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Análise de uma abordagem histórica e conceitual para a gravitação universal: sentidos produzidos por estudantes em um curso de licenciatura

Analysis of a historical and conceptual approach to universal gravitation: meanings produced by students in an undergraduate course

Resumos

Neste trabalho analisa-se a produção de sentidos por estudantes de um curso de licenciatura em física relativamente a aspectos históricos, epistemológicos e conceituais do tema gravitação universal, através de uma atividade na disciplina Práticas de Ensino de Física I em uma universidade pública paulista. A atividade incluiu um vídeo abordando a Teoria da Gravitação Universal e sua aplicação na compreensão do movimento da lua em órbita da Terra e, em seguida, os estudantes responderam por escrito a um questionário aberto. A investigação foi desenvolvida com base em pressupostos da vertente francesa da Análise do Discurso. Verificou-se que a abordagem articulada de aspectos históricos e conceituais utilizando recursos gráficos tornou o vídeo atrativo para os estudantes, explicitando seu potencial didático. Evidenciamos aprendizagens significativas pela manifestação de repetições históricas em suas respostas. O tratamento de aspectos epistemológicos e da história da ciência proporcionou a manifestação de noções adequadas sobre a natureza da ciência. Foram trabalhados aspectos conceituais qualitativa e quantitativamente, havendo indícios de que os estudantes conseguem resolver problemas quantitativos e exercícios de aplicação sem serem submetidos a uma aula expositiva tradicional. Tendo a investigação ocorrido durante o cenário pandêmico, impôs-se realizar todo o período letivo em modo remoto.

Palavras-Chave:
história da ciência; recursos audiovisuais; teoria da gravitação universal; formação de professores; pandemia Covid19


The paper analyzes the production of meanings by students of an undergraduate course in physics, in relation to historical, epistemological and conceptual aspects of the universal gravitation, based on a non-traditional activity in the discipline of Physics Teaching Practices I, in a public university in São Paulo. The activity included watching a video, addressing Theory of Universal Gravitation and its application in understanding the movement of the moon around Earth. The students responded an open questionnaire. The research was developed based on assumptions from the French Discourse Analysis. The articulated approach of historical and conceptual aspects, using graphic resources, made the video attractive, aspects highlighted by the students, showing its potential as a didactic resource. Significant learning was obtained through the manifestation of historical repetitions. It was found that the treatment of epistemological aspects and the history of science provided adequate notions about the nature of science. It was possible to work on conceptual aspects both qualitatively and quantitatively, with indications that students are able to solve quantitative problems and exercises without being submitted to a traditional expository class. As the investigation took place during the pandemic scenario, it was necessary to carry out all school period in remote mode.

Keywords:
history of science; audiovisual resources; theory of universal gravitation; teacher training; Covid19 pandemic


1. Introdução

Desde as últimas décadas do século XX estudos indicam uma necessária renovação no ensino de ciências tal que amplie seus objetivos e contemple, dentre outros aspectos, o trabalho com concepções epistemológicas de estudantes e professores acerca da natureza da ciência e da construção do conhecimento científico [1[1] A. Cachapuz, D. Gil-perez, A.M.P. Carvalho, J. Praia e A. Vilches, A necessária renovação do ensino de ciências (Cortez, São Paulo, 2011), 3 ed.]. Conforme Almeida [2[2] M.J.P.M. Almeida, Discursos da ciência e da escola: ideologia e leituras possíveis (Mercado das Letras, Campinas, 2004).]:

[…] as finalidades para se ensinar ciência podem assumir um espectro bastante abrangente, podendo-se esperar desse ensino que ele possibilite ao estudante, entre outros objetivos: a internalização de conceitos e leis previamente selecionados; o reconhecimento das condições sociais em que determinadas leis da natureza e certos conceitos foram produzidos, bem como o entendimento de suas influências sobre a sociedade; a compreensão de modos de produção da ciência; a possibilidade de crítica em relação a aplicações e implicações sociais da instituição científica; a aquisição de habilidades e atitudes pertinentes ao fazer científico; o incremento da autoestima pela inserção em questões próprias do seu tempo. Evidentemente, esses e outros possíveis objetivos não são mutuamente excludentes (p. 96).

A realização dessa ampliação nos objetivos da educação científica envolve a superação de uma tendência tecnicista, ainda frequente no imaginário e na prática pedagógica em diversos níveis de ensino, que considera a “internalização de conceitos e leis” e suas aplicações na resolução de exercícios como a principal e, por vezes, a única atividade a ser valorizada na aprendizagem das ciências naturais e da física em particular. Pesquisas apontam que a diversificação de abordagens e recursos didáticos é uma possibilidade para o trabalho educacional em uma perspectiva fundamentada nesses objetivos mais abrangentes, estimulando o envolvimento ativo do estudante [3[3] D.B.F. Silva e F.C. Bozelli, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 36, 599 (2019).].

No que se refere à abordagem de aspectos de história e epistemologia da ciência na educação científica, em meados da década de 1990 trabalhos como o de Matthews [4[4] M. Matthews, Caderno Catarinense de Ensino de Física 12, 164 (1995).] já indicavam sua proficuidade. Martins [5[5] A.F.P. Martins, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 24, 112 (2007).] afirma ser praticamente consensual a recomendação para a incorporação de elementos históricos e filosóficos no ensino a ponto de se fazer presente em diversas diretrizes curriculares oficiais, mas alerta para fatores que dificultam sua efetiva realização, tais como: a falta de materiais didáticos adequados para professores e estudantes, currículos extensos em relação ao tempo que se dispõe para o trabalho em sala de aula, visões ingênuas e equivocadas veiculadas acerca da história da ciência [6[6] D. Allchin, Science & Education 13, 179 (2004).] e a necessidade de maior atenção ao conhecimento pedagógico do conteúdo por parte dos cursos de formação de professores. Como provável decorrência desses fatores, parece haver um imaginário constituído no ensino de física segundo o qual abordagens conceituais tradicionais dificilmente poderiam ser articuladas na prática com abordagens de aspectos históricos. A inserção de elementos históricos e epistemológicos ocorreria em detrimento da aprendizagem de conceitos da física, suas leis e aplicações em exercícios e problemas, no limite de tais abordagens serem consideradas mutuamente excludentes em determinadas situações.

Não ignorando os desafios práticos de tal realização, consideramos que a inserção de elementos culturais, sociais, históricos e epistemológicos referentes à física pode ser integrada de modo articulado ao ensino e à aprendizagem de conceitos, leis e suas aplicações qualitativas e quantitativas. No presente trabalho nosso objetivo consiste em analisar a produção de sentidos por estudantes de um curso de licenciatura em física no que se refere a aspectos históricos, epistemológicos e conceituais do tema gravitação universal, a partir da realização de uma atividade na disciplina Práticas de Ensino de Física I, desenvolvida em uma universidade pública paulista.

A atividade é constituída por duas etapas. Inicialmente os estudantes são convidados a assistirem um vídeo da série Universo Mecânico, abordando a Teoria da Gravitação Universal de Isaac Newton e sua aplicação na compreensão do movimento da lua em órbita da Terra. Tal material audiovisual é utilizado como recurso didático em uma prática mediadora, atuando como uma condição de produção de sentidos, sendo de interesse compreendermos aspectos de seu funcionamento no processo de construção do conhecimento dos estudantes. Em seguida, eles respondem por escrito a um questionário elaborado com o intuito de se evidenciar a atribuição de sentidos com relação a aspectos históricos, epistemológicos e conceituais dessa temática da física, bem como às potencialidades e limitações da utilização do vídeo como recurso didático.

A escolha pelo tema da gravitação universal se deve à sua evidente importância na história do desenvolvimento científico, por exemplo, ao unificar as explicações mecânicas de movimentos celestes e terrestres, além de ser um tema integrado aos currículos oficiais de física nos diferentes níveis de ensino. Na literatura especializada há estudos reportados sobre abordagens históricas da gravitação na educação através de textos elaborados especificamente para esse fim [7[7] P.M.C. Dias, W.M.S. Santos e M.T.M. Souza, Revista Brasileira de Ensino de Física 26, 257 (2004)., 8[8] L.H.M. Arthury e E.A. Terrazzan, Revista Brasileira de Ensino de Física 40, e3403 (2018).], cursos destinados à formação continuada de professores de física da educação básica [9[9] S.R.T. Gatti, R. Nardi e D. Silva, Ciência & Educação 10, 491 (2004).], uso de recursos multimídia para estudo do movimento de satélites em relação com o desenvolvimento da teoria da gravitação universal [10[10] E.V. Rodrigues, E. Zimmermann e A.M. Hartmann, Ciência & Educação 18, 503 (2012).], emprego de um software educacional (aplicativo multimídia) destinado ao ensino médio [11[11] D.I. Machado e P.L.A.V.C. Santos, Ciência & Educação 10, 75 (2004).], dentre outras iniciativas.

