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Atitudes de Estudantes de Medicina sobre Práticas Médicas Heterodoxas no Brasil

Attitudes of Brazilian Medical Students towards Complementary and Alternative Medicines

Resumo:

Realizou-se uma enquete com 51 estudantes de medicina presentes ao XXXV Congresso Brasileiro de Educação Médica com o objetivo de identificar as atitudes de estudantes interessados em ensino médico em relação a quatro práticas médicas heterodoxas (PMHs) mais usadas no Brasil. Foram investigados o grau de conhecimento, eficácia, interesse na aprendizagem, utilidade e recomendação para implantação nos currículos das escolas médicas e nos serviços públicos de saúde da acupuntura, fitoterapia, hipnose e homeopatia. Mais da metade dos estudantes manifestaram alto interesse em conhecer melhor as PMHs e consideram que elas deveriam ser ensinadas nas Escolas Médicas Brasileiras, de forma opcional (86%) ou obrigatória (9%). Embora mais de 80% dos entrevistados admitisse estar pouco ou nada informado sobre as PMHs, 60% entendem que elas são bastante ou extremamente eficazes. Para dois terços da amostra, a homeopatia, a fitoterapia e a acupuntura deveriam estar disponíveis na rede pública de saúde, cabendo aos médicos a responsabilidade pela prescrição ou uso das PMHs. Os estudantes de medicina interessados em educação médica admitem conhecer pouco, porém acreditam que as PMHs podem ser bastante eficazes, devem ser oferecidas rotineiramente na rede pública de saúde e querem ser mais bem treinados ou informados sobre elas durante o curso de graduação.

Palavras-chave:
Educação Médica; Educação de pré-graduação em medicina; Estudantes de Medicina; Medicina Alternativa; Atitude; Currículo

Abstract:

Heterodox or complementary medicines are prescribed by many Braziljan physicians but are not regularly taught m medical schools. We conducted a survey of 51 Brozilian medical students attending a national congress on medical education to determine their attitudes towards four complementary medicines prescribed by physicians in Brazil. Questions were asked of extent of knowledge, efficacy, interest in learning, usefulness, and recommendation for implementation in medical school curricula and public health services in relation to acupuncture, homeopathy, hypnosis and phytotherapy. More than half of the students showed laugh interest in learning complementary medicines and felf that courses should be taught in Brazilian medical schools, whether as optional (86%) or mandatory credits (9%). Although more than 80% of the sample admitted to having little or no information on complementary medicines, 60% claimed they were very or extremely effective. According to two-thirds of the sample, physicians should generally be responsible for prescribing complementary medicines and public health services should routinely offer them to benefit patients. Brazilian medical students interested in medical education are poorly informed about complementary medicines and believe they can be very effective and should be provided routinely in public health services. They also wish to be better trained or informed about them.

Key-words:
Education, Medical; Education, medial, undergraduate; Students, medical; Attitude; Alternative medicine; Curriculum

