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Um curso de patologia geral

“Estudar não é um ato de consumir idéias, mas de criá-las e recriá-las” (Paulo Freire).

PREMISSAS

O objetivo deste texto é a descrição sumária de uma determinada perspectiva de ensino adotada a partir de 1974, na Disciplina de Patologia Geral e Fisiopatologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Acreditamos que ofereça algumas características que se possam reproduzir em outras experiências semelhantes desenvolvidas em outras escolas de ciências da Saúde.

Adotamos o conceito de Patologia formulado pelo Comité de Peritos da Organização Panamericana da Saúde, qual seja: “... o estudo da doença em todos os seus aspectos, incluindo a história natural, o quadro epidemiológico, a multicausalidade, as manifestações morfológicas e funcionais. A patologia seria um componente das ciências biológicas que utilizando conhecimentos, métodos e recursos de morfologia, microbiologia, bioquímica, genética e epidemiologia... estuda os complexos causais, a patogenia e as lesões do processo da doença”.11. COMITÊ DE EXPERTOS DE LA OPS/OMS - Segundo informe sobre la enseñanza de la patologia en las escuelas de medicina de la America Latina. Educ. med. y Salud, 8:408-419, 1974. Na lista dos objetivos específicos do ensino da Patologia, o Comité de Peritos da Organização Panamericana da Saúde considera como relevantes na área de atitudes: a) aquisição de uma atitude de interesse, curiosidade e iniciativa ante problemas médicos desconhecidos ou incertos; b) interesse em participar em trabalho de equipe, com o fim de alcançar objetivos educacionais e científicos”.22. COMITÊ DE EXPERTOS DE LA OPS/OMS - Primer informe sobre la enseñanza de la patologia en las escuelas de medicina de la America Latina. Educ. med. y Salud , 3:81-88, 1969.

A premissa básica admitida pelo curso é da não hegemonia do conteúdo, ou seja, não supõe um saber acabado, pronto, definitivo, a ser transmitido ou inculcado. O conhecimento objetivo ou factual passa a ser encarado como uma construção teórica provisória cuja consistência depende de uma maior ou menor articulação a um arcabouço lógico que o sustenta e que demarca seus limites e capacidade explicativa. Assim, o fato de coexistirem diversas teorias procurando explicar determinados fenômenos, antes de provocarem dúvida ou confusão estimulam a que o pensamento crítico acompanhe o surgimento, o desdobrar e os impasses de cada qual, assumindo sempre uma posição de valorizar mais o método, a invenção e a especulação, do que de aceitar a falaciosa “verdade definitiva”.

Isto impõe todo um despojar, tanto do estudante, quanto do professor do secular papel exigido ao intelectual numa sociedade de classes; dele se espera a última palavra, a validação “experimental” e o cimentar da ideologia da autoridade, principalmente quando disfarçada pela capa da neutralidade da ciência.

Assim, é prevenida e constantemente afastada a presunção de transferir conhecimentos; espera-se um esforço de o curso ser um ato e um método de ação, transformadores exercitados sobre a realidade a despeito dos rótulos de educador, ou educando. 33. FREIRE, P. - Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976. 149 p. Denominamos, no texto, educador a “professores” integrantes do corpo docente formal da Disciplina de Patologia Geral e Fisiopatologia, bem como aqueles alunos de 3ª a 6ª séries que, em algum momento, compartilharam o processo de educação com os alunos da 2ª série que chamamos “educandos”. Nesse particular, transcrevemos parte de um trabalho resultante de um esforço semelhante realizado, na mesma época, numa das Disciplinas de Clínica Médica da mesma Faculdade: “O ensino é considerado uma forma superada de aprendizagem, na medida em que é compreendido como a passagem intelectual de conhecimentos, destrezas e atitudes daquele que tem o poder (o professor, porque sabe, como ser dominante) para aquele que não tem o poder (o aluno, ou o doente, porque não sabem, como seres dominados). Entendemos que a aprendizagem é singular, única, individual e intransferível. Ninguém ensina a ninguém... Ninguém aprende sem viver o problema... O professor é, no máximo, um participante do grupo.”44. AMANCIO, A. - Aprendizagem sem ensino, assistência com identificação e pesquisa heterodoxa. Rev. Bras. Educ. Méd. 3(1):1-3, jan./abr. 1979.