Pretendemos contribuir nesse contexto analisando os sentidos que futuros professores de física atribuem à utilização de um vídeo que aborda elementos históricos e conceituais da gravitação, de modo tanto qualitativo como quantitativo, promovendo mediações para constituição de conhecimentos acerca da temática. O processo de produção de sentidos por parte dos estudantes é delineado e investigado com base em pressupostos teóricos e metodológicos da vertente francesa da Análise do Discurso (AD).

A ocorrência da pandemia COVID19 veio implicar o recurso a um ensino completamente online que poderá ter influído de algum modo na capacidade de comunicação e mediação que era habitual, entre professor e estudantes, em contexto de aula presencial.

2. O Referencial Teórico-metodológico da AD

A denominada vertente francesa da AD origina-se a partir dos trabalhos de Michel Pêcheux no final da década de 1960 [12[12] F. Gadet, T. Hak, Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux (Editora da Unicamp, Campinas, 1997), 3 ed.], constituindo-se em um modo específico de compreender a linguagem e seu funcionamento. Segundo Pêcheux, a teoria do discurso é a teoria da determinação histórica dos processos de significação. Ela põe em evidência a não transparência da linguagem, promovendo um deslocamento no quadro das ciências humanas e sociais em sua relação com a linguagem, os sujeitos e os sentidos [13[13] E.P. Orlandi, Análise de Discurso: Michel Pêcheux (Pontes, Campinas, 2015), 4 ed.]. A análise transcende a superfície linguística na medida em que busca compreender um processo discursivo: não interessa apenas o que se diz, mas como se diz, de onde se diz, como o dizer se relaciona com o já dito e o não dito.

Nessa perspectiva teórica, o termo “discurso” é definido diretamente como efeito de sentidos entre locutores. Todo discurso relaciona-se com uma formação discursiva que, por sua vez, remete a determinada formação ideológica. A ideologia é concebida como um imaginário social e historicamente construído que media as relações do sujeito com o mundo, cuja materialidade é linguística e que geralmente é inconsciente ao sujeito [14[14] E.P. Orlandi, Análise de Discurso: princípios & procedimentos (Pontes, Campinas, 2010).].

Conforme Maingueneau [15[15] D. Maingueneau, Discurso e Análise do Discurso (Parábola Editorial, São Paulo, 2015), 1 ed.], o discurso consiste em uma organização além da frase, sendo assumido sempre por um sujeito no bojo de um interdiscurso. É interativo, contextualizado e seu efeito atua na construção social do sentido. Podemos falar em tipos de discurso: discurso político, religioso, educacional, científico, etc. A cada tipo correspondem gêneros textuais que os caracterizam e os veiculam, como é o caso dos artigos em periódicos especializados para o discurso científico, os panfletos partidários para o discurso político e os documentos oficiais que regulam a educação formal para o discurso educacional. No presente trabalho, nosso interesse reside no discurso relativo à ciência que é produzido e veiculado em situações formais de ensino e aprendizagem, denominado discurso escolar sobre a ciência [2[2] M.J.P.M. Almeida, Discursos da ciência e da escola: ideologia e leituras possíveis (Mercado das Letras, Campinas, 2004).].

Como ocorre em todo processo discursivo, a constituição de discursos sobre a ciência em ambientes escolares depende de suas condições de produção [2[2] M.J.P.M. Almeida, Discursos da ciência e da escola: ideologia e leituras possíveis (Mercado das Letras, Campinas, 2004).]. Tais condições envolvem o contexto imediato em que se situam os interlocutores, bem como suas memórias discursivas ou interdiscurso, entendido como um “já dito que sustenta as possibilidades do dizer”. Assim, ao expressar-se, o sujeito insere seu discurso em uma rede de filiações de sentidos, não podendo evitar alguma forma de repetição. A AD identifica três tipos de repetição: a empírica, que consiste no mero exercício mnemônico; a formal, uma técnica associada à produção de frases em que se substituem palavras sem alteração semântica; e a histórica, na qual, ao repetir, o sujeito se liga à sua memória discursiva e produz um efeito de deriva, um sentido através de um ato interpretativo genuíno [14[14] E.P. Orlandi, Análise de Discurso: princípios & procedimentos (Pontes, Campinas, 2010).].

Do ponto de vista metodológico, diante do corpus empírico o analista visa elucidar aspectos do processo de constituição daquele material, considerando-o não como um dado puro, mas como fruto de um processo interpretativo [16[16] H.C. Silva, C.R. Baena, J.R. Baena, Ciência & Educação 12, 347, 2006.]. Na de-superficialização, transforma o corpus em um objeto discursivo explicitando suas condições de produção imediatas, as posições a partir dos quais os sujeitos se manifestam e buscando indícios linguísticos que permitam passar do objeto ao processo discursivo, identificando sentidos atribuídos e relacionando-os a determinadas formações discursivas e ideológicas.

Reconhecemos a existência de outras dimensões relevantes para a compreensão dos processos de ensino e aprendizagem. Todavia, adotar tal referencial teórico e metodológico sobre a linguagem e seu funcionamento nos permite compreender aspectos envolvidos nesses processos que podem tanto contribuir para a produção de conhecimentos acerca do papel da linguagem na educação científica, como fornecer subsídios ao trabalho pedagógico do professor. É sobre essa dimensão discursiva, entendida conforme os princípios da AD, que nos dedicamos no presente trabalho.

3. Metodologia

Esta investigação empírica tem caráter qualitativo [17[17] J.W. Creswel, Projeto de Pesquisa: Métodos Qualitativo, Quantitativo e Misto (Artmed, Porto Alegre, 2010), 3 ed.], constituindo-se em uma pesquisa de intervenção [18[18] J. Megid Neto, em: Fundamentos de matemática, ciências e informática para os anos iniciais do ensino fundamental – Livro III, editado por M.U. Kleinke, J. Megid Neto (FE/UNICAMP, Campinas, 2011).]. Na ocasião, um dos autores era o professor responsável por uma turma de 15 estudantes na disciplina Práticas de Ensino de Física I, no segundo semestre de 2020, em uma universidade pública localizada no estado de São Paulo. O contexto de realização da presente investigação está diretamente ligado à formação inicial de professores de física. Em virtude da pandemia, todo o período letivo foi realizado de modo remoto. A plataforma Moodle foi empregada como apoio, onde todos os textos, atividades e demais informações sobre a disciplina eram postados. Semanalmente, às sextas feiras das 8h às 12h, ocorreram encontros virtuais síncronos entre o professor e a turma através do aplicativo google meet. Nesses encontros eram discutidos os temas constantes no programa da disciplina, as dúvidas dos estudantes com relação aos textos e atividades solicitadas, consistindo em momentos de uma interação possível, ainda que limitada em função das restrições impostas pela necessidade de distanciamento social.

Em uma das atividades da disciplina foi proposto um trabalho sobre o tema gravitação universal, envolvendo a utilização de um vídeo da série Universo Mecânico e a resposta por escrito a um questionário. O Caltech – California Institute of Technology - produziu a série “The Mechanical Universe…and Beyond”, com o total de 52 episódios, exibidos na televisão norte americana entre os anos de 1985 e 1986, e no Brasil pela rede de televisão Cultura em 1989. Trata-se de uma incursão pela física, abordando aspectos de sua história, personagens e conceitos, desde a mecânica clássica até a quântica, com profundidade equivalente ao ciclo básico da física nos anos iniciais do ensino superior. Os episódios procuram articular uma linguagem comum, acessível a um público supostamente iniciante na aprendizagem da física, com a linguagem matemática constitutiva da física. O vídeo escolhido para o trabalho na disciplina refere-se ao episódio 8 da série, intitulado “A lua e a maçã” [19[19] https://www.youtube.com/watch?v=Tcoq4qg94Ks&list=PL_CWSYH2QtJNr0j01_36rfPHqHs8HMQ_-&index=9, acessado em 21/06/2022.
https://www.youtube.com/watch?v=Tcoq4qg9...
]. Sua escolha justifica-se por considerarmos que esse vídeo procura articular aspectos históricos e epistemológicos do desenvolvimento da teoria da gravitação universal com aspectos conceituais da física, coadunando-se com nossos objetivos de investigação.

O questionário foi elaborado com o intuito de possibilitar a investigação de quatro dimensões relativas às possíveis produções de sentidos por parte dos estudantes, definidas a partir dos nossos objetivos de pesquisa. A primeira delas refere-se às impressões dos estudantes sobre o vídeo, com o intuito de obtermos indícios de seu potencial como recurso didático mediador; a segunda diz respeito aos sentidos atribuídos a aspectos históricos e epistemológicos mencionados no vídeo; a terceira relaciona-se a uma abordagem qualitativa de conceitos físicos; e a quarta refere-se a aplicações quantitativas. As questões são dissertativas e possuem natureza predominantemente aberta, de modo a permitir a livre expressão dos estudantes.

