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Condições da Formação do Profissional na Área da Saúde na UFRJ: a Faculdade de Medicina

Academic Requirements for Health Professionals at the School of Medicine of the Federal University in Rio de Janeiro

Resumo:

A investigação abrange, no conjunto, a percepção e a avaliação da formação médica na UFRJ por cinco segmentos nela envolvendo direta (alunos docentes, gestores e egressos da Faculdade de Medicina) ou indiretamente (usuários das unidades hospitalares da UFRJ). São apresentados os resultados parciais do segmento dos alunos, cuja análise forneceu indicadores teóricos para a investigação dos demais segmentos. Categorias teóricas comuns subsidiam a elaboração dos instrumentos de avaliação a serem aplicados aos demais grupos, de modo a obter um panorama global da formação. O estudo desenvolvido nessa fase consistiu em: a) seleção da amostra; b) formação, pré-testagem e aplicação dos questionários; c) análise dos resultados dos questionários aplicados. Os critérios de interpretação derivaram do cruzamento entre as demandas e críticas dos alunos e os objetivos e proposições do currículo vigente, sem perder de vista as condições da formação do médico na UFRJ, objeto da pesquisa. Os pontos que emergiram desse cruzamento foram agrupados em temas.

Palavras-chave:
Educação Médica; Currículo; Prática Profissional

Abstract:

This research covers the perception and evaluation of medical training at the Federal University in Rio de Janeiro (UFRJ) by groups directly involved (students, faculty, administrators, and alumni) or indirectly involved (user of University hospital services). The article discusses partial results for students, proving theoretical indicators for investigating the others groups. Common theoretical categories supported the elaboration of evaluation instruments to be applied in the other groups, in such a way as to obtain an overview of medical training. The study developed in this phase consisted of the following: a) sample selection; b) formulation, pre-testing, and application of questionnaires, and c) analysis of results of questionnaires. The interpretation criteria resulted from a cross-analysis of the demands and criticisms by students and the objectives and proposals of the prevailing curriculum, without losing sight of physician training conditions at UFRJ, the object of the study. The points emerging from this cross-analysis were grouped thematically.

Key-words:
Education, Medical; Curriculum; Professional Practice

INTRODUÇÃO

Tradicionalmente conhecida como um lugar onde se produz conhecimento por meio das pesquisas, formam-se profissionais e realizam-se ações para maior aproximação com a sociedade por meio da extensão, hoje exige-se da universidade, com mais intensidade, competência nessas ações, sobretudo o compromisso com a formação integral dos cidadãos egressos.

Resultado dessa exigência, no campo específico do ensino médico, o movimento nacional para sua revitalização vem mobilizando escolas e órgãos gestores, no sentido de reformular currículos e programas da formação nessa área. Os grandes e importantes avanços da ciência e da tecnologia e as significativas mudanças nas condições de vida da população devem ser incluídos nos novos programas, o que certamente deverá se acompanhar de novos métodos de ensino e, por conseqüência, de novas formas de aprender.

No Centro de Ciências da Saúde da UFRJ, a preocupação com o ensino não é recente. Desde a criação de órgãos para a gestão do ensino nas Unidades, às iniciativas de reestruturação curricular e ainda o debate sobre a criação de novas formas de avaliar e organizar cursos, todas essas ações indicam um potencial de mobilização disponível para se implantar um projeto que trate especificamente da melhoria da qualidade do ensino e da revisão da formação profissional.

Essa preocupação integra-se ao movimento também nacional de avaliação dos cursos de graduação, por meio do Exame Nacional de Cursos, da avaliação dos cursos de pós-graduação com novos critérios da Capes, do estímulo à docência e dos trabalhos que vêm sendo realizados pela Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico (CINAEM)11. Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico (CINAEM). Relatórios das primeira, segunda e terceira fases, 1998, 1999, 2000. (mimeo)., pela Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM)22. Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM). Proposta de diretrizes curriculares para o curso de Medicina,1999. (mimeo). e pela Rede Unida. A busca da excelência é a meta a se atingir com iniciativas conjuntas que promovam o aperfeiçoamento das práticas acadêmicas, atendendo aos programas de governo, às expectativas dos docentes, dos discentes e, sobretudo, da sociedade, que espera da universidade uma resposta que justifique o investimento que nela se faz.

O Nutes, um órgão produtor de conhecimento e de materiais educativos no campo da tecnologia educacional para a saúde, foi chamado a contribuir nesta empreitada, sendo-lhe atribuído o papel de parceiro no processo de reflexão sobre a prática docente e de articulador para a construção de novos modelos e novas práticas pedagógicas nas Unidades que compõem o Centro de Ciências da Saúde da UFRJ e é nesse contexto que se realiza este projeto.

Neste processo, têm-se criado algumas expectativas do corpo docente e gestores do ensino das Unidades do CCS em relação ao Nutes. Há sinais de que, no bojo das exigências sociais e governamentais para a melhoria da qualidade do ensino nas universidades, esperam-se respostas acerca do que fazer e de como fazer para que os cursos possam atender a estas demandas.

Com base no princípio do trabalho coletivo, o Nutes vem participando das discussões sobre planos estratégicos para garantir a qualidade aos cursos de graduação, na Câmara de Ensino de Graduação do CCS, com coordenadores, diretores e professores das diferentes Unidades. Com eles foram construídos os problemas centrais que serão tratados a curto, médio e longo prazos e com eles estão sendo implantadas ações, especificas a cada uma das Unidades, necessárias ao alcance dos objetivos, que incluem, principalmente, a reforma dos currículos e alterações na prática docente.

Tem se, então, como problema em investigação, o que está acontecendo no curso de Medicina, como são desenvolvidas as atividades de ensino e prática profissional, quais os seus efeitos na inserção do profissional formado em diferentes contextos, como se está pensando a reforma curricular para a crítica do modelo de atendimento nas unidades de saúde internas e externas à UFRJ e, mais a médio prazo, propor indicadores metodológicos que proporcionem uma mudança mais consequente e apropriada ã construção de um currículo para uma nova ordem social.