INTRODUÇÃO

As práticas médicas heterodoxas (PMHs) ou não-convencionais, inapropriadamente denominadas “medicinas alternativas”, incluem conhecimentos e procedimentos diagnósticos, terapêuticos ou preventivos na área da saúde que não compartilham da racionalidade médica dominante1 1 A racionalidade médica dominante centra seu discurso - e ordena sua prática - na explicação das doenças e suas causas numa perspectiva fragmentária e reducionista de ser humano, concebendo-o na prática diagnóstica e terapêutica como uma máquina biológica onde funcionamento inapropriado de uma das partes implicará a produção de doenças. O ensino de uma medicina baseada em tal racionalidade - herdada majoritariamente da tradição norte-americana que se seguiu ao Relatório Flexner em 1910 - tende a gerar uma inadequada formação humanística nos egressos de escolas médicas, como constatou a CINAEM em seu relatório “Avaliação do Ensino Médico no Brasil”. O crescimento das PMHs vem sendo primariamente provocado pela população consumidora de serviços de saúde e secundariamente acompanhado pelos profissionais da saúde e pelo Estado. Este crescimento vem se dando em particular nos países mais desenvolvidos e entre consumidores de bom nível socioeducacional. EM 1990, cerca de um terço da população nos Estados Unidos fez uso de PMHs1, ao passo que em 1997 esta proporção subiu para 42,1%2. Na Alemanha e França, a percentagem de usuários é de 46 a 49% respectivamente3. No Reino Unido, uma em cada sete pessoas fez uso em 1986 de algum tipo de PMHs, enquanto em 1995 esta proporção subia para uma em cada quatro pessoas4. A Organização Mundial de Saúde tem seguidamente recomendado a adoção de “medicinas tradicionais” aos seus membros. No Brasil, não se dispõe de dado estatísticos fidedignos sobre o uso de PMHs pela população, embora se estime que o seu uso esteja bastante disseminado. e, por conseguinte, geralmente são excluídas do currículo oficial das escolas médicas e do uso rotineiro em hospitais de ensino. Elas podem incluir tanto sistemas completos com bases teóricas integradas a procedimentos diagnósticos, terapêuticos e preventivos consistentes doutrinariamente (homeopatia, acupuntura, fitoterapia, osteopatia, medicina ayurvédica, medicina antroposófica), como procedimentos isolados com fins diagnósticos (iridologia, radiónica) ou terapêuticos (aromaterapia, florais de Bach, massagem, hipnose, cura espiritual, cromoterapia, musicoterapia, terapia ortomolecular, novas técnicas cirúrgicas ou usos inovadores de medicamentos tradicionais).

Quais as atitudes de estudantes de escolas médicas brasileiras (EMBs), interessados em educação médica ou exercendo funções de liderança estudantil, em relação ao grau de conhecimento, eficácia, interesse na aprendizagem, utilidade e recomendação para implantação nos currículos das EMBs e nos serviços públicos de saúde das PMHs mais comuns no Brasil? Acupuntura, fitoterapia, hipnose e homeopatia foram escolhidas como representantes de PMHs para investigação em função de sua indicação ou uso por significativa parcela de médicos no Brasil. A acupuntura e a homeopatia são especialidades médicas reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e Associação Médica Brasileira; a fitoterapia é reconhecida como método terapêutico pelo CFM, já a hipnose - legalmente - só pode ser usada por médicos, dentistas e psicólogos. Este trabalho é uma tentativa preliminar de identificação das atitudes dos futuros médicos brasileiros em relação a PMHs correntemente usadas ou indicadas por médicos em nossa realidade.

MÉTODO

Foi aplicado um formulário, previamente testado e empíricamente validado, a uma amostra de oportunidade composta por 51 acadêmicos de medicina que frequentaram o XXXV Congresso Brasileiro de Educação Médica (Uberaba - outubro/1997). A abordagem dos entrevistados, desconhecidos dos autores e disponíveis para responder as questões após informação dos objetivos do trabalho, foi feita por um dos autores (CTR) durante os intervalos do congresso ou no alojamento das delegações entre os estudantes inscritos. Procurou-se, na medida do passivei, obter respostas dos acadêmicos das várias regiões brasileiras proporcionalmente ao número de escolas médicas por região

O formulário era entregue a cada entrevistado, que informava oralmente a opção correspondente à sua resposta. O formulário continha inicialmente quatro questões, que identificavam a escola de origem, período no curso, participação em diretórios acadêmicos e representação como delegado discente junto à ABEM. Para cada uma das quatro PMHs foram elaboradas questões fechadas com até quatro opções (exceto para indicação principal da PMH) sobre oportunidades de conhecimento, uso pessoal, nível de informação, interesse na aprendizagem, responsabilidade pela prescrição ou realização do procedimento, grau de eficácia, principal indicação, implantação na rede pública de saúde e inclusão no currículo das EMBs

RESULTADOS

A Tabela 1 descreve as características da amostro de estudantes que respondeu ao formulário. Os alunos entrevistados estavam cursando entre o 2o e o 12o períodos do curso médico, concentrando-se principalmente no 4o período. Um em cada três entrevistados foi escolhido para atuar como delegado discente (um por escola) junto ao Conselho da Associação Brasileira de Educação Médica e três quartos eram vinculados a diretórios acadêmicos.