Ao dispormos de um vídeo como recurso didático, consideramos fundamental analisar os sentidos que os futuros professores atribuem à utilização desse tipo de material e seu conteúdo, no que se refere às suas potencialidades e limitações para o ensino e a aprendizagem da física, justificando-se assim a escolha pela primeira dimensão de análise abarcada no questionário pelas questões Q1 a Q5. Com relação à dimensão histórica e epistemológica, nosso interesse consiste em analisar os sentidos atribuídos pelos estudantes acerca de aspectos do processo de evolução do conhecimento científico e de possíveis interfaces entre a história da física e sua didática por meio de Q6 e Q7.

O domínio conceitual qualitativo é explorado na questão Q8 relacionada ao tema da gravitação e que pode ser trabalhada através do vídeo. Por sua vez, a investigação com respeito ao domínio conceitual quantitativo se dá pela inserção das questões Q9, Q10 e de dois problemas típicos de livros didáticos no questionário (Q11 e Q12), visando verificar se, após o contato com o tema de um modo distinto em relação a uma aula tradicional expositiva, os estudantes conseguiriam resolvê-los. Isso se justifica pois, como destacamos anteriormente, há um discurso frequente no imaginário referente ao ensino e aprendizagem da física segundo o qual tais abordagens diferenciadas desvalorizariam a aprendizagem de conceitos e dificultariam a capacidade de resolução de problemas e exercícios por parte dos alunos, supostamente trazendo prejuízos à essa dimensão da aprendizagem da física que é considerada, por vezes, a principal ou única dimensão relevante. Consideramos que esse discurso se configura mais como um preconceito do que algo baseado em constatações fundamentadas empiricamente e daí decorre nosso interesse em investigá-lo.

No Quadro 1 apresentamos as questões propostas aos estudantes associadas às respectivas dimensões para análise das produções de sentido.

Quadro 1
Dimensões relativas às produções de sentidos e as questões associadas.

Apesar de admitirmos que a avaliação da aprendizagem deve estar em consonância com o modo com que o ensino foi praticado, diversificando-se os instrumentos e realizando-se uma avaliação processual, consideramos ser possível que, mesmo através de uma abordagem distinta em relação a uma aula tradicional, os estudantes desenvolvam uma compreensão tal que lhes permita desempenhar satisfatoriamente quando submetidos a indicadores de aprendizagem usuais, como os exercícios quantitativos constantes em livros didáticos e em exames.

Na seção seguinte apresentamos e analisamos a produção dos estudantes com base nos objetivos da investigação e em pressupostos da AD.

4. Análises

Dos 15 estudantes matriculados na disciplina, 14 realizaram a atividade e entregaram suas respostas ao questionário. Os estudantes foram esclarecidos de que suas respostas não seriam corrigidas atribuindo-se certo ou errado, a fim de estimulá-los a responderem livremente. A atividade foi empregada como um dos instrumentos de avaliação da disciplina, mas não foram atribuídas notas numéricas separadamente para ela. Os critérios avaliativos de desempenho dos estudantes na disciplina foram estabelecidos considerando-se o conjunto de todas as atividades realizadas por eles no decorrer do período letivo. Nesta seção apresentamos e analisamos as produções dos estudantes. Optamos por subdividi-la em tópicos conforme as dimensões definidas a partir dos objetivos da pesquisa. Nas transcrições de suas respostas designamos os estudantes por E1, E2,…, E14 a fim de preservar seus anonimatos.

4.1. O vídeo como recurso didático

O vídeo usado como recurso didático consiste em uma condição de produção imediata de sentidos do ponto de vista discursivo. As questões mediadoras produzem uma determinada leitura do vídeo que remeterá a outros elementos do interdiscurso desses estudantes no processo interpretativo que realizam, do qual buscamos indícios de sua constituição.

A questão Q1 pergunta aos estudantes, de modo geral, o que eles acharam do vídeo. E1 destaca um caráter motivacional para o estudo da gravitação, mencionando o fato de o vídeo iniciar abordando as viagens à lua e o início da exploração espacial como aplicação da teoria, além de apresentar uma pergunta instigante.

“Achei a primeira parte do vídeo muito boa para motivar o estudo da gravitação universal, o vídeo usa a viagem a Lua como exemplo da utilidade da teoria e traz uma pergunta que instiga, por que a Lua não cai? (E1).”

Para E9, apesar do vídeo ser produzido na década de 1980, a utilização de animações gráficas para a apresentação e manipulação de equações algébricas e relações geométricas auxiliou o entendimento. A abordagem de aspectos do contexto histórico em que Newton viveu também foi positivamente destacada.

“O vídeo é muito instrutivo. O fato dele utilizar-se de animações para demonstração de princípios matemáticos e geométricos facilita o entendimento de quem o assiste. Além disso, existe uma contextualização da física, sendo que se apresenta o momento histórico dos trabalhos de Newton (E9)”.

Em sua resposta, E11 revela um olhar para o vídeo pensando em sua contribuição didática em uma relação com suas expectativas sobre o que é relevante para o ensino e divulgação da ciência, colocando-se na posição de futuro professor de física. Ele se expressa explicitamente deste lugar que a disciplina propõe ao refletir sobre práticas de ensino como um de seus objetivos.

“Eu achei bem completo, abrangendo pelo menos um pouco de todos os aspectos que eu considero importante na hora de não só ensinar como também divulgar ciência, como demonstrar a evolução do conhecimento, os contextos históricos e até um pouco das bases matemáticas (E11)”.

A questão Q2 pede aos estudantes que indiquem as partes do vídeo que acharam mais interessantes. Como esperado, variados aspectos foram destacados nas respostas. Como em Q1, novamente as animações gráficas presentes no vídeo foram mencionadas, tratando-se de um recurso considerado interessante por esse grupo de estudantes principalmente na abordagem da linguagem matemática. Este parece ser um uso interessante da tecnologia no ensino, como um instrumento que permite ao professor apresentar situações que não seriam possíveis com giz e lousa, sem prescindir de sua mediação. A relação entre a teoria e as viagens espaciais também é novamente destacada, em uma tentativa de evidenciar aplicações da teoria em situações práticas.

“Gostei muito da animação feita para explicar a Lei da Gravitação. Facilita a visualização e o entendimento do fenômeno ao invés de utilizar somente uma expressão matemática (E2)”.

“Desde o começo do vídeo ele tem tenta fazer uma ligação clara entre Newton e as viagens espaciais e isto é algo que me chamou muita atenção pois esta demonstração prática do trabalho do Newton e de outros cientistas é algo dificilmente mostrado hoje em dia em explicações em geral, ligar dois eventos separados por quase 300 anos é algo que já chama atenção de início (E4)”.

E11 coloca uma questão a respeito da natureza do vídeo. À princípio, poderia se pensar nesse vídeo como um instrumento de divulgação científica. Todavia, ele pretende ir além, pois acrescenta trechos onde trabalha com a linguagem matemática, que é constitutiva do conhecimento físico. Em termos das condições de produção, elemento central para a compreensão dos processos discursivos conforme a AD, lembramos que o vídeo foi produzido pelo Caltech, uma instituição de ensino superior e pesquisa em física, destinado não exclusivamente para um público leigo, mas pressupondo algum conhecimento matemático ou ao menos a disposição em empreendê-lo para compreensão de seu conteúdo.

“Achei as animações com as equações muito interessantes. Temos ótimos programas de divulgação científica na TV e internet, mas poucos (ou quase nenhum) tentam abordar equações quando se trata de física, talvez por medo de “assustar” o público. Porém eu acredito que essa é uma parte importante do ensino, pois desmistifica algumas conclusões que parecem surgir magicamente, mas que na verdade são resultados de manipulações matemáticas (E11)”.

E3 e E10 mencionam a abordagem do contexto histórico no vídeo, contribuindo para a desconstrução de certos mitos e a formação de uma imagem realista do trabalho do cientista, conforme preconizam Gil Pérez et al. [20[20] D.G. Pérez, I.F. Montoro, J.C. Alís e A. Cachapuz, J. Praia, Ciência & Educação 7, 125, 2001.].

“Eu achei interessante o cuidado na construção do contexto histórico de Newton e da problematização do “mito da maçã”, contrastado por uma visão em que a elaboração da teoria foi extremamente trabalhosa, contando com intensas reflexões filosóficas, demonstrações matemáticas e o estudo do trabalho de seus predecessores (E3).”

“A contextualização de que o trabalho de Isaac Newton (o “porque”) só foi possível graças aos cientistas que vieram antes dele para explicar o “como” do funcionamento do universo (Nicolau Copérnico, Galileu Galilei e Johannes Kepler), essa explicação reforça a ideia de que a ciência não é imutável, mas sim resultado de mudanças ocorridas ao longo da história e uma soma de contribuições de diversas mentes (E10).”

E7 ressalta um aspecto epistemológico ao citar a comprovação por Newton, a partir de sua teoria, de que a lua cai um vigésimo de polegada por segundo.