O QUEÉ EO QUE PRETENDE O PROJETO

O Projeto Condições do Formação do Profissional na Área de Saúde da UFRJ: o Faculdade de Medicina, cujo processo de investigação está em curso, tem como objetivos identificar e analisar os fatores condicionantes da formação médica no interior da universidade e no mundo do trabalho, e examinar a possibilidade de interação entre esses fatores em diferentes contextos de aprendizagem. A pesquisa volta-se para propósito de natureza mais abrangente, qual seja, o de gerar e formular indicadores metodológicos, a serem propostos à Faculdade de Medicina da UFRJ, que permitam construir práticas educativas compatíveis com as mudanças no mundo do trabalho, em especial no campo da saúde, planejar formas de ação para implantar as mudanças necessárias no currículo, acompanhar e avaliar a prática docente a ele articulada.

A concepção de currículo que se vislumbra e permite analisar os resultados da investigação pode apoiar as ações de sala de aula (ou de outros espaços de ensino e de aprendizagem), “encharcando” o pro­ cesso de construção do conhecimento de estratégias discursivas que formem “eus” competentes na argumentação e nas formas de interação, capazes de coordenar ações sociais cada vez mais complexas, de modo solidário e individualmente autônomo.

Ações já realizadas e em curso articulam-se ao propósito anunciado, demonstrando que o projeto tem obtido alguns avanços1 1 A faculdade de Medicina realizou em 2000 e 2001, o fórum treinamento em Serviço, com a participação da coordenadora do Projeto “Condições da formação do profissional da área da saúde na UFRJ: a Faculdade de Medicina”, dos alunos que dele fazem parte e que, juntos com a coordenação da Graduação da Faculdade, contribuíram com informações obtidas no referido Projeto. Acrescenta-se a esse desdobramento do Projeto um outro encaminhado ao CNPq, e aprovado no mérito, para implantação de um laboratório de desenvolvimento de Competências, uma parceria do LCE e Faculdade de Medicina, para o trabalho prático dos alunos com manequins. . Os objetivos da pesquisa antes apresentados desdobram-se em outros de alcance mais imediato, representados nas seguintes formulações:

  1. identificar e analisar as bases teóricas sobre as quais estão sendo operadas as mudanças curriculares em andamento

  2. estudar as formas de realização do currículo desenvolvido no curso de Medicina, identificadas no inquérito com alunos, docentes, gestores, egressos e usuários;

  3. estudar as formas de inserção dos egressos no mundo do trabalho e as representações que têm sobre a formação adquirida na Faculdade:

  4. identificar e avaliar o nível de satisfação do usuário dos serviços prestados no atendimento clínico realizado nas Unidades hospitalares da UFRJ.

Com vistas ao alcance desses objetivos, o Projeto investiga cinco segmentos, direta ou indiretamente envolvidos com a formação do médico na UFRJ - alunos, professores, gestores, egressos do curso e usuários das Unidades hospitalares da Universidade - e os documentos curriculares disponíveis na Faculdade.

DE ONDE PARTE NOSSO "OLHAR" SOBRE O PROJETO

A investigação proposta está nucleada pelas questões curriculares, articuladas com os contextos de aprendizagem e com a prática docente no CCS/UFRJ. A concepção adotada nesse projeto enfatiza o currículo como um processo que se desenvolve na escola, produzindo práticas, conhecimento, interações e conflitos.

A força da idéia de instrumentalidade e formalidade do currículo, a qual ainda sobrevive cm muitas das instituições de formação profissional, tem raízes no paradigma da racionalidade instrumental, característico da modernidade2 2 O conceito de modernidade tem diferentes significados entre os clássicos da teoria da sociedade. Para Weber, segundo Habermas, significa a cristalização das sociedades modernas em torno da empresa capitalista e do aparelho burocrático do Estado; para Habermas, é um projeto a ser resgatado na sua originalidade (um atitude cultural), uma vez que, substituído pelo conceito de “modernização”, descaracterizou-a, transformando-a numa espécie de “filosofia de uma época” que já não encontra espaço em um mundo que precisa ser “administrado” pela razão. .É possível defender que essa idéia de currículo como um simples plano de estudos ou como um conjunto de disciplinas organizadas em períodos desvia e encobre as possibilidades do esquema formal de se transformar numa ação orientada ao entendimento, ou mais precisamente, numa ação comunicativa, que tem a linguagem como meio de sua realização; portanto, uma ação linguisticamente mediada, cuja meta é o consenso, mas um consenso construído na base dos argumentos de que os participantes se utilizam e trocam com pretensão de validade3 3 Pretensão de validade é um pressuposto da teoria da Ação Comunicativa de Habermas para significar a concepção de consenso: diz respeito à pretensão de verdade, de correção e de sinceridade do conteúdo do ato de fala entre participantes em interação. .

A opção por esse enfoque é resultante das modificações produzidas pelo processo de modernização que vem ocorrendo nos últimos 25 anos nas esferas científica, social, económica e política, com conseqüências nas instituições, em especial nas escolas, com reflexos no currículo. Seus efeitos refletem-se nos incontáveis avanços para a melhoria das condições devida produzidos pela ciência, mas também em vários impasses para os quais ainda não se têm respostas. A teorias que até então davam conta das interpretações sobre os fatos sociais, tanto em nível do cotidiano mais próximo, quanto no das macrorrelações, encontram-se abaladas pelas rápidas e muitas vezes traumáticas transformações sociais, políticas e económicas, alterando, substancialmente, os paradigmas da investigação cientifica.

No campo da saúde, o reflexo destas alterações pode ser identificado na relação do profissional com o paciente, que nos últimos anos vem sofrendo certo esgarçamento e tomando características impessoais, fragmentando a comunicação, a confiança e o entendimento recíprocos. Este esgarçamento talvez possa ser explicado, entre outras razões, pelo precário atendimento público na saúde e pela carência de recursos da maioria da população brasileira, pela privatização do sistema e pelo pouco investimento do Estado na saúde.

As alterações no mundo do trabalho influenciam as práticas educacionais e se refletem no currículo quando entendido como construção do conhecimento, como configurador da prática pedagógica na formação profissional, como articulador da teoria com a prática. O cenário no qual ele acontece caracteriza-se por um conjunto de relações, entre as quais algumas significativas e provocadoras, tais como as formas de produzir e de adquirir o conhecimento, a conquista da autonomia do sujeito no interior das relações de poder, o domínio da linguagem e os processos interativos, as possibilidades de emancipação e os mecanismos que qualificam para o trabalho. Entendê-lo nessa perspectiva implica ter como referência determinadas categorias teóricas que permitam a aproximação a esse acontecer, na tentativa de captar a articulação dos elementos que o produzem. Supõe, também, um método que possibilite confrontar esses elementos pela crítica, identificando relações e possíveis formas de integração. Trabalho, interação, conhecimento, competência e educação em saúde são categorias que possibilitam construir novas concepções, assim como analisar as estruturas, os contextos e as práticas curriculares, nos termos acima descritos.

