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Revisitando o velho problema do trem relativístico que entra (ou não) em uma garagem

Revisiting the old problem of the relativistic train that enters (or not) in a garage

Resumos

Este texto discute alguns conceitos da teoria da relatividade restrita, em uma situação bastante conhecida, como a de um trem em movimento entrar em uma garagem menor que seu comprimento em repouso. No contexto da relatividade, sabe-se que existe a contração do espaço, no entanto, quando mudamos de referencial e consideramos um observador no trem, a garagem é que se movimenta e também sofre uma contração, surgindo um aparente paradoxo. A questão é apresentada sob a perspectiva de eventos e tratada com as transformações de Lorentz em dois referenciais diferentes, o que permite detalhar a solução do problema e mostrar que o paradoxo não existe, enaltecendo a consistência da teoria da relatividade. Com isso, exploramos uma série de nuances, normalmente ausentes numa abordagem tradicional, tais como medição do comprimento de corpos em movimento, simultaneidade, inversão de eventos e elementos do cone de luz.

Palavras-chave:
Relatividade especial; transformações de Lorentz; contração do espaço; causalidade; eventos


This text discusses some concepts of the special theory of relativity, in a well-known situation, such as a moving train entering in a garage smaller than its length at rest. In the context of relativity, it is known that there is a length contraction, however, when changing the reference frame and considering the observer on the train, the garage moves and also suffers a contraction, resulting in an apparent paradox. The question is presented from the perspective of events and treated with Lorentz transformations in two different frames of reference, which allows a more detailed solution of the problem and shows that the paradox does not exist, highlighting the consistency of the theory of relativity. This way, one explores a series of nuances about relativity, normally absent in a traditional approach, such as measuring the length of moving bodies, simultaneity, inversion of events and elements of the light cone.

Keywords:
Special relativity; Lorentz transformations; Length contraction; causality; events


1. Introdução

Em 1905, Einstein publicou um artigo de 30 páginas na revista alemã Annalen der Physik, intitulado Sobre a Eletrodinâmica dos Corpos em Movimento, no qual ele apresenta a teoria da relatividade restrita e discute algumas das suas consequências, principalmente, as relacionadas ao espaço e ao tempo. Einstein dedica algumas seções do seu artigo, apresentando questões importantes como a simultaneidade, a relatividade nas medidas do comprimento e do tempo e um conjunto de equações que transformam as coordenadas espaciais e o tempo de um sistema estacionário para outro em movimento uniforme.

A principal motivação deste artigo é resolver um problema de relatividade com uma abordagem que enfatiza as questões colocadas por Einstein em seu trabalho de 1905. As noções de que o espaço contrai e o tempo dilata aparecem com frequência nos ambientes de ensino, de divulgação científica e costumam ser acompanhadas das famosas fórmulas Δt=γΔt0 e L=L0/γ. Durante a instrução formal, seja na escola básica, seja em cursos introdutórios nas licenciaturas, aprender relatividade parece, muitas vezes, ser a arte de saber onde colocar γ nessas expressões, multiplicando ou dividindo, dependendo do problema tratado. Nas provas de física, se o estudante for esperto o suficiente e souber que a resposta deve ser maior ou menor que o dado inicial, geralmente L0 ou t0, ele coloca γ em cima ou embaixo da equação, sem mobilizar grandes conhecimentos ou um entendimento mais amplo que está por trás da teoria da relatividade. Em diversos livros-texto, adotados nos cursos de graduação ([1[1] D. Halliday, R. Resnick e J. Walker, Fundamentos de Física (LTC, Rio de Janeiro, 2012), 9 ed., v. 4., 2[2] H.M. Nussenzveig, Curso de física básica: ótica, relatividade e física quântica (E. Blücher, São Paulo, 2002)., 3[3] P.A. Tipler e G. Mosca, Física para Cientistas e Engenheiros (LTC, Rio de Janeiro, 2006), 5 ed., v. 3.]), junto com essa abordagem, notamos também uma carência em discussões conceituais acerca das soluções numéricas dos problemas de relatividade.

O objetivo deste texto é revisitar os conceitos da relatividade, discutindo um problema bastante conhecido, empregando a noção de evento e das relações entre eles, advindas das transformações de Lorentz. O problema em questão é o de um trem, cujo comprimento em repouso é maior do que o de uma garagem, poder entrar inteiramente no interior dela, de modo que a sua porta seja fechada. No contexto da relatividade, sabemos que isto é possível devido à contração do comprimento do trem, para quem está em repouso na garagem. No entanto, ocorre um aparente paradoxo, na medida em que consideramos o observador no referencial do trem e não mais da garagem, pois para ele, a garagem também contrai. Apresentamos o problema em dois referenciais diferentes, algo que normalmente os livros-texto não fazem, e mostramos os enredos em cada um deles, que só podem ser entendidos com o uso dos eventos e das transformações de Lorentz (TL). A vantagem de usar as TL é que elas permitem seguir um passo-a-passo lógico e minucioso da solução desse paradoxo e evidenciam que ele, de fato, não existe, ressaltando a consistência da teoria.