Tabela 1
Caracterização da amostra de estudantes em relação à região da Escola Médica, ciclo cursado, participação em Diretório Acadêmico (D. A.) e condição de representante discente da Escola Médica na ABEM

Ensino nas escolas médicas. A quase totalidade dos estudantes considerou que as PMHs devem ser ensinadas nas EMBs, seja de forma obrigatória (9%) ou opcional (86%). A acupuntura deveria ser ensinada obrigatoriamente para 12% dos estudantes, a homeopatia para 10%, a fito terapia para 8% e a hipnose para 6%. Opcionalmente a homeopatia deveria ser ensinada para 88% dos entrevistados, seguido da hipnose (86%), fitoterapia e acupuntura (84%).

Figura 1
Percepção dos estudantes de medicina sobre o ensino de PMHs nas EMBs (em %)

Nível de informação: A maioria dos estudantes admitiu conhecer pouco ou nada em relação a PMHs. Apenas 12% dos estudantes reconheceram estar bem informados sobre homeopatia e 10% sobre acupuntura. Quanto à fitoterapia, nenhum dos estudantes se achou bem informado e 63 % admitiram ter pouca informação. A hipnose foi a menos conhecida entre os estudantes, com 51% admitindo pouca informação e 33% se achando desinformados.

Forma de reconhecimento: O conhecimento das PMHs se deu principalmente em cursos extracurriculares, em particular para a acupuntura (37%) e homeopatia (31%). Enquanto conteúdo curricular (em disciplina isolada ou integrando outras disciplinas), a homeopatia foi estudada por 12% da amostra, a acupuntura por 8% e a fitoterapia por 6%. O conhecimento sobre hipnose se deu em todos os casos (14%) sob a forma de cursos extracurriculares e foi a PMH à qual os estudantes foram menos expostos no curso médico (86% não foram expostos), seguida da fitoterapia (76%).

Eficácia e principais indicações: Em geral, as diferentes PMHs foram percebidas como bastante eficazes. A Tabela 2 mostra o percentual de eficácia para cada PMH.

Tabela 2
Grau de eficácia percebida das PMHs (em %)

Segundo os estudantes, a acupuntura teria sua indicação principal em problemas de dor (mialgias ou neuralgias), a fito terapia em distúrbios gastrointestinais, a hipnose em distúrbios psiquiátricos ou psicológicos e a homeopatia no tratamento de problemas de saúde em geral. Em menor escala foram associadas indicações de obesidade para acupuntura, estresse para fitoterapia e doenças crônicas ou alérgicas para a homeopatia.

O nível de informação sobre cada PMH pode ser um fator que interfere no julgamento do eficácia das práticas, 87% dos estudantes que admitiram estar bem ou razoavelmente informados sobre as quatro PMHs responderam que tais práticas seriam extremamente ou bastante eficazes. Já os estudantes que admitiram estar muito pouco ou nada informados se dividiram igualmente entre as percepções de eficácia e ineficácia de tais práticos.

Uso pessoal: Dos entrevistados, 72% em média não haviam feito uso pessoal de PMHs. A homeopatia foi a mais usada entre os estudantes (51%), com resultados positivos em 84% dos usuários, seguida da fitoterapia (29% de usuários com resultados positivos em 93%) e da acupuntura, que foi usada pessoalmente por 27% dos estudantes com uma resposta positiva em 93%. A hipnose foi usada por apenas dois estudantes, ambos com resultados negativos. A Tabela 3 informa a relação entre uso pessoal das PMHs (e resultados obtidos) com a percepção de eficácia.

Tabela 3
Uso pessoal e percepção quanto à eficácia das quatro PMHs reunidas (em%)

Interesse em aprender: O interesse em melhor conhecer as PMHs foi alto entre os estudantes para as quatro práticas sugeridas, com pequena variação entre a hipnose (49%), homeopatia (55%), fitoterapia e acupuntura (59%). Um interesse regular foi registrado por 31% dos entrevistados para as quatro PMHs. Apenas 6% dos estudantes evidenciaram desinteresse em ter maiores informações sobre as PMHs.