A pesquisa confronta-se com duas questões teórico-metodológicas que não têm solução simples: uma, inerente aos estudos empíricos de universos muito diferenciados, diz respeito à construção de instrumentos que permitam produzir dados em alguma medida comparáveis sobre os diferentes segmentos investigados, ainda que sua diversidade não admita compará-los em todos os aspectos; a segunda questão, que se articula à anterior, volta-se para o fato de que o estudo dos diferentes segmentos não tem um sentido em si, devendo essa fase constituir um diagnóstico que permita identificar os pontos críticos da formação médica e indicar alguns dos caminhos para seu enfrentamento. Assim. o objetivo não é proceder à investigação aprofundada de cada um desses segmentos, e sim determinar as particularidades de cada um deles e suas relações com a formação profissional, à luz das categorias teóricas mencionadas. Essas duas questões dizem respeito a todas as fases da investigação, interferindo na composiç.to do universo amostral, na construção dos instrumentos e afetando fortemente a análise e discussão dos materiais obtidos. É necessário considerar, além disso, que há uma dinâmica gerada pelas relações no interior dos cinco segmentos examinados, e entre eles, que interferem na formação do médico, o que se torna tanto mais relevante quando se observa que não só e representam universos muito distintos, mas são internamente heterogêneos, além do que têm diferentes formas de relacionamento com a Universidade.

OS PRIMEIROS RESULTADOS

Por se tratar de estudo complexo, que envolve múltiplas variáveis, a pesquisa está estruturada em quatro momentos, cada um abrangendo segmentos distintos, a serem realizados sucessivamente, de modo que cada um subsidie e/ou complemente os seguintes, garantindo informações cuja necessidade tenha sido evidenciada na fase anterior, além de garantir consistência das informações, uma vez que são obtidas em contextos e momentos diversos. Esses quatro momentos relacionam-se aos diferentes grupos em estudo: a) alunos do 4o, 6o e 9o períodos do curso, procurando-se cobrir diferentes fases da formação pela qual passa o estudante: b) egressos da Faculdade de Medicina (FM) com inserção no mercado de trabalho ou em residência médica fora da UFRJ: e) usuários de Unidades hospitalares da UFRJ cujo atendimento é acompanhado pelos alunos nos ambulatórios e enfermarias tomados corno campo de prática; d) professores e médicos em função docente, juntamente com os gestores da FM. Desses quatro grupos, optou-se por iniciar com o universo dos alunos, por serem aqueles que interagem diretamente, de forma continuada e global, com a dinâmica da formação. É essa a parte concluída da investigação, à qual se refere o trabalho aqui a presentado.

ELABORAÇÃO E APLICAÇÃO DOS INSTRUMENTOS DE PESQUISA

Os instrumentos de pesquisa elaborados, aplicados durante o primeiro período do ano letivo de 2000, contemplaram, segundo a avaliação dos alunos, as formas de realização do currículo, seu grau de satisfação com o curso e com o corpo docente, seus comentários e sugestões, além de sua visão frente a questões e condições éticas, sociais e econômicas relacionadas à formação e à prática médicas. Para subsidiar a elaboração desses instrumentos, foram analisadas e comparadas, com base nas categorias teóricas, avaliações de modelos de ensino médico e projetos relacionados, em níveis nacional e local, incluindo avaliações anteriores da Faculdade de Medicina da UFRJ55. Universidade Federal do Rio de Janeiro - Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde/Faculdade de Medicina. Relatório de avaliação da Faculdade de Medicina da UFRJ, Rio de Janeiro, UFRJ, 1997.),(66. Comissão Permanente de Avaliação (COOPERA). Relatório final de avaliação da UFRJ. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998.),(77. Brasil. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação em Enfermagem, Medicina e Nutrição. Parecer no: CNE/CES 1.133/2001, aprovado em 07/08/2001. e um es tudo pormenorizado dos objetivos e proposições decorrentes da última reforma curricular do curso de Medicina da UFRJ (1995)4 4 A última reforma curricular do curso de Medicina da UFRJ, base do atual currículo, teve sua primeira fase formalizada em 1991 e culminou com a aprovação do atual em 1995, tendo entre os principais objetivos a formação de médicos com sólida base científica, capazes de prevenir, diagnosticar e tratar doenças prevalentes na população e estabelecer adequada relação médico-paciente-equipe de saúde, além de desenvolver comportamento ético. Suas principais modificações incluem: ampliação do calendário escolar para 22 semanas, sem acréscimo significativo nos conteúdos das disciplinas, de forma a permitir abertura de turnos livres da grade curricular; implantação do currículo pleno, composto pelas disciplinas obrigatórias e pelas complementares (eletivas de escolha condicionada nas quais o aluno deve obter no mínimo 16 créditos); maior integração do saber, flexibilização curricular e adoção de práticas pedagógicas que confiram maior autonomia aos estudantes. , além da análise de documentos e diferentes registros sobre a vida acadêmica da Faculdade de Medicina, ementas, objetivos, programas e metodologia de todas as disciplinas oferecidas aos alunos durante o curso. Também subsidiaram a elaboração dos instrumentos de pesquisa estudos do projeto Cinaem (Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico), das propostas de diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação em Medicina feitas pelo Ministério da Educação, pela Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM) e pela CINAEM.

