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A Dinâmica Relacional na Consulta Pediátrica como Vivência Pedagógica

Relational Dynamics in the Pediatric Consultation as a Pedagogical Experience

Resumo:

A constatação da inadequação na formação médica suscitou a institucionalização de discussões sobre avaliação nas escolas médicas em nosso país. O reconhecimento da necessidade de buscar instrumentos metodológicos adequados para avaliar aspectos inter­relacionais na prática médica e no processo formativo de estudantes de medicina levou à criação de uma atividade grupal, na qual estes conteúdos foram trabalhados. Foram realizadas reuniões semanais com internos e residentes de pediatria, usando grupo focal com técnicas de dramatização segundo uma abordagem pedagógica. Ao final, os estudantes produziram relatos escritos descrevendo e avaliando a atividade. Esta pesquisa é fruto da análise qualitativa destes relatos. Sentimentos e ações do cuidado à saúde na prática clínica pediátrica emergiam e os temas mais frequentes foram: relações hierárquicas, limitações pessoais, onipotência, papéis profissionais, competência, experiências, conhecimento científico, senso comum e racionalidade. Esta análise teve finalidade pedagógica e avaliativa, possibilitando compreender aspectos fundamentais do ensino e do ambiente acadêmico institucional da escola médica.

Descritores:
Educação Médica; Avaliação; Atitude do pessoal de Saúde; Currículo; Pediatria - educação

Abstract:

The observed inadequacy of medical education has led to the institutionalization of discussions on evaluation in Brazilian medical schools. Recognizing the need for appropriate methodological tools to evaluate interrelational aspects in medical practice and in the formative process of medical students, a group activity was created to approach these aspects. The authors conducted weekly meetings with internists and pediatric residents, using focus groups with dramatization techniques within a pedagogical approach. At the end, students wrote reports describing and evaluating the activity. This paper is the result of a qualitative analysis of these reports. Feelings and health care actions in clinical pediatric practice emerged, and the most frequent themes were: hierarchical relations, personal limitations, omnipotence, professional roles, competence, experiences, scientific knowledge, common sense, and rationality The analysis had both pedagogical and evaluative objectives, making it possible to comprehend fundamental aspects of both teaching and the institutional academic environment in medical schools.

Keywords:
Medical Education; Evaluation; Atitude of health personnel; Curriculum; Pediatrics - education

O debate a respeito da formação médica em nosso meio vem caminhando pari passu com a discussão e organização do sistema de saúde11. Who - The sociology of professional training and health manpower: a summary report. working party on social science in medical education, Geneva: WHO, 1972.),(22. Gezairy, H.E.H -The main challenges. Medical Education 29 (supplement 1), 24-7, 1995..

Originado em nosso país na década de 70, momento em que se buscava uma reestruturação do sistema de atenção à saúde, ganhou força na década seguinte, alicerçando-se sobre o movimento da Reforma Sanitária1 1 Movimento social pela redemocratização do país, propondo reformulações no setor de saúde, em busca do reconhecimento da saúde como um direito de cidadania garantido pelo Estado. , que culminou com a constituição do Sistema Único de Saúde (SUS)33. Belaciano, M.I. - O SUS deve aceitar este desafio: elaborar proposições para a formação e capacitação de recursos humanos em saúde. Divulgação em Saúde para Debate 12: 29-33. CEBES, PR, 1996.),(44. Feuerwerker, L & Marsiglia, R - Estratégias para mudanças na formação de RHs com base nas experiências IDA/ UNI. Divulgação em Saúde para Debate 12: 24-8. CEBES, PR, 1996..

Datam daquela época as constatações de inadequação do profissional formado em nossas escolas médicas para atender às demandas sociais da população brasileira. O modelo pedagógico tradicionalmente utilizado materializou-se de maneira fragmentada e compartirnentalizada, primando pela falta de integração entre o ensino básico e a clínica, valorizando a aprendizagem dentro do ambiente hospitalar, o ensino individual, especializante e centrado em alta tecnologia, com pouca ênfase na prevenção e promoção da saúde55. Mendes, E.V. - A vigilância à saúde no distrito sanitário. Série Desenvolvimento de Serviços de Saúde n. 10: 7-19, OPS, Brasília, 1993.),(66. Machado, J.LC.; Caldas J.R. , A.L; Bertonéello, N.M.F.; Socorro, M.; Lins, A.M.; Cyrino, A.P.P.; Trezza, E.M.C.; Cyrino, E.G.; Correa, F.K. - O Ideário UNI e a Formação e Capacitação de Recursos Humanos: Processos e Resultados. Divulgação em Saúde para Debate , pp.77-89, CEBES, Julho/96.),(77. Neto, E.R. SUS, o ensino médico e os hospitais universitários. Saúde em Debate 49-50: 7-8. CEBES, PR, 1996..

AVALIAÇÃO DO ENSINO MÉDICO: INSTITUCIONALIZANDO UMA DISCUSSÃO

Diante deste quadro, as discussões de propostas de mudanças no ensino médico passaram a ocupar espaço crescente nas instituições de ensino, entidades profissionais, órgãos governamentais e sociedade em geral, produzindo várias experiências de modificações na grade curricular em algumas faculdades de Medicina no país. Entretanto, o que se verificou, foi uma sequência de reformulações que apenas complementaram o modelo hegemónico sem modificações efetivas no perfil do profissional formado. Esta história de reformas sem mudanças não ocorreu exclusivamente em nosso pais e generalizou-se nas duas últimas décadas. A instituição acadêmica e seus membros foram apontados como os principais responsáveis pela resistência às mudanças22. Gezairy, H.E.H -The main challenges. Medical Education 29 (supplement 1), 24-7, 1995.),(88. Bloom, S.W. - Structure and ideology in medical education, an analysis of resistance to change. Journal of Health and Social Behavior, 29: 294-306, 1988..