Este problema também é conhecido como o problema da vara (ou escada) e do celeiro ([4[4] https://propg.ufabc.edu.br/mnpef-sites/relatividade-restrita/o-paradoxo-da-vara-e-do-celeiro
https://propg.ufabc.edu.br/mnpef-sites/r...
, 5[5] https://www.blogs.unicamp.br/chivononpo/2008/01/02/o-paradoxo-do-celeiro-e-da-lanca/
https://www.blogs.unicamp.br/chivononpo/...
, 6[6] https://silo.tips/download/relatividade-restrita-e-seus-resultados-prof-vicente-barros
https://silo.tips/download/relatividade-...
]) e iniciamos o texto discorrendo, nas duas primeiras seções (2 2. Eventos e as Transformações de Lorentz Em problemas de geometria lidamos com posições de pontos no espaço, que podem ser medidas a partir de um referencial. O espaço em si não é mensurável, mas a posição de um ponto qualquer é. Por exemplo, a Fig.1(a) mostra um lápis cuja ponta está no ponto P, descrito com o auxílio de um sistema de eixos, em três dimensões x⁢y⁢z. Figura 1: (a) descrição do ponto P na geometria:(xP,yP,zP)=(5⁢m,7⁢m,4⁢m); (b) descrição do evento E na cinemática, onde a área colorida representa a presença do tempo neste referencial: (xE,yE,zE;tE)=(5⁢m,7⁢m,4⁢m;2⁢s). A introdução da dimensão do tempo em um problema transforma a geometria em cinemática, que também envolve o uso de referenciais. Este fato já era conhecido na física clássica mas, nos primórdios da relatividade de Einstein, Minkowski ressaltou que o tempo era algo especialmente importante e que as diferentes observações precisavam levar em conta o instante em que são feitas. Em 1908, ele afirmou que Os objetos da nossa percepção incluem invariavelmente lugares e tempos em combinação. Ninguém jamais percebeu um lugar a não ser em um tempo, ou um tempo a não ser em um lugar. ([7], p. 76) Isso levou a física definir um evento como um acontecimento que ocorre em um único ponto do espaço e em um único instante, como sugere a Fig.1(b), que mostra o evento E, representando a ponta do lápis tocando o ponto P num instante t. A diferença fundamental entre as noções de ponto na geometria e de evento, na cinemática, é a presença do tempo. O evento tem quatro dimensões e é descrito com as coordenadas [x,y,z;t]. Tal como qualquer ponto na geometria, a descrição do evento depende do sistema de eixos, pois se este for mudado, os valores das coordenadas se alteram. De modo geral, referenciais são instrumentos matemáticos, inventados para nos auxiliar a pensar os problemas físicos e não existem no mundo; são apenas ferramentas bastante úteis para descrevê-lo. Neste sentido, a descrição de qualquer evento envolve uma arbitrariedade e, portanto, é relativa. No entanto, o evento também tem um aspecto absoluto, que é a sua ocorrência. Se um fato ocorre em um referencial, ele deve ocorrer em todos os demais. Por isso, o tratamento de eventos na física precisa levar em consideração suas facetas absoluta e relativa, que são antagônicas e complementares. A teoria da Relatividade Restrita de Einstein trata de situações que envolvem referenciais com movimento relativo uniforme. Neste caso, tal como os eventos, os fenômenos físicos também exibem facetas absolutas e relativas. O propósito da teoria é extrair leis físicas universais do emaranhado de informações, obtidas a partir de referenciais particulares. Essa ideia está incorporada no primeiro princípio da teoria, que determina que todos os referenciais são equivalentes do ponto de vista físico. Consequentemente, as leis físicas devem ser absolutas, pois não podem depender deles. Já o segundo princípio é mais operacional e afirma que o módulo c da velocidade da luz é o mesmo em todos os referenciais. É ele que estabelece a forma das transformações de Lorentz, necessárias para resolver problemas de cinemática relativística. Passamos agora a apresentar as transformações de Lorentz que serão empregadas no problema da garagem. Para tanto, consideramos dois referenciais que se movem com velocidade relativa v→ constante e os representamos com nome de pessoas, por exemplo, João, Maria, Pedro, Ana e etc.1 Um problema físico consiste em uma sucessão de eventos, E1, E2,…, En, que em cada referencial são descritos por coordenadas diferentes. Assim, dois observadores, João e Maria, descrevem o mesmo eventoE1 em seus referenciais por meio de coordenadas diferentes. Para enfatizar as duas descrições do mesmo evento, usamos a seguinte notação evento ⁢ E 1 ⁢ { S M : [ x 1 M , y 1 M , z 1 M ; t 1 M ] S J : [ x 1 J , y 1 J , z 1 J ; t 1 J ] . Mostramos esta ideia na Fig.2, onde o mesmo evento E1 é descrito em SM e SJ pelo seu conjunto de coordenadas. Nesse texto usamos uma convenção para os referenciais, na qual SJ se desloca ao longo do eixo y com velocidade constante v para a direita em relação a SM e, SM se move com a mesma velocidade em módulo para a esquerda em relação a SJ. Figura 2: Descrição de um mesmo evento em dois referenciais. Como a ocorrência do evento E1 é algo absoluto, suas descrições em referenciais diferentes estão relacionadas entre si pelas transformações de Lorentz (TL). A expressão das TL podem ser deduzidas a partir do princípio da invariância da velocidade da luz. Elas correspondem a um conjunto de equações lineares que associam as coordenadas do mesmo evento em dois referenciais diferentes: [x1M,y1M,z1M;t1M]⟷TL [x1J,y1J,z1J;t1J]. Por isso, se conhecermos as coordenadas de um dado evento em um referencial SM, as TL permitem calcular as coordenadas desse evento em SJ. No caso simples onde os eixos x⁢y⁢z em SM e SJ são paralelos e SJ se desloca para a direita com velocidade v→=v⁢j^, as TL são dadas por (1) S M → S J : S J → S M : x J = x M x M = x J , y J = γ ⁢ ( y M - v ⁢ t M ) y M = γ ⁢ ( y J + v ⁢ t J ) , z J = z M z M = z J , t J = γ ⁢ ( t M - v c 2 ⁢ y M ) t M = γ ⁢ ( t J + v c 2 ⁢ y J ) , com (2) γ = 1 1 - v 2 / c 2 . A principal diferença entre as TL de ida, de SM para SJ e, de volta, de SJ para SM, está no sinal da velocidade relativa, já que SM se move para a esquerda em relação a SJ com velocidade v→=-v⁢j^. Nesse formato, estas equações incorporam uma convenção muito importante, também empregada por Einstein, a que afirma que as origens dos tempos nos dois referenciais são definidas pelo cruzamento das origens dos eixos espaciais x⁢y⁢z. Num problema com vários eventos é conveniente escolher um deles como origem dos tempo e dos espaços nos dois referenciais e determinar os demais em relação a ele.2 Por esse motivo, ele é chamado de evento de referência ER, descrito, por convenção, como (3) evento ⁢ E R ⁢ { S M : [ x 1 M = 0 , y 1 M = 0 , z 1 M = 0 ; t 1 M = 0 ] S J : [ x 1 J = 0 , y 1 J = 0 , z 1 J = 0 ; t 1 J = 0 ] . Tal como as transformações de Galileu, as coordenadas x, y