Responsabilidade pela prescrição: Embora quase um quarto dos entrevistados tivesse dúvidas sobre a responsabilidade do médico em prescrever ou usar PMHs, a maioria entendeu que o médico deve ser o responsável pela sua indicação, particularmente para a homeopatia (70%), seguida da acupuntura, fitoterapia (57%) e hipnose (55%).

Acessibilidade em serviços públicos de saúde: Com exceção da hipnose, os estudantes opinaram que as demais PMHs devem ser tornadas acessíveis população na rede pública de saúde. A homeopatia deveria ser oferecida na rede pública para 82% dos entrevistados, seguida da fitoterapia (74%) e acupuntura (70%). Quarenta e três por cento dos estudantes tinham dúvidas sobre o oferecimento da hipnose na rede de saúde pública, enquanto 27% rejeitaram sua inclusão.

DISCUSSÃO

Os estudantes de medicina admitem conhecer pouco, porém acreditam que as PMHs podem ser bastante eficazes e querem ser mais bem treinados ou informados sobre elas. Em sua quase totalidade, defendem que as PMHs devem ser ensinadas nas EMBs; para dois terços da amostra, as PMHs devem ser oferecidas rotineiramente na rede pública de saúde, em sua maioria sob orientação médica.

A denominação ‘medicina alternativa’ usada em português - resultante da antiga tradição americana de englobar todas as práticas não-convencionais como ‘alternative medicines’ - é arcaica e foco de separação mais do que integração. Recentemente, em função da denominação 'complementory medicins’, comum e usual no Reino Unido, adotou-se a nova denominação ‘complementary and olternative medicines’ nos Estados Unidos. Em português, o substantivo ‘alternativa’ tem como primeiro significado 'uma sucessão de coisas reciprocamente exclusivas que se repetem com alternância’ e, em segundo plano, ‘uma de duas ou mais possibilidades pelas quais se pode optar’ (Houaiss. 2001). Por traduzir com maior precisão a idéia de uma outra racionalidade, ou de algo que não está de acordo com as idéias tradicionais ou geralmente admitidas, propomos o uso da denominação práticas médicas heterodoxas.

Nossos resultados são consistentes com os obtidos em outros estudos. Numa amostra de 592 estudantes da Universidade de Glasgow, 77% entendiam as PMHs como úteis e 69% eram favoráveis à sua inclusão curricular, com o entusiasmo crescendo entre alunos do1o ao 5º ano55. Halliday J, Taylor M, Jenkins A, Reilly D. Medical students and complementary medicine. Compl Ther Med 1993, 1(4) suppl:32-3.. Na Alemanha, uma enquete realizada em 1997 com 204 estudantes da Universidade de Marburg66. Haltenhof H, Schumm A, Buhler KE. Komplementarmedizin im Urteil von Studierenden der Medizin: Eine Befragung in Vorkllnik und Klinik. Forschende Komplementarmedizin 1997, 5:284-91. revelou que 80% tinham alto interesse em acupuntura, homeopatia e reflexologia, e planejavam usar mais frequentemente em sua futura prática a homeopatia (45%), a acupuntura (42%) e a fitoterapia (33%.) No Canadá, uma pesquisa entre alunos ingressantes no curso médico mostrou que 6S% deles gostariam de ter um curso sobre PMHs77. Duggan K, Verhoef MJ, Hilsden RJ. First-year medical students and complementary and alternative medicines: attitudes, knowledge and experiences. Ann R Coll Physicians Surg Can. 1999; 32:157-60,. Resultados similares (68% de interesse na aprendizagem) foram obtidos no Brasil em 1994 em enquete com estudantes de medicina participantes de um congresso de educação médica88. O'Connel JC, Dantas F. Percepção dos acadêmicos de medicina sobre práticas médicas heterodoxas. Rev. Bras. Educ. Med 1996: 20:41..

