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A discussão sobre o “tipo” de médico necessário: o risco de uma falácia

Resumo:

O autor questiona se a discussão sobre os “tipo” de médico necessários para nossa realidade é válida sem uma maior enfatização numa moderna filosofia educacional. Propõe-se o médico ativo, crítico, educado, em contraposição ao passivo, acrítico, adestrado: nesse caso a discussão sobre o “tipo” (baseada principalmente em conteúdos) passa para um segundo plano. A seguir, a partir de uma proposta de caracterização da realidade docente discutem-se táticas que possibilitem a formação desse tipo de médico. Prega-se uma maior ênfase na problematização, a partir de problemas reais, tanto no processo de educação do estudante; como do corpo docente e da instituição como um todo.

INTRODUÇÃO

Proponho-me neste trabalho a refletir sobre um tema que tem sido constante nas últimas reuniões sobre Educação Médica, e objeto de grande parte dos trabalhos publicados na área 11. ABEM - Seminário sobre “A formação do Médico Generalista” - Relatório final - Rev. Bras. Educ. Méd., supl. 1:165-70, 1978.),(44. BEVILACQUA, F. - Tendências curriculares na área profissional e a formação do “médico de família” -Rev. Bras. Educ. Méd . 2(1):17-20, 1978.),(1010. KLOTZE L, K. - O perfil do clínico geral -Rev. Bras. Educ. Méd . 3(2):1-5, 1979.),(1716. ROITMAN, R. - O método de resoluções de problemas -Rev. Bras. Educ. Méd . 3(2):15-19, 1979.. Trata-se da definição do tipo de médico que deve ser formado por nossas Escolas.

A despeito de muitas idéias, discussões, documentos, recomendações, e até tentativas louváveis, muitas vezes percebe-se o risco da queda num palavreado inútil, em que a realidade, a prática de cada Instituição está longe, e, por vezes, distancia-se cada vez mais do proposto. Mesmo que os objetivos propostos estejam muito bem definidos, raramente teoria e prática coincidem.44. BEVILACQUA, F. - Tendências curriculares na área profissional e a formação do “médico de família” -Rev. Bras. Educ. Méd . 2(1):17-20, 1978.

Devem existir muitos motivos para tal dissociação. Sabemos que um dos mais importantes é que não podemos separar o processo educativo do contexto mais amplo da sociedade. A Escola Médica vai não só sofrer as influências do ambiente a que pertence, como espelhará suas contradições. A influência de grupos inovadores dentro da Instituição será freqüentemente limitada, não só pela resistência interna, mas também pelas influências externas. Isso ocorre porque não podemos nos esquecer que geralmente a Escola vai a reboque do sistema em que está inserida, e nela se reproduz e se conserva o sistema. “Cumpre denunciar à crença comumente aceita de que a Educação seja predominantemente um fator de mudança, em lugar de entendê-la como um processo bipolar (...) E mais: embora historicamente seu papel tenha oscilado entre esses dois extremos, é fácil identificá-la predominantemente como fator de conservação e não de mudança.”33. BALZAN, N. C. - Sete asserções inaceitáveis sobre a inovação educacional - Fac. Educação (UNICAMP) - mimeogr. (a ser publicado).

Se isso é verdade, não quer dizer que a Escola não possa lutar por ter um papel ativo, crítico; sendo capaz de propor mudanças e assim influindo no sistema. Mas, a luta entre as forças inovadoras e conservadoras será intensa e constante. Um erro comum é “supor que em épocas de crise - quando mudanças aceleradas ocorrem..., a maioria dos educadores tendem a optar por formas de atuação que estimulem a mudança”.33. BALZAN, N. C. - Sete asserções inaceitáveis sobre a inovação educacional - Fac. Educação (UNICAMP) - mimeogr. (a ser publicado). Pelo contrário, “nessas ocasiões, a educação, assim como o resto da cultura da qual é parte importante, reflete a desorientação e confusão que são típicas da cultura como um todo. Do mesmo modo, os professores, que são representantes profissionais da educação, começam a demonstrar no seu comportamento as incertezas e conflitos que prevalecem em toda parte. Assim, o que realmente sucede com a Educação em tempo de crise não é a união das forças de todos os professores e representantes da educação. Ao contrário, a tendência é de que se dividam, colocando-se em campos opostos. Eles se polarizam. Alguns são a favor do tipo de educação que sustente com firmeza uma função modificadora; outros tendem a se ternar mais conservadores, mais tradicionais do que nunca. E assim, dentro da própria educação existe um estado de conflito que é sistemático das condições em que -se encontra a cultura maior”.1 1 BRAMELD, T. - O poder da educação, Rio de Janeiro, Zahar, 1972, pp. 29-30, citado em3.

