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Integração das Ciências Básicas e Áreas Profissionais no Ensino de Graduação em Medicina

Cooperation between Baste Sciences and Professional Areas in Undergraduate Medical Education.

Resumo:

São feitas consideração acerca do cenário nas áreas de Medicina, que envolvem as relações entre os ciclos básicos e profissional, de difícil harmonização, principalmente em face dos diferentes objetivos que os norteariam.

Palavra-chave:
Educação Médica; Currículo; Diretrizes

Abstract:

The author evaluates the relationship between basic sciences and professional areas in the medical field in light of difficulties in harmonizing the two, especially due to their different objectives.

Key-words:
Education, Medical; Curriculum; Guidelines

INTRODUÇÃO

Preliminarmente, enfatizamos que este assunto configura uma simbiose, uma via de mão dupla, que requer uma real e eficaz integração entre estes dois eixos fundamentais do ensino, da pesquisa e da extensão.

Nosso modelo institucional de educação superior preconiza a produção e difusão do conhecimento e a formação de recursos humanos qualificados. Ambos os objetivos representam o produto benéfico de relações equilibradas entre o saber clínico e o saber da ciência pura, aduzidos da responsabilidade social. Compor esta aliança de modo harmônico ainda representa um desafio11. Perrotta MP. Novos fundamentos para uma didática crítica. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999..

Reconhecemos que as demandas entre esses núcleos fundamentais encontram-se aquém do desejável, por várias razões. Vivemos uma realidade socioeconómica que contribui para a existência de um sistema em muitos aspectos perverso no que tange à opção vocacional. A par da precocidade na definição da carreira futura, o mercado de trabalho e o exercício de atividades economicamente rentáveis operam como importantes agentes reguladores da escolha profissional. Este panorama se concretiza já nos exames de vestibular e alimenta o imaginário dos alunos formados pelas faculdades de Medicina. Isto adquire contornos ainda mais evidentes nas instituições públicas. Nestas, os alunos se depararam com restrições materiais severos, falta de privilégio social do cientista/docente e a perspectiva de baixos salários, fatos que geram uma migração de grandes proporções dos egressos do ensino superior quer seja para a iniciativa privada, na amplitude de suas relações trabalhistas, quer seja para o exercício de atividades liberais. Desenvolve-se, portanto, uma estratificação social das diversas carreiras e surgem estigmas, a exemplo do médico adstrito à atividade docente ou de pesquisador e que perde sua identidade profissional, sendo segregado inclusive por seus pares que têm atividade clínica. Até mesmo aqueles mais estimulados pela pesquisa são seduzidos pelas corporações mundiais mantenedoras de laboratórios de alta tecnologia e com adequada infraestrutura. Estas megaempresas sequer investem-na graduação, mas usufruem dos recursos humanos modelados na universidade pública, de excelente padrão técnico-científico e detentores de relevante preparo nas áreas básica e profissional. A inexistência de mecanismos governamentais eficientes de estímulo à fixação dos profissionais qualificados e de reconhecido mérito acarreta um preocupante ônus social, cujo desfecho consistirá na escassez de lideranças em setores de importância estratégica para o país.

