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Entre considerações físicas e geométricas: um estudo sobre as hipóteses astronômicas na primeira parte da obra Astronomia Nova de Johannes Kepler

Between physical and geometric considerations: a study about the astronomical hypotheses in the first part of the work Astronomia Nova by Johannes Kepler

Resumos

Este artigo tem por objetivo apresentar um estudo sobre alguns aspectos geométricos e físicos na primeira parte da obra Astronomia Nova de 1609, tendo em vista fornecer subsídios aos professores que queiram abordar a história da astronomia em suas disciplinas de nível básico ou superior. Tendo este foco, veremos como Kepler entendia algumas equivalências entre os sistemas de mundo em discussão em sua época e apresentaremos um estudo de um dos experimentos que Kepler propõe e analisa geometricamente. Neste, percebemos um pequeno erro de cálculo que não foi explorado na literatura pesquisada e, mais que isso, nos permitiu entendermos sobre o uso das construções geométricas em sua época e a ideia de equivalência que Kepler tem em mente.

Palavras-chave:
Kepler; história da ciência; história da astronomia; sistemas de mundo


This article aims to present a study of some geometrical and physical aspects in the first part of the work Astronomia Nova of 1609, in order to provide subsidies to teachers who want to address the history of astronomy in their basic or higher education subjects. With this focus, we will see how Kepler understood some equivalences between the world systems under discussion in his time and present a study of one of the experiments that Kepler proposed and analyzed geometrically. In this, we noticed a small miscalculation that was not explored in the researched literature, and more than that, it allowed us to understand about the use of geometric constructions in his time and the idea of equivalence that Kepler has in mind.

Keywords:
Kepler; history of science; history of astronomy; world systems


1. Introdução

De modo técnico e rigoroso no sentido geométrico e inovador na astronomia, Johannes Kepler (1571–1630) apresenta muitas considerações importantes sobre as hipóteses em uma de suas maiores obras: Astronomia Nova ou no seu título completo: “Astronomia Nova ‘explicando as causas’ ou física celeste apresentada por intermédio de comentários sobre os movimentos da estrela Marte segundo as observações do homem de ilustre família, Tycho Brahe” [1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992).]. Esse escrito faz parte de um percurso de substituição da astronomia matemática por uma “física celestial” e para tal missão seu autor descreve uma “guerra”, como se referia às suas investigações sobre Marte, narrando o caminho percorrido e encadeando argumentos que reformarão a astronomia. Tal forma de narrar é feita ao estilo dos grandes navegadores, nas palavras de Kepler:

Assim, ao falar de Cristóvão Colombo, de Magalhães, e dos portugueses, não simplesmente ignoramos os erros pelos quais o primeiro abriu a América, o segundo, o Mar da China, e o último, a costa da África; ao contrário, não desejaríamos que fossem omitidos, o que de fato seria privar-nos de um enorme prazer de leitura. Da mesma forma, eu não gostaria que me atribuíssem a culpa de, com a mesma preocupação com o leitor, ter seguido este mesmo curso no presente trabalho [1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., p. 78–79].

No entanto, devemos ter cautela, pois essa forma de exposição não é exatamente a história de investigação. Kepler buscou combinar, em sua exposição, a matéria didática e teórica do seu livro escolhendo alguns “atalhos”. Para ficar mais claro, vejamos que consultamos o original de Astronomia Nova em latim e uma tradução para o inglês elaborada pelo professor e pesquisador William H. Donahue [[2[2] J. Kepler, Astronomia Nova (C.H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung, München, 1937).], [1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992).]].1 1 Na série de escritos de Kepler (G.W.), Astronomia Nova se encontra no volume III [2]. Além de ser tradutor, Donahue realizou vários estudos sobre Kepler, sendo que um deles foi refazer alguns cálculos de Astronomia Nova. Em tal estudo, mostrou que Kepler usou previamente a elipse e a lei das áreas em sua exposição de distâncias e longitudes. Isso é uma evidência de que não obteve os resultados diretamente a partir das observações e revela a adoção de um “atalho” no momento de expor sua teoria, ao invés de ser rigorosamente fiel aos caminhos que seguiu. Nessa perspectiva, Donahue, conclui sua investigação escrevendo que Kepler notou que não seria viável fazer com que observações gerem teoria.

Esses aspectos, embora possam ser usados como uma crítica, têm o potencial de ser uma oportunidade para compreender o que Kepler pensava estar fazendo [3[3] W.H. Donahue, Journal for the History of Astronomy 19, 217 (1988).]. A proposta de Kepler de forma geral é se mover de forma dialética para o acesso à verdade, entre o princípio a priori e o a posteriori [4[4] R. Martens, Kepler’s Philosophy and the New Astronomy (Princeton University Press, Princeton, 2000).]. Kepler está igualmente familiarizado com as linhas de pensamento dedutivas e indutivas, ainda que sentisse que deveria aplicar o princípio a priori ele fez valer do método indutivo para com habilidade descobrir as duas primeiras leis ([5[5] M. Caspar, Kepler (Dover Publications, New York, 1993).]). Existem alguns relatos do próprio Kepler em que ele apresenta que não começa imaginando uma hipótese qualquer e depois usa as observações. Um exemplo dessa ideia está em sua carta para Fabricius (4 de julho de 1603):

Você acredita que começo por imaginar alguma hipótese agradável e agrada-me a mim próprio embelezá-la, examinando-a apenas mais tarde através de observações. Nisto está muito enganado. A verdade é que depois de ter construído uma hipótese no terreno das observações e de lhe ter dado as bases adequadas, sinto um desejo peculiar de investigar se poderia descobrir alguma combinação natural e agradável entre as duas. Mas nunca chego a um juízo final de antemão. Há um ano e meio atrás, fiquei com algumas fantasias sobre cortar a excentricidade ao meio, mas abandonei estas especulações porque consegui sempre o número 2300 em vez de 1800. O erro teve a sua origem nas observações que não foram corretamente reduzidas à eclíptica; mas só reparei nisso muito mais tarde. Após a correção do erro, recebi imediatamente o número 1800 e recebi o mesmo resultado em todas as experiências, das quais fiz não menos de seis, referindo-me cada vez, em alguma medida, a seis rotações. Desta forma percebi de fato esta maravilhosa harmonia na qual as observações e o raciocínio estão evidentemente de acordo em física [6[6] C. Baumgardt, Johannes Kepler: Life and Letter (Philosophical Library, New York, 1951)., p. 72–73, tradução nossa].

A importância da obra é inegável. É possível encontrar a menção de Astronomia Nova em muitos trabalhos motivados pela Primeira e Segunda Lei de Kepler, amplamente divulgadas nos livros didáticos. Contudo, Astronomia Nova se mostra mais nítida quando observamos as mudanças e procedimentos que são adotados por Kepler na astronomia de sua época, principalmente no que diz respeito aos seus fundamentos [7[7] C.R. Tossato, Força e harmonia na astronomia física de Johannes Kepler . Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo (2003).]. É neste sentido que tal pesquisa se enquadra: buscaremos entender aspectos do quadro teórico de Kepler nessa nova astronomia que propõe. Como o assunto em questão é de suma importância no que tange às considerações físicas e geométricas, foi de nosso interesse acompanharmos um pouco da geometria usada por Kepler. Tomando esse cuidado, encontramos um pequeno erro de cálculo que explicaremos adiante e que não foi explorado na tradução e nem na bibliografia pesquisada.

Chamamos atenção de que poucos trabalhos sobre Kepler são encontrados no banco de dados da SciELO, por exemplo. Um total de 10, quando se digita “Johannes Kepler”, sendo que dois deles são cartas e um deles apresenta uma tradução de um conhecido texto de Kepler intitulado Somnium. Nenhum artigo tem como foco o estudo astronômico geométrico da obra Astronomia Nova. Na literatura estrangeira também não foi diferente. Em um dos nossos contatos com o professor Donahue, ele citou que a parte I de Astronomia Nova, aqui estudada, é uma das partes mais difíceis da obra. Talvez seja este um dos motivos para que tal parte receba ainda pouca atenção.

Em linhas gerais, vejamos que Kepler é detalhista e, em Astronomia Nova, mistura teorias e caminhos percorridos, remetendo-se de quebra, segundo ele, àqueles professores de ciências físicas que estão “irados” com ele, Copérnico e os da mais remota antiguidade,2 2 Provavelmente Kepler está se referindo a autores como os Pitagóricos e Aristarco. pelo motivo de darem movimento à Terra: “Pois, quando virem que isso é feito com fidelidade, eles terão a livre escolha de ler e compreender as próprias provas com muito esforço, ou de confiar em mim, um matemático profissional, no que diz respeito ao método sólido e geométrico apresentado” [1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., p. 47].

