percebemos que, inicialmente, o corpus foi repartido em dois subcorpora, que chamamos de subcorpus 1 e subcorpus 2. Dentro do subcorpus 1, temos os subcorpora 1 A, 1 B e 1 C.

Figura 1
Dendograma da classificação hierárquica descendente sobre as percepções das usuárias do ambulatório ginecológico sobre o atendimento em um hospital universitário.

O subcorpus 1 B, por sua vez, originou a classe 1 e também o subcorpus 1 C. Os discursos da classe 1, “Conhecimento prévio da presença de estudantes”, revelam como o conhecimento prévio acerca da presença de estudantes se relaciona com o constrangimento durante a consulta.

Já o subcorpus 1 C divide-se em outras duas classes de palavras: 2 e 3. A classe 2, nomeada “Sentimentos no momento da consulta”, agrupa expressões sobre os sentimentos despertados pela mulher ao se ver no atendimento em que estão presentes os estudantes. Esses sentimentos estão relacionados principalmente ao sexo masculino e à percepção sobre as habilidades comunicativas dos estudantes. A classe 3, “Experiência versus constrangimento”, por sua vez, traz falas relacionando o número de atendimentos já experienciados, a quantidade de estudantes presentes no atendimento e os anos decorridos desde o primeiro contato com alunos, com o grau de constrangimento durante a consulta ginecológica.

O subcorpus 2 traz as classes 4 e 5. A classe 4, “A consulta na formação médica”, revela a observação, por parte das mulheres, do conhecimento médico sendo construido pelos estudantes durante as consultas. E a classe 5, “Importância da prática para a formação profissional”, demonstra a avaliação geral das pacientes acerca da importância da prática no aprendizado em Medicina.

O subcorpus 1 A originou a classe 6, “Hospital particular”, que traz falas sobre a possibilidade de aceitação da presença de estudantes, caso o atendimento acontecesse em um hospital privado. Nesses discursos, demonstra-se como o entendimento sobre se estar contribuindo para a formação médica atenua o constrangimento. Fragmentos de falas de cada uma das classes revelados pelos ST mais representativos encontram-se expostos no Quadro 1.

Quadro 1
Exemplos de falas que representam cada classe

Por meio da análise fatorial por correspondência (AFC) obtida pelo IRaMuTeQ, é possível observar a associação entre as classes de palavras em um plano cartesiano, conforme o Gráfico 1. Denota-se que as classes 2 e 3 não apresentam separação significativa uma da outra, havendo uma tendência de aproximação entre elas. O mesmo se pode dizer das classes 4 e 5. Considerando o conteúdo de cada classe de palavras, pode-se inferir que o eixo X separa as falas sobre a assistência das falas sobre ensino; enquanto o eixo Y separa as falas sobre o eu das falas sobre o outro.

O corpus original foi dividido em subcorpus 1, que dá origem às classes 1, 2, 3 e 6, e subcorpus 2, que origina as classes 4 e 5. Essa primeira divisão do subcorpus corresponde, no gráfico, à separação feita pelo eixo Y. De um lado, todos os discursos das pacientes que dizem respeito a si próprias: classes 1, 2, 3 e 6. De outro lado, as percepções acerca da situação alheia (no caso, dos estudantes): classes 4 e 5.

Quando se analisa o subcorpus 1, como mostra o dendograma da Figura 1, ele se divide em subcorpus 1 A (classe 6) e subcorpus 1 B (classes 1, 2 e 3). Essa separação, por sua vez, corresponde, no gráfico, à divisão estabelecida pelo eixo X. Acima dele, os discursos que se referem à assistência (classes 1, 2 e 3); abaixo, os discursos sobre o ensino (classe 6).

Gráfico 1
Análise fatorial por correspondência por classe de palavras.

Sob a ótica das pacientes, o momento da consulta envolve duas esferas de interesse principais: a assistência médico-ginecológica dada a elas e o ensino-aprendizado destinado aos estudantes. Dentro dessa divisão, entram dois pontos de vista: aquele que parte da perspectiva da paciente e aquele que considera o interesse do outro (o estudante). Observa-se que a classe que se encontra na intersecção entre o eu e o ensino é justamente a classe 6, em que se fala sobre a aceitação de estudantes mesmo sob a hipótese de se estar em um atendimento particular (pago). Isso mostra como o entendimento de se estar contribuindo para o ensino médico é um atenuante para o constrangimento vivenciado nesse tipo de consulta.