“A parte do vídeo que mais achei interessante foi o momento em que Newton comprovou a queda da Lua em 1/20” (E7).”

Momentos da vida pessoal de Newton foram mencionados, como se verifica nos relatos de E5 e E9.

“A parte que mais me interessou foi quando abordaram sobre a vida pessoal de Newton e o tempo que ele demorou para publicar o seu trabalho (E5).”

“Achei vários pontos interessantes, dentre eles, que Newton realizou sua pesquisa afastado da cidade por conta da peste negra, e era muito jovem (E9).”

Em Q3 pergunta-se se há algum tema abordado no vídeo sobre o qual o estudante gostaria de saber mais. Trata-se de uma sondagem sobre interesses, possivelmente estimulados pelo vídeo, para um aprofundamento de estudos em função de afinidades manifestas.

“Eu gostaria de entender melhor as órbitas dos outros planetas, entender se alguma coisa interessante acontece, como desvios de órbitas (E1).”

“Gostaria de saber mais sobre a primeira viagem espacial à Lua (E2).”

“Sim, a apresentação dos epiciclos e deferentes para explicar a órbita de planetas é muito interessante. O fato de qualquer curva conseguir ser expressa por um modelo de infinitos epiciclos deve render boas horas de estudo (E6).”

“Me aprofundar mais na história da física. Até pedi uns livros a respeito de Natal (E8).”

“Gostaria de saber mais sobre os outros trabalhos de Newton, como a alquimia, e em que contexto eles surgiram (E9).”

“Eu fiquei bastante curioso em saber como eram feitos alguns dos cálculos na época de pessoas como Galileu e Newton, que não conheciam certos valores, como por exemplo a massa da Terra. Nunca tinha parado para pensar que esses números eram desconhecidos e ainda assim alguns resultados foram muito próximos do verdadeiro, então seria interessante ver mais sobre quais foram os métodos usados para suprir a falta de informação (E11).”

E5 indica um interesse por um tema que é brevemente mencionado no vídeo, referente à Kepler e a descoberta de suas leis sobre o movimento planetário.

“Sim! Eu gostaria de saber um pouco mais sobre como foi o processo vivido por Kepler enquanto ele encontrava suas 3 leis. Como ele tratou os dados? Quanto tempo demorou a formulação? Como ele publicou os resultados? (E5)”

Em Q4, solicitou-se aos estudantes a manifestação de eventuais dúvidas decorrentes do vídeo. Apenas E1 e E12 afirmaram não terem dúvidas. E4 indica não ter compreendido claramente o cálculo que resulta em 1/20 de polegada de queda a cada segundo no movimento orbital da lua em torno da Terra.

“Minha única dúvida é como concluir de uma forma mais clara o 1 vigésimo de polegada descrito no vídeo e descoberto pelo Newton, acredito que seja a única explicação que tenha ficado um pouco mais formal do que o restante do vídeo e me causou uma dúvida logo de início quando assisti pela primeira vez (E4).”

Nesse trecho do vídeo é empregada a linguagem matemática para mostrar como a referida quantidade é deduzida a partir da teoria de gravitação de Newton, sendo então comparada com o valor obtido através de dados conhecidos sobre o movimento lunar. Trata-se de um trecho que requer uma leitura atenta devido aos detalhes dos cálculos envolvidos, mas que pode ser revista diversas pausando o vídeo quando necessário.

“Minhas dúvidas seriam sobre o desenvolvimento da engenharia que levou o homem à Lua (E2).”

“Como chegar na Constante de Gravitação Universal, como determinar a trajetória elíptica dos planetas ao redor do Sol e as variações de velocidade na trajetória (E7).”

“Houve alguma tentativa de teste experimental para a teoria da gravitação na época de Newton para provar ou refutar a teoria (E10).”

“Quem espalhou tal afirmação sobre Newton e a Maçã? E com que propósito isso começou a ser espalhado e informado em todo canto? (E13).”

O levantamento das dúvidas e as sondagens sobre o que os estudantes gostariam de aprofundar ou conhecer mais a respeito podem se constituir em subsídios para o desenvolvimento de uma aprendizagem significativa, experiencial, nos termos definidos por Rogers [21[21] C.R. Rogers. Liberdade para aprender (Interlivros, Belo Horizonte, 1973), 2 ed.]: com a qualidade de um envolvimento pessoal do aluno, autoiniciada, penetrante e cuja essência é significar a partir da experiência vivida. Através da explicitação dos interesses dos estudantes por determinados temas, pesquisas e outras atividades mediadoras podem ser concebidas em conjunto por professores e alunos. Além disso, permitir aos estudantes expressarem-se acerca de suas dúvidas e interesses contribui para tornar o discurso pedagógico menos autoritário, estimulando a participação deles nos processos de ensino e aprendizagem de modo ativo e consciente.

Q5 pergunta se os estudantes consideram que o vídeo auxiliou na compreensão da física abordada. A resposta unânime foi afirmativa, sendo que a principal contribuição indicada se refere ao cálculo da queda de 1/20 de polegada por segundo verificada no movimento orbital da lua. Para todos os estudantes essa previsão da teoria newtoniana e sua concordância com os cálculos cinemáticos a partir de dados conhecidos para o movimento lunar foi algo novo, que eles não conheciam.

“Sim, ajudou. Mesmo já tendo estudado esses conteúdos, não tinha pensado nos objetos em órbita da forma que foi mostrada no vídeo, como objetos que estão em queda livre (E1).”

“Sim. Além dos elementos históricos tornarem a explicação mais atrativa, a animação do vídeo e os exemplos demonstrados facilitam a compreensão do fenômeno (E2).”

“Sim! Apesar de ser uma demonstração simples, eu nunca havia visto a dedução do quanto a Lua de fato cai (E5).”

“Com certeza. Eu não conhecia o cálculo de 1/20 de polegadas usado por Newton para dar respaldo à sua teoria (E6).”

“[…] o vídeo trouxe explicações para um tópico que eu ainda não havia tido contato aprofundado, a demonstração de como se dá a queda livre da Lua em relação à Terra (E10).”

Na perspectiva da AD, os recursos didáticos e seus modos de utilização podem ser considerados como condições de produção de sentidos, elementos desencadeadores de um processo interpretativo, promovendo atos de leitura que não se restringem à mera decodificação. Diferentes condições de produção possibilitam variadas constituições de sentidos que atuam em interação com a memória discursiva dos sujeitos envolvidos. O vídeo trabalhado na disciplina funciona como uma condição de produção de sentidos, um material cujo conteúdo foi interpretado pelos estudantes com a mediação do professor através das questões propostas. Mesmo diante de um objeto simbólico como, por exemplo, uma equação, somos instados a interpretar buscando uma compreensão acerca do que este objeto significa e, nesse processo, sentidos se constituem de modo distinto aos sujeitos envolvidos. Como professores, podemos reconhecer essa opacidade discursiva, a não transparência da linguagem, ao evidenciar que nossas palavras significam de maneira não unívoca a nossos estudantes, produzindo tanto sentidos que se aproximam satisfatoriamente em termos conceituais da formação discursiva relativa à ciência a ser ensinada e aprendida nas escolas, como sentidos equivocados.

Os enunciados elaborados a partir dessas primeiras questões evidenciam certas possibilidades e limitações do emprego do vídeo como recurso didático. Para esse grupo de estudantes, as animações gráficas no tratamento da linguagem matemática, a abordagem de determinados aspectos históricos e uma tentativa de contextualização da teoria da gravitação de Newton relacionando-a com a exploração espacial, foram indicadores de positivas contribuições. As dúvidas apontadas e os interesses de aprofundamento em determinados tópicos ilustram o fato de que o vídeo, assim como qualquer outro recurso didático, não esgota as possibilidades de aprendizagem nem prescindem da necessidade de atuação docente.

No vídeo há diversos elementos como a narrativa do apresentador, as imagens cenográficas, os personagens caracterizados, as animações gráficas e trechos inseridos de outros documentários que atuam como efeitos de sentidos. Sua discursividade é distinta, por exemplo, de um texto escrito, o que coloca um desafio metodológico para a AD que consiste na elaboração de dispositivos analíticos para tratar tal variedade de recursos de linguagem. Todavia, não é nosso objetivo aprofundar-nos neste aspecto, bastando para nossos objetivos no presente trabalho as concepções teórico-metodológicas da AD de que dispusemos.

