APRENDIZAGEM BASEADA EM PROBLEMAS: EFEITOS NO APRENDIZADO

Resumo

Como motivar o aluno de Medicina e proporcionar um aprendizado significativo e produtivo no ensino pré-clínico? A estratégia de aprendizagem baseada em problemas pode ser uma das respostas para tal questão. Na Universidade de Brasília desenvolveu-se uma experiência com essa estratégia em programa de integração interdisciplinar, que passou a incorporar apresentação seriada de casos clínicos, uso de módulos de orientação para aprendizagem auto-dirigida e discussão em grupo pequeno, da base de informação e do raciocínio envolvidos na resolução de problemas. Efetuou-se uma análise de processos e produtos nessa experiência, incluindo exame de resolução de problemas e questionários de avaliação que envolveram 421 participantes. Os resultados indicam a utilidade da estratégia inovadora em função, principalmente, do desenvolvimento da capacidade de aplicação de informação e das habilidades de processo pelos alunos. A avaliação de programa sugere aumento da qualidade da experiência educativa, após incorporação da estratégia, em termos de medidas do valor e significado da vivência, da adaptação pessoal do aprendiz, e da percepção de maior eficácia da aprendizagem, na comparação com programas congêneres do ensino pré-clínico na Universidade.

Palavras-Chave:
Educação médica; graduação; aprendizagem baseada em problemas; aprendizado; avaliação

Summary:

How to motivate the medical student in preclinical studies and to provide a meaningful and productive learning experience? The strategy of problem-based learning may be an answer to this questions. An experience with this strategy was developed in a program of inter-disciplinary integration at the University of Brasilia. Presentation of clinical problems, use of study guides for self-learning, and small group discussion of knowledge basis and reasoning in problem-solving, were blended in the program. An analysis of processes and outcomes, including problem-solving examinations and evaluation questionnaires was done with 421 respondents. The results point out the usefulness of the strategy, mostly regarding the development of students' capacity to apply knowledge and the extension of process skills. Course appraisal suggests an increasing educational quality, after the change to problem-based learning, regarding measures of meaningfulness and value, leaner's personal adaptation, and perception of learning efficacy, in comparison with other preclinical programs at the University.

Key Words:
Educ. med. undergrad; problem based learning outcomes; evaluation

Introdução

O ensino pré-clínico, na maioria das escolas de Medicina, enfatiza a transmissão de conhecimentos em disciplinas biomédicas independentes e o acúmulo de informação fatual dissociada de sua aplicação. A sobrecarga de informação, a fragmentação e dissociação dos conhecimentos adquiridos produzem muitos efeitos adversos, relatados na literatura, inclusive a diminuição da motivação inicial dos estudantes, ao ingressar na escola.

A aprendizagem baseada em problemas é uma estratégia educativa inovadora, com grande impacto potencial na estruturação do ensino de graduação^5),(6. Suas características essenciais são a organização temática torno de problemas, a integração interdisciplinar imbricando componentes básicos e clínicos e a ênfase no desenvolvimento cognitivo¹⁴. Segundo ^{Barrows (1986}), a potencialidade desse enfoque é especialmente apropriada para quatro objetivos curriculares:(i) estruturação do conhecimento para aplicação em contextos clínicos; (ii) desenvolvimento de processo eficaz de raciocínio clínico; (iii) desenvolvimento de habilidades de aprendizagem autodirigida; e (iv) aumento da motivação para aprender⁴. É possível demonstrar esses efeitos numa reestruturação em pequena escala? Essa questão motivou o presente estudo sobre efeitos educacionais da aprendizagem baseada em problemas. A estratégica foi incorporada a um dos blocos interdisciplinares do ensino pré-clínico na UnB, conforme descrito anteriormente⁹. A base de dados do estudo derivou do acompanhamento de 14 turmas sucessivas do bloco de aparelho digestivo. Três tipos de efeitos foram examinados:

1. Impacto da vivência educativa em medidas de processo e de produto da aprendizagem.

2. Percepção da atratividade e da eficácia da aprendizagem pelos estudantes.

3. Tendência dos efeitos ao longo da série temporal.

Material e Métodos

Cenário. O perfil global do programa analisado pode ser caracterizado por seus objetivos e componentes. Três objetivos gerais de aprendizado foram definidos para o bloco de aparelho digestivo do curso de Medicina da Universidade de Brasília; a) explicar a base biomédica de cada problema clínico selecionado, de acordo com o programa de tópicos; b) avaliar a natureza e o modo de controle dos problemas clínicos selecionados; c) demonstrar o desenvolvimento de perfil de conduta adequado, em termos de atitudes e habilidades especificadas. Três componentes são ressaltados: (i) seleção de problemas clínicos para induzir questões de estudo antes da aquisição da informação biomédica; (ii) módulos de aprendizagem autodirigida para orientar a busca de informação e a resolução de problemas e (iii) discussão em grupo pequeno, centrada no estudante, para lidar com os problemas e temas de estudo. Uma descrição da mudança de estratégia no programa de integração simples para aprendizagem baseada em problemas - foi apresentada anteriormente⁹. A publicação clássica de Barrows & Tamblyn³ e a experiência inicial de Newcastle⁵ serviram de fontes de inspiração para a mudança efetuada.

Sujeitos. O estudo envolveu diretamente estudantes do ensino pré-clínico, no total de 421 respondentes, os quais representam 88,5% dos estudantes que completaram essa fase do curso.

Modelo do estudo e variáveis. O estudo foi realizado em uma série temporal de 7 anos, por amostragem consecutiva envolvendo todos os alunos matriculados em 14 turmas consecutivas, no período do estudo. Cinco indicadores de desfecho foram definidos:

1. Resolução de problemas: É o indicador de um exame escrito que afere a base de conhecimento e a aplicação da informação, a partir de 50 questões construídas com referência a cinco casos clínicos diversos, selecionados de um “pool” de quinze problemas equivalentes. A pontuação total do indicador varia de 0 a 100.

2. Desenvolvimento de habilidades. Este indicador baseia-se no escore de autoavaliação de doze descritores de habilidades de processo ou aprendizagem, as quais incluem busca de informação, autocrítica, solucionador de problemas, cooperação e escuta ativa. O escore total foi expresso em percentual da pontuação máxima.

3. Valor e significado da vivência de aprendizagem: Corresponde aos escores do Inventário de Valorização de Curso (IVC), desenvolvido por ^{Nehari e Bender (1978}). O instrumento compreende 36 itens distribuídos em quatro seções: valorização de curso, aprendizado cognitivo, aprendizado pessoal e aprendizado de condutas. A pontuação total varia de 36 a 144.⁷

4. Tono afetivo. Esse indicador baseia-se nas respostas de quatro afetos primários - positivos e negativos - as quais expressam o modo de adaptação do aprendiz ao contexto do programa educativo¹⁰.

5. Nível global de eficácia. Índice em escala de cinco pontos que representa a percepção do respondente sobre a eficácia da aprendizagem no programa inovador em comparação com outros programas do ensino pré-clínico.

Administração. Características dos alunos, incluindo estilo de aprendizagem, magnitude de motivação para aprender e nível de auto-confiança, foram apuradas na primeira das 15 semanas do período letivo. Os dados para calcular os indicadores de desfecho foram obtidos na última semana do período letivo, mediante aplicação de dois instrumentos: o exame de resolução de problemas (para o primeiro indicador) e o questionário de avaliação do curso (para os demais).

Análise. O trabalho de Andrews e colegas² serviu de guia geral na seleção de técnicas estatísticas. Foram efetuados testes t, de correlação e de qui-quadrado, usando-se o pacote SAS.

Resultados

Não houve alteração da composição do alunado, da primeira para a segunda metade do período de estudo, em termos de idade, sexo, estilo de aprendizagem, nível de autoconfiança e índice de rendimento escolar dos participantes. Ao longo da série temporal, porém, observou-se incremento discreto mas significante da magnitude de motivação para aprender, apurada no início do programa (r=0,19 p, < 0,001).

Os resultados agregados do exame de resolução de problemas e da autoavaliação de desenvolvimento das habilidades de processo são resumidos na Tabela I. Cerca de 2/3 dos estudantes pré-clínicos apresentaram nível superior (acima de 70%) nos escores do exame de resolução de problemas e da autoavaliação de desenvolvimento de habilidades.

A Tabela II mostra dados descritivos da aplicação do Inventário de Valorização do Aprendizado. Os escores de cerca de 75% dos respondentes se situaram no terço superior da faixa de pontuação e menos de 1% no terço inferior. Para as últimas seis turmas foi possível uma comparação do programa com seus congêneres, no ensino pré-clinico. As médias referidas nos escores de cada seção do inventário foram significantemente superiores (p<0,01) àquelas dos outros programas.