DISCUSSÃO

A presença do estudante durante o atendimento ginecológico revelou-se como um fator de desconforto para as pacientes neste estudo, achado concordante com os já existentes na literatura33. Silva LM, França LM, Castro MJP, Rabelo RCM, Maia CC, Rio SMP, et al. Sentimentos envolvidos no atendimento ginecológico prestado pelo estudante de medicina: análise pré e pós- consulta. Rev Fac Ciênc Méd Sorocaba. 2015;17(4):210-21.),(1818. Subki AH, Algethami MR, Addas FA, Alnefaie MN, Hindi MM, Abduljabbar HS. Women’s perception and attitude to medical students’ participation in obstetrics and gynecology care. Saudi Med J . 2018;39(9 ):902-9.),(1919. Bossé J, Woolcott C, Coolen J. Barriers preventing medical students from performing pelvic examinations during obstetrics and gynaecology clinical clerkship rotations. J Obstet Gynaecol Can. 2019; 41(8):1093-8.. Pesquisas anteriores destacam o gênero masculino do estudante como um dos principais aspectos relacionados ao constrangimento1818. Subki AH, Algethami MR, Addas FA, Alnefaie MN, Hindi MM, Abduljabbar HS. Women’s perception and attitude to medical students’ participation in obstetrics and gynecology care. Saudi Med J . 2018;39(9 ):902-9.),(2020. Nguyen BT, Streeter LH, Reddy RA, Douglas CR. Gender bias in the medical education of obstetrician-gynaecologists in the United States: a systematic review. Aus N Zee J Obstet Gynaecol . 2022 Mar 16;62(3):349-57.),(2222. Costa GPO, França KAN de, Santos MAL, Guilherme JG, Medeiros JGM de, Silva Júnior EA da. Dificuldades iniciais no aprendizado do exame físico na percepção do estudante. Rev Bras Educ Med . 2020; 44 (1): e027., o que é confirmado, nesta pesquisa, nas falas da classe 2. Segundo registros dessa mesma classe, o maior número de pessoas presentes na sala no momento da consulta também apontou para o maior constrangimento das mulheres. Possivelmente esse dado se relaciona ao desconhecimento acerca da formação médica e do treinamento técnico dos estudantes de Medicina, bem como ao compromisso deles com o fornecimento de um cuidado empático77. Buck K, Littleton H. Impact of educational messages on patient acceptance of male medical students in OB -GYN encounters. J Psychosom Obstet Gynecol. 2016 Apr 19;37(3): 84-90.. Ademais, em consonância com dados preexistentes2121. Yang J, Black K. Medical students in gynaecology clinics. Clin Teach. 2014; 11 (4):254-8., o não conhecimento prévio sobre a presença dos estudantes durante a consulta também mostrou contribuir para o desconforto das mulheres, segundo as falas da classe 1.

Entretanto, merecem destaque os atenuantes desse desconforto, entre os quais se destaca a experiência com atendimentos anteriores66. Sobral DT, Wanderley M da S. Receptiveness to students’ presence at gynecological consultations: patients’ motives and appraisal of learners’ interpersonal communication skills. Rev Bras Educ Med . 2021;45(1): e018.),(1818. Subki AH, Algethami MR, Addas FA, Alnefaie MN, Hindi MM, Abduljabbar HS. Women’s perception and attitude to medical students’ participation in obstetrics and gynecology care. Saudi Med J . 2018;39(9 ):902-9.),(2323. Hartz MB, Beal JR. Patients' attitudes and comfort levels regarding medical students involvement in obstetrics-gynecology outpatient clinics. Acad Med. 2000 Oct;75(10):1010-4.. Quanto mais vezes a paciente foi atendida por estudantes, menor o constrangimento referido no atendimento atual. É o que se revela nos discursos da classe 3, reforçando o entendimento de que, à medida que as mulheres experimentam o ambiente acadêmico, elas tendem a não se opor à presença de estudantes em atendimentos futuros66. Sobral DT, Wanderley M da S. Receptiveness to students’ presence at gynecological consultations: patients’ motives and appraisal of learners’ interpersonal communication skills. Rev Bras Educ Med . 2021;45(1): e018.. Além disso, a compreensão das mulheres sobre a importância da prática no aprendizado médico também mostrou ser capaz de torná-las mais receptivas aos estudantes, como apresentado nas falas daclasse 5, levando-as, inclusive, a desejar contribuir para o aprendizado de futuros médicos2323. Hartz MB, Beal JR. Patients' attitudes and comfort levels regarding medical students involvement in obstetrics-gynecology outpatient clinics. Acad Med. 2000 Oct;75(10):1010-4., de acordo com relatos da classe 6.