Creio que isso certamente é aplicável á Educação Médica no momento.

Uma pergunta que acho extremamente importante é saber-se até que ponto a discussão sobre o tipo de médico que nossas Escolas devem formar, certamente reflexo da época de crise em que vivemos nesta área, é uma discussão com matizes conservadores ou inovadores. Ou melhor, até que ponto existem influências de cada uma dessas categorias. Está se discutindo se devemos formar indivíduos que se adaptem ao sistema (mesmo errado), mantendo o “status quo”, ou que sejam capazes de inovar, inclusive propondo e efetuando alterações no sistema de saúde e nos seus determinantes? Até que ponto pode se cair no risco de se tentar formar mão­de-obra para um sistema de saúde ineficiente, vendo-se esse novo tipo de profissional como a solução mágica para torná-lo eficiente? Dentro dessa linha de raciocínio, e apenas como exemplo, a ênfase na formação do médico generalista pode ser útil: 1) para que empresas médicas, com finalidade de lucro, o aumentem; 2) para que, dentro de um sistema de saúde arcaico se aumente a produtividade aparente; 3) para tornar mais acessíveis os serviços de saúde, num sistema racional. Cordeiro e Quadra já chamam a atenção sobre a possibilidade da escola se tornar formadora de mão-de-obra para cumprir tarefas burocratizadoras e disciplinadoras de clientela, em empresas de medicina de grupo ou mesmo na medicina previdenciária, e portanto subordinada ao complexo médico industrial.66. CORDEIRO, H. A., QUADRA, A. A. F. - O feitiço das reformas curriculares no ensino médico -Rev. Bras. Educ. Méd . 2(2):15-21, 1978.

Certamente, a intenção subjacente à grande maioria das propostas sobre o tipo de médico a ser formado, é a inovação. O médico generalista, o médico de família, o médico capaz de atuar na comunidade, o médico com formação integral, o médico com espírito de equipe, o médico com sólida formação científica, etc., etc., qualquer que seja o significado desses termos, são aparentemente propostas inovadoras. A questão é se na realidade são inovadoras, ou não estamos caindo num grande erro.

INOVAÇÃO: MUDANÇAS NO CONTEÚDO SÃO SUFICIENTES?

O que tem ocorrido, quando se propõe a formação de determinados “tipos” de médico, é a ênfase nas alterações de CONTEUDO. Quase sempre se privilegia, na discussão O QUE ensinar, e, às vezes, a melhor técnica para ensinar tal ou qual conteúdo.11. ABEM - Seminário sobre “A formação do Médico Generalista” - Relatório final - Rev. Bras. Educ. Méd., supl. 1:165-70, 1978.),(66. CORDEIRO, H. A., QUADRA, A. A. F. - O feitiço das reformas curriculares no ensino médico -Rev. Bras. Educ. Méd . 2(2):15-21, 1978.),(1010. KLOTZE L, K. - O perfil do clínico geral -Rev. Bras. Educ. Méd . 3(2):1-5, 1979. Tem-se dado um valor talvez exagerado em definir minuciosamente OBJETIVOS em que se procura ter um controle (apenas teórico) sobre o “produto” final do processo educativo e parece muitas vezes que para se atingir o objetivo basta ensinar isto ou aquilo.

Corre-se o risco, então, de termos como “produto” final indivíduos “treinados” em determinadas tarefas. A função da educação se restringe, e passa a ser substituída pelo adestramento. “A prioridade dada aos objetivos instrucionais parece-nos associada à idéia de um esvazia mento do termo educação e sua eventual (!) substituição pelo termo instrução.”33. BALZAN, N. C. - Sete asserções inaceitáveis sobre a inovação educacional - Fac. Educação (UNICAMP) - mimeogr. (a ser publicado).