Cabe lembrar que o curso de Medicina da UFRJ, com duração de seis anos, é composto por 12 períodos, sendo os três últimos dedicados exclusivamente ao internato, estágio curricular sob a forma de treinamento em serviço, com supervisão docente. Foram pesquisados alunos do 4o, 6o e 9o períodos por meio de questionários com questões abertas e fechadas, além de entrevistas abertas com alunos sorteados do 9o período (último antes do internato). A escolha desses períodos tem relação com os propósitos mais amplos da pesquisa, voltados para a avaliação das competências que são desenvolvidas cm diferentes momentos do curso e para a avaliação das peculiaridades da proposta curricular vigente, tais como os “Programas Curriculares Interdepartamentais” (PCIs), componentes curriculares que pretendem oferecer aos alunos uma visão integrada das diferentes áreas do conhecimento, geralmente organizadas em outras escolas em disciplinas isoladas. Nossa opção foi avaliar a integração nos PCIs da área básica - que compreendem saberes de anatomia, histologia e embriologia, bioquímica e fisiologia de cada sistema do corpo humano -, uma vez que os da área profissional, sob responsabilidade dos departamentos de Clínica Médica, Cirurgia, Pediatria, Psiquiatria e Saúde Mental, Radiologia e Patologia, possuem estrutura disciplinar fragmentada, que dificulta a integração de seus conteúdos teóricos à prática, à exceção da estrutura disciplinar dos departamentos de Patologia e Clínica Médica, que oferecem aos alunos a possibilidade de integrar suas atividades e o do PCI Atenção Integral à Saúde (AIS), incluído na pesquisa por propor maior integração dos departamentos que dele participam. Além disso, o AIS representa, ainda, o primeiro contato dos alunos com a chamada área profissional e introduz a Atenção Primária de Saúde no curso de Medicina da UFRJ, em consonância com as discussões sobre ensino e prática médica em níveis nacional e mundial5 5 Para melhor compreensão do que propõe o AIS e seu significado no contexto nacional e mundial de discussão sobre a educação médica e sobre atenção à saúde, ver Rocha, GW, 1999. .

Os alunos do 4° período foram escolhidos para participarem da pesquisa por terem recém-concluído os PCIs da área básica e o PCI AIS, podendo avaliá-los melhor, e por fornecerem informações mais atuais. Os alunos do 6o período foram eleitos por estarem finalizando a transição entre básico e profissional e porque nesse período se dá, pela primeira vez, a inserção dos alunos na rotina das enfermarias do Hospital Universitário (HUCFF), proporcionando sua integração à equipe de saúde e as primeiras experiências de relação continuada com os pacientes, acompanhando-os diariamente do início ao fim de sua internação no HU. Já os alunos do 9o período foram selecionados porque, em sua maioria. estão inseridos em atividades de estágio em emergências e/ou centros de terapia intensiva fora da Universidade e por terem uma visão global do curso, já quase concluído. Por terem essa possibilidade de avaliar mais amplamente o curso, foram realizadas entrevistas com alunos desse período, escolhidos por sorteio, aos quais foi feita a seguinte pergunta aberta: “Quais são os principais problemas do curso de Medicina da UFRJ?”. Os objetivos dessas entrevistas foram, além de contribuir com elementos para análise dos dados quantitativos obtidos com os questionários, fornecer subsídios à elaboração de um questionário para médicos recém-formados, egressos da Faculdade de Medicina da UFRJ (FM/UFRJ). A estes, na segunda fase da investigação, serão apresentados os problemas levantados, solicitando-lhes que avaliem a relevância e a intensidade de cada problema, do ponto de vista de sua inserção na prática profissional.

A aplicação do questionário foi antecedida por um pré-teste com pequenos grupos de alunos, medida que proporcionou correções do instrumento principal e mostrou a necessidade de inserir, naqueles destinados ao 6º e 9o períodos, uma questão aberta sobre alterações que os alunos gostariam de introduzir na grade curricular.

Apesar de todos os percalços derivados da greve de funcionários e professores da Universidade, que coincidiu com o início da aplicação dos questionários, o número de respondentes foi expressivo6 6 Quarto período: respondidos 93% dos 87 questionários aplicados; 6º período: respondidos 76% dos 71 aplicados; 9º período: respondidos 73% dos 80 aplicados. , principalmente por parte dos alunos do 4o período, que, ao entregarem suas respostas, solicitavam que avaliações desse tipo fossem mais frequentes no curso.

Tabulação e Tratamento dos Dados

Numa primeira fase, foram tabulados os dados de cada período separadamente e, a seguir, comparados os resultados das questões comuns aos 6º e 9º períodos, a fim de avaliar possíveis diferenças de visão relacionadas com as diferentes fases do curso nas quais se encontram os dois grupos. Aquelas que evidenciaram opiniões distintas foram interpretada separadamente para cada grupo, sendo então confrontados os resultados, procurando-se entender o porquê das diferenças. Para interpretação das questões restantes, que não mostraram diferença significativa entre os períodos, foi utilizado o somatório das respostas dos dois grupos.

Quanto à avaliação dos professores, feita pelos alunos, optou-se, nos questionários dos 6º e 9º períodos, por dividi-los em grupos de acordo com o ciclo em que atuam - básico ou profissional -, sendo o segundo grupo subdividido em professores da parte prática e da parte teórica. Solicitado aos alunos que atribuíssem graus (de 0 a 3) a características das visões dos professores em relação à prática docente, fez-se uma média dos graus obtidos, por característica, em cada grupo de professores. As médias foram comparadas entre os grupos (básico e profissional e, no profissional, os da parte prática e os da parte teórica) e entre os períodos avaliados (6° e 9º).

Além das questões comuns aos dois períodos, os questionários destinados aos 6° e 9º períodos contiveram questões diferenciadas, específicas para cada penedo, referentes às suas peculiaridades e que, portanto, foram interpretadas separadamente, assim como todo o questionário do 4° período, que não teve pontos em comum com os outros.

As respostas às questões abertas e às entrevistas foram sistematizadas com base em dois critérios: a) críticas e sugestões dos alunos especificamente em relação às disciplinas do curso; b) depoimentos relacionados a questões mais gerais das formas de realização do currículo. Numa segunda fase, foram cruzados os dados obtidos, observando-se que as questões abertas e as entrevistas traziam informações semelhantes.

INTERPRETAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS

Os critérios para interpretação do material coletado foram de duas naturezas, utilizadas de modo complementar, sem perder de vista as condições da formação do médico na UFRJ, objeto da pesquisa. A primeira, derivada do cruzamento entre as demandas e críticas dos alunos e os objetivos e proposições da última reforma curricular, de 1995, convergiu para a incidência de respostas a questões diversas que permitiram agrupá-las em temas, descritos a seguir. Procurou-se avaliar, a partir dos dados coletados, se os objetivos e proposições do currículo vigente foram ou não atingidos, se estão ou não de acordo com as demandas dos alunos, e quais dessas demandas não foram contempladas. A outra, complementar e orientadora da análise desse cruzamento, procurou articular o sentido dos resultados à concepção teórico-metodológica que se discutiu e se tomou como referência das condições “ideais” da formação, de acordo com nosso olhar sobre currículo e as categorias que possibilitam construir novas concepções curriculares, outras estruturas de curso para (e em) novos contextos e práticas na área da saúde.