e z nas eqs. (1) dependem do tempo. Entretanto, existe uma grande novidade nas TL, que a coordenada t depende das coordenadas espaciais. Por isso, na relatividade, algumas noções relacionadas ao espaço (distância entre dois pontos) e à passagem do tempo (intervalo entre dois instantes) foram alteradas em relação à visão newtoniana. O espaço e o tempo tornaram-se entidades relativas ao referencial, com caráter unificado, tal como afirma Minkowski: As visões de espaço e tempo que eu quero apresentar para vocês brotaram do solo da física experimental e nisso reside a força delas. Elas são radicais. Daqui em diante, tempo sozinho e espaço sozinho estão condenados a desvanecer em meras sombras e apenas um tipo de união dos dois preservará uma realidade independente. e 3 3. Comprimento de Objetos em Movimento O problema de medir objetos extensos em movimento também é discutido no trabalho de Einstein de 1905. Pode parecer estranho, já que na mecânica clássica os corpos sempre possuem o mesmo tamanho, estejam eles em repouso ou em movimento. No contexto da relatividade, o comprimento de um objeto é associado às coordenadas espaciais de eventos e estas, dependem do referencial. A noção de comprimento de uma barra é construída a partir da distância entre dois eventos localizados nas suas extremidades e, para que ela tenha sentido, é preciso que os eventos ocorram no mesmo instante. Ou seja, é muito importante que eles sejam simultâneos pois é a única maneira de eliminarmos o tempo e obter um intervalo puramente espacial entre as coordenadas. Esta é uma característica das medidas de comprimento na relatividade, tomar eventos simultâneos em um referencial. Por exemplo, consideremos uma barra de metal cujo comprimento em repouso em SJ vale λ, como a mostrada na Fig.3(a). Em SM, essa barra se desloca com velocidade v e, quando observada em um instante tM qualquer, a distância dA⁢BM entre as suas extremidades é menor que λ, como ilustra a Fig.3(b) e mostramos a seguir. Figura 3: A barra de metal. Para determinar o comprimento da barra em SM, precisamos considerar dois eventos A e B simultâneos nesse referencial. Como o movimento da barra é na direção do eixo y, as coordenadas x e z permanecem inalteradas nas transformações de Lorentz e, por isso, iremos omiti-las. Por conveniência, colocamos o evento A na origem comum de SJ e SM, de modo que ele pode ser considerado o evento de referência. Assim, temos (4) E A ⁢ { S M : [ 0 ; 0 ] S J : [ 0 ; 0 ] . Com esta convenção, a distância dA⁢BM é determinada pela coordenada espacial do evento B. Com os dados diretos do problema, temos tBM=tAM=0, pois A e B são simultâneos em SM. O comprimento da barra em SJ é conhecido e corresponde à coordenada y de EB, dada por yBJ=λ. Assim, as coordenadas do evento B são (5) E B ⁢ { S M : [ y B M ; t B M ] = [ y B M = ? ; t B M = 0 ] S J : [ y B J ; t B J ] = [ y B J = λ ; t B J = ? ] . Nesta situação, temos uma informação em SJ e outra em SM e yBM e tBJ podem ser determinadas empregando as TL de SJ→SM, dadas na eq. (1). Para a coordenada temporal, tomamos a equação tBM=γ⁢(tBJ+v⁢yBJ/c2) e substituindo os dados conhecidos de EB, obtemos 0 = γ ⁢ ( t B J + v ⁢ λ / c 2 ) → 0 = t B J + v c 2 ⁢ λ t B J = - v c 2 ⁢ λ . Esse resultado, usado na coordenada espacial yBM=γ⁢(yBJ+v⁢tBJ), fornece y B M = γ ⁢ [ λ + v ⁢ ( - v c 2 ⁢ λ ) ] = γ ⁢ λ ⁢ ( 1 - v 2 / c 2 ) = γ ⁢ λ / γ 2 y B M = λ γ . Inserindo os valores na descrição dos eventos, temos o quadro completo nos dois referenciais (6) E A ⁢ { S M : [ 0 ; 0 ] S J : [ 0 ; 0 ] E B ⁢ { S M : [ λ γ ; 0 ] S J : [ λ ; - v c 2 ⁢ λ ] . O comprimento da barra para Maria é dado por yBM-yAM=λ/γ e, como γ>1, em SM, dA⁢BM<λ e, portanto, a barra é menor que em SJ. Numa situação como essa, a contração da barra é um efeito real e que pode ser verificado experimentalmente. É importante notar que essa contração é sempre acompanhada de outro efeito. O quadro (6) indica que os eventos A e B são simultâneos em SM mas, em SJ, não o são, pois tAJ≠tBJ. Neste caso, como tBJ<tAJ, para João3, o evento B ocorre antes do evento A. Esse é um exemplo de situação em que eventos simultâneos em um referencial deixam de sê-lo em outro, o que evidencia a quebra da simultaneidade. Esse conjunto de ideias e efeitos é o que permite ter uma visão coerente do problema da garagem. ), sobre os eventos, as transformações de Lorentz e, principalmente, como medir comprimento de objetos em movimento na relatividade. Na sequência, seção4 4. O Problema da Garagem O trem mostrado na Fig.4(a) está em repouso no referencial SJ e tem comprimento LJ. Esse trem se move com velocidade v→=v⁢j^ sobre uma linha férrea, estacionária no referencial SM, no fim da qual existe uma garagem de tamanho ℓM, menor que LJ, com uma porta na entrada que pode ser fechada, como mostra a Fig.4(b). Figura 4: (a) Referencial SJ e o trem em repouso; (b) Referencial SM e a garagem em repouso. Nesse problema, lidamos com seis comprimentos importantes: – LJ: comprimento do trem em repouso em SJ; – LM: comprimento do trem em movimento em SM; – ℓM: comprimento da garagem em repouso em SM; – ℓJ: comprimento da garagem em movimento em SJ; – dM: distância da origem dos referenciais à entrada da garagem em SM e – dJ: distância da origem dos referenciais à entrada da garagem em SJ. O nosso objetivo é discutir se, no contexto da relatividade, é possível que o trem, cujo comprimento em repouso é maior que o da garagem, LJ<ℓM, entre completamente no interior dela, de modo que a porta possa ser fechada. 4.1. A situação vista em SM Iniciamos nossa discussão no referencial SM de Maria e, para isso, precisamos comparar o comprimento LM do trem em movimento com o comprimento ℓM da garagem em repouso. Pela seção anterior, sabemos que vai existir uma contração do trem, que depende da sua velocidade, através do fator γ. Para determinar LM, escolhemos dois eventos E1 e E2 simultâneos em SM, como na seção anterior e a distância espacial entre eles é o comprimento desejado. Tomamos E1 como o evento de referência e temos a situação mostrada na Fig.5. Figura 5: Os eventos E1 e E2 em SM. Os valores do enunciado nos permite escrever (7) E R = E 1 ⁢ { S M : [ 0 ; 0 ] S J : [ 0 ; 0 ] E 2 ⁢ { S M : [ y 2 M = ? ; t 2 M = 0 ] S J : [ y 2 J = L J ; t 2 J = ? ] e, usando o resultado da seção anterior, temos (8) E 1 ⁢ { S M : [ 0 ; 0 ] S J : [ 0 ; 0 ] E 2 ⁢ { S M : [ L J γ ; 0 ] S J : [ L J ; - v c 2 ⁢ L J ] , Assim, LM=y2M-y1M=LJ/γ. Observamos que para o trem entrar na garagem em SM, é preciso que LM=LJ/γ<ℓM. Portanto, a velocidade vmín é dada pela condição γ=LJ/ℓM, que corresponde a (9) γ 2 = 1 1 - v mín 2 / c 2 = ( L J ℓ M ) 2 → 1 - v mín 2 c 2 = ( ℓ M ) 2 ( L J ) 2 v mín = c ⁢ 1 - ( ℓ M ) 2 / ( L J ) 2 . Para tornar essa discussão mais concreta, adotamos valores numéricos e supomos que o comprimento do trem em repouso seja LJ=100⁢m e o da garagem, ℓM=75⁢m. Neste caso, a velocidade mínima que o trem deve ter para entrar na garagem é vmín =0,66⁢c. Na Tabela 1 mostramos os comprimentos do trem em SM para um conjunto de velocidades diferentes. Tabela 1: Comprimentos do trem em SM. Note que para v<0,66⁢c, o trem é maior que a garagem e para v>0,66⁢c, ele é menor. v / c γ LM (=LJ/γ) (m) 0,5 0,1547 86,80 0,6 1,2500 80,00 0,6612 1,333 75,02 0,7 1,4003 71,41 0,8 1,6667 60,00 0,9 2,2942 43,59 0,99 7,0888 14,11 A partir de agora e em todo o restante do texto, adotamos o valor de vmín =0,66⁢c, de tal forma que γ=1,33 e para facilitar nossa discussão, inserimos um ponto A na dianteira do trem e um B, na traseira. Num dado instante tM>0 em SM, representamos na Fig.6(a) a localização do trem em movimento. Durante todo o movimento do trem, até o instante em que ele entra na garagem, seu comprimento em SM é constante, vale LM e, portanto, não é correta a ideia que às vezes encontramos de que o trem ‘vai encolhendo’ à medida que o tempo passa. No instante em que o ponto A, a dianteira do trem, toca a parede interna da garagem, já é possível fechar a porta4, situação mostrada na Fig.6(b).5 Figura 6: o trem em movimento em SM. 4.2. A situação vista em SJ A novidade deste texto é analisar o que acontece em SJ, no qual o trem está em repouso e a garagem se desloca com velocidade vmín , para a esquerda. O comprimento LJ do trem é conhecido, no entanto, o tamanho da garagem em movimento ℓJ precisa ser determinado. Para calcular o comprimento da garagem em movimento, escolhemos dois eventos E5 e E6, simultâneos em SJ, representados na Fig.7 que, por simplicidade, tomamos em tJ=0: – E5: posição da extremidade direita da garagem em tJ=0 e – E6: posição da extremidade esquerda da garagem em tJ=0. Figura 7: Dois eventos vistos em SJ. Como a garagem está fixa em SM [ver Fig.6(b)], as coordenadas espaciais de E5 e E6 são conhecidas em quaisquer instantes. Assim, a formulação dessa situação corresponde a (10) E 6 ⁢ { S M : [ y 6 M = d M ; t 6 M = ? ] S J : [ y 6 J = ? ; t 6 J = 0 ] E 5 ⁢ { S M : [ y 5 M = d M + ℓ M ; t 5 M = ? ] S J : [ y 5 J = ? ; t 5 J = 0 ] , Usando as TL, determinamos t6M e y6J para E6 e, t5M e y5J para E5. Para tanto, primeiro obtemos os valores de tM nas eqs. (11) e (13), para depois empregá-los em (12) e (14) no cálculo de yJ: (11) t 6 J = γ ⁢ ( t 6 M - v ⁢ y 6 M / c 2 ) → 0 = γ ⁢ ( t 6 M - v ⁢ d M / c 2 ) → t 6 M = v ⁢ d M / c 2 , (12) y 6 J = γ ⁢ ( y 6 M - v ⁢ t 6 M ) = γ ⁢ ( d M - v 2 ⁢ d M / c 2 ) = γ ⁢ d M ⁢ ( 1 - v 2 / c 2 ) = d M / γ . (13) t 5 J = γ ⁢ ( t 5 M - v ⁢ y 5 M / c 2 ) → 0 = γ ⁢ ( t 5 M - v ⁢ d M / c 2 ) → t 5 M = v ⁢ ( d M + ℓ M ) / c 2 , (14) y 5 J = γ ⁢ ( y 5 M - v ⁢ t 5 M ) = γ ⁢ [ ( d M + ℓ M ) - v 2 ⁢ ( d M + ℓ M ) / c 2 ] = γ ⁢ ( d M + ℓ M ) ⁢ ( 1 - v 2 / c 2 ) = ( d M + ℓ M ) / γ . Substituindo em (10), temos (15) E 6 ⁢ { S M : [ d M ; v c 2 ⁢ d M ] S J : [ d M / γ ; 0 ] E 5 ⁢ { S M : [ d M + ℓ M ; ( d M + ℓ M ) ⁢ v / c 2 ] S J : [ ( d M + ℓ M ) / γ ; 0 ] , Este resultado contém três informações importantes. A primeira é que o comprimento da garagem em SJ é dado por y5J-y6J=ℓM/γ e, como γ>1, ℓJ<ℓM. A segunda é que, analogamente, a distância entre a origem de SJ e a entrada da garagem dJ=y6J-y1J=dM/γ também aparece contraída. Finalmente, é importante notar que os eventos E5 e E6, que são simultâneos em SJ, deixam de sê-lo em SM, já que t5M>t6M. Usando os valores numéricos LJ=100⁢m e ℓJ=ℓM/γ=56,4⁢m, temos a situação em SJ mostrada na Fig.8. Figura 8: Situação em SJ: o trem e a garagem contraída. Com esta descrição em SJ, surge a questão de saber se nesse referencial o trem pode entrar na garagem e a porta fechar. Olhando o desenho poderíamos ser tentados a dizer que não. Esta questão nos coloca frente a um aparente paradoxo, que nos divide ao meio. Para sair dele, precisamos recorrer a algo sólido da teoria, o caráter absoluto da ocorrência de um evento. Na relatividade, cada evento corresponde a uma observação concreta e objetiva e, se ocorre em um referencial, deve ocorrer em todos os outros. No nosso caso, se a porta fecha com o trem dentro da garagem no referencial SM, o mesmo deve acontecer em SJ. O ponto crítico agora desse problema é como explicar isso em SJ. 4.3. A solução do paradoxo Para resolver esse paradoxo aparente recorremos à estrutura teórica, à matemática, pois ela oferece um caminho mais seguro para o pensamento do que a nossa intuição. Na Figura6(b), representamos o trem dentro da garagem em SM. Para tratar o problema é preciso explicitar os eventos relevantes, que são – ER– evento de referência, a coincidência da origem dos referenciais SM e SJ, dado em (7); – E3– o ponto A toca a parede interna da garagem e – E4– a porta da garagem ao fechar toca o ponto B, mostrado nas Figs.9(a) e (b). Figura 9: (a) o evento de referência, em tRM=0; (b) o trem dentro da garagem em SM, no instante t3M=t4M. Em SM, temos ER, E3 e E4 representados na Fig.9, com E3 e E4 simultâneos. Em SM, E3 e E4 são simultâneos e ocorrem no instante t3M=t4M=dM/v e suas posições são y3M=dM+ℓM e y4M=dM, já que consideramos o tamanho do trem exatamente igual ao tamanho da garagem. Como a descrição desses eventos em SJ ainda é desconhecida, esquematizamos (16) E 3 ⁢ { S M : [ d M + ℓ M ; d M / v ] S J : [ y 3 J = ? ; t 3 J = ? ] , E 4 ⁢ { S M : [ y 4 M ; t 4 M ] = [ d M ; d M / v ] S J : [ y 4 J = ? ; t 4 J = ? ] , sendo que as incognitas são determinadas com o uso das TL. Fazendo isso, temos y 3 J = γ ⁢ ( y 3 M - v ⁢ t 3 M ) = γ ⁢ ( d M + ℓ M - d M ) = γ ⁢ ℓ M ; t 3 J = γ ⁢ ( t 3 M - v ⁢ y 3 M / c 2 ) = γ / v ⁢ [ d M - ( d M + ℓ M ) ⁢ v 2 / c 2 ] ; y 4 J = γ ⁢ ( y 4 M - v ⁢ t 4 M ) = γ ⁢ ( d M - d M ) = 0 ; t 4 J = γ ⁢ ( t 4 M - v ⁢ y 4 M / c 2 ) = d M / γ ⁢ v ⁢ ( 1 - v 2 / c 2 ) = d M γ ⁢ v . Assim, as descrições dos dois eventos nos dois referenciais são dadas por (17) E 3 ⁢ { S M : [ d M + ℓ M ; d M v ] S J : [ γ ⁢ ℓ M ; d M γ ⁢ v - γ ⁢ v ⁢ ℓ M c 2 ] . E 4 ⁢ { S M : [ d M ; d M v ] S J : [ 0 ; d M γ ⁢ v ] . Os resultados do quadro acima evidenciam a quebra da simultaneidade em SJ, pois E3 e E4 ocorrem em instantes diferentes. O termo negativo (-γ⁢v⁢ℓMc2) em t3J indica que t4J>t3J, mostrando que em SJ, o evento 3 ocorre antes que o evento 4. Isto significa que a garagem encosta no ponto A antes que a sua porta chegue na posição da traseira, o ponto B. , tratamos o problema com as TL e exploramos melhor as consequências da visão do mundo trazida pela teoria, que vão além da mera contração do espaço.