Dentre as diversas propostas surgidas nos últimos anos para refor­mular o ensino médico, merece destaque o projeto da CINAEM (Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico), iniciado em 1991. Trata-se de um projeto de avaliação do ensino médico em âmbito nacional, que vem construindo um movimento de discussão do ensino e da profissão médica com representantes docentes e discentes das escolas médicas e da sociedade, em todas as regiões do pais. O projeto, centrado em três eixos, avaliação docente, modelo pedagógico e avaliação discente, produziu um rico material cuja análise tem possibilitado a formulação de diversas propostas para se alcançar transformações substantivas na organização do ensino médico em nosso meio33. Belaciano, M.I. - O SUS deve aceitar este desafio: elaborar proposições para a formação e capacitação de recursos humanos em saúde. Divulgação em Saúde para Debate 12: 29-33. CEBES, PR, 1996.),(99. Cinaem - Transformando a educação médica brasileira: Projeto CINAEM - III Fase, 1998. mimeo 81 p.. Apesar de ainda ser uma proposta, o modelo de avaliação transformadora proposto pela CINAEM aponta para caminhos que, envolvendo a avaliação abrangente e sistemática, permitem vislumbrar pontos que deverão sofrer intervenção a curto, médio e longo prazo mudando profundamente o modelo pedagógico atualmente institucionalizado99. Cinaem - Transformando a educação médica brasileira: Projeto CINAEM - III Fase, 1998. mimeo 81 p..

Um dos aspectos levantados diz respeito a uma particularidade da formação do médico que é a indissociabilidade entre ensino e cuidados de saúde1010. Ribeiro, Eco & Motta, JIJ - Educação permanente como estratégia na reorganização dos serviços de saúde. Divulgação em Saúde para Debate 12: 39-44. CEBES, PR, 1996.. Dessa forma, pretende-se que a aferição dos conhecimentos, atitudes e habilidadesSS11. Who - The sociology of professional training and health manpower: a summary report. working party on social science in medical education, Geneva: WHO, 1972., que culminou com a constituição do Sistema Único de Saúde (SUS)33. Belaciano, M.I. - O SUS deve aceitar este desafio: elaborar proposições para a formação e capacitação de recursos humanos em saúde. Divulgação em Saúde para Debate 12: 29-33. CEBES, PR, 1996.),(44. Feuerwerker, L & Marsiglia, R - Estratégias para mudanças na formação de RHs com base nas experiências IDA/ UNI. Divulgação em Saúde para Debate 12: 24-8. CEBES, PR, 1996..

Datam daquela época as constatações de inadequação do profissional formado em nossas escolas médicas para atender às demandas sociais da população brasileira. O modelo pedagógico tradicionalmente utilizado materializou-se de maneira fragmentada e compartimentalizada, primando pela falta de integração entre o ensino básico e a clínica, valorizando a aprendizagem dentro do ambiente hospitalar, o ensino individual, especializante e centrado em alta tecnologia, com pouca ênfase na prevenção e promoção da saúde55. Mendes, E.V. - A vigilância à saúde no distrito sanitário. Série Desenvolvimento de Serviços de Saúde n. 10: 7-19, OPS, Brasília, 1993.),(66. Machado, J.LC.; Caldas J.R. , A.L; Bertonéello, N.M.F.; Socorro, M.; Lins, A.M.; Cyrino, A.P.P.; Trezza, E.M.C.; Cyrino, E.G.; Correa, F.K. - O Ideário UNI e a Formação e Capacitação de Recursos Humanos: Processos e Resultados. Divulgação em Saúde para Debate , pp.77-89, CEBES, Julho/96.),(77. Neto, E.R. SUS, o ensino médico e os hospitais universitários. Saúde em Debate 49-50: 7-8. CEBES, PR, 1996..

AVALIAÇÃO DO ENSINO MÉDICO: INSTITUCIONALIZANDO UMA DISCUSSÃO

Diante deste quadro, as discussões de propostas de mudanças no ensino médico passaram a ocupar espaço crescente nas instituições de ensino, entidades profissionais, órgãos governamentais e sociedade em geral, produzindo várias experiências de modificações na grade curricular em algumas faculdades de Medicina no país. Entretanto, o que se verificou, foi uma sequência de reformulações que apenas complementaram o modelo hegemónico sem modificações efetivas no perfil do profissional formado. Esta história de reformas sem mudanças não ocorreu exclusivamente em nosso pais e generalizou-se nas duas últimas décadas. A instituição acadêmica e seus membros foram apontados como os principais responsáveis pela resistência às mudanças22. Gezairy, H.E.H -The main challenges. Medical Education 29 (supplement 1), 24-7, 1995.),(88. Bloom, S.W. - Structure and ideology in medical education, an analysis of resistance to change. Journal of Health and Social Behavior, 29: 294-306, 1988..

Dentre as diversas propostas surgidas nos últimos anos para reformular o ensino médico, merece destaque o projeto da CINAEM (Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico), iniciado em 1991. Trata-se de um projeto de avaliação do ensino médico em âmbito nacional, que vem construindo um movimento de discussão do ensino e da profissão médica com representantes docentes e discentes das escolas médicas e da sociedade, em todas as regiões do pais. O projeto, centrado em três eixos, avaliação docente, modelo pedagógico e avaliação discente, produziu um rico material cuja análise tem possibilitado a formulação de diversas propostas para se alcançar transformações substantivas na organização do ensino médico em nosso meio33. Belaciano, M.I. - O SUS deve aceitar este desafio: elaborar proposições para a formação e capacitação de recursos humanos em saúde. Divulgação em Saúde para Debate 12: 29-33. CEBES, PR, 1996.),(99. Cinaem - Transformando a educação médica brasileira: Projeto CINAEM - III Fase, 1998. mimeo 81 p.. Apesar de ainda ser uma proposta, o modelo de avaliação transformadora proposto pela CINAEM aponta para caminhos que, envolvendo a avaliação abrangente e sistemática, permitem vislumbrar pontos que deverão sofrer intervenção a curto, médio e longo prazo mudando profundamente o modelo pedagógico atualmente institucionalizado99. Cinaem - Transformando a educação médica brasileira: Projeto CINAEM - III Fase, 1998. mimeo 81 p..

Um dos aspectos levantados diz respeito a uma particularidade da formação do médico que é a indissociabilidade entre ensino e cuidados de saúde1010. Ribeiro, Eco & Motta, JIJ - Educação permanente como estratégia na reorganização dos serviços de saúde. Divulgação em Saúde para Debate 12: 39-44. CEBES, PR, 1996.. Dessa forma, pretende-se que a aferição dos conhecimentos, atitudes e habilidades2 2 Habilidades definidas como operações ligadas ao saber fazer. dos profissionais formados forneça subsídios que possibilitem uma avaliação dos cursos médicos.