No mais, não é uma surpresa que a tarefa não foi fácil e ele próprio se queixa da complexidade de sua obra e da dificuldade de estabelecer uma narrativa:

Eu próprio, que sou conhecido como matemático, encontro as minhas forças mentais cansadas quando, ao reler o meu próprio trabalho, recordo dos diagramas o sentido das provas, que eu próprio introduzira originalmente da minha própria mente nos diagramas e no texto. Mas depois, quando corrijo a obscuridade do assunto inserindo explicações, parece-me que cometo a falha oposta, de ser prolixo num contexto matemático [1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., p. 45–46]

De início, o que Kepler faz, tendo em vista minimizar as dificuldades do assunto que ele próprio reconhece ser não familiar, é elaborar dois tipos de introduções, além da descritiva (tradicional) que contém o trecho citado. A primeira introdução é um esquema que ele chama “Quadro Sinóptico” e a segunda é um resumo sobre cada capítulo. A nosso ver, Kepler se esforça para tornar suas discussões compreensíveis. Em tal percurso usa a história da astronomia e busca apresentar conceitos básicos da área. São algumas dessas considerações que visamos apresentar na próxima seção com o objetivo de contextualizar as discussões sobre as hipóteses que serão apresentadas na sequência.

2. Considerações astronômicas iniciais

Antes de apresentar as distinções entre primeiro e segundo movimentos, Kepler inicia seu capítulo 1, contextualizando o conhecimento astronômico na história. Argumenta que o testemunho de eras confirmam que os movimentos são orbiculares, visto que o círculo é o mais perfeito das figuras e entre os corpos é o céu, mas aqueles que prestam muita atenção verão que os planetas desviam de um simples caminho circular. Essas visualizações geram nos homens um sentimento de espanto, levando-os a investigarem as causas, isto é, segundo Kepler, a astronomia surge, com o fim de “[…] mostrar por que os movimentos das estrelas parecem ser irregulares na Terra, apesar de serem extremamente bem ordenados no céu, e investigar os círculos em que as estrelas podem ser movidas, assim suas posições e aparências podem ser previstas a qualquer momento” [1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., p. 115]. Aqui podemos chamar a atenção sobre o que Kepler escreve em um texto chamado Defesa de Tycho contra Ursus (Apologia pro Tychone contra Ursum), uma vez que neste ele aponta que o astrônomo deve separar os verdadeiros movimentos daqueles que são enganosos [8[8] J. Kepler, em: The Birth of History and Philosophy of Science: Kepler’s ’a Defence of Tycho Against Ursus’ with Essays on Its Provenance and Significance, editado por N. Jardine (Cambridge University Press, Cambridge, 1984).]. Perceba também que, de início, Kepler está mantendo a tradição do axioma que ficou conhecido como platônico, ou seja, ele ressalta os círculos, sendo que ao longo da obra que ele vai trazer a elipse: é uma história que ele procura narrar.

Um outro comentário aqui é que na Defesa a intenção inicial de Kepler é defender Tycho Brahe (1546–1601) na disputa de um sistema híbrido (geo-heliocêntrico), em que o segundo envolvido era o astrônomo Nicolaus Raymarus Baer (1551–1600) conhecido como Ursus. Em linhas gerais, o modelo geo-heliocêntrico continha a Terra no centro, os quais Sol e Lua giravam ao seu redor. Os planetas Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno giram em torno do Sol. Entre Ursus e Brahe existiam algumas diferenças como o fato de que no sistema de Ursus a Terra girava em t orno do seu eixo (logo, as estrelas fixas estão em repouso) para explicar os dias e noites, enquanto Brahe seguia Aristóteles e deixava a Terra em repouso fixa no centro.

Voltando às explicações de Kepler em Astronomia Nova e tendo a Figura 1 como referência, Kepler comenta sobre o primeiro movimento, ABCD, sendo aquele “[…] de todo o céu e de suas estrelas desde o leste, passando o meridiano para o oeste, e do oeste através da parte mais baixa dos céus para o leste, no período de 24 horas” [1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., p. 115]. Em contrapartida os segundos movimentos são aqueles individuais dos planetas, ocorrendo de oeste para leste, no diagrama de A para E e de F para G, e em períodos mais longos [1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., p. 115].3 3 O que Kepler está apresentando são os movimentos aparentes. No caso do Sol, temos o movimento diurno (em consequência da rotação da terra) e o movimento lento e oposto na curva chamada Eclíptica: “Se diariamente, no transcorrer de um ano, marcarmos sobre um mapa celeste as posições ocupadas pelo Sol no momento de se pôr e unirmos tais pontos obteremos uma curva regular, cuja forma é de um círculo um pouco deformado e consideravelmente descentralizado em relação ao polo celeste, que se encerrará sobre si mesma. Esta é a curva denominada Eclíptica” [9, p. 149–150]. Outro conceito é o dos círculos menores: aqueles que estão mais próximos de um polo do que de outro, na ilustração HLK (mais próximo do polo Q). Já os círculos máximos, são aqueles equidistantes dos dois polos, como ABCE[1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., p. 115].

Figura 1
O primeiro e o segundo Movimento. Fonte: [2[2] J. Kepler, Astronomia Nova (C.H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung, München, 1937)., p. 61].

Ao contemplar o Sol, a Lua e as Estrelas, antes mesmo que as distinções entre os dois tipos de movimento fossem estabelecidas, as pessoas, segundo Kepler, notaram que os caminhos eram visualmente quase círculos, porém, eles eram entrelaçados “[…] como um fio sobre uma bola” [1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., p. 115]. Além disso, os círculos eram, em sua maioria, círculos menores e raramente círculos máximos. Os astros tinham movimentos distintos:

As estrelas fixas são as mais rápidas de todas, uma vez que aquelas que estão em conjunção com qualquer um dos planetas do dia anterior (como H, com A e F) chegam primeiro ao seu local (como H, movendo-se ao longo de LK para I).4 4 Na ilustração a letra “I” aparece como “J” acima de “H”. O sol (sobre ABE) é mais lento, pois no dia seguinte está em E e assim o seu pôr segue aquele das estrelas fixas em I com as quais no dia anterior estava em conjunção em HA.5 5 Perceba que H e I não são coincidentes. Acreditamos que I é a interseção da circunferência que contém E (e é paralela a circunferência que contém H, A e F) e a circunferência que representa a trajetória das estrelas fixas. A figura não parece estar muito consistente com relação a posição da nomenclatura J (I). Ainda mais lenta que o sol, e mais lenta de todas as estrelas, é a Lua, pois depois de se pôr com o sol hoje (a Lua está em F), amanhã ela fica atrasada em um intervalo apreciável (EG) quando o sol se põe (em E, tendo a Lua feito um circuito de todo o céu e da terra ao longo de FMNOG)” [1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., p. 115–116]

Note que as descrições iniciais estão baseadas na astronomia geocêntrica e seus artifícios para reproduzir as aparências, sendo que suas considerações são feitas na geometria esférica. Nessas observações Kepler também faz um comentário sobre os pitagóricos, dizendo que estes quando compartilhavam seus tons musicais com as estrelas, davam o mais baixo à Lua, uma vez que o comportamento de ambas são lentos, isto é, a hypate,6 6 Hypate na mitologia grega era uma das três musas da lira adoradas em Delfos. entre as cordas da lira.7 7 Segundo a nota número 1 do tradutor, em grego a palavra hypate significa mais alto, todavia a convenção grega sobre o ‘alto’ e ‘baixo’ da música é oposto da nossa. Isso nos dá indícios do interesse de Kepler nas relações entre astronomia e a música apresentadas, posteriormente, de forma explícita na sua obra Harmonices Mundi.

Esse primeiro esboço sobre a astronomia, como o próprio Kepler ressalta, consiste na experiência dos “olhos” e não explica as causas. Tais fatos não podem ser explicados “[…] em figuras ou números, nem pode ser extrapolado para o futuro, pois é sempre diferente de si mesmo, na medida em que nenhuma espiral é igual a outra no tempo decorrido, e nenhuma é transferida para a seguinte com uma curvatura de mesma quantidade [tamanho]” [1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., p. 117].

Continuando seus esclarecimentos, para Kepler foi muito “[…] útil para os astrônomos entender que dois movimentos simples, o primeiro e o segundo, o comum e o próprio, são misturados entre si, e que a partir dessa confusão necessariamente segue essa sequência contínua de movimentos conglomerados” [1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., p. 117]. Uma discussão pertinente nessa exposição é o que ocorre se o efeito rotativo diurno é removido. Esse é um ponto que Kepler observa que as estrelas não são mais as mais velozes e a Lua mais lenta, mas sim o oposto, sendo as primeiras, em suas palavras, “[…] claramente muito lentas ou imóveis” [1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., p. 117]. Isso para ele foi muito útil para a astronomia: “[…] todos os movimentos próprios dos planetas, quantos são, e toda a confusão dessa multidão resplandeceu mais obviamente” [1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., p. 118].