A demanda crescente de PMHs tem gerado mudanças de atitudes em instituições acadêmicas, governamentais e regulamentadoras da profissão médica em todo o mundo. Em 1998, o Congresso dos Estados Unidos autorizou a transformação do Office of Alternative Medicine do National Institute of Health, após seis anos de funcionamento, no National Center for Complementary and Alternative Medicine, aumentando em 25 vezes o orçamento inicial de 2 milhões de dólares para a realização de pesquisas. Conceituadas revistas médicas têm publicado progressivamente estudos clínicos randomizados, revisões sistemáticas ou meta-análises sobre a eficácia e segurança terapêutica de algumas PMHs. O Jornal of the American Medical Association(JAMA) dedicou integralmente seu número de 11 de novembro de 1998 a trabalhos científicos com PMHs e, na área de ensino médico, a Academic Medicine discutiu longamente o tema cm seu número de março de 2001.

A percepção de eficácia das quatro PMHs pelos estudantes tem sido parcialmente confirmada, em graus variáveis, por meio de estudos metodologicamente rigorosos. Revisões sistemáticas sobre a eficácia da homeopatia analisada como um todo têm revelado uma pequena diferença a favor da homeopatia quando comparada com placebo99. Linde K, et al. Are the clinical effects of homoeopathy placebo effects? A meta-analysis of placebo-controlled trials. Lancet 1997, 350:834-843.),(1010. Cucherat M, Haugh MC, Gooch M, Boissel JP. Evidence of clinical efficacy of homeopathy: a meta-analysis of clinical trials. Eur J Clin Pharmacol 2000; 56:27-33., sendo o seu uso bastante seguro1111. Dantas F, Rampes H. Do homeopathic medicines provoke adverse effects? A systematic review. Br Hom J 2000; 89 (Suppl 1), S35-S38.; na área de rinite e asma alérgicas, foi publicada uma meta-análise que confirmação clínica de medicamentos altamente diluldos1212. Reilly D, Taylor M. Beattie N, Campbell J, McSharry C, Aitchison T, Carter R, Stevenson R. Is the evidence for homoeopathy reproducible? Lancet 1994; 334: 1601-6.. Entretanto, ainda se esperam evidências mais consistentes sobre sua eficácia cm problemas comuns, como enxaqueca, dispepsias e transtornos do humor. A acupuntura Leve reconhecida sua eficácia no alívio de náuseas durante a gravidez, após quimioterapia ou cirurgia, bem como no alívio da dor após cirurgias dentais1313. Nih Consensus Development Panel on Acupuncture. Acupuncture. JAMA 1998; 280:1518-24., sendo muito segura quando usada por profissionais experientes e competentes1414. White A, Hayhoe S, Hart A, Ernst E. Adverse eventes following acupuncture; prospective survey of 32000 consultations with doctors and physiotherapists. BMJ 2001; 323:485-6.),(1515. MacPherson H, Thomas K, Walters S, Fitter M. The York acupuncture safety study: prospective survey of 34000 treatments by traditional acupuncturists. BMJ 2001; 323:486-7., não obstante o relato de alguns episódios graves, como pneumotórax acidenlal1616. Rampes H, James R. Complications of acupuncture. Acup Med 1995; 13:26-33.. Há evidências fortes de que a hipnose auxilia no alívio da dor crônica em pacientes cancerosos1717. NIH Technology Assessment Panel on Integration of Bchavioral and Relaxation Approaches Into the Treatment of Chronic Pain and Insomnia. Integration of Behavioral and Relaxation Approaches into the treatment of chronic pain and insomnia. JAMA 1996; 276:313-8., embora seu uso deva ser conduzido com prudência e após exaustivo diagnóstico do problema, particularmente em cefaléias. A fitoterapia, base de muitos medicamentos usados segundo a racionalidade médica dominante, tem merecido vários estudos randomizados ou revisões sistemáticas, em particular quando produtos específicos - como o Hypericum perforatum - são comercializados por companhias farmacêuticas1818. Linde K et al. St John's wort for depression - an overview and meta­analysis of randomised clinical trials. Br Med J 1996; 313:253-8.. Seus efeitos adversos têm sido também paralelamente relatados1919. Ernst E. Harmless herbs? A review of the recent literature. Am J Med 1998, 104:170-8 e deveriam ser de conhecimento dos médicos, em especial os das plantas tradicionalmente mais usadas pela população em dada localidade.