MÉTODO

A unidade do trabalho educacional é o “grupo”. O total de alunos matriculados é de 135. Este total é aleatoriamente dividido em 10 grupos de 13-14 alunos. A partir daí, deixa de existir cada aluno isolado e individual; as tarefas são propostas ao do “grupo”; o desempenho e a avaliação, também. Pensamos que isto contribua para um confronto com a atitude individualista própria à classe social, que fornece os principais segmentos de estudantes. Também acreditamos que a constituição do “grupo” facilite a compreensão da necessidade do trabalho-em-equipe e da superação de dificuldades individuais, através da inserção em um esforço coletivo e da solidariedade.

Nossa experiência tem demonstrado que a formação do “grupo” é dolorosa: há o individualismo; há os falsos grupos já montados (vizinhos, conhecidos, namorados etc.); há o temor de perda de invidualidade na diluição num conjunto. Com o passar do tempo, é nossa impressão que surge um apreciável entrosamento entre os participantes, estabelece-se uma natural divisão de tarefas segundo aptidões demonstradas e, a partir do meio do curso, as referências deixam de ser feitas em termos isolados. O “grupo” passa então a ser uma unidade natural no processo de relacionamento educador-educando.

O conteúdo de Patologia Geral e Fisiopatologia é distribuído pelos dois semestres e apresentado aos educandos do 2o ano médico. Os temas são veiculados sob forma de textos escolhidos de revistas médicas, previamente traduzidos, ou roteiros para debates, de modo a comporem módulos que, embora se interrelacionem, condensam a matéria temporalmente. No fim de cada módulo, ou de módulos interrelacionados faz-se uma integração dos temas discutidos, reunindo-se três ou mais grupos em um painel. Todas as atividades são acompanhadas de lista bibliográfica de livros e artigos que podem ser consultados adicionalmente, procurando-se evitar a tendência à adoção de uma ou poucas fontes de informação. Com isto desejamos, também, despertar a crítica para os livros chamados “didáticos”, muitas vezes desatualizados e superficiais.

Os textos básicos para debate são apresentados tendo por intenção fundamental atender ou despertar um desejo de aprofundar os conhecimentos dos estudantes que o recebem; não é uma prescrição, mas um instrumento. Esta intenção funda mental é dependente, portanto, quer do ânimo do aluno em recebê-lo, quer da capacidade do texto em desafiá-lo.33. FREIRE, P. - Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976. 149 p. Tanto o texto, quanto as eventuais leituras complementares não devem suscitar desejos de memorização, aceitação ou incorporação; antes disso, o objetivo é o de reinventar, reescrever, recriar - tarefa, por conseguinte, de um sujeito, não de um objeto.33. FREIRE, P. - Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976. 149 p.

Há também um conjunto mais ou menos clássico de atividades de laboratório, em geral dentro dos módulos. Propõem-se experimentos que são conduzidos pelo grupo ao longo de um tempo variável, ou de práticas de patologia clínica, ambas no sentido de desenvolver as mesmas aptidões, agora incluindo uma destreza, uma habilitação psico-motora. A tendência, por sinal universal, é a da rejeição das chamadas práticas de laboratório.

O nosso ideal seria o de extinguir, dentro do ensino da Patologia, a divisão ou o rótulo de atividades: não há prática, nem teoria. Isto parece, contudo, muito difícil pela própria carga de adjetivos e conseqüentes conotações que qualquer atividade já traz. Por exemplo, o laboratório será sempre visto como território das práticas, e o livro de texto como veículo para divulgação da teoria.