A avaliação de conhecimentos utilizando como instrumento a prova escrita não ofereceu maiores dificuldades, refletindo a ênfase colocada durante o treinamento profissional na aquisição de conhecimentos. Entretanto, a aferição de habilidades e atitudes foi muito difícil por diversos motivos, entre os quais a falta de tradição neste tipo de avaliação e a decorrente ausência de abordagens metodológicas adequadas, já que não há uma relação direta de determinação entre conhecimento e comportamento88. Bloom, S.W. - Structure and ideology in medical education, an analysis of resistance to change. Journal of Health and Social Behavior, 29: 294-306, 1988.),(1010. Ribeiro, Eco & Motta, JIJ - Educação permanente como estratégia na reorganização dos serviços de saúde. Divulgação em Saúde para Debate 12: 39-44. CEBES, PR, 1996.. Assim, desconhece-se pontos centrais da formação médica, qual seja, como o médico interage com o paciente99. Cinaem - Transformando a educação médica brasileira: Projeto CINAEM - III Fase, 1998. mimeo 81 p.. Tal interação, pensamos não poder ser imaginada com um sentido único da ação médica para a intervenção e efeitos observáveis nos pacientes. Há uma espécie de rede de interações nesta complexa relação que provocam efeitos nas atitudes e habilidades que os alunos e médicos constroem durante sua formação e sua prática. Fatores ou contextos de diversas naturezas intervêm, dando um produto final hoje considerado insuficiente para as demandas que a sociedade mostra como essenciais para a melhoria de seus níveis de saúde.

Ao mesmo tempo em que existe um consenso de que o profissional médico deve possuir conhecimentos técnicos que possibilitem a compreensão do processo saúde-doença no indivíduo biológico e, também uma formação humanística que permita compreender o indivíduo portador de necessidades inserido em seu meio psicossocial e cultural1111. Neto, E.R. - Reorientando o setor saúde no Brasil: desafios para a prática e a educação médicas. Divulgação em Saúde para Debate 14: 66-74, CEBES, Agosto/96., não se dispõe até o presente momento, em nosso meio, dos instrumentos necessários para avaliar este último aspecto.

Uma das propostas que visam superar esta dificuldade é que as escolas médicas ofereçam atividades didático-pedagógicas que possibilitem a compreensão tanto das dimensões psíquica, social e biológica do objeto de sua prática com uma reflexão sistematizada sobre ele, quanto dos papéis na inter-relação com pacientes e instituições, nas quais se trabalhe com as habilidades e atitudes de uma maneira eficiente.

Nesse sentido, o relatório do projeto da CINAEM propõe que “a semiologia clínica necessita agregar outros instrumentos construtores de significados buscando aperfeiçoar a interação médico-paciente”99. Cinaem - Transformando a educação médica brasileira: Projeto CINAEM - III Fase, 1998. mimeo 81 p..

Propostas curriculares incorporando atividades que visam aprimorar a consulta médica já existem em outros países, e surgiram a partir da constatação de que as grandes aulas e conferências, apesar de efetivas em transmitir conhecimentos e demonstrar atitudes, tiveram efeitos limitados sobre as habilidades e o comportamento1212. Lipkin, M.; Quill, TE.; Napodano, R.J. - The medical interview: a core curriculum for resistencies in internal medicine. Annals of Internal Medicine 100: 277-84, 1984.),(1313. Tresolini, C.P. & Shugars, D.A. - An integrated health care model in medical education: interviews with faculty and administrators. Acad-Med 69(3): 231-6, 1994.),(1414. Hafferty, F.W. - Beyond curriculum reform: confronting medicine's hidden curriculum. Acad-Med 73(4): 403-7, 1998.. Essas experiências utilizaram, como estratégias didáticas, encontros supervisionados com pacientes e reuniões periódicas em pequenos grupos para abordagem dos objetivos de desenvolvimento pessoal e atitudinal, nos quais discutiam desde questões da atenção ao paciente até as dificuldades pessoais em se tornar médico1515. Donsky, J.; Villela, T.; Rodriguez, M.; Grumbach, K. -Teaching community-oriented primary care through longitudinal group projects. Fam-Med 30(6): 424-30, 1998.),(1616. Stone, S.L. & Qualters, D.M. - Course-based assessment: implementing outcome assessment in medical education. Acad-Med 73(4): 397-401, 1998.. A construção de confiança mútua, respeito e de uma lunguagem comum possibilitou o aprendizado de habilidades interpessoais e auto-conhecimento, necessários na interação com o paciente1212. Lipkin, M.; Quill, TE.; Napodano, R.J. - The medical interview: a core curriculum for resistencies in internal medicine. Annals of Internal Medicine 100: 277-84, 1984..

O sucesso dessas experiências internacionais, aliado à necessidade de se construir novos métodos e instrumentos para o ensino e a avaliação de habilidades e atitudes em nossas escolas médicas levaram os autores a relatar e analisar um trabalho que já vem sendo realizado entre alunos do quinto ano médico e residentes de primeiro ano de Pediatria numa universidade pública brasileira.

Breve Relato da Vivência com Pequenos Grupos na Discussão Sistemática de Aspectos Inter-relacionais da Consulta Pediátrica.

Tal iniciativa deu-se em 1994, a partir de necessidade sentida oriunda de avaliações verbais periódicas de alunos e residentes de Pediatria que estagiavam no Setor de Pediatria Social da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.

A princípio, tratava-se de reuniões semanais com um docente e os grupos de internos do 5º ano médico. Tal universo rapidamente se expandiu para os grupos de residentes e contou com a ajuda de mais um docente. Hoje em dia, os trabalhos em grupos de sete ou oito internos (durante quatro semanas) e quatro ou cinco residentes de primeiro ano (por oito semanas), sem solução de continuidade, desenvolvem-se sob a coordenação de um docente e a participação de dois outros, mantendo-se a periodicidade de uma sessão por semana, com duração média de 90 minutos. Dois desses docentes são médicos pediatras, com experiência em coordenação de grupos desta natureza e uma psicóloga dos quadros do Departamento de Pediatria. Os estudantes não foram avaliados com nota ou conceito nesta atividade.

Corno opção pedagógica, adotamos uma abordagem essencialmente problematizante, sem temática prévia e que utiliza as vivências dos alunos e residentes durante o atendimento em unidades de atenção primária à saúde das crianças e adolescentes da rede pública de Campinas.

