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SER PROFESSOR: As Múltiplas Dimensões da Docência

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TECENDO A MANHÃ Um galo sozinho não tece urna manhã: Ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo para que a manhã, desde uma teia tênue. Se vá tecendo, entre todos os galos. E se encorporando em teia, entre todos, Se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo Que, tecido, se eleva por si: luz balão. (João Cabral de Melo Neto)

A DIMENSÃO SOCIAL DO TRABALHO DOCENTE

Toda atividade humana implica em alguma forma de pensamento. Não basta ensinar. É necessário explicitar os objetivos mais amplos cm que se fundamenta o porquê ensino e o corno ensino. Mais que isto, devemos estimular a discussão séria e profunda sobre os temas ensinados.

Intelectual é aquele que exerce sua criticidade, sua criatividade e sua reflexividade no exercício do pensamento. “É o que 'tece o amanhã...”

Todo intelectual se agrupa socialmente conforme a ideologia e a economia em que se sustenta.

O docente não pode se restringir ao que ensina. É mais que isto, aquele que educa uma classe de intelectuais, vital para o desenvolvimento de uma sociedade democrática.

Nossas instituições educacionais se omitem historicamente na educação de seus docentes como intelectuais, esquecidos também do envolvimento psico-afetivo oriundo da integralidade temporal e da curiosidade científica propiciada pela pesquisa.

Serão docentes os professores horistas e viajantes, sem nenhuma vinculação afetiva e intelectual com a instituição mãe?

É função docente estimular as lideranças e não formar gerentes, ordinariamente submissos à ordem que emana do poder atuante.

O momento tradicional de nossas escolas impede a emergência das lideranças, quer na sala de aula, quer nos diretórios acadêmicos.

A atividade pedagógica é intrinsecamente política. Não podemos dissociar o saber do fazer. A função social do trabalho intelectual se reflete na sociedade - repetindo modelos, modificando propostas e/ou estabelecendo nossos desafios e/ou paradigmas.

A função social dos docentes enquanto intelectuais pode ser como transformadores sociais, como críticos, ou como adaptados ou ainda como hegemónicos (Gramsci).

Estes últimos se ocultam sob a forma de consultores, assessores e gerentes culturais encontradiços nos colegiados docentes e corpos de consultores. Servem aos grupos dominantes emprestando seus afazeres políticos e acadêmicos à causa que abraçam.

Os docentes críticos abraçam a crítica pela crítica refratária a qualquer ação sociocêntrica. Se colocam com responsabilidade, pelo pensamento crítico avaliam a qualidade prática de toda ação e com isto se colocam acima de compromissos sociais específicos. Esquecem que o descompromisso é um compromisso.

O papel social do intelectual é participar teórica e praticamente dos movimentos emancipatórios da humanidade, interagindo com eles, ou seja, agindo sobre e deixando agir nos dois sentidos do fluxo. Não há crítica que não esteja compromissada e alicerçada no fazer. Sartre já colocava que a emancipação intelectual é consequente à crítica do compromisso intelectual.

O ser humano é social, na medida em que vive e sobrevive socialmente. Vive articulado com o conjunto dos seres humanos das gerações passadas, presentes e futuras. A educação não se dá isoladamente.

O agir do homem se faz de forma social e histórica, produzindo não só o mundo dos bens materiais, mas também o seu próprio modo de ser, pensar e viver.

Neste contexto o trabalho precisa ser entendido como fator de construção do ser humano. Porque este se torna propriamente humano na medida em que, conjuntamente com outros seres, pela ação, modifica o mundo externo, conforme suas necessidades e, ao mesmo tempo, constrói-se a si mesmo.

Por esse processo, o ser humano avança e se humaniza.

E o nosso jovem? Como podemos ajudá-lo a compreender a importância do trabalho?

Cabe ao educador, responsável que é por ajudar o jovem a descobrir-se a si mesmo, sujeito possuidor de capacidade de avanço, ajudá-lo a construir-se através da atividade, desenvolvendo seus conhecimentos, habilidades, sentimentos e valores.

