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Contribuições da Bioética e da Comunicação à Educação Médica

The role of Bioethics and Communication in Medical Education

Resumo:

Este ensaio mostrar o papel da bioética e da teoria da comunicação na educação médica. Entendida como processo de construção de inter-relações entre dois tipos de atores sociais - educadores e educandos -, fundado ao mútuo reconhecimento entre pessoas morais em princípio competentes e responsáveis. Após apresentar as concepções intuitivas e crítica de bioética e comunicação, discute a teoria do agir comunicativo baseado no consenso, tentando mostrar seus acertos e limites quando referida a agentes morais que atuam em sociedade democráticas não confessionais e multiculturais. Indaga, então, as possibilidades de substituir consenso pelos conceitos de cooperação entre agentes morais e de coordenação de suas práticas cognitivas e prescritivas, considerando-as mais adequadas e fundadas no princípio do respeito da autonomia pessoal, suscetível de dirimir conflitos de interesses e valores.

Descritores:
Bioética; Educação médica; Pluralismo

Abstract:

This essay is intended to show the role of bioethics and communication theory in medical education, viewed as a process of building relations between two types of social actors - teachers and students - and based on mutual recognition among moral individuals who are in principle both competent and responsible. After presenting the intuitive and critical concepts of bioethics and communication, the article discusses the consensus-based communication act theory, attempting to display its strengths and limitations in referring to moral individuals acting in non-confessional, multicultural societies. The easy then inquires into the possibilities of replacing consensus with the concepts of cooperation among moral agents and coordination of their cognitive and prescriptive practices, considered more adequate for the cognitive pluralism and normative acquiescence prevailing in such societies and founded on the principle of respect for personal autonomy, amenable to solving interest and value conflicts.

Keywords:
Bioethics; Education medical; Pluralism

INTRODUÇÃO

Quais são as passiveis contribuições do bioética e da comunicação à educação médica, se considerarmos esta como um processo no qual (a) um educador ensina a um educando sua “arte” de saber cuidar e curar pacientes no encontro clinico; (b) o educador e o educando aprendem a respeitar-se reciprocamente como pessoas em principio responsáveis por seus atos; (c)o educando aprende a respeitar a autonomia pessoal do paciente quanto às decisões fundamentais deste sobre sua vida e saúde; (d) o educando adquire, por conseguinte, a competência de agente moral que pode tomar decisões legitimas porque compartilháveis por outros agentes morais, tais como pacientes e colegas, médicos ou não, ou a própria sociedade?

Provavelmente, os que têm de bioética e comunicação uma concepção intuitiva, e não crítica, podem pensar que nem a bioética nem a comunicação podem dar grandes contribuições à educação médica, visto que elas, supostamente, só se ocupariam de analisar a forma e o conteúdo dos discursos morais ou dos atos de fala, razão pela qual ambas poderiam, na melhor das hipóteses, servir para esclarecer metaética ou metalinguisticamente aspectos formais envolvidos pela educação médica ou, na pior, não servir para nada, devido a um suposto viés racionalista da bioética, representado pela referência dominante aos métodos da filosofia analítico, e a um também suposto viés da comunicação, de tipo essencialmente tecnicista, baseado na mera racionalidade instrumental. Em outros termos, bioética e comunicação estariam sempre aquém da complexidade e problematicidade das situações concretas enfrentadas pelo profissional em saúde e, em particular, pelo médico, não podendo responder, portanto, à expectativa dos atores envolvidos no processo da educação médica devido a uma presumível externalidade à realidade dos atos médicos.

Esta desconfiança tem, prima facie, suas “razões” de ser, se pensarmos no caráter conflitivo e, muitas vezes, dilemático de algumas situações concretas da relação médico-paciente; quando, por exemplo, o desamparo do paciente frente ao sofrimento e/ou a frustração do profissional frente à impossibilidade de suprimi-lo mostram a precariedade da condição humana e os limites dos meios para enfrentá-la, que contrastam com as esperanças criadas pelos progressos em medicina e biomedicina.

Em particular. a desconfiança acerca da utilidade da bioética para enfrentar as dificuldades da prática clínica parece ter respaldo na própria história contemporânea da ética quando pensarmos, por exemplo, na posição de Wittgenstein, para quem a ética não existe como disciplina porque não podem existir proposições éticas11. Wittgenstein L. Tractatus logico/philososphicus. Oxford: Blackwell, 1953. pr 6.42., ou na posição similar do positivismo lógico, que afirma que as proposições éticas não fazem sentido porque não são verificáveis, razão pela qual a ética só poderia ser, quando muito, uma metaética, preocupada em esclarecer os conceitos morais para evitar confusões.

Entre tanto, esta posição “céptica” é questionável devido a pelo menos dois bons motivos. Primeiro, porque esquece a transformação da ética a partir dos anos 50/60, conhecida como “reabilitação da filosofia prática”22. Riedel M. Rehabilitierung der praktischen philosophie. Freiburg: Rombach, 1972-1974., que consistiu num movimento de reação ao formalismo acadêmico da metaêtica pela redefinição da geografia dos valores frente à realidade profundamente transformada do pós-guerra e que está na origem do surgimento das éticas aplicadas33. Engelhardt HT Jr. The foundations of bioethics. New York: Oxford University Press, 1986 .. Segundo, porque tampouco dá contado foto de a palavra não ser sempre e necessariamente flatus voci, podendo, ao contrário, ser concebida também como constitutiva da própria condição humana, quer do ponto de vista ontológico, quer do ponto de vista transcendente, ou seja, por referir-se ao “ser” e ao “ser para o outro” que definem, conjuntamente, a existência do Homem. Como afirma Martin Heidegger, “o homem é aquele ente que se distingue [dos outros entes] por ‘ter palavra’, ‘discurso’”44. Heidegger M. Heráclito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1998. p. 96.; que as relações entre humanos são feitas de muitos discursos pois “a palavra está no meio dos homens e (...) somente no meio dos homens é que ela os interpela em todas as suas relações, para corresponder a esse apelo num dizer (...), de tal maneira que tudo o que se manifesta já aparece, simultaneamente, como palavra - mesmo quando não pronunciada”44. Heidegger M. Heráclito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1998. p. 96..