A dinâmica das reuniões não obedeceu a uma única técnica no desenvolvimento dos trabalhos, o que foi possível graças à diversidade de formação dos docentes que os conduziram. As técnicas mais utilizadas foram a discussão dos temas levantados, com possibilidade de contribuição de todos os componentes do grupo, o sociodrama, o psicodrama, com especial atenção para o role playing, teorias e técnicas já utilizados em nosso meio há algum tempo1717. Kaufman, A. - Teatro pedagógico. bastidores da iniciação médica. Agora, SP,1992. 143 p..

Os grupos com as características acima, chamados grupos focais, são instrumentos amplamente usados em pesquisa na área de Ciências Sociais e, como qualquer outra técnica, oferecem uma série de vantagens e limitações1616. Stone, S.L. & Qualters, D.M. - Course-based assessment: implementing outcome assessment in medical education. Acad-Med 73(4): 397-401, 1998.. Especificamente neste trabalho, ressaltamos a vantagem de possibilitar a abordagem de diversos aspectos da vivência pedagógica dos estudantes de Medicina durante sua formação e, ao mesmo tempo, estimular neles a reflexão sobre a prática.

Objetivando avaliar as atividades e as visões que incorporam os significados dados pelos alunos e residentes às questões surgidas no cotidiano do atendimento nas unidades básicas, propusemos a eles, desde janeiro de 1995, um breve relato escrito seguindo os parâmetros de pertinência da atividade, crítica à opção metodológica de acompanhamento das sessões, desempenho docente e sugestões para enriquecimento dos trabalhos. Ressalte-se que deixamos sempre um espaço aberto para que os sujeitos pudessem refletir livremente sobre a vivência e anotar as reflexões que julgassem convenientes.

AS METODOLOGIAS QUALITATIVAS COMO OPÇÃO

Nos últimos anos, a contribuição significativa dada pelas metodologias qualitativas para a construção do conhecimento na área da saúde, possibilitou a conquista de reconhecimento crescente enquanto metodologia científica na área biomédica em diversos países. Apesar disso, em nosso meio, elas ainda não conquistaram um espaço definitivo neste campo, ainda essencialmente quantitativo.

Caracteristicamente interdisciplinares, tais abordagens possibilitam responder determinadas questões e abordar certos aspectos do objeto de estudo e prática médicos para os quais as abordagens quantitativas se mostram insuficientes e inadequadas1919. Minayo, M.C.S -O desafio do conhecimento. Pesquisa qualitativa em saúde. Hucitec-Abrasco, SP-RJ, 1992. 269 p..

Uma de suas aplicações mais ricas e atualmente exploradas é a da avaliação de práticas em saúde, já que a combinação de várias técnicas de coletas de dados, utilização de perspectivas diversas dos atores, envolvidos no processo de atenção à saúde (profissionais, usuários dos serviços, gestores, instituição, etc.) ou de diferentes teorias explicativas, chamada de triangulação, permite evidenciar as múltiplas dimensões do objeto sob estudo1919. Minayo, M.C.S -O desafio do conhecimento. Pesquisa qualitativa em saúde. Hucitec-Abrasco, SP-RJ, 1992. 269 p.),(2020. Patton, M.Q. - How to use qualitative methods in evaluation. Sage Publications, Newbury Park, Beverly Hills, London, New Delhi, 1987. 175 p.),(2121. Seidman, I.E. - Interviewing as qualitative research. a guide for researchers in education and the social sciences. Teachers College, Columbia University, New York and London, 1991. 119 p.),(2222. Morse, J.M. & Field, P.A. - Qualitative research methods for health professionals. Sage Publications, Thousand Oaks, London, New Delhi, 1995. 254p..

Avaliar práticas, mais especificamente a prática médica, utilizando esta metodologia, a partir da vivência dos estudantes das escolas médicas é uma experiência relativamente nova em nosso meio e constitui mais um instrumento para compreender aspectos como: de que maneira essas instituições de ensino vêm desempenhando (ou não) seu papel em nosso sistema de saúde, como os estudantes vivenciam o processo pedagógico ao qual são submetidos, que tipos de práticas são estimuladas.

Deste modo, acreditamos que a avaliação proposta neste trabalho aponta para uma direção distinta das abordagens quantitativas, uma vez que o que se busca, basicamente, são os significados que permeiam as questões levantadas pelos residentes e internos.

Buscando, portanto, refletir sobre a perspectiva dos estudantes (alunos e residentes) a respeito desta atividade didática, surgem as seguintes perguntas:

  • Como os estudantes vivenciam esta atividade pedagógica?

  • Que reflexões a atividade lhes possibilita fazer sobre seu processo de formação dentro da escola médica com relação aos aspectos inter-relacionais da consulta e em outras dimensões?

  • A percepção dos estudantes sobre o desempenho de seus papéis na inter-relação com pacientes e instituições fornece sub­sidias para avaliar o ensino?

PROCEDIMENTOS

Os relatos acima descritos produzidos pelos estudantes foram selecionados ao acaso, e seus conteúdos analisados com emprego da técnica de análise de conteúdo em sua variante temática2222. Morse, J.M. & Field, P.A. - Qualitative research methods for health professionals. Sage Publications, Thousand Oaks, London, New Delhi, 1995. 254p.),(2323. Minayo, M.C.S; Deslandes, S.F.; Neto, O.C.; Gomes, R. - Pesquisa Social. Teoria, Método e Criatividade. Vozes, Petrópolis. 1994. 80 p..

Numa leitura inicial, definimos as unidades de registro, unidades de contexto e as categorias. Durante o processo de codificação do material, as categorias foram sendo refinadas e buscou-se estabelecer relações entre elas, conduzindo à especificação dos temas. O número de relatos a serem analisados não foi estabelecido a priori e obedeceu ao critério da saturação das informações obtidas, o que nesta pesquisa ocorreu com trinta relatos1919. Minayo, M.C.S -O desafio do conhecimento. Pesquisa qualitativa em saúde. Hucitec-Abrasco, SP-RJ, 1992. 269 p.),(2121. Seidman, I.E. - Interviewing as qualitative research. a guide for researchers in education and the social sciences. Teachers College, Columbia University, New York and London, 1991. 119 p.),(2424. Maykut, P & Morehouse, R. - Beginning qualitative research. a philosophic and practical guide. The Falmer Press; London, Washington, 1994. 194p..