O primeiro trabalho, o mais urgente, é da própria renovação. Isto implica num processo diário, permanente de auto educação. Corno transformar a sociedade se não discutimos dialeticamente a ação política da educação e os fundamentos pedagógicos da política? Decênios de repressão impediram a discussão da sociedade, do Estado, das instituições, de seus saberes e fazeres e gerações foram “liberadas” sem a experiência da crítica, da dialética e da renovação. Sem isto, não se estabelece no jovem a consciência crítica de que ele é o agente de criação interior e de renovação exterior.

O jovem perde a consciência de sua força, melhor dizendo, não a identifica. Descrente, sem ideais e princípios, não leva; vai sendo levado.

A repressão impede a discussão dos valores morais da participação e ação social e com isto não propicia as condições para o estabelecimento da ética.

Se buscamos ser docentes transformadores, devemos assumir uma postura crítica diante do educando e do conteúdo a ser discutido. Devemos ter na história da instituição, departamento, disciplina, escola e/ou do docente, a ação concreta que permita o desenvolvimento no ideário dos alunos de uma convicção, na possibilidade de serem agentes de mudanças sociais frente a injustiças e desafios.

Quem sabe, sabe que pode. Aliar uma linguagem crítica a urna identificação concreta do real vai permitir ao educando a desmitificação dos moinhos de vento, vencer o caos aparente e ser agente de uma nova ordem; espera-se mais justa e democrática.

O poder que representam os mecanismos sustentadores da sociedade e da escola estão a serviço das elites que controlam o saber a ser ensinado.

O intelectual transformador é crítico na sua linguagem, mas deverá ser adaptado na sua estratégia para poder ser transformador enquanto crítico do poder e dependente do mesmo para sua ação de intelectualidade.

O discurso crítico de Chico Buarque, em “Pai, afasta de mim este cálice” e tantos outros, é uma forma adaptada de expressão de sua intelectualidade posta a serviço da transformação social.

O poder é sempre somatório das forças negativas e positivas, o que permite e exige um exercício dialético, uma vez que a repressão nunca é absoluta, sob o risco de fazer perder o poder.

Em nossa prática, raramente nos questionamos sobre algumas variáveis fundamentais.

Como se organiza o currículo mínimo? Como o conteúdo é selecionado? Por que alguns conhecimentos são relegados a segundo plano? Outros são preteridos? Por que não investimos na formação geral do médico geral como produto final de nossas escolas? A quem serve a tecnologização da arte médica? A quem serve a medicamentalização do paciente? Por que não existem entre nós controle de registros, referências, concentração, rendimento etc? Como é transmitido o conhecimento médico? Quais os pré-requisitos necessários para o acesso ao conhecimento médico? Estão eles identificados? São exigidos? Onde a avaliação do saber empírico de nossa cultura e flora? Que cultura e valores são legitimados ou não pelos instrumentos de poder?

Além de todos estes questionamentos, fica evidente o enorme fosso divisor de águas entre o saber produzido nas universidades (quando produzidos) e o público consumidor (quando tem acesso a este consumo).

O distanciamento é maior quando se faz entre os que produzem o saber e aqueles que não tem acesso ao consumo. Perguntamos: O docente é cidadão?

A consciência clara dos princípios naturais da vida e das leis imanentes que regem as suas forças corporais e espirituais, colocada como pulsão formativa a serviço da educação, vai gerar, por este meio, verdadeiros homens; corno o oleiro modela a sua argila, e o escultor, as suas pedras.

Esta é uma idéia ousada e criadora que só podia amadurecer no espírito dos gregos. Este povo viu, pela primeira vez, que a educação tem de ser também um processo de construção consciente, “constituído de modo correto e sem falha, nas mãos, nos pés e no espírito” (poeta grego dos tempos de Maratona e Salamina).

Se podemos sintetizar, hoje, Educação pode e deve ser definida como o processo de construção da cidadania.

A construção do homem é variada pelo fazer, no conjunto de suas ações práticas, orientadas a partir de uma intencionalidade que se nutre de referências significativas (afetivas) representadas simbolicamente. Seu fazer se explicita nas suas relações com seus semelhantes, com a natureza e com sua subjetividade. Na sua prática, o homem realiza sua construção social, produtiva e simbólica. Sendo a qualidade de vida humana o grau de cidadania obtido, seremos cidadãos quando em construção ativa de nossa produção (material, intelectual, etc.) e das relações (afetivas) com o próximo e conosco mesmos. Na sua prática, o homem realiza sua construção social, produtiva e simbólica.