Nessa perspectiva, ele observa que eram aparentemente os três planetas superiores que sintonizavam seu movimento com o Sol, isto é, quando eles estão mais próximos vemos um movimento mais veloz que o natural e quando o Sol está em oposição observamos o planeta em análise estacionário e, em seguida, retrocedendo. Sendo assim se alguém unisse todas essas informações e de fato acreditasse que o Sol se move pelo zodíaco em um ano, como é o caso de Ptolomeu e Tycho Brahe:

[…] ele teria que admitir que os circuitos dos três planetas superiores através do espaço etéreo, compostos por vários movimentos, são espirais reais, não (como antes) à maneira de fios enrolados, com espirais lado a lado, mas mais parecidos com a forma de pretzels como no diagrama a seguir [1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., p. 119].

O diagrama ao qual Kepler se refere está sendo reproduzido na Figura 2.

Figura 2
Diagrama Prietzel – Movimento de Marte. Fonte: [2[2] J. Kepler, Astronomia Nova (C.H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung, München, 1937)., p. 64].

Segundo Donahue, esse momento, o qual Kepler apresenta tal estudo, foi dramático na história do pensamento, visto que o movimento epicíclico se tornou o movimento de um corpo que está livre das esferas e o espaço, um meio uniforme. Dessa forma, o astrônomo não devia encontrar os meios ou modelos geométricos dessas curvas, mas devia se preocupar com a realidade, separando-a da ilusão e determinar o real percurso do planeta naquele meio uniforme [1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992).].

Com relação ao diagrama, se prestarmos atenção, veremos que os laços nas espirais não são igualmente espaçadas e diferentes em cada signo do zodíaco. Se calculássemos, e Kepler escreve isso, as distâncias e os tempos entre pontos médios dos retrocessos, veríamos que nem os tempos e os arcos seriam iguais, muito menos o tempo corresponderia ao seu arco na mesma proporção. Nessa discussão, Kepler define duas desigualdades: a primeira desigualdade, que trata do movimento do planeta entre as estrelas, completando seu ciclo com o retorno ao mesmo signo do zodíaco e ocorrendo de forma não uniforme em termos de tempo e arcos; e a segunda desigualdade, que depende da sua proximidade com o Sol (retrogradação). Segundo Kepler, as causas e medidas de tais desigualdades não podem ser investigadas sem olhar para cada uma delas separadamente [1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992).].8 8 Sendo um pouco mais atenciosos, podemos observar que os epiciclos de Apolônio (Ptolomeu) reproduziu a segunda desigualdade de Marte, mas não a primeira [10, p. 340]. No caso desse planeta a primeira desigualdade é derivada do movimento dele próprio e a segunda desigualdade para nós, Kepler e Copérnico é consequência da nossa localização (em uma Terra em movimento). Ademais, para Tycho a segunda desigualdade é atribuída ao movimento do Sol ao redor da Terra que carrega com ele as outras órbitas planetárias. Uma última observação é que essas desigualdades são também chamadas de “anomalias” [11].

De modo geral, a fim de separar a segunda desigualdade da primeira, o que podia ser feito é observar Marte em oposição ao Sol, isto é, do nascer acronical9 9 Acrônico é um “Fenômeno astronômico que ocorre quando a noite começa. Uma estrela oposta ao Sol no céu tem nascer acronical no ocaso do Sol e o ocaso acrônico ao nascer do Sol” [12, p. 7]. ao anoitecer. Essa posição é pertinente, pois nesse caso temos que a longitude de Marte é observada como se o observador da Terra estivesse o observando diretamente do Sol, evitando o problema de cálculos acerca da posição da Terra que nem sempre conhecida.

A discussão seguinte do capítulo refere-se ao movimento do Sol aparente e médio, sendo que “A aparente do sol é aquela que é percebida como ocupando através de sua desigualdade. A posição média é aquela que teria ocupado se não tivesse tido sua desigualdade” [1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., p. 121]. Kepler coloca a questão de qual movimento (médio ou aparente) devemos considerar para a remoção da segunda desigualdade e qual posição devemos escolher na observação:

Mas como os movimentos médios e aparentes do sol são duas coisas diferentes, pois o sol também está sujeito à primeira desigualdade, levanta-se a questão de qual destes remove a segunda desigualdade do planeta, e se os planetas devem ser considerados quando em oposição à posição aparente do sol ou em sua posição média. Ptolomeu escolheu o movimento médio, pensando que a diferença (se houver) entre tomar o sol médio e o sol aparente não poderia ser percebida nas observações, mas que a forma de cálculo e das provas seria mais fácies se o movimento médio do sol fosse tomado. Copérnico e Tycho seguiram Ptolomeu, levando sobre si as suas suposições. Eu, como você vê no capítulo 15 do meu Mysterium cosmographicum, tomo em vez disso a posição aparente, o verdadeiro corpo do sol, como meu ponto de referência, e justificarei essa posição com as provas nas partes 4 e 5 deste trabalho [1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., p. 121].

Essa é uma discussão interessante, pois por intermédio da parte 2 do livro, descobrimos que quando Kepler havia chegado em Praga, havia ficado surpreso ao ver que Brahe, assim como Ptolomeu e Copérnico, usava o movimento do Sol médio no lugar de usarem o Sol Aparente. Quando ele descobriu isso, implorou para fazer o uso das observações considerando o movimento aparente. Kepler havia notado que a escolha por qualquer um desses dois Sóis implicariam em certas diferenças. Na observação acronical que Ptolomeu considerava, isto é, na oposição, quem está diametralmente atrás da Terra não é o Sol aparente, mas sim o Sol médio. Barbour sintetiza essas questões sobre os dois sóis e o fato de Brahe e Ptolomeu usarem o Sol médio, nas seguintes palavras:

Eu disse que as observações acrônicas de Ptolomeu foram feitas em oposição, quando o planeta observado está voltado para o sul à meia-noite e o Sol está diretamente atrás do observador terrestre. Isso não é bem verdade; para facilitar os cálculos e muito provavelmente porque ele não percebeu a importância da diferença, as observações acrônicas reais de Ptolomeu não foram feitas quando o verdadeiro Sol estava atrás do observador, mas um substituto, um “Sol médio” definido matematicamente que se movia ao redor da eclíptica com perfeitamente velocidade uniforme, coincidindo com o verdadeiro Sol apenas nos equinócios. A distância angular entre o Sol verdadeiro e o médio pode ser tanto quanto 2 que corresponde ao dobro da excentricidade da Terra.10 10 Acreditamos que aqui o autor está se referindo a excentricidade atual da Terra que é em torno de 0,0167 (0,0167 rad ≈1∘). Brahe deu continuidade à prática ptolomaica de usar o Sol médio; Kepler meticulosamente corrigiu suas observações por interpolação para fazê-las corresponder ao seu amado Sol verdadeiro. Este foi um primeiro ajuste útil de precisão [13[13] J. Barbour, em: General Relativity, Cosmology and Astrophysics, editado por Jiří Bičák e Tomáš Ledvinka (Springer International Publishing, Cham, 2014)., p. 16]

Em seu capítulo 2, Kepler indica que se torna de certa forma um dilema a escolha entre a oposição à posição aparente do Sol ou sua posição média. A proposta de Kepler é apresentar que alguém que substitui o Sol aparente pelo Sol médio, independente da opinião mais célebre que siga, descreverá órbitas diferentes para o planeta no éter [1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., p. 121]. Sem dúvidas a troca do Sol médio pelo aparente foi um dos primeiros ajustes importantes para que Kepler encontrasse suas leis.

Com essa discussão inicial e para termos uma noção de como Kepler entende algumas das hipóteses do seu tempo, abriremos a seguir uma discussão sobre a equivalência entre um concêntrico associado a um epiciclo e um excêntrico.

3. A equivalência entre o excêntrico e o concêntrico associado a um epiciclo

Nosso objetivo com essa seção é identificar as condições para que ocorra a equivalência entre o excêntrico e o concêntrico associado a um epiciclo e, consequentemente, compreender por meio de um exemplo o significado do que se denomina equivalência geométrica para Kepler.

Sendo assim, observamos que Kepler pontua as condições das construções entre os modelos (acompanhe pela Figura 3).