ASPECTOS ÉTICOS

Como toda pesquisa com seres humanos envolve um risco potencial, seja ele moral ou físico, torna-se fundamental a adoção de medidas que busquem resguardar os direitos e deveres tanto dos sujeitos da pesquisa quanto dos pesquisadores em situações que possam envolver eventuais conflitos éticos.

Dessa forma, seguindo determinação do Comitê de Ética desta Instituição, utilizamos neste estudo a Resolução n° 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, que instituiu diretrizes e normas regulamentando pesquisas envolvendo seres humanos2525. Ministério da Saúde - Resolução 112 196/96 sobre pesquisa envolvendo seres humanos, Conselho Nacional de Saúde, Brasília, 1996..

Particularmente neste estudo, o aspecto ético mais relevante é a garantia do anonimato nos relatos escritos, cujos autores não foram identificados nem individualmente nem em grupo.

O GRUPO COMO ESPAÇO DE DIÁLOGO

A aceitação da atividade foi altamente positiva entre os estudantes, sendo qualificada corno 'importante', ‘valiosa’, 'interessante', 'produtiva·, 'divertida', ‘rica’, ‘gostosa’, ‘excelente’, ‘perigosa’, ‘proveitosa’, 'maravilhosa’ e ‘muito pertinente'.

A receptividade para ouvir, o interesse e a postura isenta de julgamentos por parte dos docentes, bem como a regularidade dos encontros e a familiaridade com os colegas propiciaram um ambiente seguro e tranquilo no grupo, levando a uma participação efetiva e espontânea, sem medos ou autocensura e com respeito às individualidades e diferenças. A presença de diferentes docentes mediadores possibilitou aos estudantes a observação da diversidade de posturas, de opiniões e de abordagens em suas respectivas práticas, o que enriqueceu a vivência.

A escolha dos tópicos pelos próprios alunos aumentou o interesse deles pelas discussões, urna vez que os tópicos diziam respeito a situações vivenciadas por eles, trazendo algum tipo de conflito, sofrimento ou questionamento.

Os temas que emergiram foram: relações hierárquicas, limitações pessoais, onipotência, papéis profissionais, competência, experiências, conhecimento cientifico, senso comum e racionalidade.

A par da avaliação geral positiva da atividade em questão, pensamos ser necessário estabelecer relações que possam aprofundar os temas segundo as diversas categorias antes assinaladas.

Quanto às Relações Hierárquicas, no que se refere às dificuldades geradas nos espaços marcados essencialmente pela disciplina rigorosa e a intensidade da carga de trabalho, que são o internato e a residência médica, os depoimentos dos estagiários apontam para conflitos em diversos aspectos, desde a relação com seus pacientes até às interações com as instâncias de poder institucional representadas pelas interações docente-aluno/residente, aluno-residente, aluno/residente­profissionais não médicos e aluno/residente-residente/aluno. Apesar de algumas diferenças de grau, reconhecidas como importantes, grupamos os estagiários (alunos e residentes) numa única categoria, obviamente não homogênea. Contudo, explica-se esta aglutinação pela necessidade de aprofundamento das relações hierárquicas mais gerais.

Assim, a discussão desses conflitos expressos por medos, inseguranças e limitações nos grupos permitiu, segundo a ótica dos sujeitos, uma melhora no convívio com seus pares, um passo que consideramos importante no estabelecimento de relações hierárquicas demarcadas de maneira mais atenuada. Isto parece evidenciar-se no depoimento que se segue:

“O enriquecimento humano que obtemos quando aprendemos a superar nossos limites e entender o nosso comportamento nas situações, por mais adversas que elas possam parecer, é um ganho frequente neste tipo de atividade. A possibilidade de se expor, discutir, discordar, criticar, ser criticado é um exercício constante de relacionamento humano e nos permite conhecer a nós mesmos e a nossos colegas, o que só melhora o convívio com estes, em nível tanto profissional como pessoal.”

Note-se que, neste e em outros casos, o enriquecimento obtido a partir da vivência no grupo extrapola o âmbito profissional, na medida em que, sendo aspectos humanos da experiência, evidenciaram os papéis tanto profissional quanto pessoal interagindo no equacionamento da mesma problemática.

Esta fala mostra a necessidade de troca relativamente livre de opiniões e de experiências, com o pressuposto do respeito mútuo, sentida por estes grupos, que identificam precisamente no exercício da troca a possibilidade de resolução (ao menos parcial) dos conflitos, repensando as relações hierárquicas mesmo no convívio com outros profissionais de saúde. Parece-nos que tais relações, quando abordadas da maneira que a vivência permitiu, estimulam a busca de soluções que não são necessariamente as mesmas, nem dos mediadores das discussões, nem dos estagiários em particular, mas do grupo como um todo. Assim é o que parece surgir no segmento adiante:

"Foi útil no atendimento aos pacientes, bem como no relacionamento com outros profissionais (docentes e enfermeiras), abrindo soluções para as possíveis relações confli­tantes e desagradáveis que podem ocorrer devido às diversas posições hierárquicas.”

Tal possibilidade de resolução aparece enfaticamente quando se refere às relações estagiário-docente. Neste caso, o sentimento mais evidente é o desejo de suavizar as relações com seus superiores por meio da reivindicação de comunicação, relacionamento mais afetivo e abertura para discussões sobre as dificuldades de tornar-se médico. Assim é que a relação docente-estagiário surge como 'mistificada', excessiva no respeito ele sentido único do estagiário para o docente, propensa ao afastamento, pouco íntima, eventualmente antagônica. Senão vejamos os depoimentos que se seguem:

“A relação aluno-docente é mistificada muitas vezes como uma relação de excesso de respeito, que acaba por tornar-se falta de proximidade. Neste trabalho, pudemos ter com os docentes uma relação respeitosa, porém mais próxima daquela com nossos colegas, podendo sentir mais aproximação e principalmente intimidade.”

“Deve-se comentar que as pessoas só se sentiram à vontade para comentar suas dúvidas, algumas de suas angústias e até suas queixas porque sentiram receptividade dos docentes e porque se estipulou um mínimo de empatia.”