Em outros termos, a palavra e o discurso fazem parte da práxis humana, tanto no sentido dos efeitos pragmáticos da linguagem nas inter-relações humanas como no sentido de meio que acompanha a ações humanas para justificá-las e tentar legitimá-las frente ao outro.

De fato, palavra e discurso se tornam objeto legítimo não somente da teoria da comunicação, mas também da própria ética aplicada e, em particular, da bioética, visto que estas se preocupam não só em analisar conflitos morais (aspecto descritivo) e em avaliar a forma e as ferramentas da argumentação moral (aspecto metaético) - compartilhando portanto muitas das preocupações da teoria da comunicação -, mas também com o aspecto normativo, ou prescritivo, que se refere ao que se considera que deve ser feito ou é bom que seja feito. Por isso, John Harris pode afirmar, de forma pertinente: “assim como a tarefo especifica da medicina não é só compreender a natureza e as causas da doença, mas também tentar preveni-la ou curá-la, é tarefa própria da ética médica [leia-se bioética] não só compreender a natureza dos problemas morais, levantados pela prática médica, mas também tentar resolvê-los”55. Harris J. The value of life. An introduction to medical ethics. London: Routledge & Kegan, 1985. p.4..

Se aceitamos a pertinência dessas considerações, podemos ter uma avaliação mais positiva das possíveis contribuições da bioética e comunicação ao processo da educação médica, quer dizer, defender um ponto de vista relativamente mais “otimista” (quando contraposto ao “céptico”). Este é, em geral o ponto de vista que podemos chamar de crítico e imparcial, o qual é mais “otimista” se considerarmos que um “otimista” pode sê-lo depois de ponderar várias interpretações da realidade, que surgem inclusive de um certo cepticismo sobre a interpretação vigente sem abrir mão da busca de alternativas razoáveis. Neste caso, a resposta será provavelmente que bioética e comunicação podem propiciar algo à educação médica porque ambas se ocupam e preocupam com relações.

Com efeito, a bioética, enquanto, forma mais desenvolvida da ética aplicado ou, até, o ponto de chegada de toda a história moral do mundo moderno3, se ocupa dos conflitos morais que surgem no campo biomédico e, de forma mais abrangente, no campo da saúde humana em seu contexto bio-psico-socio-ambiental e entre atores com interesses e valores diferentes (como podem ser médicos e pacientes, mas também educadores e educandos), preocupando-se, portanto, em encontrar soluções razoáveis e legitimas aos mesmos. A comunicação, por sua vez, se ocupa dos meios, das modalidade se dos resultados dos encontros e desencontros entre atores sociais, podendo, inclusive, ocupar-se do encontro/desencontro entre médico e paciente, por um lado, e médicos e alunos de medicina, por outro, como mostra o atual interesse pela “ética narrativa”66. Brody H. The four principles and narrative ethics. In: Principles of biomedical ethics. (R. Gillon ed). Chichester, UK: John Wiley, 1994. p.207-215.. Em suma, bioética e comunicação podem ser meios para um melhor entendimento recíproco entre os atores da relação médico-paciente e da relação educador-educando; para o esclarecimento dos conflitos de interesses e valores envolvidos na relação; para tomadas de decisão razoáveis e legitimas frente aos conflitos e até para uma compreensão mais profunda da condição humana em seu ser-aí.

Mas, embora esta posição “otimista” pareça razoável e legitima, ela também, corresponde a uma conceituação intuitiva - e bastante benévola - de bioética e comunicação, podendo, portanto, receber uma série de novas críticas pertinentes, como veremos mais adiante. De fato, quando saímos do campo da intuição e da linguagem do senso comum, ou seja, de um certo “consenso”, é possível que os cépticos e os otimistas discordem em suas avaliações não somente devido a concepções substantivas do mundo e da natureza humana, ou seja, devido a cosmovisões diferentes e não necessariamente comensuráveis, mas antes devido às diferentes maneiras de conceituar tanto a bioética, quanto a comunicação. Em suma, é muito provável que boa parte das discordâncias derive não somente da diferente avaliação feita sobre a utilidade e a funcionalidade de bioética e comunicação, mas, sim, da diferente intensão e extensão dada aos conceitos de bioética e comunicação por atores sociais com pontos de vista e preocupações diferentes. De fato - como já sugeria Wittgenstein -, muitos problemas, aparentemente insolúveis, aparecem devido a mal-entendidos de linguagem,

Se o que estamos apontando é correto, antes de falar sobre as possíveis relações entre bioética, comunicação e educação, médica deve-se especificar em que sentido se utilizam as palavras “bioética e “comunicação”. Em outros termos, a precaução é legítima quando existe uma suspeita razoável de que as palavras não são utilizadas da mesma maneira e com o mesmo sentido por todos os envolvidos numa conversação, razão pela qual o esclarecimento inicial se torna condição necessária (embora não suficiente) para o entendimento do discurso em que tais palavras aparecem e que podem transformar o discurso numa autêntica conversação.

ESCLARECENDO OS TERMOS DO PROBLEMA

Como ensinou o lingüista Ferdinand de Saussure77. Saussure F. Cours de lingüistique générale. Paris: Payot, 1974., a língua é um fenômeno social, e as palavras são arbitrárias, visto que são signos nos quais a relação entre significante e significado não é necessária, mas contingente, e é por isso que as palavras podem ser utilizadas não sempre da mesma maneira por todos os envolvidos numa conversa.