Tanto as respostas dos questionários quanto o discurso das questões abertas foram analisados segundo a concepção de que os conteúdos de ensino a serem selecionados e as oportunidades educativas oferecidas devem permitir ao aluno construir sua autonomia de pensamento, comprometer se com seu processo de aprendizagem, criar alternativas de interação com a comunidade para com ela também aprender. Posta em prática, essa concepção traduz-se em uma formação do pessoal da saúde que se caracteriza pelo domínio dos conhecimentos científicos e técnicos que fundamentam suas ações, ao mesmo tempo em que desenvolvem competências (habilidades, valores e atitudes) para comunicar-se adequadamente com os usuários dos seus serviços, conscientes da provisoriedade do conhecimento cientifico e da permanente alteração da dinâmica social. Desse “pano de fundo” foram extraídas as categorias referidas que orientaram, do ponto de vista qualitativo, a leitura das demandas e críticas dos alunos, cotejadas e tematizadas7 7 Cecília Minayo refere-se à análise temática pela descoberta de núcleos de sentido em uma comunicação cuja presença ou frequência signifiquem alguma coisa para o objetivo analítico visado. segundo os fundamentos metodológicos da concepção curricular adotada, a saber: domínio dos instrumentos do conhecimento, autonomia intelectual, problematização da realidade, aprendizagem pela participação em equipe e em redes de comunicação, provisoriedade do conhecimento científico como fundamento das ações, ensino centrado no aluno, desenvolvimento de competências para o trabalho, integração dos componentes curriculares fundamentada na complexidade e na interdisciplinaridade.

ANÁLISE TEMÁTICA

Turno livre

Incluído na grade horária com a ampliação do calendário na última reforma curricular, embora vá ao encontro das demandas dos alunos, parece ainda insuficiente, pelo pedido de aumento desse tempo livre por cerca de 80% dos alunos, principalmente para desempenharem outras atividades ligadas à Medicina: estágios em hospitais, dentro ou fora da Universidade e para estudo. Um menor número de alunos (30%) manifesta interesse em utilizar esse tempo para cursar disciplinas eletivas e um número menor ainda (13%) manifesta desejo de utilizá-lo em projetos de iniciação científica, dados que surpreendem, pois essas duas atividades representaram uma das principais motivações da ampliação do calendário e da implantação do currículo pleno.

Atividades de Estágio

Argüidos em relação ao apoio da Faculdade às atividades de estágio, 45% afirmam que a faculdade não apóia nem desestimula, 30% dizem que desestimula, enquanto 20% consideram o apoio razoável e somente 5% o consideram suficiente, o que nos permite afirmar que os alunos, de modo geral, consideram insuficiente este apoio. Ressalta o resultado do 9º período, no qual a maior proporção de alunos considera que a Faculdade desestimula atividades de estágio. Este resultado pode ser explicado pelo fato de um grande número desses alunos já estar procurando ou fazendo estágios, ou por estarem mais preparados para o exercício profissional, ou pelo exigência, por parte da Faculdade, de estágio em emergência após o 8º período.

As respostas indicam uma questão problemática e que merece ser mais amplamente explorada, quando se considera como uma das competências necessárias ao exercício profissional a resolução de problemas da saúde, para a qual se requer a integração dos conhecimentos teóricos à prática supervisionada nos serviços8 8 A integração ensino-serviço é um dos modelos de ensino que abre possibilidades para formação médica em outros espaços institucionais, ampliando a visão da prática profissional para além das decisões técnicas pela compreensão, por parte do aluno, dos diferentes determinantes do processo saúde-doença. 1010. Canesqui AM. Ciências Sociais e Saúde para o Ensino MédicoSão Paulo: HUCITEC , 2000.. Mas, segundo os alunos, não há na Faculdade tempo livre suficiente para essa atividade e espaço na grade horária para a discussão dessa experiência, que geralmente ocorre em locais fora da Universidade, sem supervisão de docentes da Faculdade, como se comprova em um dos depoimentos de aluno do 9º período: (...) a gente é totalmente sem supervisão mesmo. A gente acaba não aprendendo nada nesse tipo de estágio, acaba não aproveitando em termos didáticos, só na parte prática e aprendendo com muito vício mesmo, com muita coisa que não presta.

Teoria e Prática

Quando perguntados sobre as possibilidades oferecidas pela Faculdade para que exercitem na prática o que é aprendido em teoria, mais de 70% dos alunos respondem “as vezes”, enquanto somente 17% respondem “o suficiente”. Nas entrevistas, o problema mais recorrente sobre a integração teoria-prática refere-se ao curto tempo destinado à prática, e à qualidade dessa prática, considerada desconectada da parte teórica, como atesta um dos depoentes: (...) Um grande problema é o fato de não podermos passar por enfermarias de todas as especialidades (...); na parte teórica temos as especialidades, e em metade delas não temos a mínima experiência prática. O ideal seria que tivéssemos a parte teórica e para cada uma delas houvesse um correspondente prático (enfermaria e ambulatório).

Não surpreende o resultado, uma vez que se vem construindo o consenso sobre a necessidade de integração das ciências básicas com as ciências específicos e, no bojo dessa integração, os saberes teóricos com os contextos de prática para o desenvolvimento de competências gerais que preparem o aluno para enfrentar permanentemente novos desafios.

Conteúdos e Estrutura do Curso

Embora um dos objetivos do currículo seja priorizar os problemas médicos mais comuns da nossa população, os alunos consideram que o curso não se organiza de forma a atingi-lo. Os depoimentos falam por si: (...) eu acho que a gente passa muito tempo na teoria vendo coisa que a gente não vai usar, ou não vai lembrar. (...) A Faculdade não dá ênfase para o comum, ela dá ênfase para o raro. (...) Cada disciplina dá ao estudante a visão do especialista da área. São conhecimentos muito aprofundados sobre uma parte muito específica da medicina. (...) O clínico precisa saber DIAGNOSTICAR e saber para quem encaminhar.