PERSPECTIVAS

As demandas da área profissional para as ciências básicas revestem-se de um enorme potencial de crescimento, sem exceções. Na Medicina apenas para citar uma dentre as áreas que apresentam maior grau de diferenciação, as grandes descobertas se correlacionam à bioquímica, à biologia molecular, à imunologia, à genética ou aos métodos diagnósticos vinculados aos processos biofísicos, entre outros. Pesquisadores consolidados mesmo com predominante atividade assistencial, reconhecem que sua produção científica segundo uma linha de pesquisa adquire maior impacto quando da construção de novas alianças com aqueles que atuam na área das ciências básicas e que são em geral, os detentores de recursos tecnológicos de ponta e de estruturas autónomas e autofinanciáveis. Cumpre ressaltar que o percurso inverso das ciências básicas para o ciclo profissional - também se avoluma porquanto este oferece a possibilidade de uma aplicação clínica à pesquisa. A prevenção ou o tratamento de inúmeras afecções que afligem o ser humano, em especial às doenças infectocontagiosas, degenerativas e neoplásicas, propiciam um campo fértil para um intercâmbio promissor. É claro que, à medida que resultados satisfatórios foram obtidos, grandes indústrias se interessarão pelo produto final. Não há razão para que as partes envolvidas neste processo evitem parcerias, desde que o pesquisador e a universidade recebam recursos compatíveis com o trabalho em curso ou concluído, e o objeto contratual esteja pactuado em termos adequados, levando-se em consideração o controle da patente. Este cenário oferece um caminho alternativo para a sobrevivência da universidade e de seus quadros que já não suportam mais ações amadoristas, alicerçadas na tese da superação ou sublimação das dificuldades através do mote da profissão de fé, do diletantismo pela ciência e que tem como substrato uma agonizante política para a ciência e tecnologia.

O país precisa galgar um futuro promissor e, caso suas lideranças acadêmicas autênticas sejam capazes de manter infraestrutura apropriada e se houver salários competitivos, a universidade terá condições de despertar o interesse dos futuros alunos para a pesquisa, pois estes, ao conviverem com os quadros docentes, irão entender que esta categoria atua com dignidade, logrando a tão almejada meta da realização profissional.

NOVAS DIRETRIZES E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS COMO AGENTES RENOVADORES

Outro aspecto relevante deve ser considerado neste contexto. O êxito de um modelo participativo que integre as demandas das ciências básicas para o ciclo profissional e deste para as ciências básicas requer práticas pedagógicas e diretrizes curriculares eficientes e que gerem um novo perfil discente22. Reorienting medical education and radical practice for health for all. Education for Health. 1996; 9: 5-11.. Historicamente os diversos ramos da ciência tiveram origens comuns e durante séculos, antes da descoberta da imprensa, um indivíduo podia dominar grande parte do conhecimento existente, já que os manuscritos de cunho científico eram raridades, muito caros e pouco acessíveis. Neste século e por várias décadas, a presença de um sistema artesanal de inserção do aluno no campo da pesquisa contribuiu para a formação de um número reduzido de cientistas conscientes da relevância da integração básico/profissional. Há que se considerar à época, que a obtenção de conhecimentos num campo do saber, durante um curso superior, supria esse profissional de informações e habilidades úteis por toda a sua vida e restringia a concepção de universalidade e de uma visão interdisciplinar. A dimensão dos diferentes conceitos nas áreas das ciências básicas constantemente mutáveis, compreendendo uma produção imensurável, já não admite profissionais sem a capacidade de interpretar, compreender e se atualizar em face dos inúmeros progressos em sua especialidade. Aqueles que estão acostumados apenas a modelos curriculares rígidos e que não privilegiam a educação permanente corre o risco da obsolescência e do despreparo para sua atividade profissional, submetida aos efeitos da globalização. É preciso saber compartilhar experiências entre as áreas clínica e básica, de modo a se eleger um modelo curricular flexível e com espaço destinado ao auto aprendizado.

Desde 1990, a Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro gerou e tem empreendido novas experiências curriculares e reestruturação de seus modelos pedagógicos (22. Reorienting medical education and radical practice for health for all. Education for Health. 1996; 9: 5-11.),(33. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Proposta de modificação do currículo mínimo. Rio de Janeiro: Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1991.),(44. Venturelli J. Educação médica: novos enfoques, metas e todos. Washington, D.C: Organização Pan-americana de Saúde, 1997. (Paltex, Salud Y Sociedad)., contribuindo, sobremaneira, para a construção deste novo perfil dos alunos, porquanto busca valorizar a integração clínica/básica. Enfatizamos, portanto como agentes efetivos deste processo,