A aparente quebra de hierarquia pode parecer o aspecto mais evidente da solicitação implícita nestes depoimentos. Contudo, cabe uma ressalva: o que os estagiários parecem necessitar é de uma aproximação que lhes dê liberdade de expressão de dúvidas e conflitos próprios da prática, mas aparentemente pouco perceptíveis por parte do corpo docente. A todo instante, clamam por “serem ouvidos”. Não apenas como receptores desqualificados de um discurso tecnicamente consagrado, mas corno co-partícipes de um processo no qual suas convicções e conhecimentos, ou competências e habilidades, sejam pontos de partida para a experiência de ensino-aprendizagem. Assim, são muito frequentes nos depoimentos expressões como oportunidade para “abordar certos assuntos”, o que poderia sugerir certo grau de assuntos proibidos ou deslocados para outros espaços de socialização: “oportunidade de se manifestar”, “compartilhar e ouvir”, “desabafo”, “ser ouvido”, “falar sobre dúvidas, angústias e queixas”; “sem censura e sem medo”.

“Também, no posto de saúde e no PS, podemos falar não tanto sobre pacientes, mas sobre o modo de atendê-los e sobre nossa relação com os docentes."

"É um raro espaço para compartilhar e ouvir”

“Oportunidade de desabafar, de ouvir e de sermos ouvidos(...) mesmo que não tenha encontrado todas as soluções...”

“O mais importante, porém, na minha opinião, é a disponibilidade para ouvir, pois dificilmente é oferecido um espaço para o aluno falar."

A atitude dos docentes durante os encontros, a dinâmica adotada, bem como a quebra das relações hierárquicas possibilitaram o surgimento das Limitações Pessoais como uma temática intimamente relacionada com a da Onipotência, ambas caminhando conjuntamente em seus aspectos pessoais e profissionais.

A vivência individual e grupal de situações da realidade da prática médica nestes encontros possibilitou aos estagiários o reconhecimento de seus limites pessoais, evidenciados por seu despreparo frente a aspectos rotineiros e, eventualmente, adversos do cotidiano:

“...acho que vale a pena haver um “tempinho” para os alunos de graduação poderem expor suas dificuldades, seus traumas, suas experiências."

“o curso de medicina frequentemente nos coloca em situação de ‘cheque’ ao nos fazer deparar com situações inusitadas, como a morte, o sofrimento humano frente à doença, a situação de pobreza absoluta em que se encontra a maioria de nossa população etc., para as quais não estamos preparados. Muitos de nós, em particular eu mesmo, me deparei com situações das mais diversas, para as quais não estava preparado, seja do ponto de vista do relacionamento com o paciente, seja do ponto de vista do relacionamento com minha própria consciência."

“Nos auxiliou a conhecer os nossos limites e, principalmente, a montar estratégias para superá-los com bom senso.”

Lidar com temas conflituosos que envolvem juízos de valor e de moral, corno adolescência, sexualidade, relações de hierarquia, estabelecer relações humanas nas quais ocorre contato com adversidades e sofrimento humano e ter contato com desejos e pensamentos íntimos, nem sempre conscientes, permitem o delineamento dos limites individuais. Sua percepção, mesmo desvinculada de propostas que levem à solução dos conflitos ali externados, já encerra um objetivo em si, na medida em que leva ao autoconhecimento.

“As discussões são, no meu ponto de vista, maneiras de ‘digerir’ a tensão acumulada ou o estresse ao qual o aluno de Medicina está submetido, e também a ajudar o aluno a resolver, torná-lo apto a enfrentar situações ou fatos extremamente angustiantes relacionados à vida e morte do ser humano.”

“... a troca mútua entre colegas e entre colegas e psicólogo (mediador) ajuda em nosso amadurecimento e na metabolização de diversos tabus."

“... este tipo de reunião peculiar é muito gostosa e perigosa para mim. Sempre que se “mexe” com desejos pessoais e pensamentos escondidos em nossa mente, pode-se gerar conflitos e estes podem ou não serem produtivos. Acredito que é produtivo e, hoje, após já ter passado por essa experiência no 5° ano vejo que melhorei."

"Foi muito boa a possibilidade de compartilhar expectativas e ansiedades e poder conhecer um pouco mais as pessoas que estão há alguns anos ao nosso lado.”

A ausência de espaços institucionais para elaboração destes conflitos aprofunda-os, cristaliza comportamentos e, consequentemente, leva a uma prática profissional rotinizada, irrefletida, estressante e distanciada com relação ao seu objeto. Este é o modelo vivenciado pelos estagiários em processo de formação.

“... as discussões desempenharam um papel importante no esclarecimento do que realmente se passava em nossas mentes e do modo de lidar com estes pensamentos e dúvidas, que, se ficassem acumulados, poderiam resultar em atitudes hostis em ocasiões subsequentes (quando depa­rássemos novamente com o problema), ou mesmo automatizadas, nos distanciando ao máximo das dificuldades para que estas não nos atingissem.”

“... este grupo nos fez muitas vezes parar e pensar em nossas atitudes. Isto, dentro deste curso, é muito importante já que temos pouquíssimo tempo para parar e pensar (na grande maioria das vezes, passamos por cima dos problemas ou deixamos de lado para conseguirmos dar conta da demanda de atendimentos, trabalho que nos aguardava).”

“Foi a primeira vez (e provavelmente a última) que tivemos uma oportunidade como essa...”

“Era sempre um momento de pensarmos, de parar com a correria do dia-a-dia; muitas vezes, nos ajudou a pensar até mesmo em problemas que não tínhamos nos dado conta.”

A vivência oferecida por alguns ambientes acadêmicos altamente exigentes em termos de conflitos nas relações humanas colocou o estagiário frente a situações em que os limites de sua atuação possibilitaram o reconhecimento da fragilidade da onipotência profissional.

“Acho este trabalho importante principalmente na enfermaria, onde recebemos, por ser nosso primeiro estágio, uma carga psicológica pesada, para a qual não estávamos preparados.”

“...frustrações várias na tentativa de abordagem perante uma situação a qual conclusão ou fato consumado não fora atendido.”

O desconhecimento e/ou a falta de permissão para expressar as limitações pessoais conduzem o profissional a esconder-se atrás de um saber técnico inquestionável, revestindo sua prática de uma aparente certeza e objetividade reveladoras de sua posição de onipotência. A percepção da subjetividade e a expressão de sentimentos nas relações humanas aparecem como contrárias à adequada formação e qualificação profissional.