Ora, se isto ocorre, estamos caminhando dentro de uma posição conservadora e não inovadora, a despeito da intenção poder ser esta. O médico adestrado, instruído, mas não educado (em sentido amplo) não s rá capaz de ter uma visão crítica de realidade em que está inserido, e assim, poderemos estar apenas formando mão-de-obra para manter o “status quo” do sistema de saúde. A despeito do conteúdo ter sido para formar generalistas, especialistas ou seja lá o que for.

Em minha opinião, dentro da discussão do tipo de médico a ser formado tem se dado pouca ênfase a objetivos mais gerais. Ou, quando estes são definidos, ficam nó papel e parte-se mais para a operacionalização dos objetivos específicos, caindo-se então na enfatização exagerada dos conteúdos. O que tem faltado é definir melhor uma filosofia de educação moderna. Trata-se de fazer com que a educação seja capaz de tornar o médico CRÍTICO, capaz de REFLETIR. Trata-se de tornar o aluno ATIVO no processo educativo, e não um mero repetidor de conteúdos prontos.

Em resumo, devemos discutir mais como fazer com que o estudante APRENDA A APRENDER77. FREIRE, P. - Educação como prática da liberdade, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969.),(88. FREIRE, P. - Conscientização, S. Paulo, Cortez & Moraes, 1979.),(1514. PESSANHA, E., MORETTO, R. - O que a pedagogia pode oferecer a uma escola de medicina -Rev. Bras. Educ. Méd . 3(1):47-50, 1979..

Em nosso meio já se iniciam colocações nesse sentido, em relação ao ensino médico.22. AMANCIO FILHO, A., FERREIRA, I., CALVÃO, L., ROITMAN, R. - Educação Médica: pressupostos e referências - Rev. Sras. Educ. Méd. 2(3):13-20, 1978.),(1413. NUNES, E. D. - Medicina como profissão - contribuição ao estudo da escolha ocupacional entre estudantes de medicina -Rev. Bras. Educ. Méd . 3(2):47-60, 1979.

Dentro desta linha filosófica o conteúdo passa para um plano secundário. É evidente que ele é necessário, mas apenas como matéria-prima e instrumento para fazer com que o aluno aprenda a aprender.

Se isto for conseguido teremos um médico capaz de se apropriar dos conteúdos que forem necessários, e de uma maneira crítica. E, então, a discussão sobre o “tipo” de médico que se deve formar, discussão essa baseada principalmente em conteúdos, também vai passar para um plano secundário. Isso porque, numa educação ativa, centrada no aluno, as minúcias importantes necessárias para o especialista serão AUTO-APRENDIDAS pelo médico, quando este tive que usá-las. E a visão social, globalizante, tão pregada, se desenvolverá espontaneamente se o médico estiver motivado a REFLETIR sobre a realidade que está enfrentando.

O “bom” médico não será mais este ou aquele (julgado pelos conteúdos que domine), mas sim aquele capaz de se ADAPTAR CRITICAMENTE2 2 O conceito de ADAPTAÇÃO CRÍTICA (em oposição ao de SUBMISSÃO à realidade) foi inicialmente desenvolvido por KNOBEL (11 a e b) em relação ao processo psicoterapêutico. a todas as situações em que for solicitado. E, estas situações tanto poderão ser as do favelado faminto, onde se necessita também uma ação comunitária, como a do paciente com uma doença raríssima, que terá que ser estudada. E mais, será capaz de se adaptar e evoluir com os avanços científicos e as mudanças ambientais, atuando também neles.

Enfim, o “bom” médico será aquele capaz de estudar, refletir, criticar - será criativo e capaz de apropriar-se dos conteúdos necessários. E, por isso, usará o método científico e não estará alienado da realidade. Não será mais tão importante a diferença entre médicos generalistas e especialistas - será sim, mais importante as diferenças entre médicos ativos, críticos, educados e médicos passivos, acríticos, adestrados.