4.2. Aspectos históricos e epistemológicos

Há uma condição de produção a ser destacada na análise do que consideramos por domínio histórico e epistemológico. Todos os estudantes já haviam cursado duas disciplinas obrigatórias cujas temáticas dialogam em certa medida com esse domínio. Uma delas é denominada “Bases Epistemológicas da Ciência Moderna”. Trata-se de uma disciplina que estuda, de modo introdutório, aspectos de epistemologia e história da ciência, através de textos selecionados de autores como Thomas Khun, Karl Popper, Ludwik Fleck e Paolo Rossi, dentre outros. A outra disciplina é “Ciência, Tecnologia e Sociedade”, que introduz o estudo de relações entre a produção científica e o desenvolvimento tecnológico em perspectiva com questões sociais, sugerindo a leitura de autores como Pierre Bourdieu e Bruno Latour. As leituras realizadas em tais disciplinas fazem parte da memória discursiva dos estudantes e atuam como produtoras de sentido, assim como outras eventuais concepções sobre essas temáticas desenvolvidas a partir de experiências anteriores que tenham vivenciado mesmo fora do meio acadêmico.

Ao abordar elementos da produção do conhecimento físico e da história da física, o vídeo atua como um novo componente do interdiscurso, passando a constituir o imaginário desses estudantes sobre o funcionamento da ciência. No limitado intervalo de duração de aproximadamente 27 minutos, o vídeo destaca explicitamente: alguns episódios da vida de Newton, como o refúgio na propriedade rural da família durante o período mais grave da peste; a influência dos trabalhos de Galileu e Kepler na obra newtoniana; os embates com Hooke e Leibniz em relação à teoria da gravitação e ao desenvolvimento do cálculo; as incursões de Newton por outras áreas como a alquimia; e certas implicações da teoria da gravitação para o avanço do conhecimento científico e tecnológico.

A questão Q6 solicita aos estudantes que escrevam acerca de elementos que consideram importantes para promover a evolução do conhecimento científico. Pelas respostas elaboradas podemos obter indícios das imagens que possuem acerca do funcionamento da ciência.

E12 enfatiza o papel de “mentes notáveis” como desencadeadoras de um processo criativo ou de síntese.

“Acredito que, mesmo que em menor número, haja avanços graças a mentes notáveis. São eles que conseguem perceber algo que ninguém viu ainda, mas isso normalmente funciona apenas como um ponto de partida. Após perceber a partida, é preciso recorrer ao que já existe e as contribuições já feitas para seguir adiante. Exemplos disso incluem Newton, que teve sua ideia e depois foi procurar trabalhos anteriores, como os de Galileu, e também como aconteceu com Maxwell, que visualizou a unificação do eletromagnetismo, porém esteve fortemente baseado por inúmeros experimentos de cientistas como Faraday e Ampère. Tudo isso exige alguns elementos como formas e veículos de comunicação, publicação e discussão, garantidos com liberdade de opinião (E12).”

E4 menciona a incompletude do conhecimento científico quando surgem problemas que as teorias vigentes não explicam e cita também os “grandes gênios”.

“A evolução do conhecimento científico passa por encontrar pontos que a teoria atual não responda completamente. Outro ponto a se destacar é o compartilhamento de conhecimento para a evolução do conhecimento científico, vemos em toda a história que mesmo os grandes gênios se apoiaram em outros grandes nomes da ciência para os avanços que tiveram e muita das vezes estes nomes eram contemporâneos, portanto acredito que o compartilhamento de novas descobertas ou avanços de conhecimento se torna fundamental para os próximos passos que a ciência irá dar (E4).”

As colocações de E12 e E4 evidenciam uma concepção que parece calcada na figura de cientistas destacados como gênios, concepção ainda frequentemente veiculada por diversos meios e presente no imaginário social sobre a ciência. A presença desse elemento discursivo pode ser considerado um exemplo da persistência de noções primeiras, de senso comum, mesmo quando os sujeitos passam por situações formais de educação científica.

E2 destaca a “necessidade” como fator que pode estar ligado a interesses sociais ou econômicos e coloca a “curiosidade” por compreender a natureza e desenvolver tecnologias que “facilitem” a vida das pessoas como determinantes no processo de evolução do conhecimento científico.

“A evolução científica se dá pela necessidade, pela experiência, pela curiosidade, pela criatividade e pelo desafio de desbravar a natureza em busca do seu entendimento e de novas tecnologias que facilitem a vida da humanidade (E2).”

E7 remete à noção de método científico ao falar em “passos” a serem seguidos, até como forma de legitimar o conhecimento elaborado. Aparentemente, não discerne abordagens empiristas-indutivistas de hipotético-dedutivas.

“Faz-se necessário seguir alguns passos. Eles são essenciais para facilitar e credibilizar o raciocínio. São eles: observação de um fato (ou fenômeno), problematização (questionamentos), formulação de hipóteses, experimentação, elaboração de leis e teorias. Esse processo pode ser observado no vídeo através do esforço de Newton em comprovar a queda dos corpos. Além disso, é imprescindível para um cientista conhecer os estudos de outros, suas motivações, materiais disponíveis e analisar os processos utilizados para assim descartar, reformular ou contribuir aos estudos (E7).”

Na resposta de E3 evidencia-se um exemplo do que a AD considera uma repetição histórica. Ao citar Feyerabend, Bachelard e Lakatos, E3 remete-se à sua memória discursiva produzindo uma síntese que transcende o conteúdo do vídeo. Ele inscreve seu dizer em uma formação discursiva constituída no campo epistemológico e representada pela visão de ciência dos autores que menciona. É nítida a influência de condições de produção para além das imediatas, como possivelmente a proporcionada pela disciplina anterior de Bases Epistemológicas.

“Há muitas formas de se conceber o avanço do conhecimento científico, e não há consenso de como isso acontece. No entanto, é razoável admitir que a evolução da ciência não é totalmente racional, e o que a história nos mostra é que a aceitação de uma teoria depende de condições que transcendem seu valor intrínseco, como as concepções filosóficas e preferências pessoais dos cientistas, contexto social, cultural e político, e até mesmo a capacidade dos adeptos de convencer outraspessoas, como destaca Paul Feyerabend em sua obra, e admitem outros. No entanto, modelos de evolução da ciência que aceitam uma certa dose de subjetividade sem negar o valor intrínseco da ciência e fornecem explicações interessantes para o seu desenvolvimento são o racionalismo aplicado de Gaston Bachelard, para o qual a evolução da ciência se dá na desilusão e na retificação de erros a partir da criação de uma razão que nega a anterior em um processo de ruptura; e os programas de pesquisa de Imre Lakatos, para quem o corpo teórico que sucede na ciência é aquele em que a reflexão acerca de novos dados empíricos fornece novas perspectivas de investigação e não “becos sem saída”. Como diria Bachelard, a ciência evolui quando “damos à razão razões para evoluir” (E3).”

Considerando possíveis relações entre a perspectiva teórica da AD que adotamos e a educação escolar, de acordo com Orlandi [22[22] E.P. Orlandi, Rua 4, 9 (1998).]:

“[…] na repetição histórica teríamos um aluno com um real trabalho da memória. Ele inscreveria o dizer em seu saber discursivo o que lhe permitiria não só repetir, mas, ao fazê-lo, produzir deslizamentos, efeitos de deriva no que diz. Por isso haveria aí sempre a possibilidade de serem produzidos outros dizeres a partir daqueles. Esse seria o ideal de aprendizagem: levar o aluno a passar da repetição empírica à histórica, com passagem obrigatória pela formal, já que para que haja sentido é preciso que a língua se inscreva na história (Orlandi, 1998, p.14).”

E6 destaca o empreendimento coletivo da pesquisa cientifica atual, a necessidade de recursos financeiros de grande monta e uma rede de comunicação global que compartilha informações rapidamente, características de um modo de fazer ciência no mundo atual.

“Há um número muito maior de cientistas hoje, bem como instituições de pesquisa. A comunicação também sofreu transformações que mudaram o mundo. Hoje, é muito difícil alguém ter um destaque como ocorreu com Newton, Galileu, Einstein ou qualquer outro grande nome. Isso porque os problemas da ciência já não podem ser atacados individualmente. São sempre grupos de pessoas, parcerias entre pesquisadores de diferentes partes do mundo ou algo do tipo que conseguem realizar avanços. Os cientistas leem artigos da área que são escritos por pessoas do mundo todo e tentam incorporar as descobertas no próprio trabalho. A partir desse constante diálogo surge a ciência. Outro ponto que ressalta a grandiosidade que a ciência tomou são os experimentos. Newton, no problema estudado, usou dados conhecidos desde a antiguidade. Em seus estudos de ótica, usou luz do sol, prisma e câmara escura. Galileu fazia experimentos mentais. Mas atualmente, quais dados os cientistas usam para fazer ciência? São dados que são obtidos com muito custo, como mandar sondas espaciais a algum canto do sistema solar, fazer colisões de partículas num colisor que se estende por quilômetros. Que tipo de pessoa individualmente poderia fazer esse tipo de experimento? Ninguém (E6).”