2. Eventos e as Transformações de Lorentz

Em problemas de geometria lidamos com posições de pontos no espaço, que podem ser medidas a partir de um referencial. O espaço em si não é mensurável, mas a posição de um ponto qualquer é. Por exemplo, a Fig.1(a) mostra um lápis cuja ponta está no ponto P, descrito com o auxílio de um sistema de eixos, em três dimensões xyz.

Figura 1:
(a) descrição do ponto P na geometria:(xP,yP,zP)=(5m,7m,4m); (b) descrição do evento E na cinemática, onde a área colorida representa a presença do tempo neste referencial: (xE,yE,zE;tE)=(5m,7m,4m;2s).

A introdução da dimensão do tempo em um problema transforma a geometria em cinemática, que também envolve o uso de referenciais. Este fato já era conhecido na física clássica mas, nos primórdios da relatividade de Einstein, Minkowski ressaltou que o tempo era algo especialmente importante e que as diferentes observações precisavam levar em conta o instante em que são feitas. Em 1908, ele afirmou que

Os objetos da nossa percepção incluem invariavelmente lugares e tempos em combinação. Ninguém jamais percebeu um lugar a não ser em um tempo, ou um tempo a não ser em um lugar. ([7[7] H. Minkowski, Space and Time - Minkowski’s Papers on Relativity (Minkowski Institute Press, Québec, 1909).], p. 76)

Isso levou a física definir um evento como um acontecimento que ocorre em um único ponto do espaço e em um único instante, como sugere a Fig.1(b), que mostra o evento E, representando a ponta do lápis tocando o ponto P num instante t. A diferença fundamental entre as noções de ponto na geometria e de evento, na cinemática, é a presença do tempo. O evento tem quatro dimensões e é descrito com as coordenadas [x,y,z;t]. Tal como qualquer ponto na geometria, a descrição do evento depende do sistema de eixos, pois se este for mudado, os valores das coordenadas se alteram.

De modo geral, referenciais são instrumentos matemáticos, inventados para nos auxiliar a pensar os problemas físicos e não existem no mundo; são apenas ferramentas bastante úteis para descrevê-lo. Neste sentido, a descrição de qualquer evento envolve uma arbitrariedade e, portanto, é relativa. No entanto, o evento também tem um aspecto absoluto, que é a sua ocorrência. Se um fato ocorre em um referencial, ele deve ocorrer em todos os demais. Por isso, o tratamento de eventos na física precisa levar em consideração suas facetas absoluta e relativa, que são antagônicas e complementares.

A teoria da Relatividade Restrita de Einstein trata de situações que envolvem referenciais com movimento relativo uniforme. Neste caso, tal como os eventos, os fenômenos físicos também exibem facetas absolutas e relativas. O propósito da teoria é extrair leis físicas universais do emaranhado de informações, obtidas a partir de referenciais particulares. Essa ideia está incorporada no primeiro princípio da teoria, que determina que todos os referenciais são equivalentes do ponto de vista físico. Consequentemente, as leis físicas devem ser absolutas, pois não podem depender deles. Já o segundo princípio é mais operacional e afirma que o módulo c da velocidade da luz é o mesmo em todos os referenciais. É ele que estabelece a forma das transformações de Lorentz, necessárias para resolver problemas de cinemática relativística.

Passamos agora a apresentar as transformações de Lorentz que serão empregadas no problema da garagem. Para tanto, consideramos dois referenciais que se movem com velocidade relativa v constante e os representamos com nome de pessoas, por exemplo, João, Maria, Pedro, Ana e etc.1 1 Mesma atitude adotada por [8]. A razão pedagógica para não usarmos os tradicionais S e S′, presentes nos livros-texto, é que intuitivamente tendemos a atribuir S′ ao referencial em movimento e nós, ‘em repouso’, ficamos em S. Esta postura carrega tacitamente a ideia de que o meu referencial S é diferente (ou melhor) do que o outro, atitude não condizente com o primeiro postulado da relatividade.

Um problema físico consiste em uma sucessão de eventos, E1, E2,…, En, que em cada referencial são descritos por coordenadas diferentes. Assim, dois observadores, João e Maria, descrevem o mesmo eventoE1 em seus referenciais por meio de coordenadas diferentes. Para enfatizar as duas descrições do mesmo evento, usamos a seguinte notação

evento E 1 { S M : [ x 1 M , y 1 M , z 1 M ; t 1 M ] S J : [ x 1 J , y 1 J , z 1 J ; t 1 J ] .

Mostramos esta ideia na Fig.2, onde o mesmo evento E1 é descrito em SM e SJ pelo seu conjunto de coordenadas. Nesse texto usamos uma convenção para os referenciais, na qual SJ se desloca ao longo do eixo y com velocidade constante v para a direita em relação a SM e, SM se move com a mesma velocidade em módulo para a esquerda em relação a SJ.

Figura 2:
Descrição de um mesmo evento em dois referenciais.

Como a ocorrência do evento E1 é algo absoluto, suas descrições em referenciais diferentes estão relacionadas entre si pelas transformações de Lorentz (TL). A expressão das TL podem ser deduzidas a partir do princípio da invariância da velocidade da luz. Elas correspondem a um conjunto de equações lineares que associam as coordenadas do mesmo evento em dois referenciais diferentes: [x1M,y1M,z1M;t1M]TL [x1J,y1J,z1J;t1J]. Por isso, se conhecermos as coordenadas de um dado evento em um referencial SM, as TL permitem calcular as coordenadas desse evento em SJ. No caso simples onde os eixos xyz em SM e SJ são paralelos e SJ se desloca para a direita com velocidade v=vj^, as TL são dadas por

(1) S M S J : S J S M : x J = x M x M = x J , y J = γ ( y M - v t M ) y M = γ ( y J + v t J ) , z J = z M z M = z J , t J = γ ( t M - v c 2 y M ) t M = γ ( t J + v c 2 y J ) ,

com

(2) γ = 1 1 - v 2 / c 2 .

A principal diferença entre as TL de ida, de SM para SJ e, de volta, de SJ para SM, está no sinal da velocidade relativa, já que SM se move para a esquerda em relação a SJ com velocidade v=-vj^.

Nesse formato, estas equações incorporam uma convenção muito importante, também empregada por Einstein, a que afirma que as origens dos tempos nos dois referenciais são definidas pelo cruzamento das origens dos eixos espaciais xyz. Num problema com vários eventos é conveniente escolher um deles como origem dos tempo e dos espaços nos dois referenciais e determinar os demais em relação a ele.2 2 De fato, as equações das TL envolvem os intervalos entre as coordenadas Δ⁢x, Δ⁢y, Δ⁢z e Δ⁢t de dois eventos. A vantagem de usarmos um evento de referência, em que todas coordenadas iniciais são zero, é reduzir os intervalos à própria coordenada do outro, pois Δ⁢x=x-0, Δ⁢y=y-0, Δ⁢z=z-0 e Δ⁢t=t-0, o que torna as TL bem mais fáceis de serem manipuladas. Esta é uma convenção muito prática, adotada por Einstein em 1905 e seguida neste texto. Por esse motivo, ele é chamado de evento de referência ER, descrito, por convenção, como

(3) evento E R { S M : [ x 1 M = 0 , y 1 M = 0 , z 1 M = 0 ; t 1 M = 0 ] S J : [ x 1 J = 0 , y 1 J = 0 , z 1 J = 0 ; t 1 J = 0 ] .

Tal como as transformações de Galileu, as coordenadas x, y e z nas eqs. (1) dependem do tempo. Entretanto, existe uma grande novidade nas TL, que a coordenada t depende das coordenadas espaciais. Por isso, na relatividade, algumas noções relacionadas ao espaço (distância entre dois pontos) e à passagem do tempo (intervalo entre dois instantes) foram alteradas em relação à visão newtoniana. O espaço e o tempo tornaram-se entidades relativas ao referencial, com caráter unificado, tal como afirma Minkowski:

As visões de espaço e tempo que eu quero apresentar para vocês brotaram do solo da física experimental e nisso reside a força delas. Elas são radicais. Daqui em diante, tempo sozinho e espaço sozinho estão condenados a desvanecer em meras sombras e apenas um tipo de união dos dois preservará uma realidade independente.

3. Comprimento de Objetos em Movimento

O problema de medir objetos extensos em movimento também é discutido no trabalho de Einstein de 1905. Pode parecer estranho, já que na mecânica clássica os corpos sempre possuem o mesmo tamanho, estejam eles em repouso ou em movimento. No contexto da relatividade, o comprimento de um objeto é associado às coordenadas espaciais de eventos e estas, dependem do referencial. A noção de comprimento de uma barra é construída a partir da distância entre dois eventos localizados nas suas extremidades e, para que ela tenha sentido, é preciso que os eventos ocorram no mesmo instante. Ou seja, é muito importante que eles sejam simultâneos pois é a única maneira de eliminarmos o tempo e obter um intervalo puramente espacial entre as coordenadas. Esta é uma característica das medidas de comprimento na relatividade, tomar eventos simultâneos em um referencial.