  • A linha [segmento] dos apsides no excêntrico [γδ] e a linha [segmento] determinada pelo centro do epiciclo e o planeta no concêntrico devem permanecer sempre paralelas [CB,EB,GB etc.];

  • O semidiâmetro [raio] do epiciclo [BC] é igual a excentricidade do excêntrico [βα] e os semidiâmetros [raios] do excêntrico [γβ] e concêntrico [AB] devem ser iguais;

  • O planeta deve ser movido uniformemente no seu excêntrico de forma a percorrer arcos iguais em tempos iguais.

Figura 3
Equivalência de um excêntrico com um concêntrico associado a um epiciclo. Fonte: [2[2] J. Kepler, Astronomia Nova (C.H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung, München, 1937)., p. 66].

A linha dos apsides mencionada é o segmento que une o perigeu e apogeu sendo, assim, um diâmetro que contém a Terra.

Logo em seguida temos de forma geral a construção geométrica de tais ideias:

Primeiramente, deixe A ser a posição do observador e o centro do concêntrico BB sobre o qual se encontra o epiciclo BC, BE. Deixe que os arcos entre dois Bs, ou os ângulos BAB, sejam iguais, e o planeta esteja primeiro em C, depois em E e G, com as linhas BE, BG paralelas a BC. Depois, deixe β ser o centro do excêntrico γζ, com βγ, βε igual a AB, e deixe α ser o ponto em que o observador está, e βα (a excentricidade) ser igual ao semidiâmetro do epiciclo BC, BE e paralelo a eles. Deixe também os arcos γε, γζ, isto é, os ângulos γβε, γβζ serem iguais entre si e com os ângulos anteriores BAB. Eu digo que as distâncias AC, αγ, são iguais, e do mesmo modo AE e αε, AG e αη, AH e αθ, AF e αζ; que os ângulos EAC, εαγ são iguais; e que, em cada caso, o planeta, embora seu movimento seja uniforme, aparece a partir de A, α ser lento em C, γ, e rápido em D, δ. Como eu disse, Ptolomeu demonstrou isso no Livro III, então não há necessidade de mais discussão. Para os geômetras, o diagrama fala por si, e outros podem ir à Ptolomeu [1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., p. 123–124]

Por intermédio de notações modernas iremos propor uma explicação para as afirmações de Kepler sobre a primeira e simples equivalência de um excêntrico e um concêntrico com epiciclo. Assim, notemos que a primeira afirmação que diz respeito à equivalência do excêntrico com um concêntrico é de que AC e αγ são iguais, ou seja, devemos mostrar que AC¯=αγ¯. Pois bem, sabemos que AC¯=AB¯+BC¯ e, por construção, AB¯=βγ¯ e BC¯=αβ¯ (BC¯, no epiciclo que está centrado em B, é o raio). Logo: AC¯=AB¯+BC¯=βγ¯+αβ¯=αβ¯+βγ¯=αγ¯.

A segunda afirmação é que AE e αε são iguais (EA¯=αε¯). Para chegarmos a essa conclusão olharemos para o EAB e o εβα (Figura 4). Note que por construção AB¯=εβ¯ e, além disso, BE¯=αβ¯. No εβα, o ângulo αβ^ε=180-εβ^γ. Essa informação é importante, pois sabemos que o ângulo BA^B=εβ^γ.

Figura 4
Congruência dos triângulos EAB e εβα. Fonte: Adaptado de [2[2] J. Kepler, Astronomia Nova (C.H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung, München, 1937)., p. 66].

Agora, voltemos nosso olhar para representação com epiciclos, nela podemos notar que as retas BC (que contém A) e BE são paralelas por construção e, além disso, esta última reta contém o ponto G, uma vez que as posições do planeta (C, E, G, D, H e F) estão igualmente espaçadas e, portanto, determinam em sua circunferência um hexágono em que EG é paralelo ao eixo de simetria BC. Dessa forma, segue que BA^B=AB^G (em azul), pois são são ângulos alternos internos. Logo, o ângulo EB^A=180-AB^G=180-BA^B. Contudo, como BA^B=εβ^γ, obtemos que EB^A=180-εβ^γ. Pelo caso de congruência LAL, temos que EABεβα, ou seja, EA¯=αε¯.

A terceira afirmação de Kepler é que AG e αη são iguais (AG¯=αη¯). Novamente, usaremos congruência de triângulos, dessa vez: GBA e αηβ (Figura 5). Desse modo, note que os pontos Bs também determinam um hexágono com o lado BB paralelo à reta BC e contém o ponto G, pois BG é também paralela à reta BC. Dessa construção segue que BA^B=AB^G (ângulos alternos internos, em azul). No mais, foi dado que γβ^ζ=BA^B. Como γβ^ζ e ηβ^α são opostos pelo vértice, temos ηβ^α=BA^B. Por construção sabemos que AB¯=ηβ¯ e BG¯=βα¯, de onde segue, pelo caso LAL, que GBAαηβ e, consequentemente, AG¯=αη¯.

Figura 5
Congruência dos triângulos GBA e αηβ. Fonte: Adaptado de [2[2] J. Kepler, Astronomia Nova (C.H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung, München, 1937)., p. 66].

As afirmações de que AH e αθ, AF e αζ são iguais seguem de forma análoga. Para verificarmos que os ângulos EA^C e εα^γ são iguais vamos começar observando que na representação com epiciclos temos:

(1) E A ^ C = B A ^ B - E A ^ B

Além disso, no excêntrico, podemos notar que no εβα:

(2) 180 = ε α ^ β + 180 - ε β ^ γ + β ε ^ α

Mas, sabemos que εβ^γ=BA^B e como EABεβα, sabemos que EA^B=βε^α. Logo na equação (2), obtemos:

(3) 180 = ε α ^ β + 180 - B A ^ B + E A ^ B

Somando membro a membro as equações (1) e (3):

(4) E A ^ C + 180 = B A ^ B - E A ^ B + ε α ^ β + 180 - B A ^ B + E A ^ B

De onde segue que EA^C=εα^β. Como α, β e γ estão contidos em uma mesma reta, temos que εα^β=εα^γ, ou seja, EA^C=εα^γ, como queríamos demonstrar.

A discussão de que, ainda que o movimento seja uniforme, a partir de A e α o planeta parece ser mais rápido em D e δ e mais lento em C e γ, respectivamente, se deve ao fato de que a partir do local de observação dado, teremos em um mesmo tempo um ângulo de observação maior nos arcos mais próximos e, consequentemente, uma velocidade aparente maior. Até aqui podemos observar que as equivalências seguem por construção. Existem condições para que assim o seja.

4. As equivalências imperfeitas

Na primeira parte da obra podemos encontrar algumas equivalências imperfeitas. Isso é mostrado por Kepler usando geometria e alguns dados astronômicos de Brahe. Pela natureza de artigo do estudo aqui proposto fica inviável comentarmos todos os nuances dos modelos, sendo assim escolhemos alguns pontos que acreditamos ser relevantes. Para iniciar tal discussão, Kepler escreve que para mostrar a primeira e simples desigualdade dos planetas Ptolomeu utiliza uma hipótese mais complexa (com equante).

Copérnico, todavia, não aceita o ponto equante, por ferir o princípio de regularidade com a instituição do movimento irregular. Na concepção atribuída à Platão temos o movimento circular como o mais perfeito e um dos motivos é o fato de ser comparado ao estado de repouso, como bem explica Lakatos [14[14] I. Lakatos, em: La metodología de los programas de investigación científica (Alianza Editorial, Madrid, 1983).]. Desse modo, o círculo contém todos os pontos equidistantes de um centro, de onde não temos nenhuma mudança em seu movimento circular uniforme. Ptolomeu havia atribuído os movimentos circulares à esfera estelar. Quando Copérnico “fixa”, de fato as estrelas, ele as deixa imutáveis verdadeiramente. Ao fazer isso, transfere o movimento para a Terra que é um planeta e é menos perfeito que as estrelas. Tendo isso em mente, segue a descrição geométrica com o ponto equante:

Sobre o centro B [Figura 6], descrever um excêntrico DE, sendo a excentricidade BA e A o lugar do observador. A linha traçada através de AB indicará o apogeu em D e o perigeu em F. Sobre essa linha, acima de B, será estendido outro segmento BC, igual ao BA. C será o ponto equante, ou seja, o ponto em que o planeta completa ângulos iguais em tempos iguais, ainda que o círculo se estabeleça em torno de B e não de C. […]. Pois que seja escolhido um ponto E no círculo que o planeta está a atravessar fisicamente, e que seja ligado com C, B e A. Agora, deixe que DCE seja um ângulo reto, assim como o ECF. Agora, uma vez que esses ângulos são iguais (por serem atravessados em tempos iguais), e o ângulo exterior DCE é igual aos ângulos interiores CBE e CEB [soma desses ângulos], portanto, quando a parte CEB é subtraída, o CBE ou DBE restante será inferior ao DCE. Consequentemente, o FBE será maior do que o DCE ou FCE. Mas o arco DE mede o ângulo DBE, e o arco EF mede o ângulo EBF. Portanto, DE é menor que EF, e o planeta passa por cima deles em tempos iguais. Portanto, a mesma esfera sólida (Copérnico acreditava nelas) na qual o planeta herda é lento quando o planeta suportado pela esfera passa de D para E, e rápido quando o planeta passa de E para F[1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., p. 133–134].

