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IDÉIAS SOBRE SEMIOLOGIA MÉDICA E SEU ENSINO

"Tous... pratiguent la semiose comme monsieur Jourdain faisait de la prose: sans le savoir" "Un symptôme patologique est un signe dans la mésure óu il existe un code (qui est la semiologie medicale) " Umherto Eco - Le Signe

O uso do termo criado por Ferdinand de Saussure - Semiologia - em substituição a Propedêutica tem, quando nada, um mérito: é um ponto de contato entre a linguagem médica e a dos outros ramos do conhecimento atual. Assim como todos os homens aprendem a fazer Semiologia na vida diária, procurando e interpretando sinais para tomar decisões ou ter melhor ajuste com o seu meio e os seus semelhantes, o médico se apóia nessa ciência para fixar sua conduta com aquele com o qual estabeleceu a mais peculiar das intimidades - o doente.

É comum que se considere a Semiologia como a base do diagnóstico, esquecendo-se sua outra finalidade: o prognóstico. Isso se dá, a meu ver, por ser o prognóstico a mais traiçoeira das tarefas a que se obriga o médico. Não só a natureza humana tem mistérios que fazem o curso das doenças serem diferentes de pessoa para pessoa, algumas apresentando resistência terrível às mais graves situações, outras se mostrando indefesas frente a ataques que pareciam banais; mas, também, porque os recursos terapêuticos do dia de hoje permitem combate eficaz a um grande número de doenças, curando-as, ou permitindo um equilíbrio mais ou menos estável entre elas e suas vítimas, fazendo com que a luta contra as doenças seja, às vezes, prolongada e cheia de imprevistos. Para nosso desalento esses imprevistos são causados, muitas vezes, pelo fantasma que nos acompanha dia e noite: a iatrogenia. Nunca o Primum non nocere foi mais atual. A iatrogenia já se tomou (felizmente) do conhecimento geral das pessoas. Ela faz com que o semiota procure os sinais diagnósticos e prognósticos, ao mesmo tempo que se policia contra suas falhas e procura, com angústia, as evidências dos efeitos nocivos, evitáveis ou não, da sua atividade.

Nunca a Medicina foi benquista por todos. Basta ler dois luminares da espécie humana. Montaigne e Bernard Shaw, para sentir como nosso trabalho foi criticado, muitas vezes com inteira justiça. Essas críticas são úteis ao nosso aprimoramento e devem trazer a humildade necessária à nossa atividade humana, portanto, imperfeita. Já se falou na iatrofobia das gentes, mas é a nós, médicos, que esse medo cai como uma luva.

O médico tem que ser o semiota de si mesmo, procurando, sem parar, os sinais da sua debilidade.

Sem o conhecimento firme de Semiologia não há médico (e não apenas clínicos) que possa trabalhar com sucesso. Seu ensino tem, portanto, importância crucial, e não pode ser deixado a cargo de iniciantes ou de medíocres e sim entregue a profissionais de alta competência. A matéria já era importante na época em que os recursos terapêuticos eram escassos e trouxe fama a Joseph Skoda, de Viena. Hoje, que o avanço da Medicina é espantoso em certas áreas, o “skodismo" é ainda mais vital, já que o diagnóstico preciso e oportuno leva à ação terapêutica que pode significar a diferença entre a vida e a morte.

A Semiologia tem que ser ensinada de maneira prática e agradável, para que seu estudo se torne um hábito para toda a vida, independente da área de atuação do médico. A época em que é ministrada é a mais difícil para os estudantes, pois marca a passagem entre o aprendizado da Biologia Humana e a prática com doentes, finalidade central da nossa profissão. É quando se dá o maior número de desistências do curso e quando os problemas emocionais afloram. É quando todos sofrem por terem contato íntimo e diário com a doença e a morte.

A matéria exige tempo, um tempo muitas vezes perdido com o ensino de assuntos que terão, no máximo, interesse para uma minoria. A proliferação de disciplinas no Curso Médico ou é uma ignorância ou uma maneira de empregar mais gente. A Semiologia exige além de tempo, calma; seu ensino não pode ser apressado e superficial, o professor tem que manter com o aluno uma intimidade profissional e um convívio ameno para avaliar seu aprendizado e ajudar a resolver os problemas que essa nova fase da sua vida lhe trouxe.

Devem ensinar Semiologia os clínicos, mas não só eles. Do cirurgião ao psiquiatra todos os especialistas tem que se envolver com ela. As aulas teóricas não deverão jamais descambar para retórica vazia que pode despertar sono ou aplausos, mas que pouca ou nenhuma utilidade terá. O desprestígio das aulas teóricas se deve muito a que, às vezes, elas são dadas por quem não tem a menor noção de didática, entendida essa não como a arte de apagar o quadro-negro, Perdão, de giz...; mas como a capacidade de transmitir conhecimentos e estimular o auto-aprendizado.