Quando se referem ao ciclo básico os conteúdos sofrem mais restrições por parte dos alunos, que não os consideram básicos, mas sim complexos e muitas vezes incompreensíveis: (...) temas muito profundos em determinados aspectos que não tinham nem a menor utilidade para a gente, nem eram compreensíveis. (...) Você estuda, faz a prova e esquece, claro! (...) As coisas importantes, que realmente têm que ser dada, não são dadas, porque o pessoal se preocupa em dar os artigos, sabe, mais novos e que não trazem absolutamente conhecimento nenhum para a gente.

Sugerem a diminuição do tempo destinado ao ciclo básico e propõem maior integração com as disciplinas do curso profissional:

(...) O curso básico deveria ter menor duração, pois ele dura mais do que todo o internato (2 anos de básico e 1 ano e meio de internato), sendo esse último muito mais importante para a formação do médico. (...) É um curso muito longo (dois anos), gasto com matérias que são abordadas de forma pouco prática, pois os temas são muito específicos e certamente pouco conseguimos assimilar de tudo o que foi ensinado e pouco nos será útil no profissional.

(...) É básico, mas você não leva nada daquilo (básico) que você devia levar, então você acaba chegando em M5, M6, M7 tendo que rever tudo de novo. Então, eu acho que tinha que ter uma maior integração entre as coisas (...). A função do curso básico seria fornecer conhecimentos básicos para que o aluno entrasse no profissional, e não um curso independente e extenso.

A análise dos depoimentos a respeito da complexidade dos conteúdos das ciências básicas e do que os alunos esperam de um curso básico indica que eles fazem uma distinção entre conteúdos básicos e conteúdos de ciências básicas. Isso fica claro quando sugerem que os conteúdos básicos sejam abordados de forma objetiva num ciclo básico com menor duração. Por outro lado, sugerem que conteúdos mais complexos das ciências básicas se estendam pelo ciclo profissional e sejam abordados mais tardiamente no curso, pois (...) essa preocupação excessiva dos professores em tentar mostrar para a gente as coisas mais modernas da ciência, os últimos lançamentos nas maiores revistas cientificas, enfim...(porque os professores da UFRJ são professores que trabalham em pesquisas), por um lado eu acho bom porque a gente tem essa visão, só que essa visão é importante quando você já tem um pouquinho mais de tempo na Faculdade. No primeiro e segundo períodos isso não tem o menor sentido. ( ..) Na prática, você acaba precisando dessas coisas e quando você precisa você não tem, você tem que voltar, ou seja, o que eu sugiro é que tivéssemos a matéria de bioquímica, de biofísica, de patologia junto com o seu próprio módulo, ou seja, bioquímica de endócrino junto com clínica de endócrino e exames complementares tudo junto no mesmo módulo.

As críticas prevalentes relacionadas à falta de integração no curso vão além da relação entre prática e teoria, e entre os cursos básico e profissional; estendem-se à relação entre as disciplinas e os PCIs em geral, tanto no básico quanto no profissional, e contrapõem-se à proposta de interdisciplinaridade na geração e transmissão do saber, objetivo principal dos Programas Curriculares Integrados e uma tendência quase universal no campo científico.

Em relação às práticas pedagógicas, revela-se, também, a distância entre o objetivo de adorar práticas pedagógicas que proporcionem maior autonomia ao estudante, previsto na última reforma curricular e o que realmente acontece, conforme avaliação dos programas das disciplinas e opinião dos alunos. Há supervalorização, por parte da Faculdade, das aulas teóricas expositivas em detrimento de outras formas de aquisição de conhecimento preferidas pelos alunos. Segundo as respostas dos questionários, os alunos consideram ter um aproveitamento maior em termos de aquisição de conhecimento quando estudam sozinhos e quando participam de discussões em pequenos grupos, que são práticas pedagógicas coerentes com o desenvolvimento de sua autonomia, processo para o qual as aulas expositivas oferecem menor potencial:

(...) O método usado no curso de Hematologia (aprendizado baseado em problemas - PBL), no meu conceito é mais eficaz que o método clássico de aulas teóricas.

(...) A idéia das PCIs é muito boa (...). Mas para que isso aconteça é necessário que os professores se comuniquem. Algumas vezes chegamos a ter a mesma aula três vezes: uma vez dada pelo professor de histologia, outra pelo professor de bioquímica e finalmente pelo de fisiologia.

Na avaliação do PCI AIS feita pelos alunos do 4º período, podemos observar que, dos PCIs avaliados, é o que possui menor grau de integração. Na atribuição de graus de integração entre 0 e 3, 71% dos alunos atribuíram grau 0 a integração entre os conteúdos do AIS e 64% atribuíram grau 0 à articulação entre conteúdos práticos e teóricos do PCI. A avaliação também foi negativa em relação a outros itens questionados, quando os alunos foram solicitados a atribuir um grau de 0 (nunca ocorre) a 3 (sempre ocorre) em relação à participação do professor que orienta as atividades nos postos de saúde: 64% dos alunos atribuem graus 0 ou1, apenas 8,6% atribuem grau 3. O mesmo acontece quando os alunos são solicitados a dizer se os objetivos do PCI são ou não atingidos. A grande maioria considera que não o são, evidenciando a necessidade de um reformulação desse Programa, cujos objetivos são fundamentais à formação de médicos mais aptos a atuar nos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) e com uma visão mais ampla do processo saúde-doença, da interação médico-paciente, dos limites e possibilidades de intervenção da medicina

Avaliação dos Professores

A avaliação dos professores feita pelos 6º e 9º períodos revela clara distinção entre os docentes das áreas básica e profissional, que cruza com o teor das críticas feitas ao ciclo básico nas entrevistas, mas também parece estar relacionada diretamente com o desempenho dos docentes, conforme o seguinte depoimento: (...) Eu acho também que, no ciclo básico, a gente vê muitos pesquisadores e mestrandos dando aula pra gente. Então muitas vezes eles usam uma linguagem que parece que eles estão dando aula de pesquisador para pesquisador (...).

Em todas as características avaliadas - estímulo e orientação para o estudo dos alunos, conhecimento do programa da disciplina e do curso de Medicina, inserção dos alunos em seu trabalho em ambulatórios, enfermarias ou laboratórios, disponibilidade para esclarecimentos fora de saio de aula durante e após o período da disciplina, uso de exemplos e discussão da pertinência dos conteúdos com a prática médica, abertura para discussão sobre ética profissional - em relação às quais foi solicitado que os alunos atribuíssem graus de 0 a 3, os professores do básico obtiveram graus inferiores aos do profissional, sendo a média dos graus atribuídos a eles aproximadamente igual a 1,3, ou seja, inferior a 50%.