Figura 6
A primeira e simples desigualdade (Ptolomeu). Fonte: [2[2] J. Kepler, Astronomia Nova (C.H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung, München, 1937)., p. 73].

Para além da construção geométrica, o tradutor, Donahue, faz um comentário sobre um provável erro anacrônico de Kepler ao considerar que Copérnico acredita em orbes sólidos, citando o artigo de Jardine [15[15] N. Jardine, Journal for the History of Astronomy 13, 168 (1982).]. Nesse trabalho, podemos encontrar uma discussão de que alguns acreditam que Copérnico teve como mentor na astronomia Wojciech de Brudzewo e que este duvidava da existência de orbes excêntricos e epicíclicos, mas que uma astronomia matemática sem eles não teria muita perspectiva.

Figura 7
A substituição do equante pelo segundo epiciclo (Copérnico). Fonte: [2[2] J. Kepler, Astronomia Nova (C.H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung, München, 1937)., p. 74].

No mais, ainda que Kepler pensasse que Copérnico acreditava na realidade sólida dos orbes, com os eventos astronômicos estudados em sua época já não havia mais dúvida sobre a não existência deles. Jardine argumenta que Copérnico estava familiarizado com discussões como a existência de uma substância celeste desprovida de qualidades celestes como a solidez. Além disso, “Deve ser enfatizado que a negação convencional da solidez dos orbes não comprometeria Copérnico de forma alguma com a aceitação da possibilidade de penetração ou interpenetração celestes” [15[15] N. Jardine, Journal for the History of Astronomy 13, 168 (1982)., p. 177]. Em síntese, Kepler não teve muita sensibilidade aos detalhes da doutrina escolástica, fazendo essas observações sobre solidez com o intuito de argumentar as restrições impostas à astronomia matemática [15[15] N. Jardine, Journal for the History of Astronomy 13, 168 (1982).].

Após esse nosso desvio, retomamos a seguir a construção dos dois epiciclos, narrada por Kepler, que substitui o equante de Ptolomeu.

Sobre o centro α com raio αβ igual a BD [Figura 7], deixe o concêntrico βδ ser descrito com o observador em α; Dado αβ, paralelo a BD, ser estendido em ambas as direções; e deixe o ângulo βαδ ser estabelecido igual a DCE. Agora deixe BC ser bissecado em J, e sobre os centros β e γ com raio βγ e δζ igual a AJ deixe que o primeiro ou maior epiciclo seja descrito, e que δζ seja paralelo a αβ. Em seguida, sobre os centros γ e ζ, mas com raio γε, ζη igual a JC, deixe Que o segundo epiciclo seja descrito, e que o seu movimento seja para leste, com o dobro da velocidade do movimento do primeiro. E que o movimento do primeiro epiciclo para oeste seja igual ao movimento do excêntrico. E como γ está em αβ, deixe o planeta em ε, o ponto mais próximo de β. E como βαδ é reto, deixe o planeta estar em η, o ponto mais distante do centro do epiciclo maior δ[1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., p. 135].

Perceba que com o uso do segundo epiciclo, Copérnico acaba por pontuar em favor dos astrônomos, que acreditam que deviam seguir o axioma do movimento circular e uniforme, ou seja, temos aqui uma vantagem em relação às ideias de Ptolomeu com o equante. Mas, independente de qual construção se siga, o ponto aqui é que Kepler mostra uma quase equivalência entre as duas. Escolhendo como exemplo a excentricidade de Marte e usando alguns dados ele determinou que a diferença entre os dois modelos era de 133′′ em um primeiro experimento. Contudo, este valor está incorreto: refazendo os cálculos notamos que essa diferença é ainda menor, 36′′. E, em um segundo experimento, Kepler encontrou 155′′ (dessa vez, correto).

Para conhecermos a geometria desses modelos, iremos expor aqui os cálculos para os ângulos que determinam essa quase equivalência quando passamos do sistema com equante de Ptolomeu para o sistema com dois epiciclos de Copérnico. Vale lembrar que os cálculos na época de Kepler eram feitos à mão e com auxílio de tabelas trigonométricas, sem o uso de cofunções como cosseno, elemento este que usaremos aqui.

Assim, na representação de Ptolomeu, suponhamos que sejam conhecidos no CBE: a anomalia média EC^B ou DC^E, a excentricidade do equante CB¯, bem como o raio do orbEB¯. Assim sendo, ele escreve que o raio da esfera está para o seno de BC^E, assim como CB¯ está para o seno de BC^E, que é nossa conhecida lei dos senos. Nas notações atuais, podemos escrever:

(5) E B ¯ s e n ( E C ^ B ) = C B ¯ s e n ( C E ^ B )

Sabendo disso, temos como teorema dos ângulos externos, que fixado um triângulo, a medida de cada ângulo externo é igual à soma das medidas dos seus ângulos internos não adjacentes. Dessa forma, temos que EC^D é igual à soma dos ângulos CE^B e CB^E. Isto significa que o CE^B subtraído do DC^E resulta no CB^E. No EBA o ângulo B^ é dado, assim como cada um de seus lados: BA¯ (excentricidade do excêntrico) e EB¯ (raio do orb). Com um pouco de matemática atual podemos usar a lei dos cossenos e em seguida a lei dos senos para obter o ângulo BE^A e, como CE^B é encontrado na equação (5), teremos o ângulo CE^A.

Vemos que Kepler usa alguns dados numéricos sobre o movimento de Marte, chamado a atenção de que Copérnico se libertou de Ptolomeu, que usava CB¯=CA¯ igualados, usando novas proporções e que Brahe se comprometeu a segui-lo. Os dados que ele apresenta são: CB¯ como 7560, BA¯ como 12600, EB¯ sendo 100000 e também DC^E como 45 (isto é, EC^B será o suplementar, 135). Nosso objetivo aqui é comparar os resultados numéricos das análises de Kepler. Substituindo os dados na equação (5), temos:

100000 s e n ( 135 ) = 7560 s e n ( C E ^ B )

Resolvendo a equação obtemos que CE^B será aproximadamente 3352′′. Nos cálculos de Kepler esse ângulo é 3452′′. Da soma dos ângulos internos (180) do CEB, temos que o ângulo CB^E equivale a 41568′′. Das leis dos cossenos, no EBA:

b 2 = ( 100000 ) 2 + ( 12600 ) 2 - 2 100000 12600 cos ( 138 3 52 ′′ )

De onde podemos obter b como sendo aproximadamente 109696,77. Usando a lei dos senos, podemos escrever ainda sobre o EBA que:

12600 s e n ( B E ^ A ) = 109696,77 s e n ( 138 3 52 ′′ )

A partir de que obtemos que BE^A é 4249′′. Logo, CE^A que é a soma BE^A com CE^B, será de 7281′′. Nos cálculos de Kepler esse valor é de 72856′′.

Quando fizemos os cálculos em relação à construção de Copérnico encontramos algumas inconsistências na Figura 5, como o fato de que a reta oξ está sendo representada quase que tangente ao epiciclo maior. Por esse motivo, para que se possa acompanhar a leitura da próxima fase de cálculos, reproduzimos a imagem do tradutor Donahue, que deve ter percebido esse fato e refez a imagem (Figura 8).

Figura 8
A substituição do equante pelo segundo epiciclo (Copérnico) por Donahue. Fonte: [1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., p. 136].

Pois bem, assim sendo, Kepler escreve que fará os cálculos adaptando uma anomalia de 45 de uma forma que difere de Tycho e até mesmo de Copérnico:

Deixe βαλ ser 45, e λν ou βγ ser 16380, γε ou νo ser 3780, e oνλ ser reto, isto é, duas vezes βαλ. Agora deixe νλ ser paralelo a βα, e deixe νλ e δα ser estendidos, de modo a encontrar-se em μ. A partir de o, deixe oξ cair paralelamente a νμ. Por conseguinte, λαμ é 45 e, consequentemente αμ e também μλ são 70711. Acrescente λν, 16380, e μν ou oξ será 87091. E porque γϵ, νo, e ξμ são iguais, subtraia ξμ de αμ. O restante,αξ, é 66931 [1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., p. 138].