Por exemplo, consideremos uma barra de metal cujo comprimento em repouso em SJ vale λ, como a mostrada na Fig.3(a). Em SM, essa barra se desloca com velocidade v e, quando observada em um instante tM qualquer, a distância dABM entre as suas extremidades é menor que λ, como ilustra a Fig.3(b) e mostramos a seguir.

Figura 3:
A barra de metal.

Para determinar o comprimento da barra em SM, precisamos considerar dois eventos A e B simultâneos nesse referencial. Como o movimento da barra é na direção do eixo y, as coordenadas x e z permanecem inalteradas nas transformações de Lorentz e, por isso, iremos omiti-las. Por conveniência, colocamos o evento A na origem comum de SJ e SM, de modo que ele pode ser considerado o evento de referência. Assim, temos

(4) E A { S M : [ 0 ; 0 ] S J : [ 0 ; 0 ] .

Com esta convenção, a distância dABM é determinada pela coordenada espacial do evento B. Com os dados diretos do problema, temos tBM=tAM=0, pois A e B são simultâneos em SM. O comprimento da barra em SJ é conhecido e corresponde à coordenada y de EB, dada por yBJ=λ. Assim, as coordenadas do evento B são

(5) E B { S M : [ y B M ; t B M ] = [ y B M = ? ; t B M = 0 ] S J : [ y B J ; t B J ] = [ y B J = λ ; t B J = ? ] .

Nesta situação, temos uma informação em SJ e outra em SM e yBM e tBJ podem ser determinadas empregando as TL de SJSM, dadas na eq. (1). Para a coordenada temporal, tomamos a equação tBM=γ(tBJ+vyBJ/c2) e substituindo os dados conhecidos de EB, obtemos

0 = γ ( t B J + v λ / c 2 ) 0 = t B J + v c 2 λ
t B J = - v c 2 λ .

Esse resultado, usado na coordenada espacial yBM=γ(yBJ+vtBJ), fornece

y B M = γ [ λ + v ( - v c 2 λ ) ] = γ λ ( 1 - v 2 / c 2 ) = γ λ / γ 2
y B M = λ γ .

Inserindo os valores na descrição dos eventos, temos o quadro completo nos dois referenciais

(6) E A { S M : [ 0 ; 0 ] S J : [ 0 ; 0 ] E B { S M : [ λ γ ; 0 ] S J : [ λ ; - v c 2 λ ] .

O comprimento da barra para Maria é dado por yBM-yAM=λ/γ e, como γ>1, em SM, dABM<λ e, portanto, a barra é menor que em SJ. Numa situação como essa, a contração da barra é um efeito real e que pode ser verificado experimentalmente. É importante notar que essa contração é sempre acompanhada de outro efeito. O quadro (6) indica que os eventos A e B são simultâneos em SM mas, em SJ, não o são, pois tAJtBJ. Neste caso, como tBJ<tAJ, para João3 3 Um tempo negativo não é um problema, já que a origem t=0 é uma convenção arbitrária. , o evento B ocorre antes do evento A. Esse é um exemplo de situação em que eventos simultâneos em um referencial deixam de sê-lo em outro, o que evidencia a quebra da simultaneidade. Esse conjunto de ideias e efeitos é o que permite ter uma visão coerente do problema da garagem.

4. O Problema da Garagem

O trem mostrado na Fig.4(a) está em repouso no referencial SJ e tem comprimento LJ. Esse trem se move com velocidade v=vj^ sobre uma linha férrea, estacionária no referencial SM, no fim da qual existe uma garagem de tamanho M, menor que LJ, com uma porta na entrada que pode ser fechada, como mostra a Fig.4(b).

Figura 4:
(a) Referencial SJ e o trem em repouso; (b) Referencial SM e a garagem em repouso.

Nesse problema, lidamos com seis comprimentos importantes:

  • LJ: comprimento do trem em repouso em SJ;

  • LM: comprimento do trem em movimento em SM;

  • M: comprimento da garagem em repouso em SM;

  • J: comprimento da garagem em movimento em SJ;

  • dM: distância da origem dos referenciais à entrada da garagem em SM e

  • dJ: distância da origem dos referenciais à entrada da garagem em SJ.

O nosso objetivo é discutir se, no contexto da relatividade, é possível que o trem, cujo comprimento em repouso é maior que o da garagem, LJ<M, entre completamente no interior dela, de modo que a porta possa ser fechada.

4.1. A situação vista em SM

Iniciamos nossa discussão no referencial SM de Maria e, para isso, precisamos comparar o comprimento LM do trem em movimento com o comprimento M da garagem em repouso. Pela seção anterior, sabemos que vai existir uma contração do trem, que depende da sua velocidade, através do fator γ. Para determinar LM, escolhemos dois eventos E1 e E2 simultâneos em SM, como na seção anterior e a distância espacial entre eles é o comprimento desejado. Tomamos E1 como o evento de referência e temos a situação mostrada na Fig.5.

Figura 5:
Os eventos E1 e E2 em SM.

Os valores do enunciado nos permite escrever

(7) E R = E 1 { S M : [ 0 ; 0 ] S J : [ 0 ; 0 ] E 2 { S M : [ y 2 M = ? ; t 2 M = 0 ] S J : [ y 2 J = L J ; t 2 J = ? ]

e, usando o resultado da seção anterior, temos

(8) E 1 { S M : [ 0 ; 0 ] S J : [ 0 ; 0 ] E 2 { S M : [ L J γ ; 0 ] S J : [ L J ; - v c 2 L J ] ,

Assim, LM=y2M-y1M=LJ/γ. Observamos que para o trem entrar na garagem em SM, é preciso que LM=LJ/γ<M. Portanto, a velocidade vmín é dada pela condição γ=LJ/M, que corresponde a

(9) γ 2 = 1 1 - v mín 2 / c 2 = ( L J M ) 2 1 - v mín 2 c 2 = ( M ) 2 ( L J ) 2 v mín = c 1 - ( M ) 2 / ( L J ) 2 .

Para tornar essa discussão mais concreta, adotamos valores numéricos e supomos que o comprimento do trem em repouso seja LJ=100m e o da garagem, M=75m. Neste caso, a velocidade mínima que o trem deve ter para entrar na garagem é vmín =0,66c. Na Tabela 1 mostramos os comprimentos do trem em SM para um conjunto de velocidades diferentes.

Tabela 1:
Comprimentos do trem em SM. Note que para v<0,66c, o trem é maior que a garagem e para v>0,66c, ele é menor.

A partir de agora e em todo o restante do texto, adotamos o valor de vmín =0,66c, de tal forma que γ=1,33 e para facilitar nossa discussão, inserimos um ponto A na dianteira do trem e um B, na traseira. Num dado instante tM>0 em SM, representamos na Fig.6(a) a localização do trem em movimento. Durante todo o movimento do trem, até o instante em que ele entra na garagem, seu comprimento em SM é constante, vale LM e, portanto, não é correta a ideia que às vezes encontramos de que o trem ‘vai encolhendo’ à medida que o tempo passa. No instante em que o ponto A, a dianteira do trem, toca a parede interna da garagem, já é possível fechar a porta4 4 Por simplicidade supomos que a porta possa ser fechada instantaneamente. , situação mostrada na Fig.6(b).5 5 Já fixamos os eventos E3 e E4 na figura (b), relativos è entrada do trem na garagem, pois serão usamos posteriormente.

Figura 6:
o trem em movimento em SM.