Na área de formação de profissionais para a saúde, também se têm observado mudanças, em particular na América do Norte e Europa. A primeira versão do código de ética médica da American Medical Association, em 1847, proibia explicitamente a consulta com médicos ‘cuja prática é baseada no dogma exclusivo da rejeição da experiência acumulada da profissão’, uma clara tentativa de eliminar qualquer concorrência ao saber dominante. A mais recente versão do código de ética médica do American College of Physicians2020. American College of Physicians. Ann Int Med 1998, 128:576-594. inclui uma seção especifica sobre 'tratamentos alternativos’ e recomenda que o médico não deve abandonar o pacientes e este decide fazer um tratamento não-convencional, em flagrante oposição à decisão de 150 anos atrás. Nos Estados Unidos, mais de um terço das escolas médicas estavam oferecendo treinamento em PMHs em 1995, predominantemente de forma optativa2121. Carlston M, Stuart MR, Jonas W. Alternative medicine instruction in medical schools and family practice residency programs. Fam Med 1997, 24:559-62., percentual que subiu para 64% em estudo realizado entre 1997-982222. Wetzel MS, Eisenberg DM, Kaptchuck TJ. Courses involving complementary and alternative medicine at U.S. medical schools. JAMA . 1998; 280:784-7.. No Reino Unido, em 1993, a Associação Médica Britânica recomendou que as escolas médicas deveriam oferecer cursos de “familiarização” em PMHs para todos os estudantes de medicina2323. British Medical Association. Complementary medicine: new approaches to good practice. Londres, BMA, 1993.. Vinte e três por cento das escolas médicas no Reino Unido já ofereciam, em 1996, treinamento sobre PMHs2424. Morgan D, Glanville H, Mars S, Nathanson V. Education and training in complementary and alternative medicine, a postal survey of UK universities, medical schools and faculties of nurse education. Comp Ther Med 1996, 6: 64-70. e 40% das faculdades de medicina na União Européia ofereciam em 1999 cursos de PMH2525. Barberis L, de Toni E, Schiavone M, Zicca A, Ghio R. Unconventional medicine teaching at the Universities of the European Union. J Altern Complement Med 2001; 7:337-43.. A homeopatia dispõe de um estatuto legal no Reino Unido que permite a formação pós-graduada de médicos; na França, a Ordem dos Médicos reconheceu, em 1997, que a homeopatia deve ser prescrita por médicos e que estes devem receber formação em nível de pós-graduação nas universidades.

No Brasil, vive-se uma situação paradoxal: apesar de ser o único pais no mundo a ter reconhecido tanto a homeopatia como a acupuntura como especialidades médicas, do crescimento vertiginoso de médicos que praticam as duas especialidades nos últimos dez anos e do grande interesse dos alunos de medicina, há um grande fechamento do aparelho formador de recursos humanos ao ensino ele PMHs nas escolas médicas brasileiras. Estima-se que menos de 5% das EMBs incluem em seus currículos disciplinas eletivas ou obrigatórias diretamente relacionadas a uma das quatro PMHs estudadas neste trabalho. A homeopatia vem sendo ensinada desde 1912 na Escola de Medicina e Cirurgia da Unirio (antiga Faculdade Hahnemanniana), sendo hoje uma disciplina obrigatória, e pode ser cursada optativamente nos cursos de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia (1982). Universidade Federal da Paraíba (1984) e Universidade Federal de São Paulo (2001). A acupuntura tem sido ensinada como disciplina optativa no Curso de Medicina de São José do Rio Preto (1988) e na Universidade Federal de São Paulo (2001).