É claro que esse médico poderá optar por uma área de atuação, por um tipo de prática, até por uma especialidade. Afinal, a diversidade não só é necessária, como é resultante das próprias pressões sociais. Mas agora será uma opção ativa, crítica, consciente de uma realidade mais ampla. E, acredito, com possibilidade de se readaptar facilmente a uma nova realidade a qualquer momento. E, capaz de atuar para modificar essa realidade. Todos esses médicos serão generalistas, de família, integrais, especialistas conscientes, cientistas, mas seja lá o que forem serão, principalmente, indivíduos com capacidade de reflexão, e, por isso mesmo, de atuação útil.

DOCENTES DA ESCOLA MÉDICA: OS “TIPOS”

Podemos supor que a Escola Médica forma um “tipo” de médico (M) que será função dos seguintes fatores: tipo de docentes (D), tipo de estudantes (E) e fatores outros (X). Isto é: M = f (D, E, X).

Os fatores X são imponderáveis: neles estão incluídos as influências da ciência atual, a tradição, o momento social e político, a política de saúde, as estruturas de poder dentro e fora da Instituição, o mercado de trabalho, etc. E, esses fatores inter-influenciam-se. Provavelmente, eles são mais importantes que os fatores E e D. Vários autores55. BLANK, N., VICTORA, C. G. - A influência da escola médica sobre a opção profissional de seus alunos: um estudo transversal. Rev. Bras. Educ. Méd . 3(1): 19-25, 1979.),(66. CORDEIRO, H. A., QUADRA, A. A. F. - O feitiço das reformas curriculares no ensino médico -Rev. Bras. Educ. Méd . 2(2):15-21, 1978.),(99. GARCIA, J. C. - La educación en la America Latina, Washington, D. C. - OPAS/OMS, Publ. cient. 255, 1972.),(1312. MITCHELL, W. D. - Medical student career choice: A conceptualization - Soc. Sci. & Med. 9(11-12):641-653, 1975.),(1716. ROITMAN, R. - O método de resoluções de problemas -Rev. Bras. Educ. Méd . 3(2):15-19, 1979. têm demonstrado que a influência da escola em si tende a ser restrita em relação ao “tipo” de médico que será formado, devendo valorizar-se mais os fatores externos a ela. E, além disso E e D são também funções de X.

O tipo de aluno (E) vai decorrer de características individuais de cada estudante, resultante de fatores biopsicossociais. Por vezes, a influência de E pode predominar e formam-se médicos em oposição às influências do meio e da escola. Mitchell 12b) KNOBE L, M. - The rights of the Mentally III - Towards a review of the concept of psychiatry and the Psychiatrist. Mental Health Soc. 1:228-245, 1974. propõe um modelo de interação entre as características do aluno, do ambiente educativo e o conhecimento da realidade das alternativas oferecidas (“nicho de carreira”).

Vamos prender-nos a uma análise mais detalhada de D, o tipo de docentes. A despeito da relatividade de sua influência, aqui parece ser um dos locais privilegiados para atuação, quando pensamos em inovação. E, isso porque, consciente ou inconscientemente são os docentes que acabam decidindo o que vão ensinar e como vão ensinar. E, são eles que interagem mais diretamente com os fatores E e X, podendo teoricamente diagnosticá-los e enfrentá-los, quando problemáticos, de uma maneira racional.

Em verdade, cada docente tem em sua cabeça o que é ser um “bom” médico. Mas, esse “bom médico” será diferente conforme o “tipo” de docente, assim como serão diferentes as idéias que cada “tipo” terá para formá-lo. Se tivéssemos uma escala que medisse essas idéias, poderíamos propor uma classificação, como uma faixa em que se passaria imperceptivelmente de uma a outra categoria. Chamemos os extremos da faixa de “A” e “Z”; estudando os extremos será fácil imaginar as posições intermediárias.3 3 Permiti-me usar critérios que espelhassem, em minha opinião, os elementos mais importantes que influem em atitudes inovadoras e conservadoras. É apenas uma proposição decorrente de observação participante em pelo menos 4 escolas públicas do Estado de São Paulo. Não creio que a categorização valha para instituições particulares, onde a realidade é outra.