4.2. A situação vista em SJ

A novidade deste texto é analisar o que acontece em SJ, no qual o trem está em repouso e a garagem se desloca com velocidade vmín , para a esquerda. O comprimento LJ do trem é conhecido, no entanto, o tamanho da garagem em movimento J precisa ser determinado. Para calcular o comprimento da garagem em movimento, escolhemos dois eventos E5 e E6, simultâneos em SJ, representados na Fig.7 que, por simplicidade, tomamos em tJ=0:

  • E5: posição da extremidade direita da garagem em tJ=0 e

  • E6: posição da extremidade esquerda da garagem em tJ=0.

Figura 7:
Dois eventos vistos em SJ.

Como a garagem está fixa em SM [ver Fig.6(b)], as coordenadas espaciais de E5 e E6 são conhecidas em quaisquer instantes. Assim, a formulação dessa situação corresponde a

(10) E 6 { S M : [ y 6 M = d M ; t 6 M = ? ] S J : [ y 6 J = ? ; t 6 J = 0 ] E 5 { S M : [ y 5 M = d M + M ; t 5 M = ? ] S J : [ y 5 J = ? ; t 5 J = 0 ] ,

Usando as TL, determinamos t6M e y6J para E6 e, t5M e y5J para E5. Para tanto, primeiro obtemos os valores de tM nas eqs. (11) e (13), para depois empregá-los em (12) e (14) no cálculo de yJ:

(11) t 6 J = γ ( t 6 M - v y 6 M / c 2 ) 0 = γ ( t 6 M - v d M / c 2 ) t 6 M = v d M / c 2 ,
(12) y 6 J = γ ( y 6 M - v t 6 M ) = γ ( d M - v 2 d M / c 2 ) = γ d M ( 1 - v 2 / c 2 ) = d M / γ .
(13) t 5 J = γ ( t 5 M - v y 5 M / c 2 ) 0 = γ ( t 5 M - v d M / c 2 ) t 5 M = v ( d M + M ) / c 2 ,
(14) y 5 J = γ ( y 5 M - v t 5 M ) = γ [ ( d M + M ) - v 2 ( d M + M ) / c 2 ] = γ ( d M + M ) ( 1 - v 2 / c 2 ) = ( d M + M ) / γ .

Substituindo em (10), temos

(15) E 6 { S M : [ d M ; v c 2 d M ] S J : [ d M / γ ; 0 ] E 5 { S M : [ d M + M ; ( d M + M ) v / c 2 ] S J : [ ( d M + M ) / γ ; 0 ] ,

Este resultado contém três informações importantes. A primeira é que o comprimento da garagem em SJ é dado por y5J-y6J=M/γ e, como γ>1, J<M. A segunda é que, analogamente, a distância entre a origem de SJ e a entrada da garagem dJ=y6J-y1J=dM/γ também aparece contraída. Finalmente, é importante notar que os eventos E5 e E6, que são simultâneos em SJ, deixam de sê-lo em SM, já que t5M>t6M.

Usando os valores numéricos LJ=100m e J=M/γ=56,4m, temos a situação em SJ mostrada na Fig.8.

Figura 8:
Situação em SJ: o trem e a garagem contraída.

Com esta descrição em SJ, surge a questão de saber se nesse referencial o trem pode entrar na garagem e a porta fechar. Olhando o desenho poderíamos ser tentados a dizer que não. Esta questão nos coloca frente a um aparente paradoxo, que nos divide ao meio. Para sair dele, precisamos recorrer a algo sólido da teoria, o caráter absoluto da ocorrência de um evento. Na relatividade, cada evento corresponde a uma observação concreta e objetiva e, se ocorre em um referencial, deve ocorrer em todos os outros. No nosso caso, se a porta fecha com o trem dentro da garagem no referencial SM, o mesmo deve acontecer em SJ. O ponto crítico agora desse problema é como explicar isso em SJ.

4.3. A solução do paradoxo

Para resolver esse paradoxo aparente recorremos à estrutura teórica, à matemática, pois ela oferece um caminho mais seguro para o pensamento do que a nossa intuição. Na Figura6(b), representamos o trem dentro da garagem em SM. Para tratar o problema é preciso explicitar os eventos relevantes, que são

  • ER– evento de referência, a coincidência da origem dos referenciais SM e SJ, dado em (7);

  • E3– o ponto A toca a parede interna da garagem e

  • E4– a porta da garagem ao fechar toca o ponto B, mostrado nas Figs.9(a) e (b).

Figura 9:
(a) o evento de referência, em tRM=0; (b) o trem dentro da garagem em SM, no instante t3M=t4M.

Em SM, temos ER, E3 e E4 representados na Fig.9, com E3 e E4 simultâneos.

Em SM, E3 e E4 são simultâneos e ocorrem no instante t3M=t4M=dM/v e suas posições são y3M=dM+M e y4M=dM, já que consideramos o tamanho do trem exatamente igual ao tamanho da garagem. Como a descrição desses eventos em SJ ainda é desconhecida, esquematizamos

(16) E 3 { S M : [ d M + M ; d M / v ] S J : [ y 3 J = ? ; t 3 J = ? ] , E 4 { S M : [ y 4 M ; t 4 M ] = [ d M ; d M / v ] S J : [ y 4 J = ? ; t 4 J = ? ] ,

sendo que as incognitas são determinadas com o uso das TL. Fazendo isso, temos

y 3 J = γ ( y 3 M - v t 3 M ) = γ ( d M + M - d M ) = γ M ;
t 3 J = γ ( t 3 M - v y 3 M / c 2 ) = γ / v [ d M - ( d M + M ) v 2 / c 2 ] ;
y 4 J = γ ( y 4 M - v t 4 M ) = γ ( d M - d M ) = 0 ;
t 4 J = γ ( t 4 M - v y 4 M / c 2 ) = d M / γ v ( 1 - v 2 / c 2 ) = d M γ v .

Assim, as descrições dos dois eventos nos dois referenciais são dadas por

(17) E 3 { S M : [ d M + M ; d M v ] S J : [ γ M ; d M γ v - γ v M c 2 ] . E 4 { S M : [ d M ; d M v ] S J : [ 0 ; d M γ v ] .

Os resultados do quadro acima evidenciam a quebra da simultaneidade em SJ, pois E3 e E4 ocorrem em instantes diferentes. O termo negativo (-γvMc2) em t3J indica que t4J>t3J, mostrando que em SJ, o evento 3 ocorre antes que o evento 4. Isto significa que a garagem encosta no ponto A antes que a sua porta chegue na posição da traseira, o ponto B.

5. Interpretação dos Resultados

Para tornar mais concreta a discussão, adotamos dM=3000m e retomamos os valores numéricos apresentados anteriormente, v=0,66c, M=75m, γ=1,33 e o quadro (17) passar a ser6 6 Os instantes obtidos são da ordem de μ⁢s=10-6⁢s, já que v é comparável a c.

(18) E 3 { S M : [ 3075 m ) ; ( 15 , 2 μ s ) ] S J : [ ( 100 m ) ; ( 11 , 2 μ s ) ] . E 4 { S M : [ ( 3000 m ) ; ( 15 , 2 μ s ) ] S J : [ ( 0 ) ; ( 11 , 4 μ s ) ] .

A representação gráfica dos eventos em SJ envolve ER, E3 e E4, mostrados na Fig.10. Nesse referencial, o trem está em repouso e a garagem se aproxima dele com velocidade v para a esquerda. O primeiro evento relevante após o de referência é E3, cuja coordenada espacial vale y3J=γM=100 m, resultado coerente, pois o trem está em repouso e seu comprimento próprio é LJ=100m. Posteriormente, ocorre o evento 4, mostrado na Fig.10(d), que corresponde ao fechamento da porta da garagem, cuja coordenada espacial vale y4J=0, o que evidencia que o trem não saiu do lugar e coincide com a origem de SJ.