Este é certamente o caso do neologismo “bioética”, mas pode ser também o caso da palavra “comunicação”, apesar de muitos terem sobre ambas uma concepção intuitiva, aparentemente consensual. De fato, a concepção intuitiva de uma disciplina e de seus conceitos e métodos utilizados se mostra não somente insuficiente, mas também prejudicial quando a conversação vira discussão ou disputa, como muitas vezes acontece com os tópicos polêmicos da biomedicina, abordados pela bioética atualmente. Nesses casos, parece razoável afirmar que se deva preferir o sentido técnico (ou especializado) das palavras, sobre o qual seria, em geral, mais fácil chegar a um acordo. Entretanto, tampouco existe acordo entre especialistas sobre o sentido e a abrangência de suas próprias disciplinas, conceitos e métodos, justamente porque as palavras são arbitrárias, e os conceitos e métodos estão continuamente sujeitos a revisão, sem esquecer, evidentemente, outras razões “demasiado humanas”, tais como reconhecimento, prestígio e poder (que não vamos poder abordar neste ensaio).

De qualquer maneira, sem um acordo inicial dos participantes sobre o sentido, a abrangência e a pertinência das palavras, dos conceitos e dos métodos utilizados, as inevitáveis disputas que surgem acabam por tornar impossível a comunicação, e com isso a procura de eventuais soluções dos conflitos que emergem no campo biomédico e da saúde, que tanto a bioética como a teoria/prática da comunicação pretendem analisar e resolver.

Devido ao contexto de incerteza no qual a prática comunicativa atua, pode-se dizer que a comunicação é um projeto mais do que um dado, apesar da convicção intuitiva, e bastante compartilhada, de que a comunicação estaria assegurada pela própria proliferação de meios e suportes da comunicação, representados pelas assim chamadas tecnologias da informação, como a internet. Por outro lado, devido à proliferação dos conflitos de interesses e valores que permeiam as sociedades complexas atuais e as várias abordagens bioéticas legitimas de tais conflitos, pode-se dizer que também a bioética é um projeto, visto que não se ocupa somente da análise de conflitos, mas pretende também resolvê-los.

Entretanto, o status de projeto tanto da comunicação como da bioética não implica que ambas não sejam meios legítimos e pragmáticos para o entendimento. Em particular, a bioética é um instrumento pertinente de solução dos conflitos que surgem no campo médico, visto que se preocupa em encontraras formas de entendimento que permitam aos atores envolvidos num conflito negociarem entre si soluções aceitáveis, baseando-se seja nos instrumentos da filosofia moral, seja em procedimentos essencialmente comunicacionais.

Paradoxalmente, a comunicação é um projeto devido em parte à própria proliferação de meios e suportes informacionais, a qual faz com que se confunda a mera informação (que pode ser medida) com o processo mais delicado e sempre in fieri da comunicação, isto é, com algo que de falo está sempre “em ato de tornar-se” (é este o sentido de in fieri) e nunca já dado, visto que pode também não se dar. Isso pode ser verificado a todo momento em muitas situações, tais corno nas relações entre médico e paciente, entre professores e alunos, entre membros de uma equipe profissional e multiprofissional e, evidentemente, entre estes e os próprios usuários.

Se o que estou apontando é o quede fato acontece, existem então duas saídas possíveis: (a) se renuncia a qualquer tentativa de comunicar-se com o outro, fechando-se estoicamente num silêncio impassível e digno, decorrente da percepção de que, de qualquer maneira, só existiria a incompreensão e o absurdo das relações humanas (como pretendia uma certa vulgata existencialista) ou (b) sem abrir mão de uma saudável dose de cepticismo, tenta-se construir conjuntamente as condições para que o projeto comunicativo surja e se realize da melhor maneira possível, tentando envolver as partes em conflito pelo procedimento do reconhecimento recíproco e tendo em vista alguma forma de equacionamento dos conflitos.

A primeira solução é contra-intuitiva, visto que, adaptada à relação entre médico e paciente, por exemplo, só admite duas interpretações: (a’) “negativamente”, a recusa da relação, que evidentemente não é uma solução ou (a’ ’) “positivamente”, uma relação de tipo autoritário e/ou paternalista, o que é contrário à atual tendência para considerar o respeito recíproco entre atores sociais como condição necessária do agir comunicativo em sociedades multiculturais e que passa pelo reconhecimento da autoridade moral do outro e, portanto, pelo respeito da autonomia de qualquer pessoa competente envolvida numa relação.

Sobraria então a segunda saída, que investigaremos detalhadamente mais adiante, mas sobre a qual já se pode dizer que depende de uma condição. Com efeito, as chances de sucesso do projeto comunicativo em sociedades complexas, democráticas e multiculturais, nas quais, portanto, existem muitas mane iras legítimas de pensar e agir corretamente, dependem da condição de se saber que não existe consenso a priori nem sobre os “máximos sistemas” - relativos ao Bem e ao Justo - nem sobre os próprios termos “bioética” e “comunicação” aqui utilizados.

NÃO EXISTE CONSENSO SOBRE “BIOÉTICA”

Como escreve Gilbert Hottois, devido à diversidade de práticas e discursos chamados “bioéticos”, não existe um conceito simples e absolutamente unívoco88. Hottois G. Bioéthique. In: Les mots de la bioéthique. Bruxelles: De boeck-Wesmael, 1993. p.52., razão pela qual não pode existir tampouco consenso sobre a bioética.

Com efeito, bioética, ode ser entendida como uma genérica “ética da vida” ou como “ética da qualidade de vida” (conforme o sentido amplo ou restrito dado à palavra grega bíos), como sinônimo de “ética biomédica” ou como “ética aplicada ao campo da biomedicina e da saúde”, entre outras ocorrências. O principal problema dessas definições diz respeito à extensão do campo semântico referido, visto que algumas são demasiado abrangentes (como “ética da vida”, que deixa entender que toda Ética é uma Bioética, o que é questionável se entendermos bioética num sentido estilo e não lato); outras são demasiado restritas (como “ética biomédica”, que na prática acaba se confundindo com a ética médica tradicionalmente entendida e esquece a reconfiguração em ato da ética acontecida com o surgimento das éticas aplicadas e devido às novas interrogações sobre os processos do viver, adoecer, padecer e morrer, que surgem com os avanços da biomedicina e a emergente sociedade de “consumidores” com seus novos direitos amplamente reconhecidos).