Nas respostas à questão Q6, em geral os estudantes manifestaram tanto aspectos do que assistiram no vídeo como elementos presentes em suas memórias discursivas, originários de condições de produção em outros contextos. Enquanto professores de física, mesmo em disciplinas que não abordem explicitamente aspectos epistemológicos, sempre veiculamos certas imagens sobre a construção do conhecimento científico, seja apresentando-o como um acúmulo de conceitos desenvolvidos de forma aparentemente linear, idealizados por cientistas geniais, sem conflitos internos, quer seja discutindo o caráter social da ciência e suas relações com outras esferas de atuação humana como a política, a economia e a ética. Ainda que de modo inconsciente, segundo a AD, tais imagens são constitutivas do modo como compreendemos a ciência e, ao serem compartilhadas, contribuem para a constituição de uma formação ideológica, um imaginário social sobre o que é a ciência e como ela funciona.

Considerando, conforme Bachelard [23[23] G. Bachelard, A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento (Contraponto, Rio de Janeiro, 1996.)], que os complexos processos de construção do conhecimento científico nas diferentes áreas não podem ser entendidos desconectados de suas histórias, foi solicitado aos estudantes na questão Q7 que refletissem sobre possíveis contribuições da inserção de elementos de história da física para o ensino e a aprendizagem nas aulas de física. As discussões a respeito dessa temática remontam a meados do século XX [4[4] M. Matthews, Caderno Catarinense de Ensino de Física 12, 164 (1995).] e, ainda que possa ser relativamente consensual como resultado de pesquisas em educação científica que essa inserção se faz necessária, persistem desafios tanto de ordem teórica quanto prática para sua consecução.

Do ponto de vista teórico, de acordo com Videira [24[24] A.A.P. Videira, Escritos: Revista do Centro de Pesquisa da Casa de Rui Barbosa 1, 111, 2007.] há pelo menos duas vertentes historiográficas consolidadas que se delimitam por características, à princípio, bem definidas e distintas. Uma delas é denominada historiografia cientificista ou tradicional, e a outra é a baseada em uma perspectiva associada a historiadores e sociólogos sobre o empreendimento científico da qual deriva, por exemplo, a chamada história cultural das ciências. Uma compreensão dessas diferentes perspectivas parece necessária para se desenvolver um trabalho didático consistente envolvendo a história da ciência (HC) e aí residem desafios de ordem prática ou pedagógica. Os professores de ciências estariam devidamente informados a fim de reconhecerem as possíveis abordagens para a HC? Há clareza sobre as potencialidades e limitações para tratar da HC em situações escolares? Há narrativas historiográficas produzidas para serem utilizadas no ensino de ciências e que poderiam subsidiar os professores? Por vezes, o discurso acadêmico sobre a inserção da HC no ensino contrapondo as perspectivas teóricas diferentes inibe a ação do professor. Reconhecendo um caráter autoritário no discurso dos especialistas, o professor pode sentir-se receoso de cometer equívocos ao tentar trazer a HC para suas aulas, uma vez que inevitavelmente terá de fazer seleções e adaptações de materiais e estratégias didáticas em função de sua realidade escolar.

Ao responderem Q7, os estudantes foram unânimes em afirmar que introduzir elementos de HC em aulas de física as tornariam mais interessantes e auxiliariam no aprendizado. As justificativas foram variadas. E1 destaca o caráter coletivo do empreendimento científico.

“Sim, a história da física contextualiza o desenvolvimento de uma teoria. Como vimos no vídeo, antes de Newton desenvolver a teoria da gravitação universal, Copérnico, Galileu, Kepler e outros cientistas contribuíram para o entendimento de universo de Newton, e só assim ele foi capaz de desenvolver a sua teoria. É importante que os alunos e alunas entendam que a ciência é feita por muitas pessoas e que tudo o que o está sendo aprendido nas aulas de física levou muito tempo para ser desenvolvido (E1).”

Ao mencionar que, através da HC, seria possível “entender qual era a visão de mundo e as perspectivas da ciência na época”, E2 apresenta um elemento importante para o estudo da história que consiste em evitar uma abordagem presentista, que acarretaria juízos de valor anacrônicos [24[24] A.A.P. Videira, Escritos: Revista do Centro de Pesquisa da Casa de Rui Barbosa 1, 111, 2007.].

“Com a contextualização histórica é possível entender quais elementos e quais necessidades motivaram o desenvolvimento das teorias físicas. Além disso, é possível visualizar os recursos físicos e teóricos que estavam disponíveis, e entender qual era a “visão de mundo” e as perspectivas da ciência na época (E2).”

E4 destaca uma possível desmistificação de certos discursos disseminados sobre a ciência, como o que a considera fruto exclusivo de insights de cientistas geniais.

“[…] em muitos casos a física passa a falsa impressão que as teorias surgiram do dia para a noite de uma forma espontânea e clara na cabeça de um gênio que nunca tinha visto isto antes na vida, sendo que quando passamos por aspectos históricos, compreendemos melhor todo processo evolutivo que as pessoas tiveram até aquela conclusão estar posta, conseguimos visualizar que o trabalho não foi de um único cientista e que toda a discussão anterior é de extrema relevância. Com isso eu acredito que inserir estes aspectos nas aulas de ciências fará com que diversos estudantes se interessem mais pelo conhecimento de ciências (E4).”

Em sua resposta, E5 adverte para o modo como a física é ensinada, por vezes veiculando no discurso escolar sobre a ciência uma imagem de obviedade sobre seus resultados, camuflando a complexidade de seus conceitos e seu longo processo de constituição.

“Mostrar quanto tempo demoramos enquanto espécie para entender alguns conceitos pode tirar dos ombros dos estudantes aquele peso e medo de não conseguirem entender a gravitação de Newton em uma única aula de 45min (demoramos tanto tempo para obter F = GmM/r^2) (E5).”

E7 adverte que a utilização da história pode tornar o ensino de física “desinteressante e maçante”, demonstrando preocupação sobre a forma de trabalhar a HC em sala de aula.

“Deve-se ter cuidado ao utilizar elementos da história para não se tornar maçante e desinteressante. Contudo, acredito ser uma estratégia muito boa, uma vez que conhecer o contexto do cientista, suas motivações e procedimentos adotados pode auxiliar na compreensão e retenção de conteúdo (E7).”

E10 destaca que a inserção da história nas aulas de física promoveria uma forma de interdisciplinaridade que, em sua visão, é “um meio eficaz de aprendizagem” por “criar sentido para o aluno”, possivelmente considerando um diálogo entre as disciplinas científicas e a de História.

“[…] Além disso, a interdisciplinaridade é um meio eficaz de aprendizagem, já que pode abordar um mesmo assunto por aspectos diferentes, conectando as disciplinas e criando sentido para o aluno (E10).”

E11 e E13 justificam que o estudo de elementos da história possibilita relacionar a ciência com outras esferas de atuação humana identificando aplicações possíveis. Nesse aspecto, suas respostas aproximam-se da vertente historiográfica social [24[24] A.A.P. Videira, Escritos: Revista do Centro de Pesquisa da Casa de Rui Barbosa 1, 111, 2007.].

“Esses elementos reforçam que a ciência não é imutável, mas sim o resultado de um processo contínuo e dá abertura para que o professor possa discutir a relação do desenvolvimento da ciência com aspectos sociais, culturais, econômicos e políticos dos períodos abordados (E11).”

“Também ajuda o estudante a perceber que o que está sendo trabalhado não é uma mera fórmula a ser decorada descolada da realidade, mas que sim possui aplicações e pode ser encontrada no mundo físico (E13).”

A ampla discussão teórica relatada por Videira [24[24] A.A.P. Videira, Escritos: Revista do Centro de Pesquisa da Casa de Rui Barbosa 1, 111, 2007.] sobre as distintas perspectivas da HC parece influenciar positivamente certas inciativas de divulgação científica, como documentários que procuram colocar a ciência e sua história ao menos em um panorama contextual, produzindo narrativas que não se restringem a uma visão estritamente internalista da ciência. O vídeo em questão procura abordar certos aspectos sociais relativos à ciência na época de Newton e ao contexto em que ele viveu, enfatizando também conceitos da física e suas representações em linguagem matemática. Pelo fato de o vídeo ter sido produzido por físicos, professores do Caltech, é de se esperar certo rigor e tratamento formal de conceitos. Historiadores e sociólogos da ciência provavelmente enfatizariam outros aspectos se produzissem um material sobre a mesma temática. Isso é um efeito da posição autor que os sujeitos assumem, do lugar de onde falam, conforme a AD.

Do ponto de vista pedagógico, certas pesquisas na interface da HC com a educação científica, como a de Moura e Guerra [25[25] C.B. Moura, A. Guerra, Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências 16, 725 (2016).], produzem materiais como subsídios aos professores para uma prática de HC no ensino que se aproxime de uma abordagem social ou cultural. Todavia, ainda há carência de materiais com esse propósito que efetivamente alcancem os professores na educação básica e sejam referências para suas práticas, problema para o qual os cursos de formação inicial e continuada de professores podem contribuir oferecendo alternativas e discutindo possibilidades.