Já a avaliação dos professores do ciclo profissional é positiva, tendo a média dos graus obtidos pelos docentes da parte prática (2,3) superado em cerca de 10% aquela obtida pelos responsáveis pela parte teórica (2,1), o que pode ter relação com a grande demanda dos alunos por mais aulas práticas.

Em todos os quesitos, os professores da prática em médias superiores aos da teoria; a única exceção diz respeito ao conhecimento dos programas das disciplinas da parte teórica, em que a situação se inverte. Uma hipótese, a ser verificada posteriormente, no inquérito com os docentes, é a de que os responsáveis pela parte prática desconhecem ou conhecem menos o programa das disciplinas da parte teórica porque a própria estrutura curricular define para eles atividades desconectadas das atividades teóricas dos alunos. Não é prevista, na organização curricular, embora o seja nos objetivos do curso, uma Integração dos conhecimentos que serão adquiridos pelos alunos nas atividades práticas com os conteúdos abordados na parte teórica. Pretendemos Investigar os obstáculos a essa integração nos inquéritos com gestores, professores e médicos das Unidades hospitalares da Universidade que exercem função docente ao serem preceptores dos alunos em suas atividades práticas.

Comparando-se as avaliações dos professores feitas pelos 6º e 9º períodos, algumas diferenças chamam a atenção. A média dos graus atribuídos aos professores das disciplinas teóricas, no quesito “estimular o estudo dos alunos”, foi maior na avaliação pelo 6º do que pelo 9º período, e a avaliação global dos professores da parte teórica no 6° período é mais favorável do que no 9º. Essa diferença merece investigação mais aprofundada em relação a seus fatores determinantes, o que pretendemos realizar no cruzamento dos dados que obtivermos do segmento “professores e gestores”, na continuidade do projeto. Ainda nesse quesito, a maior média conferida pelos alunos foi para os professores da prática, o que podemos correlacionar com o fato de todas as atividades práticas ocorrerem em pequenos grupos (no máximo oito alunos por grupo), favorecendo um vínculo mais intenso entre professor e aluno, o que parece estimular o estudo e o desenvolvimento de maior autonomia por parte do estudante.

Relação Médico-Paciente-Equipe de Saúde

A disciplina Psicologia Médica tem como um de seus objetivos formar um profissional com capacidade para estabelecer adequada relação médico-paciente-equipe de saúde, definido pelo currículo vigente, tendo-o inclusive ampliado para a abordagem da relação estudante-paciente. Esta disciplina foi avaliada separadamente nos questionários destinados aos 6o e 9o períodos quanto à sua influência na formação profissional de aluno e quanto à abordagem dos lemas discutidos em sala de aula. As respostas indicam certa ambiguidade na avaliação dessa disciplina, visto que, embora cerca de 70% dos alunos considerem insuficiente o embasamento teórico dos temas abordados, cerca de 50% afirmam que esses temas têm influência sobre sua formação profissional. A discussão dessa questão se terna mais importante quando se constata essa ambiguidade reproduzida nas entrevistas e nas respostas à questão aberta, em que são feitas sugestões de redução da carga horária da Psicologia Médica e de sua transformação em disciplina eletiva, ao mesmo tempo em que é reconhecida, a importância dos temas abordados.

Os alunos parecem ter interesse em discutir as relações entre eles, os pacientes e os médicos ou professores. Esse interesse é demonstrado, entre outras formas, por comentários feitos nos questionários a respeito de outra questão que aborda tais relações. São listadas situações comuns na prática docente com pacientes em enfermarias e ambulatórios, sendo solicitado aos alunos que avaliem cada uma, classificando-a como: “necessária” (constitui situação inerente ao ensino da Medicina, e as contribuições para o ensino justificam um eventual desconforto para o paciente) ou “desnecessária” (cabe ao médico/professor ou monitor encontrar alternativas para ensinar, evitando o desconforto do paciente). Surpreendentemente a maioria das práticas usuais nas enfermarias e ambulatórios considerada desnecessária, ou seja, os alunos entendem que devem ser buscadas alternativas pedagógicas que evitem o desconforto do paciente. A situação mais criticada refere-se à realização das discussões sobre os casos dos pacientes (round) dentro das enfermarias onde eles estão internados, ou seja, a equipe de saúde discutir quadro clínico, diagnósticos diferenciais e prognóstico na presença dos pacientes. Esses resultados permitem concluir que as práticas pedagógicas com pacientes precisam ser revistas, uma vez que o segmento dos alunos, principal interessado nessas práticas, sob o ponto de vista das condições de sua formação, parece discordar de algumas das formas atualmente utilizadas.

Lacunas do Curso

Observa-se que há pouco espaço reservado para discussões formais sobre o desenvolvimento de comportamento ético, e a postura do aluno em relação à ética acaba sendo estabelecida, em grande parte, a partir de discussões entre os próprios alunos, de assimilação de atitudes de alguns professores como modelo ou a partir da formação anterior dos alunos. Quando perguntados como agiriam diante de uma atitude divergente por parte do professor do que seria um comportamento ético para eles, dentre as opções oferecidas no instrumento, a mais escolhida foi a de comentar apenas com os colegas (53%), com uma distância grande em relação à segunda e à terceiro opções mais votadas, as de argumentar com o professor na presença e sem a presença dos colegas (17% e 12%, respectivamente). Alguns comentários feitos nos questionários sobre essa questão mostram que os alunos podem não ter liberdade paro discutir com os professores ou, ainda, acham que não adianta provocar este tipo de discussão. Quando perguntados sobre como agem diante de comportamentos éticos diferentes entre professores, a maioria respondeu que seleciona o professor que lhe servirá como modelo baseando-se na identificação com atitudes do professor em situações anteriores (59%) e na competência técnica (23%). Isso pode estar relacionado com a maior valorização, nas atividades pedagógicas, das capacidades e competências técnicas em detrimento de qualidades mais subjetivas, como atitudes e posturas.

Outras lacunas do curso, segundo os alunos, são: falta de espaço no currículo para discutir problemas frequentes em seus campos de estágio e para aprender dissecção; procedimentos práticos (principalmente os de urgência e emergência); interpretação de eletrocardiograma e diagnóstico e tratamento de arritmias cardíacas.