Frente a esta polaridade semântica, prefiro utilizar a definição dada por Miguel Kottow, para quem a bioética se refere à modalidade dos atos humanos que alteram, de forma irreversível, os processos, também irreversíveis, dos sistemas vivos99. Kottow M. Introducción a la Bioética. Santiago, CL: Ed. Universitaria, 1995. p.13.. Esta definição tem uma vantagem comparativa sobre as demais citadas, visto que é ao mesmo tempo bastante ampla e suficientemente precisa, o que evita que se confunda esta definição com a da ética médica tradicionalmente entendida, que é justamente a concepção que a bioética pretende dialeticamente “suspender” (aufheben), ou com uma genérica “ética da vida", não mais bem definida, e que acaba, portanto, se confundindo com todo o campo da Ética. Não se restringe ao mero âmbito biomédico, pois por, um lado, permite incluir as práticas biotecnológicas, os tratos com os animais e as intervenções sobre o meio ambiente, e, por outro, delimita o aspecto da vida que deve ser considerado pertinente para a análise moral do agir humano, o fato de a vida ser um processo irreversível e de as ações humanas poderem interferir nele de maneira também irreversível, e tendo, portanto, que avaliara moralidade deste agir. Tampouco esquece a especificidade do saber-fazer biomédico atual, marcado pela vigência daquilo que chamo de paradigmas biotecnocientífico e biotecnológico, atualmente os aspectos mais questionados da prática clínica, devido seja ao “imperativo tecnológico” que supostamente os sustentaria1010. Jonas H. Das prinzip verantwortung. Versurh einer ethik für die technologische zivilisation. Frankfurt a Main: Insel Verlag, 1979., seja às distorções que introduziria nos sistemas sanitários, tais como a explosão dos custos, que os levaria à falência e à frustração das esperanças dos usuários, sobretudo dos mais desprovidos de recursos1111. Callahan D. False hopes. Why America's quest for perfect health is a recipe for failure. New York: Simon & Schuter, 1998..

NÃO EXISTE CONSENSO SOBRE O TERMO “COMUNICAÇÃO”

A situação do termo “comunicação”, sob vários aspectos, é mais problemática ainda, considerada sua freqüente ocorrência nos contextos mais diversos, e nem sempre congruentes entre si, que deixa supor que de fato as sociedades seriam mais comunicativas pelo simples fato da proliferação das assim chamadas técnicas comunicacionais.

Em realidade, na linguagem do senso comum, “comunicação” pode referir-se a qualquer meio ou suporte, factual ou virtual, de transmissão de informação (como em “meios de comunicação” e “tecnologias de comunicação”), a qualquer conteúdo produzido por tais meios (ou “mensagens”) ou, ainda, a procedimentos ligados a estes. Entretanto, apesar dessas múltiplas ocorrências, todas elas pressupõem um sentido de comunicação que se pode chamar de técnico-instrumental.

Mas “comunicação” pode ainda ser referida a qualquer situação de inter-relação humana, caracterizada pela relação entre pelo menos dois atores. Este é o caso das situações existenciais em que dois ou mais agentes, isto é, um eu e um outro, dialogam entre si, inclusive nas situações reflexivas em que um agente (um eu) “dialoga” com si mesmo, caso no qual o sujeito da reflexão se torna também um objeto de reflexão ou um sujeito-objeto (que pode então ser considerado como um “outro” ou um “si-mesmo como um outro"1212. Ricoeur P. Soi-même comme un autre. Paris: Ed. du Seuil.). Neste sentido, a comunicação pode ser entendida também como um meio da transcendência, ou seja, relativa a uma situação na qual um eu, ao tentar “sair” de si-mesmo, transcende a si no sentido de “entrar” (ou tentar entrar) em contato com o outro de si (que pode ser também o Outro entendido em sentido religioso).

Em outras palavras, deste ponto de vista n o meramente técnico­instrumental e sim propriamente existencial, o ente comunicativo que é o ser humano é sempre, enquanto ser de linguagem, um ser necessariamente transcendente e por isso um ente que deve ser entendido no duplo sentido da palavra ente, quer dizer, seja como “o que é”, seja como “o que está sendo”, logo um produto de uma relação e um ator que reconstrói esta relação.

É devido a esses múltiplos aspectos inerentes à comunicação que surge uma série de questões abordadas pela psicologia, a antropologia filosófica, a filosofia da linguagem, a semiótica e a própria reflexão de médicos e outros profissionais em saúde, por um lado, e usuários e associações de usuários, por outro. Todos em princípio preocupados seja com os aspectos pragmáticos de suas ações respectivas, seja com seu aspecto ético e político, que implica o controle e a fiscalização de tais ações.

A principal questão nesse âmbito complexo da comunicação talvez seja a oposição entre o aspecto propriamente linguístico (ou técnico instrumental ou semiótico) e o aspecto existencial da comunicação, aparentemente irredutíveis entre si e, portanto, considerados inconciliáveis tanto no plano lógico, como, muitas vezes, no plano axiológico.

Resumidamente, o problema é o seguinte: a comunicação semiótica, ou técnico-instrumental, seria essencialmente transmissão de informação ou de mensagens entre um emissor e um receptor ou intérprete, isto é, comunicação essencialmente reduzida à sua dimensão simbólica, que pode muito bem acontecer entre homens máquinas e até entre máquinas, como sucede atualmente na comunicação virtual via internet. Já a comunicação existencial só poderia dar-se num contexto de situações de vida e consistiria em atitudes de um eu frente a outros eus (agentes ou sujeitos morais), a outros seres ou entes (pacientes morais) e ao mundo (objeto moral). Por isso, pode-se dizer que existiria uma polarização entre um aspecto meramente instrumental (o semiótico) e um aspecto prevalentemente hermenêutico (o existencial) do processo comunicativo, que incluiria não só informações, mas também emoções e, sobretudo, valores.