Nossos resultados apesar da amostra quantitativamente limitada e potencialmente sujeita a desvio de favorecimento decorrente das posições de estudantes mais comprometidos com o ensino médico, constituem indícios preliminares das atitudes de estudantes brasileiros de medicina cm relação às PMHs, as quais são consistentes com a tendência mundial detectada na literatura. A ignorância médica sobre tais práticas seria grandemente diminuídas e as EMBs incluíssem módulos informativos ou formativos em seus currículos de graduação sobre as Principais PMHs. O ensino das PMHs em cursos de graduação deve ser guiado pelo rigor e análise crítica das fontes informativas, evitando atitudes tendenciosas ou dogmáticas. As práticas mais comuns, e mais estudadas cientificamente, deveriam ser lecionadas de forma obrigatória (especialmente a acupuntura e a homeopatia) ou como disciplinas optativas, ou então inseridas no conjunto de outras disciplinas obrigatórias (por exemplo, comentários sobre fitoterapia durante a disciplina de farmacologia ou de terapêutica.) Cada prática deve ser claramente entendida pelos alunos, com avaliação crítica das provas aduzidas em favor ou contra a PMH estudada. Obrigatoriamente, deverão ser discutidos aspectos relacionados a indicações clínicas (eficácia/efetividade), segurança/efeitos adversos e aspectos econômicos, preferencialmente valendo-se de trabalhos rigorosos publicados na literatura e complementados pela experiência pessoal. Há que se ter um uso eticamente justificável das várias PMHs, e o estudante deve ser alertado para este aspecto, aprendendo que uma boa medicina está baseada na competência, e esta, por sua vez, no uso criterioso da verdade cientifica com a correta intenção ética2626. Dantas F, Lopes AC. Medicina embasada na competência. Medicina 2002; 132:8-9. Na pós-graduação, é fundamental um treinamento básico cm PMHs para os médicos que integram ou virão a integrar o Programa de Saúda da Família. Neste contexto, é inadiável a formação de docentes qualificados para conduzir pesquisas e ensinar as PMHs nas EMBs, numa perspectiva equilibrada, aberta e critica, facilitando a tomada de decisões mais informada e eticamente correta dos futuros médicos brasileiros no processo de fazer o melhor pelos pacientes. Usadas em problemas de saúde mais frequentes e simples, as PMHs poderão constituir soluções eficazes e eficientes, tecnologicamente adequadas e economicamente viáveis, para complementar os atuais recursos médicos e fazer com que a população se beneficie de uma boa medicina, humana e cientificamente apoiada.

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    A racionalidade médica dominante centra seu discurso - e ordena sua prática - na explicação das doenças e suas causas numa perspectiva fragmentária e reducionista de ser humano, concebendo-o na prática diagnóstica e terapêutica como uma máquina biológica onde funcionamento inapropriado de uma das partes implicará a produção de doenças. O ensino de uma medicina baseada em tal racionalidade - herdada majoritariamente da tradição norte-americana que se seguiu ao Relatório Flexner em 1910 - tende a gerar uma inadequada formação humanística nos egressos de escolas médicas, como constatou a CINAEM em seu relatório “Avaliação do Ensino Médico no Brasil”. O crescimento das PMHs vem sendo primariamente provocado pela população consumidora de serviços de saúde e secundariamente acompanhado pelos profissionais da saúde e pelo Estado. Este crescimento vem se dando em particular nos países mais desenvolvidos e entre consumidores de bom nível socioeducacional. EM 1990, cerca de um terço da população nos Estados Unidos fez uso de PMHs11. Eisenberg DM, et al. Unconventional medicine in the United States, prevalence, costs and patterns of use. N Eng J Med 1993, 328: 246-252., ao passo que em 1997 esta proporção subiu para 42,1%22. Eisenberg DM, et al. Trends in alternative medicine use in the United States, 1990-1997: Results of a follow-up national survey. JAMA 1998, 280:1569-1575.. Na Alemanha e França, a percentagem de usuários é de 46 a 49% respectivamente33. Fisher P, Ward A. Complementary medicine in Europe. Br Med J 1994, 309: 107-111.. No Reino Unido, uma em cada sete pessoas fez uso em 1986 de algum tipo de PMHs, enquanto em 1995 esta proporção subia para uma em cada quatro pessoas44. Anon for Which? (1986) Complementary medicine. Which? Outubro, p. 443; Anon for Which? (1995) Healthy choice. Which? Novembro p.8.. A Organização Mundial de Saúde tem seguidamente recomendado a adoção de “medicinas tradicionais” aos seus membros. No Brasil, não se dispõe de dado estatísticos fidedignos sobre o uso de PMHs pela população, embora se estime que o seu uso esteja bastante disseminado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2002

Histórico

  • Recebido
    27 Jul 2000
  • Revisado
    18 Abr 2002
  • Aceito
    30 Abr 2002
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