A própria percepção das pacientes aponta a prática como a forma mais usual para se aprender no contexto médico-acadêmico1818. Subki AH, Algethami MR, Addas FA, Alnefaie MN, Hindi MM, Abduljabbar HS. Women’s perception and attitude to medical students’ participation in obstetrics and gynecology care. Saudi Med J . 2018;39(9 ):902-9.),(2323. Hartz MB, Beal JR. Patients' attitudes and comfort levels regarding medical students involvement in obstetrics-gynecology outpatient clinics. Acad Med. 2000 Oct;75(10):1010-4., servindo de aprendizado para elas mesmas, como se verifica nas falas da classe 4. Nessa classe de palavras, as pacientes também revelam que a presença de estudantes lhes permite ter maiores informações sobre seu estado de saúde, graças à discussão clínica que se dá durante a consulta2121. Yang J, Black K. Medical students in gynaecology clinics. Clin Teach. 2014; 11 (4):254-8.),(2424. Oliveira M, Botim TR, Oliveira LC, Freitas BAC, Ferreira DC. Avaliação dos pacientes em relação à presença do estudante de Medicina durante os atendimentos ambulatoriais. Rev Bras Educ Med . 2021;45 (3): e154..

Ainda como aspectos modificáveis capazes de diminuir o constrangimento, é válido destacar a construção de habilidades de comunicação interpessoal. Reforçando dados da literatura, as falas da classe 2 mostram que os atributos de comunicação interpessoal dos estudantes parecem ter valor preditivo positivo no consentimento para a sua participação na consulta ginecológica, desempenhando um efeito moderador sobre os sentimentos das pacientes em relação à presença dos discentes durante a consulta66. Sobral DT, Wanderley M da S. Receptiveness to students’ presence at gynecological consultations: patients’ motives and appraisal of learners’ interpersonal communication skills. Rev Bras Educ Med . 2021;45(1): e018.. Pacientes com uma percepção mais positiva da comunicação interpessoal com o estudante ou um profissional de saúde em experiências anteriores estariam mais inclinadas a consentir a presença de discentes no atendimento. Contudo, se tivessem uma percepção negativa dessas habilidades, poderiam ser mais propensas a discordar da presença do estudante2525. Armitage AJ, Cahill DJ. Medical students and intimate examinations: what affects whether a woman will consent? Med Teach. 2018 Jan 31;40(12):1281-6..

As limitações do presente estudo concentram-se no fato de ter sido realizado no serviço que promoveu a pesquisa, por meio de seus estudantes universitários2626. Gehlbach H, Artino AR. The survey checklist (manifesto). Acad Med . 2018;93(3):360-6.. Além disso, há o viés de seleção de mulheres, já que a maioria entrevistada na sala de espera já tinha experiência com estudantes, e a restrição da coleta de entrevistas em um único serviço público de atendimento médico, o que dificulta a generalização de seus resultados.

Em contrapartida, o trabalho reforça achados já relatados na literatura, contribuindo com elementos facilitadores para a construção de uma relação médico-paciente humana nos serviços públicos de saúde.

CONCLUSÕES

Os resultados apontam que as usuárias do ambulatório do hospital universitário, nos seus atendimentos ginecológicos com a presença dos estudantes, enfrentam o sentimento de constrangimento. No entanto, esse sentimento tende a diminuir com o uso continuado do serviço, bem como com a percepção de se estar contribuindo para a formação médica. Entretanto, a falta de informação prévia de que o atendimento será realizado na presença dos estudantes é uma fonte de insatisfação e mal-estar na assistência.

Desse modo, a orientação às usuárias sobre como será a consulta, e a conscientização sobre a importância da presença do estudante no atendimento revelam-se como elementos aliados do bem-estar das mulheres submetidas à consulta ginecológica no ambiente universitário. Trata-se de achados de percepções positivas a serem reforçadas, configurando-se como fatores que podem ser utilizados como facilitadores de situações desconfortáveis que possam ocorrer nos cenários de práticas da formação médica, a exemplo do atendimento ginecológico.

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  • FINANCIAMENTO

    Declaramos não haver financiamento.

Editado por

Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editor associado: Kristopherson Lustosa Augusto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    09 Jun 2023
  • Aceito
    17 Out 2023
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