Em relação à falia de espaço para discussão de problemas que aparecem nas atividades de estágio e que são prevalentes no sistema da saúde, foi pedido aos alunos do 9º período que avaliassem a frequência com que ocorrem diversos desses problemas (filas extensas, falta de vagas, tratamento inadequado por falta de recursos, pouca supervisão/auxílio dos médicos ao trabalho dos acadêmicos dentre outros) nos seus estágios fora da Universidade. Para todos os itens apontados, a frequência é grande, segundo os alunos. Num segundo momento, perguntou-se se estas situações deveriam ser analisadas ou discutidas na Faculdade e obteve-se um resultado expressivo (mais de 90% das respostas) no sentido de que isto deveria ocorrer, mostrando a necessidade de criar espaços e de um maior envolvimento da Faculdade nas discussões de tais problemas frequentes na prática médica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os pontos apresentados têm gerado um aprofundamento das demandas, críticas e sugestões dos alunos, com o objetivo de gerar subsídios para os questionários dos demais segmentos. As análises desse resultado permitem admitir a necessária e urgente revisão das práticas curriculares da formação do médico na Faculdade de Medicina da UFRJ, em consonância com as competências exigidas no mundo do trabalho.

Provisoriamente, o projeto vem sugerindo a criação de situações de ensino e de aprendizagem que problematizam as condições de vida da população e o processo saúde-doença, para resultar em um profissional capaz de atuar em diferentes cenários e situações de saúde, assumindo a responsabilidade social do seu papel e o compromisso com a cidadania, do minando o conhecimento circunstanciado do perfil epidemiológico e dos problemas/situações de saúde-doença prevalentes e recorrentes na região e no país, visando promover a saúde integral da população assistida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1
    Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico (CINAEM). Relatórios das primeira, segunda e terceira fases, 1998, 1999, 2000. (mimeo).
  • 2
    Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM). Proposta de diretrizes curriculares para o curso de Medicina,1999. (mimeo).
  • 3
    Habermas J. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Dom Quixote, 1990.
  • 4
    Habermas J. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989.
  • 5
    Universidade Federal do Rio de Janeiro - Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde/Faculdade de Medicina. Relatório de avaliação da Faculdade de Medicina da UFRJ, Rio de Janeiro, UFRJ, 1997.
  • 6
    Comissão Permanente de Avaliação (COOPERA). Relatório final de avaliação da UFRJ. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998.
  • 7
    Brasil. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação em Enfermagem, Medicina e Nutrição. Parecer no: CNE/CES 1.133/2001, aprovado em 07/08/2001.
  • 8
    Rocha GW. Investigando o contexto da for mação médica: o caso da Faculdade de Medicina/UFRJ. Caderno LCE, vol. 0, Rio de Janeiro: Serv. Gráf. HUCCF/UFRJ, 1999.
  • 9
    Minayo MCS. O desafio do conhecimento. Pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: HUCITEC, 1998.
  • 10
    Canesqui AM. Ciências Sociais e Saúde para o Ensino MédicoSão Paulo: HUCITEC , 2000.
  • 1
    A faculdade de Medicina realizou em 2000 e 2001, o fórum treinamento em Serviço, com a participação da coordenadora do Projeto “Condições da formação do profissional da área da saúde na UFRJ: a Faculdade de Medicina”, dos alunos que dele fazem parte e que, juntos com a coordenação da Graduação da Faculdade, contribuíram com informações obtidas no referido Projeto. Acrescenta-se a esse desdobramento do Projeto um outro encaminhado ao CNPq, e aprovado no mérito, para implantação de um laboratório de desenvolvimento de Competências, uma parceria do LCE e Faculdade de Medicina, para o trabalho prático dos alunos com manequins.
  • 2
    O conceito de modernidade tem diferentes significados entre os clássicos da teoria da sociedade. Para Weber, segundo Habermas, significa a cristalização das sociedades modernas em torno da empresa capitalista e do aparelho burocrático do Estado; para Habermas, é um projeto a ser resgatado na sua originalidade (um atitude cultural), uma vez que, substituído pelo conceito de “modernização”, descaracterizou-a, transformando-a numa espécie de “filosofia de uma época” que já não encontra espaço em um mundo que precisa ser “administrado” pela razão.
  • 3
    Pretensão de validade é um pressuposto da teoria da Ação Comunicativa de Habermas para significar a concepção de consenso: diz respeito à pretensão de verdade, de correção e de sinceridade do conteúdo do ato de fala entre participantes em interação.
  • 4
    A última reforma curricular do curso de Medicina da UFRJ, base do atual currículo, teve sua primeira fase formalizada em 1991 e culminou com a aprovação do atual em 1995, tendo entre os principais objetivos a formação de médicos com sólida base científica, capazes de prevenir, diagnosticar e tratar doenças prevalentes na população e estabelecer adequada relação médico-paciente-equipe de saúde, além de desenvolver comportamento ético. Suas principais modificações incluem: ampliação do calendário escolar para 22 semanas, sem acréscimo significativo nos conteúdos das disciplinas, de forma a permitir abertura de turnos livres da grade curricular; implantação do currículo pleno, composto pelas disciplinas obrigatórias e pelas complementares (eletivas de escolha condicionada nas quais o aluno deve obter no mínimo 16 créditos); maior integração do saber, flexibilização curricular e adoção de práticas pedagógicas que confiram maior autonomia aos estudantes.
  • 5
    Para melhor compreensão do que propõe o AIS e seu significado no contexto nacional e mundial de discussão sobre a educação médica e sobre atenção à saúde, ver Rocha, GW, 1999.
  • 6
    Quarto período: respondidos 93% dos 87 questionários aplicados; 6º período: respondidos 76% dos 71 aplicados; 9º período: respondidos 73% dos 80 aplicados.
  • 7
    Cecília Minayo refere-se à análise temática pela descoberta de núcleos de sentido em uma comunicação cuja presença ou frequência signifiquem alguma coisa para o objetivo analítico visado.
  • 8
    A integração ensino-serviço é um dos modelos de ensino que abre possibilidades para formação médica em outros espaços institucionais, ampliando a visão da prática profissional para além das decisões técnicas pela compreensão, por parte do aluno, dos diferentes determinantes do processo saúde-doença.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2002

Histórico

  • Recebido
    10 Out 2001
  • Revisado
    08 Abr 2002
  • Aceito
    15 Abr 2002
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