A magnitude desse efeito se assemelha às indicações sobre o modo de adaptação pessoal ao contexto da aprendizagem. A proporção de estudantes com adaptação plena (predomínio de afetos positivos), elevou-se significamente de 53,5% (ao tempo que havia simples integração) para 77,3% após a incorporação do enfoque inovador no programador. (Tabela III).

Outra evidência sobre a qualidade dos desfechos educacionais deriva de comparações sucessivas da percepção do nível global dos programas do ensino pré-clínico, em termos da eficácia da aprendizagem. No conjunto do estudo, o bloco com enfoque de aprendizagem baseada em problemas foi considerado muito superior (aos demais) por 18,1% dos respondentes, superior por 61,8%, equivalente por 19,2% e inferior para apenas 0,8% do total de 382 respondentes.

A percepção da qualidade dos desfechos educacionais é persistente? As evidências nesse sentido provêm da correlação temporal (do primeiro ao sétimo ano do período de estudo) dos indicadores utilizados. Incrementos discretos mas significantes se refletem nas corre lações positivas das três medidas de qualidade: nível global comparativo (r = 0,22 p<0,001); modo de adaptação pessoal (r = 0,15 p m< 0,005) valor e significado da vivência (r = 0,23 p<0,001 ).

Discussão

A estabilidade das características dos alunos (e dos professores), da primeira para a segunda metade do estudo, sugere que os efeitos observados resultam do contexto total da vivência educativa e não de mudança na composição do alunado, ou do corpo docente participando no programa.

A monitoração dos desfechos revelou que a maioria dos estudantes obteve preparação superior na capacidade de aplicação de conhecimentos à resolução de problemas clínicos escritos. Ademais, os achados da autoavaliação sugerem que esse tipo de preparo se acompanha do desenvolvimento de amplo repertório de habilidades. No enfoque tradicional de ensino, preparo equivalente na resolução de problemas só é alcançado ao longo da fase clínica do curso. Presume-se que o adiantamento da preparação pode acelerar a maturação da habilidade diagnóstica do aprendiz. (estudos em andamento).

Outros achados são consistentes em apontar o impacto positivo da inovação. As medidas do valor e significado do programa e do tono afetivo indicam a atratividade do programa para a maioria dos estudantes, a qual se expressou, por exemplo, na elevação histórica da proporção de alunos bem adaptados ao contexto da aprendizagem. Vale dizer que essas duas medidas se correlacionam com a motivação para continuar aprendendo¹⁰.

A persistência ou mesmo o incremento dos efeitos, observados na sequência temporal, reforçam a ideia do benefício da incorporação da aprendizagem baseada em problemas no programa. Nesse sentido, o incremento histórico na magnitude da motivação para aprender pode ser efeito da imagem positiva captada pelos participantes, na interação com os colegas egressos do bloco. A influência dos fatores motivacionais na aprendizagem baseada em problemas é analisada em mais pormenor noutro artigo¹².

Em trabalho recente, Norman e Schmidt⁸ examinam as evidências experimentais sobre as vantagens potenciais da apredizagem baseada em problemas para o aprendizado estudantil. Algumas conclusões dos investigadores, apoiadas na revisão realizada, são pertinentes aos achados do presente estudo. As evidências apontam que a estratégia propicia: a) incremento da transferência de conceitos assimilados para novos problemas, bem como da integração de conceitos das ciências básicas na apreciação dos problemas clínicos; b) aumento do interesse intrínseco na matéria e, também, das habilidades de aprendizagem auto-dirigida pelos estudantes.

Os resultados do presente estudo têm duas implicações práticas: 1) a demonstração da possibilidade da incorporação do enfoque inovador em programa piloto do ensino pré-clínico, sem exigir reestruturação radical do curso médico; 2) o reforço à idéia do uso de elementos da estratégia de aprendizagem baseada em problemas para suplementar a instrução de ciências básicas centrada nos docentes.

Contudo, a questão maior da conversão total do currículo para a nova estratégia é bem mais complexa e deve ser precedida por um cauteloso exame da vasta literatura disponível. A transposição da barreiras à aceitação são aspectos críticos nessa iniciativa¹³.

Concluindo, o estudo mostrou o nível de qualidade do aprendizado, em termos de eficácia e atratividade, alcançado numa experiência de aprendizagem baseada em problemas. Os achados, em suma, são consistentes com a potencialidade da estratégia quanto à promoção dos quatro importantes objetivos referidos por Barrows.