Entre tanto, para José Ferrater Mora1313. Ferrater Mora J. Communicación. In: Diccionario de Filosofia. Barcelona, ES: Ariel, 1999. p. 611-614., esta polarização entre aspecto técnico-instrumental e aspecto existencial - ou, dito com outros termos, entre o universo dos “meios” e o universo dos “fins” da comunicação - empobreceria o sentido do processo comunicativo, entendido em sua integralidade, isto é, definível somente pelos vínculos entre a dimensão semiótica e a existencial. Para esse autor, um modo de sair dessa polaridade (que considera necessária) consistiria em pensar ambas as dimensões da comunicação como simultaneamente distinguíveis e indissociáveis (para utilizar uma analogia com a linguística, como a forma e o conteúdo de um mesmo processo), o que permitiria, portanto, considerar o inteiro processo instrumental-existencial da comunicação como uma situação de encontro entre seres considerados em si-mesmos mas também em inter-relação, logo como diálogo entre subjetividades que fazem a experiência do mútuo reconhecimento, de ser simultaneamente si mesmas e seres para outros seres.

Neste sentido, a comunicação pode então ser entendida como uma forma do agir e, por ser uma forma do agir, deve ser pensada necessariamente em sua dimensão de práxis, a qual sempre implica um relacionam-se com o outro de si. Por esta razão, a Comunicação se vincula necessariamente à ética, e esta relação pode então ser pensada no sentido desenvolvido, por exemplo, pela ética discursiva de Jürgen Habermas1414. Habermas J. Theorie de komunicatives Handeln. Frankfurt a Main: Suhrkamp. 1981. e Karl Otto Apel1515. Apel K-O. Das a priori der kommunikationsgemeinschaft. Frankfurt a Main: Suhrkamp , 1973., isto é preocupando-se com os valores morais generalizáveis ou universalizáveis, norteadores das práticas de alguém sobre o(s) outro(s), tendo entretanto a preocupação (que de fato é uma crítica ao apriorismo habermasiano e apeliano) de não considerá-los como já dados a priori, mas sim a serem construídos pelos envolvidos numa disputa moral, quer dizer, negociáveis em vista de um acordo e, quando possível, de um consenso.

Definidos os conceitos de bioética e comunicação, pode-se tentar articulá-los ao campo da educação médica e ver como e em que medida cada uma - e ambas - pode esclarecer o processo durante o qual o educador não somente transmite ao educando seu saber-fazer, mas, sobretudo, favorece que o educando desenvolva as potencialidades constitutivos de sua vocação e que podem ser objeto de análise e avaliação moral.

COMUNICAÇÃO E BIOÉTICA NA EDUCAÇÃO MÉDICA

Voltando à pergunta inicial, depois de termos descrito, sumariamente, os aspectos pertinentes de bioética e comunicação: o que estas podem oferecerão processo de educação médico?

A meu ver, existem dois sentidos principais de uma possível relação: um intuitivo, outro crítico.

  1. No sentido intuitivo, comunicação e bioética podem ser vistas como “coadjuvantes” de qualquer prática médica e de qualquer cuidado em saúde1616. Albuquerque MC. Pediatria: práxis e reflexão ética. Medicina. 2000: XV (121):8-9., porque ambas são (ou pretendem ser) meios inerentes à relação clínica, isto é, inseparáveis da habilidade do médico (e de qualquer prestador de cuidados sanitários) em relacionar-se com o paciente (ou usuário) para obter os resultados esperados de seus cuidados.

Se aceitamos o sentido de comunicação como práxis de mútuo reconhecimentos entre prestador de serviços e usuário, e portanto como instância indissociável e de algum conteúdo ético em princípio universalizável, isso implica que o primeiro deve respeitar prima facie as preferências e as decisões do segundo, evitando, por exemplo, atitudes paternalistas e substituindo-as por práticas dialógicas, isto é, pelo convencimento baseado na força argumentativa (cogency) e, eventualmente, por outros meios não necessariamente racionais, baseados no afeto e na simpatia.

Em outros termos, a prática comunicativa capaz de combinar sabiamente razão e emoção é importante numa época em que se atribui grande importância ao respeito da autonomia pessoal no que se refere às decisões do indivíduo, sobre seus estilos de vida não prejudiciais para terceiros, e ao mútuo reconhecimento como condição necessária do respeito da dignidade individual e do livre exercício da cidadania numa sociedade democrática e multicultural1717. Taylor C. The politics of recognition. Princeton: Princeton University Press, 1992.. Ou seja, autonomia e reconhecimento são condição necessária do agir comunicativo e da eticidade da relação entre médico e paciente e, de forma geral, entre prestadores de serviços e usuários, numa época em que a defesa dos direitos individuais deve correlar-se com o reconhecimento recíproco de dois tipos de sujeitos envolvidos numa relação, o que presta um cuidado e o que recebe este cuidado.

Mas a relação comunicativa, entendida em sua dupla dimensão semiótica e existencial, por um lado, e como projeto in fieri por outro, faz com que tais sujeitos devam necessariamente pôr em discussão suas pretensões de verdade e normatividade, visto que se encontram processualmente numa situação existencial na qual o agir pode estar orientado teleologicamente ao entendimento. Aqui estou, evidentemente, simplificando bastante, pois, para uma análise mais aprofundada, deveríamos ainda considerar que esta relação comunicativa dialógica se insere num contexto sociocultural mais amplo, no qual, muitas vezes interferem os interesses e valores comunitários, de classe social, do Estado e da sociedade como um todo. Ademais, o entendimento é sempre uma possibilidade teleológica, e nunca algo dado a priori, caso contrário não existiria nenhuma necessidade de “negociar” conflitos, mas tão-somente situações caracterizadas por quem manda e quem obedece.