Sendo a qualidade de vida humana o grau de cidadania obtido, sere­mos cidadãos quando em construção ativa de nossa produção (material, intelectual, etc.) e das relações (afetivas) com o próximo e conosco mesmos.

Qual o papel da educação na obtenção das condições de cidadão, por parte do educando? Ontem, buscávamos a essência; depois, a plenitude; hoje, a qualificação da própria condição humana, levando gerações a melhores oportunidades de trabalho, vida social e cultural subjetiva.

A Educação deve, pois, propiciar o exercício livre do processo democrático, onde todos são iguais perante a lei e deverão manter esta igualdade diante das possibilidades de acesso a bens materiais, simbólicos e políticos. Só assim podemos falar em cidadania.

O compromisso da cidadania tem três aspectos a serem considerados: o do cidadão, o do docente e o da instituição que abriga o docente e forma o cidadão - a universidade.

“A avaliação e melhora da qualidade do ensino deve começar pelos docentes, tendo-se em vista seu papel central nas instituições de Educação superior. A qualidade dos estudantes também representa um problema, especialmente quando se considera o número de alunos, a diversidade dos programas e os níveis de financiamento”. (Frederico Mayer - Seminário de Salzburg - UNESCO)

Acesso, qualidade e recursos são os grandes problemas das universidades no mundo. A discriminação ao acesso é evidente quando sabemos que dois terços dos analfabetos no planeta são mulheres.

Quanto ao docente, como ensinar ao educando a se tornar cidadão, se ainda não o somos? A busca da cidadania se faz pela organização social e política a partir do momento em que não abrimos mão de nossas identificações em organismos sociais, associações docentes, agremiações diversas e partidos políticos. O docente tem que saber de que lado está, não importa mesmo se é o melhor, visto que sempre pode vir a ocupar novo ideário. O que não pode é dispensar seu engajamento social e político, no pré suposto da neutralidade.

Cabe ao docente a compreensão da necessidade e da importância de estar bem informado, na área específica da docência, no campo da educação, nas universidades, na sociedade local, nacional e mundial. “Aceitar só o conhecimento, sem riscos, é quase tão ruim quanto aceitar só os riscos, sem conhecimento”. (F. Mayer)

O importante é participar, dizem os jovens. A informação facilita a participação, que é vetor da construção do homem. A participação é ação pessoal, familiar, profissional, coletiva (grêmios, sindicatos, sociedades e associações).

O compromisso político na prática docente visa a formação geral e específica do aluno. Não basta prepararmos alguém para consertar um aparelho de som (aspecto técnico), temos de habilitá-lo à discriminação auditiva do que se ouve no aparelho (aspecto afetivo / sensório motor). Preparamos o educando para a vida social, valorizando seu conhecimento específico, mas também sua criatividade, sua responsabilidade pessoal/social.

Devemos estimular a pluralidade do pensamento, a crítica, a dialética quanto ao fazer político, a justiça social, a liberdade, a ética e as humanidades.

Esses valores devem ser do educando e do educador.

A DIMENSÃO HUMANA DO TRABALHO DOCENTE

A sala de aula se caracteriza por ser também um grupo, com toda a complexibilidade do grupo social. O ensino é um processo pessoal e interativo, um intercâmbio entre professores e alunos, cuja intenção é modificar a maneira corno urna pessoa se comporta. A modificação pretendida é a aprendizagem.

Ensinar e aprender envolvem comportamentos intimamente relacionados, onde as ações de um provocam ou desencadeiam as do outro. Professor e aluno afetam-se mutuamente.

Cada um desses elementos - aluno e professor - vem para a sala de aula com uma bagagem própria, ou seja. cada um traz consigo uma história pessoal, valores, interesses, necessidades, dificuldades.

Costuma ser o professor o desencadeador deste processo interpessoal, estimulando situações como pergunta - resposta, problema-solução, exposição - discussão. Ele é o mediador entre o sujeito (aluno) que deseja conhecer e a verdade (informação) a ser conhecida.