O docente “A” é o tradicional, rígido, que se acha o dono da verdade (exceto alguns “déspotas esclarecidos”). Raramente permite o questionamento e a discussão, com exceção de alguns aspectos relativos à ciência. Aliás, seu Deus (com o qual às vezes se identifica) é a ciência. Mas, a ciência pela ciência. Isto é, não importa qual a aplicação, os usos, a ideologia que pode estar por trás dela. Não importa o ambiente sócio-cultural (aliás, as ciências humanas raramente são consideradas científicas). Não importa a relação entre o saber médico e a “ciência” pela qual o docente reza.

Face à estrutura arcaica das Instituições, e por se dedicarem mais a elas, os docentes que se aproximam deste extremo da faixa têm uma influência razoável. Comumente ocupam cargos com capacidade decisória.

Como se comporta este “tipo” em relação ao Ensino Médico? Raramente tem interesse no ensino em si - seu objetivo primordial é a pesquisa, a publicação de trabalhos. Os alunos são tolerados como um mal necessário. As atividades didáticas são delegadas a subordinados medíocres (em sua opinião). Eventualmente esse tipo quererá formar “cientistas” - e, seus cursos serão extremamente especializados e quase sempre dissociados da realidade. Muitos acharão que o “bom médico” será o cientista.

Muitos estudantes serão influenciados por esta faixa de docentes. Dirigir-se-ão a ciências básicas ou então serão clínicos ultra-especialistas. O paciente deixará de ser uma pessoa, mas sim um material para investigações, objeto de curiosidade “científica”. As vezes a ética poderá passar por maus bocados, em nome da “ciência”. O psicológico e o social serão ignorados ou desprezados.

Se a força dos docentes desta faixa for muito grande, o curso médico como um todo poderá se desvirtuar: o hospital passa a dar prioridade a casos raros, investe-se muito em tecnologias sofisticadas em prejuízo de prioridades reais, forma-se uma resistência muito grande a contatos com a comunidade e a inovações educacionais. Na realidade, os critérios de promoção docente privilegiam os “tipos” próximos a “A”11. ABEM - Seminário sobre “A formação do Médico Generalista” - Relatório final - Rev. Bras. Educ. Méd., supl. 1:165-70, 1978. e comumente docentes que se veriam melhor em outras faixas são obrigados a entrar nesse esquema pela necessidade de “fazer carreira”.

Esses tipos de docentes, eventualmente, poderão se alinhar a movimentos inovadores - mas, quase sempre olham com desprezo os clínicos que lidam diretamente com os doentes, ou que se preocupam com a população. E, raramente abrirão mão de algum privilégio para tornar a escola mais inovadora. Por isso, vemos comumente contradições intensas entre o proposto (alinhamento aparente a inovações) e o que realmente se faz.44. BEVILACQUA, F. - Tendências curriculares na área profissional e a formação do “médico de família” -Rev. Bras. Educ. Méd . 2(1):17-20, 1978.

No outro extremo da escala teremos o docente tipo “Z”. Para esse, o “bom médico” e aquele “conscientizado”. Isto é, que saiba e se preocupe em denunciar os problemas sócio-econômicos do país e a estrutura de poder. No entanto, esse tipo de docente menospreza a ciência, que só será útil quando confirmar seus pressupostos ideológicos, sejam eles de direita ou esquerda. O diploma de médico dará “autoridade” para denunciar. A atenção médica, o contato com o doente passa para um último plano - afinal, as doenças decorrem de problemas sociais,4 4 Coincidentemente, já ouvi docentes dos 2 “tipos” extremos declararem serem “profissionais muito caros para atender doentes”. que não devem ser “abafados”...

Esse tipo de docente é raríssimo em seu estado puro, pois a Universidade não lhe dá chances da carreira. No entanto, constitui o extremo teórico da escala.

Evidentemente, os dois tipos extremos são caricaturais. A grande maioria se encontra em posições intermediárias. No centro encontraremos o docente com espírito científico, crítico da realidade da Instituição, amante da clínica e dos pacientes, preocupado com o ensino, e alerta para a realidade sócio-política. Acredito que a grande maioria dos docentes se encontra próxima ao centro, mas há uma maior concentração em direção a “A”.