Diretrizes curriculares adequadas. Devem ser elaboradas por quem tenha discernimento das necessidades de sua profissão. É fundamental que os programas estimulem as relações transdisciplinares, criando instrumentos através dos quais o conjunto de disciplinas das ciências básicas possa sedimentar toda a fase clínica da formação discente respeitadas as diferenças entre as diversas práticas profissionais. O desenvolvimento de um perfil crítico, ético, reflexivo, participante no processo de criação, preparado para os avanços contínuos da ciência e para as Inovações tecnológicas, preocupado com as relações de trabalho e as transformações sociais, “compõe pré-requisito fundamental para um modelo articulado básico/profissional. Também é preciso que o docente adquira novas atribuições, ser o responsável pela captação e condução adequada das mensagens (conteúdo disciplinar) indispensáveis, além de atuar como agente transformador do saber de modo amplo, global num contexto solidário à realidade. Ademais, é fundamental que este professor esteja consciente do mister em que consiste a avaliação sistemática e permanente do seu modelo de ensino, da prática e do processo formativo instituído nos estudantes sob sua égide55. Joint committee on standards for educational evaluation programs, projects and materials. New York: Mc-Graw-Hill. 1981.),(66. Libâneo JC. Didática. São Paulo, Cortez. 1994..

Ementas e conteúdos disciplinares que consolidem a articulação das ciências básicas com todas as fases do ciclo profissional. É notória, num processo de ensino-aprendizagem deficiente, a falta de retenção dos conhecimentos de uma disciplina ministrada nos primeiros semestres do curso, quando estes se fazem necessários no ciclo profissional.

 Faculdade de Medicina da UFRJ implantou programas curriculares interdepartamentais (PCIs), nos quais determinada disciplina é ministrada utilizando-se uma estrutura macro curricular, ou seja, com uma visão geral, de conjunto. Ao estudar o sistema cardiovascular, o aluno a faz integrando os conhecimentos de anatomia, fisiologia, bioquímica e farmacologia deste sistema. O mesmo ocorre no ciclo profissional para disciplinas que demandam uma ampla integração de conteúdo.

Cita-se como exemplo o estudo da medicina interna, que se associa ao da clínica médica, da cirurgia, da radiologia e da patologia. Algumas instituições preconizam um currículo ''nuclear" inicial igual para todos os alunos das áreas de saúde. Neste contexto, seriam focalizados em grupamentos ou módulo, aspectos morfológicos (anatomia, biologia molecular, embriologia, histologia), fisiologia (biofísica, bioquímica, fisiologia, farmacologia) ou mesmo uma composição que abrange a biologia celular e molecular e, numa etapa posterior, a estrutura e função dos sistemas. Não há um paradigma. O único consenso se refere à necessidade de integração dos conteúdos disciplinares, sendo que as ciências básicas devem permear todo o curso (integração vertical), alinhando-se às diretrizes da formação do futuro médico.

Programas de iniciação científica acessíveis a todo o corpo discente. A incorporação destes à estrutura curricular é um bom exemplo da busca de um catalisador para os processos de integração profissional, desde 1990 realizamos este programa, denominado PINC, no qual os alunos se integram às linhas de pesquisa previamente oferecidas, tanto nas áreas básicas quanto no ciclo profissional. A oportunidade de frequentar um ambiente composto por laboratórios, ambulatórios ou enfermarias descortina um novo universo. Observamos. Após dez anos de avaliação contínua, que o aluno adquire maior maturidade científica desenvolve habilidades cognitivas e técnicas, tornou-se mais responsável, organizado e crítico. A experiência prévia relacionada à pesquisa, lato sensu, subsidia futuras decisões quanto à escolha da prática profissional e torna os egressos do curso médico mais qualificados e preparados para o exercício profissional. Facilitando ainda sua inserção no mercado de trabalho77. Jacobs CD, Cross PC. The value of medical student research: the experience at Stanford University School of Medicine. Medical Education. 1995; 29: 342-346.. Neste cenário, sem dúvida há uma progressiva adesão às atividades nas áreas básicas. Isto resulta na formação de um importante personagem que atua, ainda que de forma incipiente, na Medicina e junto aos demais campos do saber, nas ciências da saúde. Este, por vezes, é um fator determinante na opção do aluno pela ciência desenvolvida na bancada.