Figura 10:
Compressão do trem em SJ; a região riscada representa o trem comprimido

Para aceitar melhor a situação descrita na Fig.10(d), precisamos lembrar que, de acordo com a relatividade, se a porta fecha em SM, o mesmo tem que acontecer em SJ. Isso é verdade para trens e garagens feitos de quaisquer materiais. No caso de trens reais, choques muito intensos tendem a deformá-los e destruí-los. Entretanto, o resultado da relatividade deve permanecer válido também se supusermos que tanto a garagem quanto o trem sejam indestrutíveis. Neste caso ideal, o trem seria comprimido, por meio de uma deformação elástica.

Uma questão importante que precisa ser esclarecida diz respeito ao que acontece com o trem no intervalo entre os instantes t3J e t4J, tal como mostra a Fig.10(c). Num instante t4>t>t3, o lado direito do trem (ideal) já bateu na parede da garagem e está sujeito a uma força para a esquerda que, em princípio, poderia fazer com que ele recuasse. No entanto, a ocorrência do evento 4 indica que isso não aconteceu. Assim, no instante t, o ponto A do trem é empurrado para a esquerda, enquanto o ponto B permanece parado na origem de SJ, em y4J=0. Ou seja, ele não recua! Diferentemente do contexto newtoniano, na relatividade, não se aplica a noção de corpo rígido, pois não existe transmissão instantânea de informação de um ponto para outro. Isso quer dizer que todos os pontos na extensão do trem não são informados ao mesmo tempo do choque ocorrido no ponto A. O fechamento da porta só é possível porque ele acontece antes da informação da batida no ponto A chegar ao ponto B.

De modo geral, a informação de que um evento ocorreu num ponto é transmitida aos demais pontos do espaço através de uma bolha matemática,7 7 A representação da evolução da bolha ao longo do tempo corresponde ao cone de luz. esférica e tridimensional, com centro na coordenada espacial do evento, cuja superfície se expande com a velocidade da luz c. No caso do trem que entra na garagem, em um instante t qualquer, posterior à t3J, a informação da ocorrência de E3 já chegou em todos os pontos do espaço internos à esfera de raio R(t)=cΔt=c(t-t3J). Na Fig.11, mostramos a configuração do problema nos instantes t3J e t4J. No instante t3J ocorre o choque no ponto A e nasce a bolha de informação. Na medida que o tempo passa, a bolha cresce com velocidade c e a garagem se move para a esquerda. A questão é saber quem chega antes ao ponto B, a porta da garagem ou a bolha. Para isso, devemos comparar o raio R(t)=cΔt da bolha com o comprimento LJ do trem. Este raio é dado por

R ( t ) = c Δ t = c ( t 4 J - t 3 J ) = c ( γ v M c 2 ) = γ v M c
R ( t ) = v L J c e ,

Figura 11:
Informação entre os eventos 3 e 4.

como v/c<1, concluímos que R<LJ.

Este cálculo mostra que o evento 4 acontece antes da informação da ocorrência do evento 3 chegar ao ponto B, na posição traseira do trem. Desse modo, se existissem passageiros no fundo do trem, eles não saberiam que a frente do trem bateu antes deles próprios se chocarem com a garagem.

6. Considerações Finais

Normalmente, o ensino da relatividade fica centrado em algumas aplicações das fórmulas da ‘contração do espaço’ e da ‘dilatação do tempo’, limitando a discussão de uma série de outros elementos que compõem a teoria e conferem beleza a ela. O objetivo deste texto foi resolver um problema conhecido de relatividade com um enfoque em questões também discutidas por Einstein em seu texto original. No seu artigo, Einstein destaca que em relatividade não podemos considerar corpos rígidos, isto é, extensos, mas sim tratar problemas que envolvem comprimento com o uso de ‘pontos’ com quatro coordenadas, três espaciais e uma temporal. Estes pontos quadridimensionais são os eventos, cujas descrições devem ser relacionadas por equações de transformação de um referencial para outro, conforme Einstein discorre no capítulo 3 do seu artigo ([9[9] A. Einstein, H.A. Lorentz, H. Minkowski e H. Weyl, The Principle of Relativity (Dover, New York, 1952).], p. 43).

A noção de eventos e o uso das transformações de Lorentz, de uma maneira mais explícita, traz um detalhamento maior sobre os pontos do espaço e permite uma interpretação do que acontece em cada referencial ‘posterior ’ aos cálculos, enfatizando a solidez e consistência teórica-matemática da teoria. Com isso, as conhecidas ‘contração do espaço’ e ‘dilatação do tempo’ tornam-se secundárias e não podem ser consequências generalizadas, sendo necessária uma análise e uma interpretação do problema caso a caso.

Nossa intenção didática foi propiciar aos leitores, especialmente os professores de física e estudantes de graduação, um enriquecimento do tema para suas aulas, com questões pouco exploradas, tais como a noção de comprimento de corpos em movimento, a relatividade da simultaneidade, causalidade e elementos do cone de luz. Esta forma de abordar os problemas de relatividade se constitui numa fonte inesgotável de aspectos que podem ser tratados em aula, trazendo à tona o que chamamos de oportunidades perdidas, que uma abordagem tradicional, focadas nas fórmulas Δt=γΔt0 e L=L0/γ, não contempla. Esperamos que, com este texto, um professor possa apresentar a quantidade de coisas bonitas e complexas contidas na relatividade de Einstein, tanto na escola básica, quanto no ensino superior.

Agradecimentos

Quero agradecer ao Manoel R. Robilotta pelas discussões conceituais deste artigo e ao revisor da RBEF pelas sugestões e contribuições valiosas que aprimoram o texto.

Referências

  • 1
    Mesma atitude adotada por [8[8] M.J. Bechara, J.L.M. Duarte, M.R. Robilotta e S. Salém, em: Bases do Eletromagnetismo, Ondas e Relatividade (Editora EDUSP, São Paulo, no prelo).]. A razão pedagógica para não usarmos os tradicionais S e S, presentes nos livros-texto, é que intuitivamente tendemos a atribuir S ao referencial em movimento e nós, ‘em repouso’, ficamos em S. Esta postura carrega tacitamente a ideia de que o meu referencial S é diferente (ou melhor) do que o outro, atitude não condizente com o primeiro postulado da relatividade.
  • 2
    De fato, as equações das TL envolvem os intervalos entre as coordenadas Δx, Δy, Δz e Δt de dois eventos. A vantagem de usarmos um evento de referência, em que todas coordenadas iniciais são zero, é reduzir os intervalos à própria coordenada do outro, pois Δx=x-0, Δy=y-0, Δz=z-0 e Δt=t-0, o que torna as TL bem mais fáceis de serem manipuladas. Esta é uma convenção muito prática, adotada por Einstein em 1905 e seguida neste texto.
  • 3
    Um tempo negativo não é um problema, já que a origem t=0 é uma convenção arbitrária.
  • 4
    Por simplicidade supomos que a porta possa ser fechada instantaneamente.
  • 5
    Já fixamos os eventos E3 e E4 na figura (b), relativos è entrada do trem na garagem, pois serão usamos posteriormente.
  • 6
    Os instantes obtidos são da ordem de μs=10-6s, já que v é comparável a c.
  • 7
    A representação da evolução da bolha ao longo do tempo corresponde ao cone de luz.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    09 Jun 2022
  • Revisado
    20 Set 2022
  • Aceito
    25 Set 2022
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