Professor e alunos interagem a nível de relações humanas. Toda relação humana supõe comunicação, diálogo. À medida que o diálogo é aberto, franco, a distância é diminuída, o relacionamento interpessoal é facilitado, trazendo como consequência a melhoria da aprendizagem. O ato de comunicar, em geral, é deflagrado por um objeto ou assunto, em uma situação determinada. Ou seja, as pessoas se comunicam com respeito a alguma coisa e o fazem em contexto situacional determinado.

É importante lembrar que a comunicação é um processo dinâmico e não mecânico, o que significa que embora seus elementos sejam colo­cados no modelo como partes separadas da realidade, todos eles agem de maneira simultânea e interativa. Por outro lado, a comunicação não consiste apenas na emissão e recepção de mensagens deliberadas. Assim, quando o professor está comunicando, ele está recebendo e processando, ao mesmo tempo, todo o tipo de sensações internas e exter­nas, acontecendo o mesmo com os alunos.

Se a matéria, o conteúdo pode ser esquecido, por outro lado, o "clima' das aulas, as conversas informais, as horas tristes ou alegres compartilhadas, os valores veiculados durante este convívio, certamente serão lembradas, até muitos e muitos anos depois, ou por toda vida, porque marcaram profundamente aquele educando.

Ao adentrarmos uma sala de aula, muitas vezes nos perguntamos, “o que venho eu fazer aqui?”, “O que eu espero deles e o que eles esperam de mim?”. A palavra do professor é um universo riquíssimo, que abre um campo de possibilidades indefinidas.

A construção do conhecimento é um processo interativo e, portanto, social. Nessa interação, são transmitidos e assimilados conheci mentos, idéias são trocadas, opiniões são expressas, experiência são compartilhadas. modos de ver e conhecer o mundo e os seres são manifestados e valores veiculados.

O professor pensa que ensina o que quer ensinar e o aluno aprende dele o que quer aprender; não necessariamente aquilo que ele pretende estar ensinando.

O professor ensina muitas vezes aquilo que nem pensa que está ensinando, mas que o aluno retém, a partir de uma posição assumida, um comunitário, um gesto, uma palavra ou um silêncio.

O silêncio também fala. Assim como o espaço em branco é impor­tante para o poema, o saber pode brotar do silêncio. No entanto, muitas vezes achamos que ternos que preencher com um discurso uma aula de cinqüenta minutos. E tantas vezes o aluno aprende o avesso, o diverso, o diferente do que dissemos. Ele aprende também, o que está escrito nas entrelinhas.

Limitar o estudo à dimensão cognitiva é fragmentá-lo. As três dimensões - social, afetiva cognitiva - não se excluem, antes coexistem em todos os momentos.

O pressuposto básico dessa interação é a presença do professor, o diálogo que poderá estabelecer. Sua maturidade emocional, seu auto conceito, sua aceitação é que vão tornar possível uma relação sem defesas, barreiras ou inseguranças.

A base deste relacionamento está no tripé: autenticidade do professor, sua competência profissional e aceitação da pessoa do aluno, como ele é, merecedor de todo respeito e consideração.

Caberá ao professor encorajar a participação do aluno, sua iniciativa e responsabilidade. Ele tem uma função incentivadora e organizado­ra, ajudando o aluno na construção do conhecimento.

Para que o professor facilite a aprendizagem faz-se necessário que tenha:

Apreço ao aprendiz: a seus sentimentos e opiniões; como um ser humano imperfeito, dotado de sentimentos, potencialidades, dificuldades e esperanças;

Autenticidade: ser uma pessoa real, capaz de apresentar-se tal como é, de entrar em relação com o aluno, sem ostentar uma determinada aparência ou favhada, mas colocar-se como uma pessoa inteira, viva, com sentimentos e convicções;

Compreensão empática: sentir com o outro, “calçar suas sandálias”, compreender sem julgar, partilhar, estar ao lado.

Assim, o melhor professor é aquele que não pensa deter o saber ou o poder, mas aquele que está disposto a fazer emergir o saber múltiplo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    May-Sep 2000
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