“Falaram e falam tanto ainda sobre a “frieza” do médico; talvez não seja assim como dizem; não que a gente seja tão “quente”, mas muitas vezes devemos ter uma certa frieza para tornarmos a situação mais “profissional’, mas isso não nos impede de ter sentimentos, de expressar emoções”.

Na medida em que a participação de mediadores nas discussões ofereceu modelos de profissionais em cuja prática estavam presentes limitações, vivência de conflitos e dificuldades, a infalibilidade médica se desmistificou, e a falta de resposta eficaz e imediata às demandas de saúde passou a ser entendida sem tensão ou frustração, colocando em cheque a onipotência.

“Outro aspecto interessante seria a participação dos docentes, mostrando eles próprios as suas dificuldades e inseguranças, os seus momentos de perda do controle e raiva, aqueles momentos em que se sentiram incapazes de ir adiante, seja por limitações profissionais ou emocionais. Assim, se conseguíssemos vê-los como pessoas também capazes de errar e acertar, assim como nós, talvez nos aproximássemos mais, transformando em ainda mais recompensadora e construtiva a relação professor-aluno, sem dúvida alguma um dos alicerces de nossa formação na residência médica.”

Desde o início, a experiência de estar com o pacitente propicia ao estagiário de Medicina urna reflexão a respeito da prática médica e de seus Papéis Profissionais e suas relações com os papéis pessoais.

“É importante que nós possamos conversar sobre essa experiência tão nova que é estar com o paciente.”

“É evidente que os alunos de Medicina enfrentam várias dificuldades durante o início da prática médica, principalmente (senão somente) relacionada à relação médica.”

O contato diário com as realidades de vida, saúde e doença - estabelecido por meio da relação com o paciente - e com as propostas de soluções possíveis - obtido através do saber científico construído e disseminado pelas instituições de ensino médico - é um componente fundamental no delineamento destes papéis.

“...esta atividade é muito importante na formação ética é profissional do estudante de Medicina.”

“...ajuda o aluno a resolver, torna-o apto a enfrentar situações ou fotos extremamente angustiantes relacionados à vida e morte do ser humano”.

A experiência da prática médica propiciada pelas instituições descolada da reflexão sobre a mesma exacerba os sentimentos de angústia e o estresse neste processo em que a compreensão de seu papel passa também pela compreensão de si mesmo como ser humano. Compartilhar com colegas e docentes o que as vivências trazem em comum atenua este processo.

“Muito do que foi dito me fez parar e pensar sobre meu comportamento diante dos pacientes, mães, colegas, docentes e diante de mim mesmo.”

“Pela primeira vez foi dada a oportunidade de colocarmos, como estamos nos sentindo, agora como médicos, perante nossas primeiras e verdadeiras responsabilidades. Pessoalmente, foi de grande valia, no sentido de eu conseguir expor algumas coisas com que não estava sabendo lidar. Através da equipe, críticas e sugestões, eu pude perceber alguns valores positivos até então não considerados por mim mesma.”

A mudança de atitudes gerada a partir da reflexão conscientizadora dos limites pessoais e da experiência prática delineadora dos papéis possibilita o surgimento de novas habilidades, a percepção de valores e o consequente aprimoramento da Competência Profissional. A oportunidade de discutir e, portanto, refletir, sobre certos aspectos que conduzem ao aprimoramento da relação médico-paciente torna-se fundamental neste processo.

“...essas reuniões me ajudaram a mudar a posição frente a algumas experiências...”

“...sobre a temática da sexualidade, a discussão foi de grande valia, na medida em que foi possível a colocação dos problemas encontrados com os pacientes (principalmente adolescentes) e também como portar-se perante eles...”

“Através da equipe, críticas e sugestões, eu pude perceber alguns valores positivos até então não considerados por mim mesma.”

“Foi válida a contribuição com que a atividade foi desenvolvida a ponto de facilitar, em vários tópicos, algumas dificuldades que foram pautadas na relação médico-paciente, tais como: frustrações várias na tentativa de abordagem perante uma situação a qual conclusão ou fato consumado não fora atendido; a sexualidade como ponto imprescindível nas consultas com a faixa etária (pediátrica) com respeito mútuo entre ambos os contactantes invocados ou mesmo pertencentes à discussão respectiva, entre outros.”

“...abordar assuntos que não são normalmente discutidos em outras matérias.”

A existência de diferentes modelos de docentes, oferecendo diversidade de pontos de vista e de abordagens na prática cotidiana, possibilita a percepção da diversidade nas competências a nível pessoal e profissional.

“Outro aspecto interessante é a diversidade na maneira com que cada um dos coordenadores interpreta e conduz a reunião. Dessa associação surgem sempre novos elementos que nos permitem tirar conclusões próprias, ou somando as diversas visões ou optando mais por alguma do que outra. No meu entender, isso colabora com o desenvolvimento crítico e com nossa própria evolução."

“A participação de mais pessoas no grupo era sempre uma visão e uma solução diferente para o problema...”

As características particulares do curso e da atividade médicos impõem a necessidade de se criar espaços institucionais onde passa ocorrer a troca das Experiências vividas durante o processo de formação acadêmica. Compartilhar experiências, expectativas, dúvidas com relação ao papel profissional, sentimentos frente à impotência de se lidar com certos aspectos da realidade, reflexões sobre as dificuldades em construir relações humanas (com pacientes, pares, docentes e de­mais profissionais) possibilita autoconhecimento e atenua conflitos presentes no cotidiano do desempenho da profissão médica.

“Acho que o trabalho é muito claro e nos ajuda a ver como agimos e pensamos nos momentos difíceis que enfrentamos no nosso cotidiano.”

“A realização da atividade em grupo favorece o aspecto de “deixar vir à tona” situações que possam estar causando dificuldade no nosso dia-a-dia profissional.” “Pudemos repartir nossas angústias, medos, decepções e ganhamos soluções para estes conflitos.”

“No meio de tanta correria, angústias, perdas, era um momento em que podíamos parar “sem cobranças” e colocar para fora um pouco de nossas dúvidas/experiências.”