Em outros termos, quando falamos em teleologia de entendimento entre atores sociais, podemos concebê-la soba forma ideal do consenso ou sob a forma mais comum da negociação e do compromisso. Contudo, do ponto de vista das possibilidades de comunicação (pouco importa aqui que sejam dadas o priori ou construídas a posteriori), o discurso de fundo não muda muito quando passamos de uma inter-relação entre dois atores a uma entre três ou mais, pois os problemas podem ser, mutatis, mutandis, do mesmo tipo, ainda que mais complexos.

Outro complicador, que pode pôr sob suspeita a pertinência de utilizar os meios comunicativos para o processo da educação médica, é representado atualmente pela crítica pós-moderna ao ideal comunicativo fundado na racionalidade. Neste caso, o próprio termo “teleologia” é criticável, pois deixa supor que existe uma possibilidade, dada a priori, de os fins orientarem o decurso das ações humanas rumo ao Bem e/ou ao Justo de um modo que seja compreensível “universalmente”, independentemente dos contextos sociais e culturais. Sem citar casos específicos, existem, evidentemente, inúmeros exemplos que mostram o contrário. Por isso, a teleologia do entendimento deveria ser pensada não como algo implicado necessariamente por uma suposta natureza humana (como pretendiam Platão, Aristóteles ou Kant), nem como o resultado de um finalismo intrínseco dos processos históricos (como pretendiam tanto Hegel como Marx), porém, mais modestamente (e diria mais realisticamente), como um desideratum que pode acontecer ou não, dependendo das situações específicas. Em suma, se quisermos dar conta dos dilemas e das tragédias que de fato existem nas relações humanas, deveríamos, previamente, “abandonar a teleologia em pequena e em grande escala”1818. Rorty R. Freud e Platão na Arena. São Paulo: Folha de São Paulo / Mais. 2000; 10 de dezembro. 22., pelo menos se pensarmos a teleologia do entendimento como algo inscrito numa suposta natureza humana já dada ou num processo histórico determinado a priori.

Mas, se entendermos a teleologia do entendimento como um projeto, ainda que “local”, precário e incerto, desejável para resolver nossos conflitos da melhor maneira possível (ou talvez da menos ruim possível), penso que seria pelo menos contra-intuitivo rejeitar em bloco todas as ocorrências deste conceito, visto que o ente transcendente, que é o ser humano, tem necessariamente sempre um telos vinculado a esta sua dimensão do qual depende o sentido de sua práxis.

Resumindo, o ideal comunicativo subjacente ao sentido intuitivo é criticável por sua referência ao conceito de consenso, que, muitas vezes, é tomado não em seu sentido de ideal teleológico (no sentido de projeto desejável) da práxis, mas como inerente e constitutivo do próprio processo comunicativo, isto e, não como um de seus resultados, mas como sua condição. Por isso, além de um nível intuitivo, existe um nível crítico em que comunicação e bioética podem relacionar-se com a educação médica.

  1. Já o nível crítico pretende justamente ser aquele em que se tem em devida consideração todas as críticas anteriores, tentando contudo respondê-las. O problema fundamental neste nível - ao mesmo tempo epistemológico e metodológico - é a passagem, não explicitada nem justificada, de uma concepção de consenso como desideratum (em si legítimo) para uma concepção (a ser demonstrada teoricamente e nos fatos) que o considera uma pré-condição indispensável e supostamente inscrita na própria natureza do procedimento comunicativo, quando de fato é, na melhor das hipóteses, um ponto de chegada, quer dizer, um possível resultado (portanto não necessário) do agir coinunciativo1919. Rescher N. Pluralism: against the demand for consensus. Oxford: Clarendon Press, 1995..

Com efeito, o consenso é algo muito difícil de atingir concretamente em situações não banais, isto é, quando estão em jogo interesses e crenças individuais e grupais considerados fundamentais por seus defensores e que entram em conflito. Por isso, é de fundamental importância para o agente moral que participe do procedimento comunicativo, sabendo que está num mundo onde valem interesses e princípios morais legítimos e plurais, e onde convivem comunidades morais diferentes, que não são necessariamente congruentes a priori. Este é, mu itas vezes, o caso da relação entre médico e paciente e, de forma geral, entre prestador de serviços e usuário de serviços de saúde, como mostra o caso paradigmático da transfusão de sangue em testemunhas de Jeová e que pode, em alguns casos, representar um verdadeiro dilema para o médico, visto que, se respeitar o direito do paciente de não receber uma transfusão, e se este for seriamente prejudicado, o médico poderá ser autuado por omissão de socorro e por danos, previstos pela lei.

Por isso, muitos críticos preferem substituir, mais realisticamente, o conceito de consenso por aquele, de perfil mais modesto, de acordo interpessoal ou de grupo, cujo modelo é o de paradigma, no sentido definido por Thomas Kuhn e entendido como padrão definido e aceito provisoriamente por alguma comunidade (científica, moral ou outra), logo sempre perfectível e modificável conforme o descobrimento de novos fatos e olhares considerados relevantes, Este é o caso, por exemplo, de Nicholas Rescher, que, ao perguntar se o consenso é uma condição necessária da comunicação, responde pela negativa, argumentando: “visto que vivemos num mundo imperfeito [e] os recursos nossa disposição, inclusive nossos recursos Intelectuais, são limitados, o consenso é inatingível conquanto pertence a um ideal de racionalidade, não a fatos da vida’ realizáveis”, razão pela qual dever-se-ia preferir um “racionalismo contextual situado a meio caminho entre o absolutismo dogmático e o niilismo relativista”. E acrescenta que o importante, do ponto de vista comunicativo, não é o concordar com o outro, mas sim o respeito recíproco entre pessoas, quer dizer, o reconhecimento do outro como agente moral em princípio autônomo, considerando isso “condição de uma coexistência benigna”. Ademais, do ponto de vista moral, o consenso seria também criticável, visto que pode ser fruto de “meios moralmente questionáveis”, tais como “motivo de força maior” ou “induzidos por doutrinamento”1919. Rescher N. 1995; op. cit, p.4..