Agradecimentos

O autor agradece à Tânia Mara G. Campos pelo eficiente auxílio, e aos estudantes de Medicina pela participação incentivadora.

Referências Bibliográficas

• ¹
  ALBANESE, M.A. & MITCHELL, S. Problem­ based learning: a review of literature on its outcomes and implementation issues. Academic Medicine, 68: 52-81, 1993.
• ²
  ANDREWS, F.M.; KLEM, L.; DAVIDSON, T.N. e col. A Guide for Selecting Statistical Techniques for Analysing Social Data Ann Arbor: ISR, University of Michigan, 1981.
• ³
  BARROWS, H.S. & TAMBLYN, R.M. Problem ­ based learning. An Approach to Medical Education New York: Springer, 1980.
• ⁴
  BARROWS, H.S. A taxonomy of problem-based learning methods. Medical Education, 23: 321- 29, 1986.
• ⁵
  ENGEL, C.E. & CLARKE, R.M. Medical education with a difference. PLET, 16: 70-87, 1979.
• ⁶
  HARDEN, R.M.; SOWDEN, S. & DUNN, W. R. Educational strategies in curriculum development: the SPICES model. Medical Education , 18: 284 -97, 1984.
• ⁷
  NEHARI, M. & BENDER, H. Meaningfulness of a learning experience: a measure of educational outcomes in higher education. Higher Education, 7: 1-11, 1978.
• ⁸
  NORMAN, G.R. & SCHMIDT, H.G. The psychological basis of problem-based learning: a review of the evidence. Ademic Medicine, 67: 557-65, 1992.
• ⁹
  SOBRAL, D.T. Integração interdisciplinar no ensino pré-clínico do aparelho digestivo: descrição e avaliação. R. Bras. Educ. Méd., 7: 137-43, 1983.
• ¹⁰
  SOBRAL, D.T. Self-report visual scale of course appeal. Higher Education , 23: 321-29, 1992.
• ¹¹
  SOBRAL, D.T. Esino baseado em problemas. Anais do XXX Congresso Brasileiro de Educação Médica. In: R. Eras. Educ. Méd ., 16: 98-99, 1992.
• ¹²
  SOBRAL, D.T. Motivação para aprender e aprendizagem baseada em problemas. Submetido para publicação
• ¹³
  THOMPSON, D.G. & WILLIAMS, R.G. Barriers to the acceptance of problem-based learning in medical schools. Stu. higher Educ., 10: 199-204.
• ¹⁴
  WALTON, H.J. & MATTHEWS, M.B. Essentials of problem-based learning. Medical Education , 23: 539-58, 1989

• 1
  NB. - Comunicação preliminar apresentada no XXX Congresso Brasileiro de Educação Médica¹¹.

Tabela I
Resultado de duas medidas de avaliação de aprendizado dos alunos de medicina na aprendizagem baseada em problemas

Faixas de Escores	Exame de aresolução De Problemas	Desenvolvimento de De Habilidades
Superior (=> 70%)	257 (63,1)	249 (70,8)
Média (<70 = > 50%)	147 ( 36,1)	114 (27,5)
Inferior ( < 50%)	3 (0,7)	(1,7)

• (a) Descrição em Métodos Os dados referem-se ao número e percentual dos participantes

Tabela II
Médias e desvios padrões dos escores das seções do inventário de valorização de curso na aprendizagem baseada em problemas

Seções	Média	Desvio padrão	Min-Max (a)
Valorização do curso	31,02	4,22	9-36
Aprendizado de conteúdo	31,68	3,54	9-36
Aprendizado pessoal	26,35	4,33	9-36
Aprendizado de condutas	27,40	3,71	9-36
Pontuação total	116,45	13,38	36-114

• (a) Faixas de pontuação das seções do Inventário

Tabela III
Distribuição de modo de adaptação dos participantes antes e depois da incorporação da aprendizagem baseada em problemas

Fases Educacionais	Modo de Adaptação (a)
	Plena	Parcial
Integração interdiciplinar simples	103 (53,6)	89 (46,3)
Aprendizagem baseada em problemas	318 (77,3)	22,6)

• (a) Inferido das medidas de afeto primário: ver Métodos Os dados referem-se ao número e percentual dos estudantes Qui-quadrado = 33,8 df = 1 p < 0,001

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  15 Jan 2021
• Data do Fascículo
  May-Aug 1994