Assim, no triângulo retângulo oαξ, podemos escrever que:

tan ( α o ^ ξ ) = α ξ ¯ o ξ ¯ = 66931 87091

Resolvendo, obteremos que o ângulo αo^ξ que é o mesmo que oα^β equivale a 373234′′. Cuja diferença do ângulo de 45 é de 72725′′ (nos cálculos de Kepler 72723′′). Consequentemente, a diferença entre as equações copernicana e ptolomaica em tal posição é de 36′′ nos nossos cálculos e 133′′ nos de Kepler.11 11 Após realizarmos estes cálculos, encontramos uma confirmação desse erro na breve nota número 76.8 dos editores, ao fim de Astronomia Nova[2, p. 460]. Ele diz que essa diferença é muito pequena e na realidade é ainda menor e está perfeitamente dentro do erro observacional.

No segundo experimento exposto ele considera no modelo de Ptolomeu DC^E sendo 90. Sabendo disso, vamos seguir novamente um caminho diferente de Kepler: no ECD podemos usar o Teorema de Pitágoras para encontrar a medida do lado EC¯. Assim:

E B ¯ 2 = E C ¯ 2 + C B ¯ 2

Substituindo os dados anteriores, segue que:

( 100000 ) 2 = E C ¯ 2 + ( 7560 ) 2

Resolvendo a equação acima, obtemos que EC¯ é aproximadamente 99713,82. Agora podemos encontrar o ângulo CE^A:

tan ( C E ^ A ) = C A ¯ E C ¯ = 20160 99713,82

O que vai resultar em 112548′′.

No caso de copérnico, o ηδα é retângulo em δ^. Além disso, ηδ¯=CA¯ e δα é o raio que mede 100000. Logo:

tan ( η α ^ δ ) = 20160 100000

Que resulta em ηα^δ aproximadamente 112353′′. A diferença entre os dois modelos é, portanto 155′′, que foi o mesmo resultado obtido por Kepler.

Para se ter uma ideia, na Figura 9, simulamos um momento que o planeta em azul está em movimento constante em relação ao ponto equante E e o planeta em vermelho está em movimento sobre o segundo epiciclo. A imagem está com uma escala exagerada, mas note que os dois planetas quase são coincidentes nos devidos pontos representados. Uma observação interessante é que nas construções em que Kepler usa os dados astronômicos, as posições enunciadas são àquelas as quais a diferença é a mais evidente.

Figura 9
A substituição do equante pelo segundo epiciclo (Copérnico).

Uma das construções que nos chamou atenção no capítulo 5 de Astronomia Nova é da forma ptolomaica. Segundo Kepler, essa forma é mais fácil que a copernicana quando desejamos analisar a primeira desigualdade. Um outro ponto é que ele começa a chamar de excêntrico apenas para se referir ao verdadeiro caminho do planeta, ou o ponto cujo movimento é pertencente a primeira desigualdade.

A construção é a seguinte (acompanhe pela Figura 10):

Sobre o centro β descrevemos o excêntrico ptolomaico ιζη, com a linha dos apsides ιβ, α o observador, e γ o ponto equante[1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., p. 143]. Aqui Kepler faz um comentário de que o observador em α pode ser tanto ficção ou verdade, pois, fisicamente o que ele está a escrever é que em tal ponto deve estar a potência que faz o círculo planetário girar mais rapidamente ou lentamente de acordo com proximidade ou distanciamento de α.

Figura 10
Excêntrico Ptolomaico ιζη. Fonte: [2[2] J. Kepler, Astronomia Nova (C.H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung, München, 1937)., p. 144].

Continuando o fragmento de Kepler:

Deixe algum ponto na circunferência que não está na linha dos apsides (digamos, η) seja conectado com γ, β e α. Deve ser assim que tantos ângulos ιαη podem ser calculados por essa hipótese ao longo de todo o círculo como são observados a partir de α, após certos períodos de tempo, que o ângulo ηγι mede uniformemente. Posteriormente, na segunda parte, será mostrado como se pode descobrir por meio de observações astronômicas, quão grande deve ser o ângulo ηαι para qualquer ηγι dado. Novamente, deixe o observador ou potência móvel estar em algum ponto fora da linha ια, e que este seja δ. […]. Mas como é certo que ao mesmo tempo o planeta atravessa um e o mesmo caminho no céu, não um visto de δ e outro de α, é também certo, como consequência, que o planeta não pode aparecer aos dois observadores (tanto um em α quanto aquele em δ) para ser igualmente movido ao mesmo tempo. Pois que o ιη seja uma porção do verdadeiro caminho do planeta, e que o planeta o atravesse num determinado tempo, digamos vinte dias. Agora, uma vez que α está mais próximo de ιη que δ, o ιη aparecerá maior em α do que em δ, pelo que é demonstrado na óptica. Portanto, durante os mesmos vinte dias, o planeta parecerá fazer um progresso maior para quem está em α do que para quem está em δ. E como para cada planeta existe um número fixo e constante de dias que leva para retornar à mesma posição sideral, a lentidão deve ser acompanhada por uma velocidade de compensação. Portanto, como na porção ιη o planeta parece mais lento para alguém em δ, ele em alguma outra porção parecerá mais rápido para alguém em δ do que para alguém em α. Consequentemente, parece mais lento para o que está em δ em um lugar e para o que está em α em outro. No entanto, o próprio planeta pode ser realmente mais lento em apenas um lugar em sua órbita” [1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., p. 143–145].

Vejamos que esse trecho reproduzido evidencia um caso em que temos duas situações para o mesmo planeta, todavia existe apenas uma realidade. Segundo Kepler, uma é real e física e a outra é óptica e aparente, pois não devemos ter duas realidades ao mesmo tempo para o que de fato acontece com o planeta. Sobre isso, observamos que não parece trivial decidir onde está o erro, ou melhor, que causas devemos considerar para termos acesso a essa realidade que é única. Envolve a distinção de observação entre Sol médio e aparente, mas isso também nos faz lembrar que na introdução de Astronomia Nova, Kepler faz um comentário extremamente interessante em um contexto de discussões sobre os sistemas de Tycho e de Copérnico. A ideia exposta por ele e que gostaríamos de comentar é que devemos pensar o que seria mais adequado para ser a fonte de movimento de um para o outro corpo, logo: “Será que o sol, que move o resto dos planetas, move a terra, ou será que a terra move o sol, que move o resto, e que é tantas vezes maior? A menos que sejamos obrigados a admitir a conclusão absurda de que o sol é movido pela terra, temos de permitir que o sol se fixe e que a terra se mova” [1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., p. 53]. Na mesma linha encontramos esses argumentos em uma carta para Herwart do dia 28 de março de 1605. Kepler diz:

Vós me perguntais, Magnificência, sobre as teses de hipóteses de Copérnico e pareceis estar satisfeito por eu insistir na minha opinião. … [Uma das minhas principais ideias contra Tycho é] se o sol se move à volta da terra, então ele deve, por necessidade, juntamente com os outros planetas, tornar-se às vezes mais rápido, às vezes mais lento no seu movimentos, e isso sem seguir cursos fixos, uma vez que não há nenhum. Mas isto é inacreditável. Mais ainda, o sol, que é muito mais alto do que a terra sem importância, teria de ser movido pela terra da mesma forma que os outros cinco planetas são postos em movimento pelo sol. Isto é completamente absurdo. Por conseguinte, é muito mais plausível que a terra, juntamente com os cinco planetas, seja posta em movimento pelo sol e apenas a lua pela terra [6[6] C. Baumgardt, Johannes Kepler: Life and Letter (Philosophical Library, New York, 1951)., p. 74].

Em tais discussões em Astronomia Nova nos permite perceber que Kepler está a todo momento testando e apresentando argumentos que mostram até que ponto a geometria fornece explicações plausíveis ou situações e construções que implementam dúvidas e remete a essa necessidade de argumentos físicos, mesmo que ainda em suas noções intuitivas.

No mais, percebemos no fragmento geométrico que Kepler cita a óptica e é interessante observar em sua história que ele fizera muitos estudos sobre esse assunto. Em julho de 1600 ele observou um eclipse com seu próprio instrumento e sempre empolgado, tinha muitas questões em mente que, ao seu estilo, investigava profundamente. Uma delas foi a problemática acerca da refração. Isso era importante, pois precisava ter à sua disposição dados precisos, livres do efeito refrativo, para obter mais sucesso nas investigações sobre Marte. Para tal, Kepler chegou até a fazer interrupções de sua pesquisa sobre o referido planeta e no ano de 1604 apresentou ao imperador sua obra acabada intitulada Ad Vitellionem paralipomena quibus astronomiae pars optica traditur, que consiste em uma grande obra, contendo muitas percepções, discussões metafísicas e determina o campo de estudo da ótica matemática [5[5] M. Caspar, Kepler (Dover Publications, New York, 1993).].