Aparentemente, o problema desta posição é que parece tornar inviável a comunicação entre comunidades que não compartilham determinadas premissas para chegar a um acordo, reduzindo toda a complexa situação moral a uma questão de interesses e gostos pessoais ou de grupo, o que acabaria a princípio no niilismo relativista1919. Rescher N. 1995; op. cit, p.18.. Entretanto, a posição pluralista defendida por Rescher tenta justamente evitar isso quando afirma situar-se entre o “monismo” - representado pelo dogmatismo racionalista moderno (que defende o consenso como imperativo moral racional ou condição a priori da comunicação) - e o “niilismo”, representado pelo relativismo pós-moderno. Esta terceira possibilidade, defendida por Rescher, pode ser considerada como propriamente crítica porque se baseia no papel central da interpretabilidade na comunicação (em substituição ao acordo cognitivo) e no papel da aquiescência na interação social e política (em substituição ao acordo prático). Isso implica que “a coordenação e a cooperação são possíveis (e racionais) mesmo frente ao desacordo sobre fatos e valores”1919. Rescher N. 1995; op. cit. p.20..

A crítica anterior ao projeto habermasiano e apeliano da ética discursiva baseada no consenso - entendido como condição transcendental a priori (Apel) ou como princípio normativo regulador da racionalidade argumentativa (Habermas) - é bastante convincente, desde que não se perca de vista, pena a perda do próprio projeto comunicativo, a possibilidade, embora não dada a priori, de alguma forma de acordo, ou compromisso, que constituem o telos de qualquer ação comunicativa que pretenda dirimir algum conflito de interesses e valores que precisa de uma decisão. Isso implica a referência a algum valor, ou sistema de valores, normativo que deve ser compartilhado pelos atores do conflito durante a ação comunicativa; logo, uma referência moral que tenha em princípio a capacidade de valer para todas as situações análogas, quer dizer, respeitando tão-somente a cláusula ceteris parbius. Em outros termos, neste caso, não se pode, evidentemente, abrir mão de alguma forma de valores generalizáveis ou “universalizáveis” (como pretende justamente Habermas), caso contrário perderíamos o aspecto pragmático da ética aplicada, quer dizer, seu projeto de resolver conflitos. Com efeito (como já vimos), condição necessária da ética discursiva é o reconhecimento recíproco entre os agentes envolvidos numa prática comunicativa e numa disputa moral, sem a qual só poderiam existir mônadas cognitivas e morais fechadas e incomensuráveis ou uma galáxia de comunidades de “estranhos morais”2020. Engelhardt HT Jr. 1986; op. cit., o que provavelmente resultaria numa incompreensão universal e numa “guerra” entre prestadores de serviços usuários. Assim sendo, o reconhecimento recíproco implica tanto o respeito do outro quanto a tomada de posição pessoal, mesmo que seja em conflito com a posição do outro e desde que isso não implique a impossibilidade de o outro fazer o mesmo.

O DUPLO ASPECTO COMUNICATIVO DA BIOÉTICA

A bioética, enquanto ética aplicada, tem necessariamente duns dimensões inseparáveis: a) um aspecto descritivo, b) outro prescritivo.

  1. O aspecto descritivo consiste em analisar, de forma racional e imparcial, os argumentos em jogo numa disputa de interesses e valores à luz de alguma teoria moral subjacente. Este aspecto pretende dar conta da situação em que o homem “se auto-observa”2121. Maliandi R. Ética: conceptos y problemas. Buenos Aires, AR: Biblos, 1991. p.11 . naquilo que ele faz conforme suas concepções de certo e errado, e ajudando-se pelo exercício da argumentação para justificar seus atos perante alguma instância julgadora que o transcende. Esta auto-observação se acompanha de uma pretensão ao distanciamento do objeto observado - o si-mesmo em interação com o(s) outro(s) - para atingir algum patamar de imparcialidade, a partir do qual poder julgar “objetivamente”, isto é, com isenção. O objetivo é testar e ponderar os argumentos em seus contextos específicos, quer dizer, explicitá-los, avaliá-los e, quando possível, destacar qual deles deva ser considerado o melhor ou o menos ruim.

Em outros termos, este papel crítico-descritivo da bioética consiste em detectar o argumento mais forte, isto é, o mais pertinente e convincente, e que permita escolher, dentre as atitudes possíveis, aquela que mais se adapta a uma situação específica para obter os resultados melhores ou. Quando isso não for possível, os menos ruins em termos de consequências.

Entretanto, por ser um alo de auto-observação, este distanciamento e a conseguinte “isenção” sempre estarão sob suspeita por parte de terceiros, que poderão legitimamente duvidar de o observador ser um mero observador imparcial. De fato, é razoável afirmar que um observador sempre observa com alguma finalidade pragmática. Isso faz com que toda observação implique sempre também um compromisso com alguma forma de teleologia e, do ponto de vista ético, numa pretensão de dizer como “as coisas deveriam ser”, isto é, numa atitude normativa ou prescritiva.

  1. O aspecto prescritivo é a conseqüência prática do primeiro aspecto e consiste em indicar e propor a solução melhor do conflito em pauta (ou a menos ruim), dados os parâmetros de valores assumidos e as circunstâncias especificas. Assim sendo, a bioética é simultaneamente analítica e pragmática, razão pela qual se costuma classificá-la no âmbito da ética aplicada, no qual a razão teórica está profundamente vinculada à razão prática. Isso faz com que exista uma profunda analogia com a prática médica, como bem sinalizou John Harris.