“...faz-nos pensar sobre nossa rotina, nossas expectativas, encarar dificuldades já vividas e as que estão por vir. ...os temas, sugeridos por nós, refletem nossas dúvidas. Faz-se necessário discutir um pouco o ambiente de trabalho, as práticas da Medicina no dia-a-dia não enfocando doenças/tratamentos, mas relacionamento humano, expectativas.”

A identificação de aspectos comuns em suas vivências, leva os estagiá1ios à aproximação e à resolução de problemas próprios da dinâmica de cada grupo formado, possibilitando, neste exercício das relações humanas, o crescimento individual e grupal.

"Possibilidade de se comunicar com os colegas e saber que estes pensam do mesmo modo que eu, têm as mesmas dúvidas e, muitas vezes as mesmas reações frente às desgraças que temos presenciado.”

"Poder discutir com outros colegas sobre problemas da prática pediátrica que nos afligem é muito construtivo, pois nos permite reviver estas experiências e entendê-las sob outro ponto de vista, que às vezes é totalmente diferente do nosso. Achei, na verdade, que é uma excelente forma de nos qualificar seja do ponto de vista técnico ou humano.”

“...tive a oportunidade de me expor e me mostrar para um grupo pouco conhecido e, por outro lado, conheci-os um pouco mais. Mostrei meus medos... e que também tenho as mesmas dificuldades que eles.”

"Acho que o grupo cresceu muito depois destas reuniões.”

"Foi muito boa a possibilidade de compartilhar expectativas e ansiedades e poder conhecer um pouco mais as pessoas que estão há alguns anos ao nosso lado”

A criação de um espaço de discussão alivia as tensões vividas pelos estagiários de Medicina que estão se formando e conformando no âmbito institucional e diante de uma realidade social, inatingível/inacessível para as mudanças desejadas e reivindicadas por eles.

“Foi a primeira experiência que tivemos na faculdade de discutir problemas pelos quais estamos passando.”

“Acho muito interessante a proposta do grupo porque nos deu a possibilidade de expor nossas experiências, tanto na Enfermaria quanto no Posto de Saúde, e refletir sobre elas durante um tempo, coisa que não estamos acostumados a fazer. Normalmente conversamos sobre os acontecimentos, mas nunca realmente paramos para refletir sobre eles”.

"Acredito que seria muito útil se tivéssemos discussões como essas em outros estágios também, corno no CAISM e outros lugares onde nos vemos diante de situações bastante difíceis e, às vezes complicadas.”

“Pudemos discutir sobre vários tópicos que nos traziam muita angústia e que nunca puderam ser discutidos com tanta liberdade e tão profundamente como estes o foram.”

“...os alunos encontraram nestas aulas a oportunidade de desabafar, de ouvir e de serem ouvidos.”

A presença da Racionalidade nos assuntos discutidos e nas experiências vivenciadas é uma das formas de preparar os estagiários para as situações cotidianas da prática profissional. Juntamente com a onipotência, ela permeia e torna mais explícito o conflito existente entre o posicionamento do profissional diante de seu objeto de prática (o paciente) e a exteriorização de quaisquer aspectos pessoais que levem à identificação da falibilidade médica.

“...ao ouvirmos nossos colegas, percebemos que nossas experiências não são tão “particulares” assim, ajudando que consigamos digerir melhor as fatalidades que presenciamos.”

“...muitas vezes devemos ter uma certa frieza para tornarmos a situação mais profissional, mas isso não nos impede de ter sentimentos, de expressar emoções.”

“... foi um trabalho muito proveitoso, que me incitou a pensar mais nos meus problemas, e não só pensar, mas buscar soluções, além de dividi-los com pessoas que, estando fora da situação, conseguem vê-la com mais nitidez e mais racionalidade, trazendo assim maneiras melhores e mais agradáveis de se vive:· a nossa realidade e de conviver com as pessoas que estão nela.”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho mostra que a vivência pedagógica dos estudantes forneceu como resultado mais relevante a construção/concretização de um espaço no qual sentimentos, experiências e reflexões com relação à prática médica e ao processo individual de tornar-se médico, puderam ser externados e compartilhados no grupo.

Trocar experiências sobre a prática profissional e as relações inter­pessoais (médico-paciente, médico-instituição, colega-colega, médico­demais profissionais, aluno-docente), neste momento de sua formação, possibilitou aos estudantes autoconhecimento e crescimento pessoal e profissional.

Além da importância da criação de um espaço de diálogo com seus pares, outros profissionais e a instituição, a pesquisa evidencia que a incorporação da perspectiva dos estudantes aos instrumentos que se vem tentando construir em anos recentes, buscando a compreensão de aspectos humanísticos no processo formativo, pode ser bastante enriquecedora, na medida em que esse processo veicula valores, normas, condições estruturais, símbolos, práticas predominantes, que vão ser externados, ao menos parcialmente, por meio de seus sujeitos/objetos de intervenção, ou seja, os estudantes.

Assim, a análise dos depoimentos possui ao mesmo tempo uma finalidade pedagógica e avaliativa, permitindo a aproximação de peculiaridades da vivência de cada estudante e expressando urna identidade comum, reflexo de uma estrutura da qual fazem parte.

Um exemplo desta situação é a grande frequência com que aparece nos relatos o tema das relações hierárquicas, seguido das limitações pessoais e onipotência, todos eles relacionados na categoria empírica relações de poder, reveladoras da disciplinarização intensa que caracteriza o ambiente acadêmico-institucional da escola médica.

O relato enfático de um sentimento de angústia ao não conseguir lidar com a polarização insistentemente proposta pela escola médica de dois aspectos humanos inseparáveis - o profissional e o pessoal - externa outra categoria que caracteriza a instituição médica, a dicotomia entre dois papéis.

Para criar uma consciência que produza a transformação efetiva do ensino nas escolas médicas é fundamental conhecer estes aspectos.

Os resultados do presente trabalho mostram o potencial de utilização desta abordagem metodológica e apontam para outros estudos que poderiam complementá-lo, a partir da perspectiva dos docentes que participam desta atividade didática com os estudantes e de observadores externos.

Restam aspectos a serem aprofundados, tais corno as relações entre conhecimento científico e vivência humana, expressão das relações ciência e senso comum.

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  • *Trabalho apresentado na 5ª Conferência Internacional de Pesquisa Qualitativa em Saúde, realizada de 7 a 10 de abril de 1999 em Newcastle, Austrália.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    May-Sep 2000
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