Houve abolição das aulas teóricas ostensivas ou disfarçadas. Cada atividade “prática” ou “teórica” tem a duração de 4 horas, sendo realizada por cada grupo separadamente, incluindo-se em todas elas 30 minutos para uma avaliação a ser feita conjunta mente por educandos e educador. Embora os parâmetros de avaliação não sejam rígidos, a experiência tem demonstrado que o comportamento e o conteúdo costumam ser analisados levando em conta, pelo menos, aprofundamento, lógica, organização, criatividade, autonomia, participação, coesão, autocrítica, pontualidade, etc.

Além das avaliações das atividades de grupo, e com o mesmo peso, têm sido realizadas duas avaliações escritas individuais. Nestas, evita-se a dissertação memorativa pura e tenta-se colocar o educando face a um problema que exige o manuseio de todos os conhecimentos adquiridos até o momento.

IMPASSE

Passados alguns anos, nossa dúvida principal reside no campo da avaliação, ou melhor, na eficácia da perspectiva do ensino proposta. Conhecemos sobejamente as formas usuais de avaliação, repetidas em cada escola, onde quanto melhor se imita o professor, melhor aluno se é. Basta decorar os livros de texto, quando não as apostilas de aulas ditadas. No entanto, desconhecemos as fórmulas, os instrumentos e as estratégias para avaliação de um processo e de uma metodologia que privilegiem valores, senão novos, ao menos diferentes em suas proposições. Ou seja, a eficácia é medida a nível de “impressão”, ou da observação de casos isolados.55. KAO YUAN, S.; BEELER MYRTON, F & STRONG JACK, D. - Comparison of the conventional lecture metbod and the selfinstruction method for teaching clinical patology. A. J. C. P., 70:847-850, 1979.

É óbvio que, para os fins meramente formais da Universidade, um relatório, o resumo de um texto, ou a descrição crítica de uma prática laboratorial servem aos propósitos de “avaliação”. Ao educador que pretende engatinhar em um método não-tradicional faltam, evidentemente, os instrumentos da avaliação imediata; ela se coloca em um plano mais subjetivo de crença na capacidade de criação de uma dada massa-crítica. Estamos cientes de que a presente tentativa é muito tênue e frágil ante todo o arcabouço. da escola tradicional 66. PINOTTI, J. A.; AROUCA, S. & AROUCA, A. T. - Facultades de medicina tradicionales e innovadas: tentativa de analisis tipológico. Educ. med. y Salud ,. 8:106-120, 1974., mero apêndice da sociedade tradicional; cremos, contudo, que há uma eventual “contaminação” individual e que alguns dos alunos podem obter o estímulo necessário a uma nova atitude e a um novo compromisso, enquanto intelectuais e profissionais de saúde.

Bibliografia

  • 1
    COMITÊ DE EXPERTOS DE LA OPS/OMS - Segundo informe sobre la enseñanza de la patologia en las escuelas de medicina de la America Latina. Educ. med. y Salud, 8:408-419, 1974.
  • 2
    COMITÊ DE EXPERTOS DE LA OPS/OMS - Primer informe sobre la enseñanza de la patologia en las escuelas de medicina de la America Latina. Educ. med. y Salud , 3:81-88, 1969.
  • 3
    FREIRE, P. - Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976. 149 p.
  • 4
    AMANCIO, A. - Aprendizagem sem ensino, assistência com identificação e pesquisa heterodoxa. Rev. Bras. Educ. Méd 3(1):1-3, jan./abr. 1979.
  • 5
    KAO YUAN, S.; BEELER MYRTON, F & STRONG JACK, D. - Comparison of the conventional lecture metbod and the selfinstruction method for teaching clinical patology. A. J. C. P, 70:847-850, 1979.
  • 6
    PINOTTI, J. A.; AROUCA, S. & AROUCA, A. T. - Facultades de medicina tradicionales e innovadas: tentativa de analisis tipológico. Educ. med. y Salud ,. 8:106-120, 1974.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1980
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