Bem, o tipo de médico formado pela Escola será o resultado da somatória das influências exercidas por todos os docentes incluídos nessa escala imaginária. E, principalmente, através de um processo de múltiplas identificações, mais que pela forma e conteúdo do ensino. (Tudo isso, evidentemente, acrescido dos fatores X e E, conforme já vimos.)

COMO FORMAR O MÉDICO CRÍTICO?

Se nosso diagnóstico estiver correto, terão esses docentes a capacidade de formar esse médico crítico, ativo?

Creio que isso só pode ocorrer se o corpo docente da Instituição também é um corpo docente crítico, ativo, capaz de refletir sobre a sua realidade e a realidade do ensino médico. E, a melhor maneira de refletir sobre algo é ter que enfrentar um problema e resolvê-lo. A tática, tanto para formar um médico crítico, como para tornar um docente crítico, é fazê-los defrontarem-se com problemas reais, e desafiá-los a resolvê-los.1615. PUENTE, M. de la - O ensino centrado no estudante, S. Paulo, Cortez & Moraes , 1979.

Vejamos antes como fazer com o médico, com o estudante. Depois veremos tomo fazer com o docente.

No caso do Ensino Médico, os problemas já se apresentam por si sós: são os pacientes e a sua realidade. O professor apenas os selecionará para serem apresentados, sob a forma de problemas, no momento adequado. O aluno será obrigado a participar, refletir, questionar, procurar o conteúdo que o ajude a resolvê-lo. O professor servirá para ajudá-lo a ver o problema e indicar-lhe pistas para sua resolução, pistas essas adequadas para que reflita. Vejo, portanto, o professor como criador de problemas adequados e fornecedor de pistas para sua resolução. Mas, aqui nos defrontamos com um ponto-chave: os problemas terão que ser relevantes, terão que ser aqueles da realidade. E, os métodos para resolvê-los também devem se adequar a essa realidade.

Pela falta dessa preocupação em problematizar a partir de problemas reais é que as aulas teóricas, os “seminários”, as conferências são tão desprezados pelos alunos. “Dar” informações para 80 ou 100 estudantes que, quando sabem para que elas servem (na melhor das hipóte­ ses), não estão motivados para usá-las, de nada serve. Será diferente, no entanto, se o aluno estiver cuidando de um paciente com a doença X ou se proponha a atuar de maneira Y na comunidade: ele mesmo se interessará em assistir uma aula sobre X ou em propor um seminário sobre Y. E, mesmo que o problema ainda não tenha surgido, se o docente souber “criá-lo” e saiba estimular a assistência a refletir sobre ele, estará ocorrendo um processo de ensino-aprendizagem real. Esse docente é aquele que “dá boas aulas”.

Essa digressão sobre técnicas de ensino foi apenas para exemplificar. Todas as técnicas serão boas, se partirem de um problema que faça o aluno refletir.

E, com o docente? Creio que a tática tem que ser a mesma. Em primeiro lugar, para que se possa discutir, refletir, há necessidade de um sistema democrático, que possibilite realmente a participação dos docentes. Esse tem que ser o pano de fundo de qualquer movimento inovador.

Dois outros elementos que podem ser coadjuvantes: 1) cursos, seminários, sobre filosofia educacional - situações em que os docentes sejam sujeitos e não objetos. Em que se os desafiem a resolver problemas reais. A despeito de seu valor limitado1413. NUNES, E. D. - Medicina como profissão - contribuição ao estudo da escolha ocupacional entre estudantes de medicina -Rev. Bras. Educ. Méd . 3(2):47-60, 1979., esses cursos servem para motivar: a formação de um núcleo, a partir do qual se formará um grupo permanente. Este grupo não poderá, no entanto, isolar-se considerando-se o “dono da verdade”: deverá através de um processo ativo diagnosticar os problemas da instituição, inclusive o desinteresse de outros docentes e descobrir como atuar neles; 2) estímulos na carreira para docentes interessados no ensino, ao contrário do que ocorre hoje.

Da discussão nascida, da reflexão, da necessidade de resolver um problema nascerão idéias. Outras se oporão. Dos entrechoques, dentro de um sistema democrático, sairá o resultado.