4.3. Domínio conceitual qualitativo

Q8 convida os estudantes a refletirem sobre como explicar qualitativamente, para alguém que não conhece muito bem física, que a lua em órbita em torno da Terra está em queda livre. Conforme a AD, trata-se de mobilizar uma mudança na posição do sujeito, no caso, de estudante para professor, colocando-se em uma situação em que é convidado a explicar algo para alguém em tese menos experiente.

Todas as respostas mencionaram explicitamente a explicação que o vídeo oferece para essa questão. Mesmo E6, que propõe um exemplo alternativo mais concreto, ao final de sua resposta faz referência ao conteúdo do vídeo:

“Não tenho nenhuma ideia própria sobre o problema, apenas explicações que são frequentes. Por exemplo, o modelo de uma pedrinha amarrada a uma corda e sendo girada pela mão de uma pessoa. A pedrinha seria a lua e a tensão na corda faria o papel da força gravitacional. Sem tensão (ao soltar a corda), a pedra segue uma trajetória retilínea. Então a tensão exerce uma força sobre a pedra com direção ao centro de rotação. O mesmo ocorre com a Lua. Ou seja, o movimento da lua é uma composição de seu movimento retilíneo com a “queda livre” em direção a Terra. Talvez a explicação do vídeo usando uma bola de canhão seja mais intuitiva. Posso adotá-la quando for professor (E6).”

E3 destaca que o argumento apresentado no vídeo para explicar o fenômeno consiste em um “experimento mental”. Tais experimentos de pensamento são abstrações frequentes na elaboração de modelos e teorias na física, que pressupõem certas condições ideias para ocorrência dos fenômenos.

“O “experimento mental” proposto no vídeo é um excelente recurso gráfico para explicar o fenômeno. Gostei da analogia de que o “chão da Terra escapa do objeto” (E3).”

Em uma época em que presenciamos posições de negacionismo em relação a conhecimentos científicos estabelecidos, E4 destaca em letras maiúsculas o fato de a Terra não ser plana.

“Utilizando bastante a explicação do vídeo como base, podemos mostrar que quando soltamos um objeto a uma determinada altura aqui na Terra, ele irá cair em direção ao centro dela com a aceleração da gravidade, mas podemos mostrar também que quando pegamos o mesmo objeto e colocamos a mesma altura mas agora ao invés de soltar, arremessamos ele para frente (horizontalmente), ele demora o mesmo tempo para chegar ao solo do que somente soltarmos, portanto o tempo é independente de arremessarmos para frente ou não. Mas como sabemos, a Terra NÃO é plana e sim tem uma curvatura, portanto se este mesmo objeto for arremessado da mesma altura horizontalmente mas com uma velocidade suficiente para a distância (horizontal) que ele percorrer seja suficiente para notar a curvatura, podemos pensar de forma grosseira que a Terra está se afastando do objeto, pois ele está caindo mas a curvatura está fazendo ele não se aproximar do solo. Se ampliarmos este pensamento, podemos ver que poderá ter objetos que sempre estarão caindo em direção a Terra (Queda livre) mas não chegariam no solo pois estão caindo sempre em relação a curvatura da Terra, portanto estes objetos estarão em órbita (E4).”

E10 inclui em sua resposta um desenho semelhante às ilustrações no vídeo a fim de explicitar o que significa dizer que a lua em órbita cai em direção à Terra.

“Existe uma força atrativa entre a Terra e a Lua, a força gravitacional, que é inversamente proporcional ao quadrado da distância entre os corpos. Corpos próximos à superfície da Terra são “puxados” em direção ao núcleo com uma aceleração g, a aceleração da gravidade. A Lua se encontra a uma distância de aproximadamente 60 vezes o raio da Terra, portanto sua aceleração de queda é bem menor. A Lua possui uma tendência de movimento que é tangencial à sua orbita, ou seja, enquanto sua tendência é seguir um movimento retilíneo para fora da órbita, a força gravitacional que a Terra exerce sobre ela faz com que haja uma distorção em sua trajetória, de forma que ela entra no movimento orbital em torno da Terra. O fato de a Lua estar orbitando a Terra é uma consequência da queda livre que ela sofre de seu movimento tendenciado à retilíneo. Pode-se observar na figura abaixo que a diferença de caminhos (retilíneo e orbital) corresponde à distância que a Lua percorre em sua queda livre em direção à Terra (E10).”

Figura 1
Esquema referente à diferença de caminhos elaborado por E10 em sua resposta à Q8.

Por sua vez, E13 detalha sua explicação colocando determinados valores numéricos mencionados no vídeo.

“Podemos usar o argumento de Newton para explicar a órbita da lua sobre a Terra. Para isso podemos imaginar um projétil sendo arremessado de uma altura bem acima da superfície terrestre e horizontalmente. Podemos imaginar um canhão arremessando uma bala num topo de um monte extremamente alto e bem acima da superfície da Terra, apontando o canhão com a bala (projétil) para a horizontal. É conhecido a partir das descobertas de Galileu que um corpo que cai de uma altura 16 pés acima da superfície da Terra chega ao chão em 1 segundo e também é afirmado por Newton que a distância que a bala de canhão vai percorrer após ser lançada dependerá de sua velocidade, ou seja, se a bala sair do canhão à 20 pés/segundo, ela percorrerá 20 pés na horizontal antes de atingir o chão 1 segundo depois de ser lançada. A grande “sacada” de Newton foi perceber que se a bala de canhão (projétil) fosse disparada com uma velocidade suficientemente grande, ele levaria mais de 1 segundo para atingir o chão, pois a superfície da Terra se curva antes da bala atingir o chão. Newton imaginou que um corpo que se movesse com tanta velocidade, nunca atingiria o chão e ficaria em uma queda livre para sempre, já que o solo sempre se curvaria antes do projétil atingir o chão. Isso quer dizer que o projétil estaria em órbita. Podemos usar essa explicação anterior e fazer um comparativo com a Lua, assim como o projétil disparado numa velocidade suficientemente grande, a Lua também está numa velocidade grande o suficiente para estar em queda livre e nunca atingir a Terra, ficando em órbita (E13).”

As respostas evidenciam um efetivo trabalho de leitura e interpretação do vídeo. Podemos afirmar que o vídeo foi estudado, com a funcionalidade de poder ser revisto quando necessário, e os discursos produzidos para essa questão constituem-se em repetições históricas, conforme entendidas pela AD.

4.4. Domínio conceitual quantitativo

A questão Q9 pede que, com base no vídeo e de modo quantitativo, os estudantes expliquem como a teoria gravitacional de Newton prevê o vigésimo de polegada em um segundo para a queda no movimento da lua. Já na questão Q10, foi solicitado aos estudantes explicarem, também com base no vídeo e de modo quantitativo, como é possível calcular, a partir de características conhecidas sobre o movimento da lua na própria época de Newton, que ela cai um vigésimo de polegada em um segundo.

Q9 visa propiciar aos estudantes aplicarem a teoria de Newton para calcular a referida característica do movimento orbital da lua em torno da Terra, elaborando assim a explicação dinâmica para o fenômeno. Por sua vez, Q10 possibilita uma verificação do cálculo previsto pela teoria, pois utiliza dados cinemáticos sobre o movimento lunar conhecidos na época de Newton. Portanto, há uma relação entre essas duas questões a fim de sondar a produção de sentidos com respeito à previsibilidade e verificação da teoria, além de estimular o trabalho quantitativo com o emprego da linguagem matemática, um aspecto certamente importante na aprendizagem da física, mas não o único a ser valorizado.

O Quadro 2 apresenta uma classificação das diferentes respostas fornecidas pelos estudantes para Q9 e Q10.

Quadro 2
Quantitativo dos tipos de respostas elaboradas pelos estudantes às questões Q9 e Q10.

Dois estudantes entregaram o questionário com as questões Q9 e Q10 em branco. Dois outros estudantes (E4 e E12) forneceram a mesma resposta para ambas as questões, E12 diz ter respondido ambas “de uma só vez”, resolvendo Q9, ao passo que nas palavras de E4:

“Acredito que a demonstração do item anterior compreenda a demonstração de como era possível o cálculo de 1 vigésimo de polegada já na época do Newton com as aproximações que os gregos mantinham (E4).”

Isto revela um sentido equivocado por parte desses estudantes entre o que seria uma previsão teórica e sua verificação.

Como exemplo de um caso em que o estudante não efetua os cálculos, mas procura fornecer uma explicação, temos a resposta de E5 à Q10:

“Sabendo a distância da Terra à Lua e o seu período de revolução (1mês) podemos obter a velocidade com que a Lua orbita a Terra (v=2*pi*r/1mês). Conforme dito na questão anterior, se “desligássemos” a força resultante que atua sobre a Lua, ela passaria a descrever uma trajetória retilínea tangente a orbita. De posse da velocidade com que a Lua orbita a Terra, podemos inferir a distância percorrida por ela em 1s nesta trajetória retilínea (d). Sabendo d, a distância entre a Terra e a Lua, podemos obter através do teorema de Pitágoras o quanto a trajetória retilínea da Lua se desviou em 1s da sua orbita, ou seja, o quanto a Lua teria caído em um segundo se ela ainda estivesse orbitando a Terra (s = d^2/2*r) (E5).”