Se aceitarmos esta dupla tarefa da bioética, podemos entender por que ela está duplamente vinculada aos procedimentos comunicativos. Com efeito, ao ocupar-se, do ponto de vista cognitivo, com a descrição e a interpretação do mundo dos valores e, do ponto de vista axiológico, com as relações de reconhecimento reciproco na práxis, a bioética - que, como vimos, diz respeito aos atos irreversíveis sobre os processos irreversíveis dos sistemas vivos, conforme a definição de Kottow - só poderá ter a ver com o duplo aspecto da observação, informar-se e informar, de forma fidedigna, sobre tais estados do mundo e, a partir dessa operação de comunicação semiótica, agir em conformidade com o ponto de vista existencial, quer dizer, fazer o possível para que os melhores argumentos para certo tipo de visão de mundo sejam condição suficiente para certo tipo de ação.

Em suma, a bioética está duplamente vinculada à comunicação porque pretende basear-se nos melhores standards observação e interpretação e porque, a partir desses fatos, considerados “fidedignos”, sugere standards de ação que sejam, senão universais e dados a priori (pelas razões descritas acima), pelo menos generalizáveis ou universalizáveis a todas as situações análogas, para serem, portanto, aceitos ou não por uma comunidade de comunicação, por serem moralmente desejáveis ou pelo menos aceitáveis. Isso faz com que a bioética deva, provavelmente, terem conta também as críticas ao seu “monismo racionalista”, movidas pela perspectiva pragmática do “pluralismo cognitivo normativo”2222. Stich SP. The fragmentacion of reason: preface to a pragmatic theory of cognitive evaluation. Cambridge, Mass: The MIT Press, 1991., segundo a qual num mundo multicultural não existiria uma única “virtude cognitiva” aceitável para considerar quais são os “bons” argumentos capazes de sustentar “boas” ações, mas sim uma pluralidade legitima de argumentos pertinentes para uma pluralidade de pontos de vista moralmente legítimos. Este é, contudo, um problema que merece outro ensaio.

CONCLUSÕES

Feitas as considerações anteriores, pode-se voltar à pergunta inicial: o que têm a ver a bioética e a comunicação com a educação em saúde?

Ao longo de nossa argumentação, vimos que só se pode legitimamente falar em ética, e a fortiori em bioética, quando existe alguma forma de comunicação entre agentes (ou agentes e pacientes) morais, sob a forma de uma preocupação compartilhada (ou compartilhável) referente ao reconhecimento do outro (enquanto agente ou paciente). Vimos também que é pertinente afirmar que a comunicação se ocupa tanto dos aspectos semióticos como dos aspectos existenciais da práxis humana, entendida soba forma da relação eu-outro em contextos específicos de conflitos de interesses e valores. Por fim, vimos que o ideal comunicativo do consenso é um projeto sempre in fieri, que se pode dar ou não e que, em alguns casos (quando se pode suspeitar ser o produto de meios moralmente questionáveis, como a coerção ou a “lavagem cerebral”), é preferível substituir pela prática da cooperação e coordenação entre agentes morais que vivem em sociedades multiculturais, nas quais a melhor maneira de respeitar as pessoas, seus interesses e crenças legítimos parece ser o pluralismo cognitivo na interpretação dos fatos, por um lado, e a aquiescência na diferença em matéria de opiniões morais.

Se aceitamos essas premissas, bioética e comunicação podem constituir ferramentas valiosas para o desenvolvimento da educação médica em pelo menos um aspecto essencial.

Com efeito, ao mostrarem a pertinência e os limites de seus respectivos conceitos e métodos - analítico e normativo, semiótico e existencial -, assim como seu caráter de projeto, bioética e comunicação podem propiciar um background mais adequado para se atuar profissionalmente no campo da saúde não só com competência e responsabilidade, mas também sem arrogância e com simpatia, lembrando que o processo irreversível que leva do nascimento à morte, passando pelos estágios do adoecimento, do padecimento, do tratamento e do desamparo faz parte da condição humana, o que pode ser um incentivo a uma humanização maior das práticas em saúde, não mais considerada incongruente com seu progressivo tecnicismo. Em outros termos, bioética e comunicação podem servir para ampliar o horizonte do sentido da teoria e da prática médica graças à efetividade de suas ferramentas especificas. Entretanto, a prática médica, ao retroagir por sua vez sobre as ferramentas das primeiras, quer dizer, testando-as, pode especificar melhor os aspectos normativos e existenciais mais pertinentes que merecem um aprofundamento e, se possível, uma solução. Assim sendo, parece razoável afirmar que bioética, comunicação e educação médica se inter-relacionam de tal forma que cada âmbito tem mais a ganhar do que a perder da cooperação e coordenação entre si, desde que seja evidentemente satisfeita a condição do respeito recíproco das respectivas competências e responsabilidades.

Esta contribuição talvez esteja muito aquém do esperado pelos educadores, mas penso que não é desprezível num mundo que muitos definem como pluralista e multicultural, no qual o consenso pode eventualmente ser um ideal comunicativo, mas deve, antes de mais nada, respeitar as pessoas envolvidas nas ações comunicativas, visto que elas são simultaneamente seus agentes e os destinatários legítimos, quer dizer, as únicas que sabem, em princípio, apreciar a qualidade de suas vidas. É por isso que o processo de educação implica não somente fornece, ao educando ferramentas, mas também permitir que todos os sujeitos morais se tornem agentes morais autônomos em suas decisões e, portanto, suscetíveis de serem responsabilizados e cobrados por seus atos.

Agradecimento:

Este trabalho foi realizado com o apoio do CNPq, uma entidade do Governo brasileiro voltada ao desenvolvimento científico e tecnológico.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2001

Histórico

  • Recebido
    01 Fev 2001
  • Aceito
    21 Mar 2001
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