Voltando à parte 1 de Astronomia Nova, observamos que Kepler, como aponta Gingerich [16[16] O. Gingerich, Vistas in Astronomy 18, 595 (1975).], tornou sistema heliostático de Copérnico, heliocêntrico. Isso, pois, temos com ele o fato de atribuir ao Sol uma excentricidade fundamental de motivação física. Somente no capítulo 52 da obra Kepler está pronto para mostrar que os planos planetários devem conter o Sol, tal ideia é tão importante que, usando o nosso vocabulário científico moderno, Gingerich sugere referirmos a ela como lei zero de Kepler [16[16] O. Gingerich, Vistas in Astronomy 18, 595 (1975).]. Para entendermos um pouco mais sobre esse assunto refizemos a Figura 10 com um pouco menos de elementos (Figura 11) e a exploraremos na sequência.

Figura 11
Sol Médio e Sol Aparente. Fonte: Adaptada de [4[4] R. Martens, Kepler’s Philosophy and the New Astronomy (Princeton University Press, Princeton, 2000)., p. 72].

Desse modo, vale repetirmos que a nossa problemática aqui é que Kepler considera que é extremamente plausível escolhermos a órbita do Sol aparente (verdadeiro) ao invés do Sol médio. Neste caso, o equante está fixo em γ, o Sol médio está em δ (lugar considerado nas observações) e a linha dos apsides é traçada através dos pontos δ e ζ. O que Kepler argumenta aqui é que apesar de o planeta se movimentar mais lentamente em ι, de δ o planeta aparecerá mais lento em ζ do que em ι, pois este último está mais próximo de δ. Por outro lado, se o Sol aparente é considerado, isto é, α, com γ novamente sendo o ponto equante, o planeta aparecerá mais lento em ι. Nas duas situações nós temos não apenas a mudança de órbita (pontilhada para o modelo do Sol médio e contínua para o aparente), “[…] mas o tempo necessário para atravessar arcos iguais seria assimétrico à linha dos apsides em um dos modelos” [4[4] R. Martens, Kepler’s Philosophy and the New Astronomy (Princeton University Press, Princeton, 2000)., p. 71]. Quando a observação é não acronical a discrepância é bastante evidente.

Martens apresenta um exemplo interessante que ao colocar o observador no ponto X na Figura 11 a diferença entre υ e ϕ será notória [4[4] R. Martens, Kepler’s Philosophy and the New Astronomy (Princeton University Press, Princeton, 2000).]. Na construção de Kepler a partir de δ haverá diferença entre a posição do planeta em υ e ϕ, isto é, entre a posição aparente e real, sendo esta de 424′′. Não é uma notória diferença, mas no capítulo seguinte, o 6 ele mostra que esse número pode ser maior na segunda desigualdade: “[…] que completa seu ciclo não em um único signo constante do zodíaco, mas com a oposição do sol ou conjunção com o planeta” [1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., p. 155]. Nesse sentido, segundo Kepler, as pessoas propõem diferentes razões para o fato de que um planeta em conjunção com o Sol se torna rápido, alto e pequeno e quando oposto muda o tamanho se torna grande e baixo além de retroceder; enquanto entre essas posições ele fica estacionário e em tamanho médio.

Em linhas gerais, Kepler ressalta que segue Copérnico e que esse efeito aparente de retrogradação é devido a combinação dos movimentos da Terra e do planeta:

[] Copérnico afirma que os planetas não se tornam realmente estacionários e retrógrados, mas apenas aparentam isso. Pois ele diz que, uma vez que a Terra tem, além disso, o movimento anual em um círculo muito grande (que ele chama de orbis magnus), aqueles que acreditam que a Terra está em repouso pensam que os planetas e o sol são conduzidos na direção oposta; e ele diz que quando o sol está entre o planeta e a terra, os movimentos da terra e do planeta são adicionados nas aparências, de onde o planeta parece ser veloz; e quando, por outro lado, a terra está entre o sol e o planeta, o planeta é aparentemente deixado para trás e, portanto, retrocede, devido ao fato de a terra ser mais rápida do que o planeta [1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., p. 156].

Em outras construções Kepler mostra maiores diferenças entre as hipóteses. Ele próprio escreve no final desse último capítulo dessa primeira parte que considera essas discussões as mais difíceis de toda obra por ser cansativa, além de conter labirintos de opiniões, circunlóquios e ambiguidades das palavras.

Algo muito interessante é o que Kepler relata no Capítulo 7. O assunto que ele trata é como foi algo divino o fato de chegar para trabalhar com Tycho justamente no período em que Longomontanus estava ocupado com Marte, isso, pois, dos planetas superiores tem a maior excentricidade, que não se encaixava em teorias anteriores [5[5] M. Caspar, Kepler (Dover Publications, New York, 1993).]. Não podemos calcular o quanto isso foi importante para Kepler, mas podemos notar que ele revisa com cuidado as configurações planetárias com o auxílio da geometria e dos dados de Tycho. Pode parecer que ele não sabe o que está fazendo, mas mesmo as posições apresentadas são cuidadosamente escolhidas.

Figura 12
Equivalência entre os sistemas. Fonte: Adaptada de [17[17] https://science.larouchepac.com/kepler/newastronomy
https://science.larouchepac.com/kepler/n...
].

Essa discrepância entre o Sol médio e aparente nos mostra que até mesmo o sistema copernicano necessita de ajustes que apenas Kepler soube fornecer. No mais, os três sistemas (ptolomaico, copernicano e tychônico) são idênticos geometricamente: “Essas três formas são absolutamente, perfeitamente, geometricamente equivalentes” [1[1] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1992)., p. 157]. De uma forma simplificada, podemos visualizar um modelo dessa equivalência na Figura 12. Nela, temos uma situação de posições da Terra (verde), Sol (amarelo) e Marte (vermelho), além dos três pontos na linha dos apsides que são equante, centro e observador. Perceba que abaixo de cada construção podemos observar as posições zodiacais idênticas do Sol e Marte vistos da Terra. Aqui podemos nos lembrar que temos uma situação em que cada astro ocupa três respectivas posições e a astronomia se encarrega de explicar por quais círculos elas podem ser descritas, algo próximo do que foi discutido na Defesa como hipótese geométrica. Para entendermos, vejamos que, para Kepler, quando estabelecemos qual é a parte do círculo planetário que se situa em uma metade do círculo do zodíaco temos uma hipótese astronômica, mas agora quando passamos a calcular os movimentos nas partes desiguais, uns colocando o centro afastado do centro do mundo e outros colocando um epiciclo no concêntrico estamos usando hipóteses geométricas. Um segundo exemplo elucidado é que ao dizermos que o caminho percorrido pela Lua é oval temos uma hipótese astronômica, agora quando estamos mostrando como esta forma pode ser construída, ou seja, por quais círculos podemos obtê-la estamos usando hipótese geométrica. Assim, quando Ptolomeu enuncia que os planetas são mais acelerados no perigeu e suaviza no apogeu ele remete à ideia de hipóteses astronômicas e quando usa o equante, o faz para fins de cálculo, isto é, como um geômetra [15[15] N. Jardine, Journal for the History of Astronomy 13, 168 (1982).].

Observe que na construção para Ptolomeu temos Sol e Marte descrevendo seus movimentos em torno da Terra. O Sol não necessita de epiciclos, mas Marte, sim. As mesmas três posições relativas podem ser obtidas em torno do Sol e com círculos em tornos deste, um contendo a Terra e o outro, Marte. Isso é definido no sistema copernicano. No de Brahe (mais parecido com o de Copérnico), temos a Terra parada com o Sol determinando seu movimento em torno dela e, em torno do Sol, Marte descreve seu movimento. O foco nesta construção é a explicação da segunda desigualdade (retrogradação). Esta é imediata e, sendo assim, os epiciclos de Copérnico são omitidos.