O ensino prático não admite mais a visão de um doente cercado por uma multidão de alunos e um instrutor, levando à pobre criatura, na melhor das hipóteses, o medo, e, na pior, o desespero. Da mesma forma os estudantes não devem circular em bandos pelas enfermeiras para ouvir um sopro ou palpar um fígado. O aluno tem que fazer parte dos quadros das enfermarias, tem que ter função definida no trato com doente, seguir normas disciplinares e ter ajuda de internos, residentes e do corpo clínico. Ele terá os seus doentes os quais, tratados com respeito e carinho, quase sempre se tornarão seus amigos. “Quando um estudante se preocupa com o doente es tá começando a agir como médico'” (William Norgan e George Engel em “The clínical approach to the patient”). A profunda e vergonhosa disparidade cultural e social entre médicos e doentes, nos hospitais públicos brasileiros, trará dificuldades enormes à colheita das histórias por iniciantes na prática semiológica. Mais uma vez o tempo se mostrará um fator essencial mas, vencido esse obstáculo, poderemos ter uma magnifica relação “médico - paciente”, criada por estudantes bem treinados em Semiologia.

Nem só em enfermarias pode se ensinar, mas é lá que o ensino tem que começar e nunca os estudantes poderão deixar de freqüentá-las. As emergências e ambulatórios poderão receber alunos em final de aprendizado, desde que eles jamais deixem de ter ajuda e orientação docente. Da mesma forma nem só no Hospital Universitário se poderá aprender. Outras instituições poderão ser usadas, desde que aí o padrão da Medicina seja comparável ao que deve ser exigido das Universidades. Nunca, entretanto, a Universidade poderá abdicar do direito e do dever de ser a única responsável pela formação dos seus alunos. Onde houver alunos deverão estar professores, da mesma forma que não deve haver professor sem aluno e, mais importante que tudo, sem doentes.

Na era da explosão tecnológica a Medicina se tomou cara demais em todos os países. A economia médica se tomou uma preocupação para as nações ricas e um pesadelo para as pobres. Através dos meios complementares de diagnóstico os alunos começarão a tomar conhecimento desse grande problema e terão que aprender que nenhum exame tem valor sem uma boa história e o uso meticuloso da inspeção, palpação, percursão e ausculta; e principalmente do uso da inteligência e do bom senso. Saberão que não se pede exames por serem glamourosos (Paul Cutler - Problem Solving in Clinical Medicine) mas para que sejam auxiliares do diagnóstico. Numa terra em que nem a comida, nem a casa, nem a roupa, nem o transporte, nem o lazer, fazem tanta diferença entre o rico e o pobre quanto a assistência médica, é preciso enfiar na cabeça dos jovens, teoricamente menos corrompidos, que todos os traumatizados de crânio, por exemplo, em Nova Iorque ou em Nova Iguaçu, têm direito, no mínimo, a uma tomografia. Para que uma nação agüente isso é preciso que o número de doentes seja o menor possível e os que adoecerem sejam bem examinados clinicamente, para que não se peçam exames inúteis ou, pior ainda, nocivos. Essas noções farão que os médicos jovens deixem de ser apenas remendões, como Amarino de Oliveira um vez se referiu a todos nós, se interessando por tudo aquilo que a sociedade possa fazer para melhorar a vida das pessoas: e no dia a dia da profissão aprenderão a não pedir exames por insegurança ou desfastio. O trilhão de dólares que os Estados Unidos gastam anualmente em assistência médica, mesmo deixando no sol e no sereno da desassistência mais de 10% da sua população, devem ser um alerta para nós que temperamos uma Medicina primitiva com os molhos preparados, com requinte, nos hospitais e serviços sustentados pelo que sobra da fortuna dos donos do Produto Interno Bruto.

O aprendizado envolve uma cobrança. Alguns não aprendendo por falta de estudo ou de inteligência. As provas devem ser rigorosas e honestas. Não é aceitável a aprovação automática que sela o acordo entre os que fingem ensinar e os que fingem aprender. Essa rigidez impede que os docentes se acomodem a um ensino burocrático não se envolvendo, visceralmente, com o processo de incutir conhecimentos.

A Semiologia que se baseia numa trípode formada pela Anatonomia, pela Fisiologia e pela Patologia ilumina toda a Ciência Médica e faz parte do âmago da Arte que a Medicina jamais poderá deixar de ser.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 1994
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