E, finalmente, se a instituição for encarregada de uma área de saúde em que se concentrem todas suas atividades, esse será o problema - como estruturar­se para resolver os problemas dessa área. E, através do processo da discussão e reflexão, a instituição se auto-educará. Mas, este é um processo bem mais complexo, que será objeto de outro trabalho.

CONCLUSÃO

Creio ser muito importante, quando se fala em Educação Médica, não privilegiar a discussão apenas dos conteúdos. Se é válido questionar qual o tipo de médico necessário para nosso meio, e propor “tipos”, não podemos deixar de insistir na necessidade que esse médico seja capaz de se ADAPTAR CRITICAMENTE a qualquer situação, que saiba apreender a realidade, refletir sobre ela e atuar de maneira ATIVA. E, temos que preocupar-nos em como formar esse médico ativo. Como educá-lo e não só adestrá-lo. A pista está na PROBLEMATIZAÇÃO, a partir do real.

E, a escola médica só poderá formar esse médico, quando ela estiver inserida na REALIDADE. Sem a discussão democrática dentro da instituição, e o estímulo a que ela também resolva problemas de nossa realidade isso não será possível.

AGRADECIMENTOS:

aos professores Newton Cesar Balzan da Faculdade de Educação da, UNICAMP, Maurício Knobel, chefe do Depto. de Psicologia Médica e Psiquiatria - FCM - UNICAMP e Oswaldo Frota Pessoa, da Faculdade de Medicina da USP, que talvez sem o saberem, me forneceram pistas para esta reflexão. Devo ao último as idéias iniciais sobre problematização. (No entanto, a responsabilidade pelo trabalho é só do autor.)

Referências Bibliográficas

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  • 10
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  • 11
    a) KNOBEL, M. - Un enfoque dinamico de psiquiatria social y su aplicación en la psiquiatria clinica y la medicina. J. bras. Psiq (Rio de Janeiro) 16(3-4):219-242, 1967.
  • b) KNOBE L, M. - The rights of the Mentally III - Towards a review of the concept of psychiatry and the Psychiatrist. Mental Health Soc 1:228-245, 1974.
  • 12
    MITCHELL, W. D. - Medical student career choice: A conceptualization - Soc. Sci. & Med. 9(11-12):641-653, 1975.
  • 13
    NUNES, E. D. - Medicina como profissão - contribuição ao estudo da escolha ocupacional entre estudantes de medicina -Rev. Bras. Educ. Méd . 3(2):47-60, 1979.
  • 14
    PESSANHA, E., MORETTO, R. - O que a pedagogia pode oferecer a uma escola de medicina -Rev. Bras. Educ. Méd . 3(1):47-50, 1979.
  • 15
    PUENTE, M. de la - O ensino centrado no estudante, S. Paulo, Cortez & Moraes , 1979.
  • 16
    ROITMAN, R. - O método de resoluções de problemas -Rev. Bras. Educ. Méd . 3(2):15-19, 1979.
  • 17
    SOBRAL, D. T. - Formação do médico geral: o ambiente de ensino influencia? -Rev. Bras. Educ. Méd 3(1):5-11, 1979
  • 1
    BRAMELD, T. - O poder da educação, Rio de Janeiro, Zahar, 1972, pp. 29-30, citado em33. BALZAN, N. C. - Sete asserções inaceitáveis sobre a inovação educacional - Fac. Educação (UNICAMP) - mimeogr. (a ser publicado)..
  • 2
    O conceito de ADAPTAÇÃO CRÍTICA (em oposição ao de SUBMISSÃO à realidade) foi inicialmente desenvolvido por KNOBEL (11 a e b) em relação ao processo psicoterapêutico.
  • 3
    Permiti-me usar critérios que espelhassem, em minha opinião, os elementos mais importantes que influem em atitudes inovadoras e conservadoras. É apenas uma proposição decorrente de observação participante em pelo menos 4 escolas públicas do Estado de São Paulo. Não creio que a categorização valha para instituições particulares, onde a realidade é outra.
  • 4
    Coincidentemente, já ouvi docentes dos 2 “tipos” extremos declararem serem “profissionais muito caros para atender doentes”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 1980
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