Existe uma discussão interessante de Hanson sobre a questão da equivalência geométrica. Ele critica autores que falam sobre tais equivalências nos modelos copernicanos e ptolomaicos. A sua ideia é basicamente a seguinte:

Em qualquer sentido padrão de equivalência geométrica, ou equivalência estrita, uma teoria θ1 será equivalente a outra teoria θ2 apenas se alguém puder inferir tudo de θ2 a partir de θ1 e tudo de θ1 a partir de θ2. θ1=θ2 apenas quando θ1 e θ2 são mutualmente implicantes. Assim, por exemplo, uma representação epicicloidal de qualquer órbita planetária arbitrária será geome-tricamente/matematicamente/estritamente/formalmente/logicamente equivalente a qual-quer representação excêntrica correspondente dessa órbita [18[18] N.R. Hanson, Constellations and Conjectures (Springer Science & Business Media, Boston, 1973)., p. 209]

O autor comenta que no caso de um deferente excêntrico e um concêntrico com um epiciclo os dois geram a mesma órbita no espaço físico. Todavia, se olharmos as explicações dos movimentos de planetas nos moldes copernicanos e ptolomaicos terão diferenças. Em De Revolutionibus os cálculos podiam receber interpretação física, mas em Almagesto, não. Na astronomia de Ptolomeu temos pontos abstratos e no de Copérnico existe a intenção de apresentar as configurações de interpretação física. Logo tais modelos não são equivalentes para Hanson. Historicamente, ele apresenta ainda como é de se esperar que não ocorra essas equivalências:

[] não é o caso de que tudo o que é gerado a partir de θ2 é indiferentemente gerável a partir de θ1. Seria difícil compreender do que se tratava a revolução copernicana, se não fosse este o caso. Pois se θ1 e θ2 fossem geometricamente equivalentes, no sentido estrito, não haveria como distinguir as consequências dedutíveis das mesmas. Não poderia haver expectativas diferentes de θ1 e θ2 em relação às fases de Vênus, as configurações de loops retrógrados como se viu no Polaris [] . [18[18] N.R. Hanson, Constellations and Conjectures (Springer Science & Business Media, Boston, 1973)., p. 211].

Para o autor, existe uma certa equivalência no sentido de que enquadram os fenômenos e salvam as aparências, porém, os historiadores não deviam fazer desse argumento uma oportunidade para a equivalência das teorias. Podemos usar Kepler para algo semelhante. Ele mantém a ideia de equivalência geométrica para o caso dos círculos e observações. Mas se olharmos na Defesa e na própria obra Astronomia Nova, existem consequências que são particulares a cada hipótese, isto é, que não são compartilhadas umas com as outras. Isso acontece, principalmente, quando olhamos para as considerações físicas. Ou seja, se pensarmos nas hipóteses como teorias, em Kepler elas já não são equivalentes.

5. Conclusão

Kepler soube de forma muito criativa elaborar ideias muito consistentes, sendo que investigou profundamente as hipóteses, tanto em seus aspectos históricos, quanto geométricos e físicos. Para isso foi necessário conhecer sobre discussões de sua época que eram importantes para os praticantes da astronomia.

Vimos que existem certas condições para que os modelos sejam equivalentes, como é o caso do excêntrico e do concêntrico associado a um epiciclo. Parece-nos, todavia, que o estudo é muito mais que a questão de equivalência, uma vez que Kepler busca reforçar que não faz sentido pensarmos em orbes sólidos, o que implica existir novas formas de explicação do movimento, por exemplo, e, além disso, Kepler mostra que devemos separar o que é real do que é aparente e traz nas entrelinhas reflexões sobre o que parece mais provável em termos de interação entre os astros (quem move quem? quem vamos fixar?).

A nosso ver, temos as equivalências geométricas, como Kepler apresenta, em termos de congruência de círculos ou posições. Contudo, quando pensamos em termos de hipóteses vemos que os modelos não são, de fato, equivalentes. Assim, é possível pensar em termos de pontos e círculos, ou seja, na geometria. Porém, quando olhamos as hipóteses devemos considerar as questões dinâmicas, a explicação das fases de Vênus, etc. Dessa forma, Hanson tem sua razão: se os modelos fossem equivalentes em todos os sentidos ficaria difícil entender a Revolução Copernicana [18[18] N.R. Hanson, Constellations and Conjectures (Springer Science & Business Media, Boston, 1973).]. Kepler alertava sobre isso e pensamos que nosso estudo evidencia este aspecto.

Como vimos no início do trabalho, havia uma problemática em torno do axioma de uniformidade e circularidade. Kepler busca aqui desacreditar os modelos e em seu ponto de vista a astronomia deve se preocupar com questões de ordem física. O astrônomo trabalha entre as hipóteses geométricas e astronômicas. Essa sua grande contribuição em termos metodológicos resultará na quebra do axioma platônico. Sua forma de encarar a astronomia é unindo o que muitos tentaram separar, isto é, geometria, aritmética e questões físicas. São esses conhecimentos que determinarão a nova astronomia nos primórdios da ciência moderna. É assim que vamos atingir a realidade que existe e é única.

Em meio a complexidade dos modelos e do raciocínio geométrico também podemos notar alguns equívocos nos cálculo de Kepler. Acompanhando com um pouco de atenção encontramos um desses erros. Devemos nos lembrar, contudo, que os cálculos eram feitos à mão e Kepler tinha dificuldade de manter assistentes.

Referências

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    J. Evans, The History and Practice of Ancient Astronomy (Oxford University Press, New York, 1998).
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    R.R.F. Mourão, Dicionário enciclopédico de astronomia e astronáutica (Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1987).
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  • [17]
    https://science.larouchepac.com/kepler/newastronomy
    » https://science.larouchepac.com/kepler/newastronomy
  • [18]
    N.R. Hanson, Constellations and Conjectures (Springer Science & Business Media, Boston, 1973).
  • 1
    Na série de escritos de Kepler (G.W.), Astronomia Nova se encontra no volume III [2[2] J. Kepler, Astronomia Nova (C.H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung, München, 1937).].
  • 2
    Provavelmente Kepler está se referindo a autores como os Pitagóricos e Aristarco.
  • 3
    O que Kepler está apresentando são os movimentos aparentes. No caso do Sol, temos o movimento diurno (em consequência da rotação da terra) e o movimento lento e oposto na curva chamada Eclíptica: “Se diariamente, no transcorrer de um ano, marcarmos sobre um mapa celeste as posições ocupadas pelo Sol no momento de se pôr e unirmos tais pontos obteremos uma curva regular, cuja forma é de um círculo um pouco deformado e consideravelmente descentralizado em relação ao polo celeste, que se encerrará sobre si mesma. Esta é a curva denominada Eclíptica” [9[9] F.R.R. Évora, A revolução copernicano-galileana: Astronomia e cosmologia pré-galileana (UNICAMP, Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, Campinas, 1993)., p. 149–150].
  • 4
    Na ilustração a letra “I” aparece como “J” acima de “H”.
  • 5
    Perceba que H e I não são coincidentes. Acreditamos que I é a interseção da circunferência que contém E (e é paralela a circunferência que contém H, A e F) e a circunferência que representa a trajetória das estrelas fixas. A figura não parece estar muito consistente com relação a posição da nomenclatura J (I).
  • 6
    Hypate na mitologia grega era uma das três musas da lira adoradas em Delfos.
  • 7
    Segundo a nota número 1 do tradutor, em grego a palavra hypate significa mais alto, todavia a convenção grega sobre o ‘alto’ e ‘baixo’ da música é oposto da nossa.
  • 8
    Sendo um pouco mais atenciosos, podemos observar que os epiciclos de Apolônio (Ptolomeu) reproduziu a segunda desigualdade de Marte, mas não a primeira [10[10] J. Evans, The History and Practice of Ancient Astronomy (Oxford University Press, New York, 1998)., p. 340]. No caso desse planeta a primeira desigualdade é derivada do movimento dele próprio e a segunda desigualdade para nós, Kepler e Copérnico é consequência da nossa localização (em uma Terra em movimento). Ademais, para Tycho a segunda desigualdade é atribuída ao movimento do Sol ao redor da Terra que carrega com ele as outras órbitas planetárias. Uma última observação é que essas desigualdades são também chamadas de “anomalias” [11[11] B. Stephenson, Kepler’s Physical Astronomy (Springer, New York, 1987).].
  • 9
    Acrônico é um “Fenômeno astronômico que ocorre quando a noite começa. Uma estrela oposta ao Sol no céu tem nascer acronical no ocaso do Sol e o ocaso acrônico ao nascer do Sol” [12[12] R.R.F. Mourão, Dicionário enciclopédico de astronomia e astronáutica (Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1987)., p. 7].
  • 10
    Acreditamos que aqui o autor está se referindo a excentricidade atual da Terra que é em torno de 0,0167 (0,0167 rad 1).
  • 11
    Após realizarmos estes cálculos, encontramos uma confirmação desse erro na breve nota número 76.8 dos editores, ao fim de Astronomia Nova[2[2] J. Kepler, Astronomia Nova (C.H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung, München, 1937)., p. 460].

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    07 Fev 2022
  • Revisado
    07 Jun 2022
  • Aceito
    13 Jul 2022
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