Implantação de Programa MD/PhD ou similares em outras áreas da saúde. Em nosso meio, ao longo da última década, houve uma diminuição significativa principalmente de médicos em atividades de pesquisa ou cursando a pós-graduação junto aos programas da área básica. A aliança entre a formação médica e a biomédica num programa específico pode reduzir o tempo de integralização curricular do pós-graduando. Ao término da graduação, o aluno, já direcionado para as atividades de pesquisa, será capaz de interagir e circular com desembaraço por ambas as áreas do conhecimento (básica e profissional). Isso cobrirá o fosso existente entre institutos/unidades/hospitais/departamentos, propiciando uma integração produtiva entre os diversos laboratórios de pesquisa e a atividade assistencial, compartilhando espaços em prol de objetivos comuns. Costumamos indagar se a solução para os conflitos entre o ciclo básico e o profissional não residiria na busca do elo perdido. De fato, este doutor, oriundo de um programa MD/ PhD, poderá ser o esteio de uma nova geração madura e capaz de educar o convívio harmônico entre ambas as partes.

Programas avançados que mesclem atividades de pesquisas básica e clínica, no espaço físico de um hospital universitário, criando um ambiente multidisciplinar vinculado ao ensino de graduação e pós-graduação e à assistência. Trata-se de uma vertente que induz a formação de recursos humanos qualificados, mediante a oferta de serviços de ponta em núcleos de excelência, condições essenciais para gerar o estímulo à fixação de novos pesquisadores.

Programas de orientação acadêmica que ofereçam subsídios para o aluno refletir sobre suas perspectivas, abrindo espaços para discussões de temas como o perfil do futuro profissional, o mercado de trabalho, a vocação, a responsabilidade social e a especialização precoce, entre outros.

PONDERAÇÕES FINAIS

Num ambiente neoliberal, onde a medida de eficiência é diretamente proporcional à quantidade de um produto final e ao lucro advindo deste, não causa surpresa a exaltação ao tecnicismo e ao “economicismo”. Ambos dominam a função de educar, alheios à qualidade ou ao significado e importância dos processos formativos, que congreguem a integração das ciências básicas com o ciclo profissional médico.

No momento, cumpre ao pesquisador - quer seja da área clínica a ou das ciências básicas, que faz parte da elite científica organizado em centros de excelência, que habitualmente concentra a captação de recursos das agências de fomento nacionais e internacionais e detém potencial para dar visibilidade e reconhecimento extramuros de seu trabalho - assumir a responsabilidade das ações efetoras da expansão e da consolidação de grupos emergentes que preconizam a integração dos campos do saber. É também sua missão contribuir para a construção de modelos curriculares que ensejem a perspectiva da formação de novos cientistas. Sobretudo, é seu dever liderar o movimento da comunidade científica junto aos poderes Executivo e Legislativo, visando criar meios para a edificação da universidade do terceiro milênio.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1
    Perrotta MP. Novos fundamentos para uma didática crítica. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999.
  • 2
    Reorienting medical education and radical practice for health for all. Education for Health. 1996; 9: 5-11.
  • 3
    Universidade Federal do Rio de Janeiro. Proposta de modificação do currículo mínimo. Rio de Janeiro: Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1991.
  • 4
    Venturelli J. Educação médica: novos enfoques, metas e todos. Washington, D.C: Organização Pan-americana de Saúde, 1997. (Paltex, Salud Y Sociedad).
  • 5
    Joint committee on standards for educational evaluation programs, projects and materials. New York: Mc-Graw-Hill. 1981.
  • 6
    Libâneo JC. Didática. São Paulo, Cortez. 1994.
  • 7
    Jacobs CD, Cross PC. The value of medical student research: the experience at Stanford University School of Medicine. Medical Education. 1995; 29: 342-346.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2002

Histórico

  • Recebido
    24 Nov 2000
  • Aceito
    26 Nov 2001
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