As explicações dadas pelos estudantes cujas respostas se enquadram nessa categoria variam em seus detalhamentos, mas indicam que eles parecem compreender como o cálculo seria feito, o que sugere um trabalho de leitura nesse trecho do vídeo.

Como exemplo de uma situação em que as respostas dadas estão completas, apresentando cálculos e justificativas, temos o caso de E1 transcrevendo suas respostas à Q9 e Q10, respectivamente:

“Segundo a teoria de Newton, a aceleração da Lua em direção a Terra, a_L, é igual a a_L=(G*M_T)/(d_LT)2, onde M_T é a massa da Terra e d_LT é a distância entre a Lua e a Terra. De forma análoga, a aceleração de uma maçã em direção a Terra, a_M, é igual e a_M=(G*M_T)/(d_MT)2, onde M_T é a massa da Terra e d_MT é a distância entre a Maçã e o centro de massa da Terra, que pode ser aproximado para o raio da Terra. Assim, a_L=(G*M_T)/(d_LT)2 dividido por a_M=(G*M_T)/(d_MT)2 nos fornece (a_L/a_M)=(d_MT/d_LT)2 Segundo matemáticos gregos, anteriores a Newton, a distância entre a Terra e a Lua é 60 vezes o raio da Terra, d_LT=60*d_MT, assim (a_L/a_M)=(1/60)2 Com esse resultado, Newton concluiu que a Lua cai 602 vezes mais devagar que a Maçã. Como a maçã cai 16 pés por segundo, a Lua deve cair 16/602 pés por segundo, o que é igual a 1/20 polegadas por segundo (E1, resposta à Q9).”

“A Lua demora aproximadamente 27,3 dias para dar a volta na Terra, a distância que a Lua percorre é igual a 2(pi)R, onde r_m é a distância da Lua até a Terra e r_m = 1,5*1010 polegadas. Assim, Velocidade da Lua, V, é igual a V=[2(pi)R]/27,3, o que nos dá V=39957 polegadas/s. A imagem abaixo nos mostra a trajetória da Lua ao redor da Terra. Se a trajetória da Lua fosse uma linha reta ela percorreria a distância d, como a trajetória é uma circunferência vemos que a diferença entre essas essas duas trajetórias é a distância S_m, que pode ser pensada como a queda da Lua em direção a Terra, devemos então calcular o valor de S_m. r_m será chamado de r, S_m será chamado de S e d é a distância que a Lua percorre em um segundo em linha reta, d=39957. (r+S)2=r2+d2r2+2rS+S2=r2+d2 2rS+S2=d2 S é muito pequeno, assim S20, 2rS=d2 S=d2/(2r) S=[(39957)2]/(2*1,5*1010) S=0,05 polegadas=1/20 polegadas (E1, resposta a Q10).”

Figura 2
Esquema da trajetória da lua ao redor da Terra apresentado na resposta de E1 a Q10.

Do ponto de vista discursivo, um indicador de aprendizagem pode ser a capacidade dos estudantes expressarem-se conforme uma desejável formação discursiva reconhecida e compartilhada em determinada área. No caso do discurso escolar sobre a física, a inserção e apropriação em tal formação discursiva pressupõe uma compreensão qualitativa de conceitos que se processa com o auxílio dos gêneros diversos que a compõe (manuais didáticos, livros, a fala dos professores, etc.) e a capacidade de expressá-los em linguagem matemática na resolução de exercícios e problemas. Considerando a análise da produção, evidenciamos a ocorrência desse processo utilizando uma abordagem distinta em relação às aulas expositivas tradicionais, empregando o vídeo como um recurso de apoio e as questões mediadoras como desencadeadoras de sentidos em um processo interpretativo.

Com relação aos problemas Q11 e Q12 adaptados de livros didáticos, que se configuram como questões de caráter fechado em comparação com as demais que compuseram a atividade, verificamos que 1 estudante não fez o problema Q11 e 3 estudantes não fizeram Q12. Todos os demais apresentaram as resoluções completas e corretas dos dois problemas. As Figuras 3 e 4 ilustram exemplos de respostas fornecidas a Q11 e Q12 por dois estudantes.

Figura 3
Exemplo de resposta ao problema Q11 elaborada por E4.
Figura 4
Exemplo de resposta ao problema Q12 elaborada por E5.

Da mesma forma como ocorre com listas de exercícios utilizadas para fixação da aprendizagem em uma perspectiva educacional tecnicista, não temos garantia se os estudantes recorreram a consultas em determinadas fontes para resolverem os problemas, ou se trocaram informações entre si. Além disso, apesar da temática da gravitação universal não fazer parte do conteúdo programático de nenhuma outra disciplina obrigatória do curso anterior à que estamos considerando, também não sabemos quanta familiaridade os estudantes possuíam com o tema. Em uma situação de ensino presencial normal, a interação com os estudantes seria facilitada e poderíamos ter sondado esses aspectos. Todavia, consideramos ter obtido indícios de que a abordagem da gravitação universal de modo distinto em relação a uma aula estritamente expositiva parece não comprometer o envolvimento e a capacidade dos estudantes na resolução de problemas e exercícios quantitativos.

Ainda que investigações sobre essa questão devam ser aprofundadas em futuros trabalhos, consideramos que a atribuição de sentidos por diversas condições de produção, diversificando-se abordagens e recursos didáticos, promove maior engajamento dos estudantes nas atividades escolares, inclusive para dedicarem-se mais ativamente e com outras motivações para resolverem os tradicionais exercícios de listas e livros didáticos de física.

5. Considerações Finais

O presente trabalho consiste em uma investigação sobre possíveis interfaces entre história e epistemologia da ciência e a educação científica a partir de uma perspectiva discursiva, envolvendo estudantes de um curso de licenciatura em física. De natureza empírica e qualitativa, a pesquisa contribui com reflexões acerca de como articular a tradicional abordagem conceitual qualitativa e quantitativa no ensino de física com um tratamento de aspectos históricos e epistemológicos. Utilizando um vídeo da série Universo Mecânico e questões dissertativas de caráter predominantemente aberto como condições imediatas de produção, realizamos uma análise dos sentidos atribuídos pelos estudantes acerca de elementos relacionados à temática da gravitação universal newtoniana.

O referencial teórico e metodológico da AD na vertente que adotamos fundamentou a proposição e realização das atividades com o uso do vídeo e das questões mediadoras, constituindo-se em uma abordagem diversa em relação às aulas tradicionais expositivas. Evidenciamos que tal proposta didática se configurou como uma alternativa interessante, fornecendo condições de produção de sentidos que indicam um efetivo trabalho de interpretação por parte dos estudantes. Obtivemos indícios da ocorrência de aprendizagens significativas pela manifestação de repetições históricas, coerentes com uma formação discursiva relativa ao ensino do ramo da física tratado. Tratou-se de um processo em que os alunos participaram ativamente, consistindo em uma experiência que se integrou à constituição de suas memórias discursivas.

Verificamos que o tratamento de aspectos epistemológicos e da história da ciência é considerado interessante para esses estudantes, sendo uma dimensão importante do aprendizado em ciências. Em suas produções, eles questionaram o mito da queda da maçã, ressaltaram certas condições na época de Newton, a construção do conhecimento como um processo histórico com contribuições de diversos personagens em diferentes épocas e a competitividade no meio científico.

O material audiovisual empregado procura abordar de modo articulado aspectos históricos e conceituais, utilizando recursos gráficos e imagens que o tornaram atrativo. Tais características foram destacadas nas produções dos estudantes, evidenciando o potencial uso do vídeo como recurso didático.

Foi possível trabalhar aspectos conceituais tanto de modo qualitativo como quantitativo. Há indícios de que os estudantes conseguem resolver problemas quantitativos e exercícios típicos de livros didáticos e exames sem serem submetidos a uma aula expositiva tradicional, a partir de mediações sugeridas pelo professor com recursos alternativos como foi o vídeo em nosso caso.

O cenário pandêmico impôs a restrição de realizar todo o período letivo em modo remoto. Apesar de ser a única alternativa diante da gravidade das condições sanitárias na ocasião, a ausência de encontros presenciais acarreta prejuízos inequívocos no que se refere às interações entre os estudantes e destes com o professor e, portanto, aos processos de ensino e aprendizagem. As produções de sentidos poderiam ser melhor elaboradas em condições presenciais, com o professor mediando as dúvidas e colocações dos estudantes diretamente, atuando com aqueles que revelaram dificuldades na realização das atividades e sentidos equivocados do ponto de vista científico.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    02 Maio 2022
  • Aceito
    18 Jun 2022
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