Acessibilidade / Reportar erro

Gleb Wataghin e a pesquisa sobre os chuveiros penetrantes de raios cósmicos em São Paulo (1939–1949)

Gleb Wataghin and the research on penetrating showers of cosmic rays in São Paulo (1939–1949)

Resumos

Neste artigo discute-se o experimento seminal de Gleb Wataghin e seus jovens assistentes Marcelo Damy de Souza Santos e Paulus Aulus Pompéia em que foi detectado um componente inesperado de partículas capazes de atravessar dezenas de centímetros de chumbo (os chuveiros penetrantes), explorando as conexões entre o cenário brasileiro da época e os desenvolvimentos posteriores da física moderna. São ainda descritos os trabalhos de Wataghin na USP sobre raios cósmicos no período de 1939 a 1949, considerando a influência recíproca de Wataghin e Heisenberg na busca da solução para o problema das divergências da Eletrodinâmica Quântica (QED), na introdução de comprimento universal mínimo e, principalmente, na consolidação da hipótese da produção múltipla das partículas geradas na colisão dos raios cósmicos com a atmosfera.

Palavras-chave:
Chuveiros Cósmicos; História da Física; Física no Brasil; Eletrodinâmica Quântica


It is discussed the seminal experiment by Gleb Wataghin and his young assistants Marcelo Damy de Souza Santos and Paulus Aulus Pompéia, in which an unexpected component of very penetrating particles capable of crossing tens of centimeters of lead (the penetrating showers) was detected, exploring the connections between the Brazilian scenario at that time and the later developments of modern physics. Wataghin’s work at USP on cosmic rays in the period from 1939 to 1949 is also described, considering the reciprocal influence of Wataghin and Heisenberg in the search for a solution to the problem of divergences in Quantum Electrodynamics (QED), in the introduction of minimum universal length and, mainly, in the consolidation of the hypothesis of the multiple production of the particles generated in the collision of cosmic rays with the atmosphere.

Keywords:
Cosmic Showers; History of Physics; Physics in Brazil; QED


1. Introdução

As pesquisas acerca dos raios cósmicos tiveram início na virada do século XIX para o século XX por meio de um problema aparentemente sem muita importância: corpos eletrificados perdiam gradativamente a sua carga elétrica, independentemente das tentativas de blindagem ou de isolamento destes corpos. As investigações levaram à conclusão de que pares desconhecidos de íons e elétrons eram formados no ar. Posteriormente, verificou-se que, além dos elementos radioativos naturais da crosta terrestre, uma parcela significativa das ionizações eram causadas por radiações provenientes da alta atmosfera. No ano de 1912, após uma série de sete voos de balão a altitudes de até 5.000 m, entre a Áustria e a Alemanha, Victor F. Hess mediu um aumento nas ionizações atmosféricas acima de 1.700 m do nível do mar [1[1] V.F. Hess, Phys. Z. 13, 1084 (1912).]. Hess concluiu que as ionizações seriam causadas por radiações de fora da atmosfera da Terra que, devido ao seu alto poder de penetração, foram interpretadas como raios gama muito energéticos. Para designá-las, Hess utilizou o termo “radiações ultragama”, Egon von Schweidler as chamou de “raios de Hess”, Werner H. G. Kolhörster, que também fez voos de balão estendendo as medidas de Hess a altitudes de até 9.300 m de altitude [2[2] W. Kolhoester, Phys. Z. 14, 1066 (1913)., 3[3] W. Kolhoester, Dtsch. Phys. Ges. Verh. 16, 719 (1914).], denominou-as “radiações de altitude” (ou Höhenstrahlung, em alemão) e Robert A. Millikan cunhou, no ano de 1925 [4[4] R.A. Millikan, Nature 116, 823 (1925).], o termo “raios cósmicos”, o qual sobrevive até os dias de hoje.

As pesquisas nesta área renderam uma série de importantes avanços na física moderna. Até a década de 1950, os raios cósmicos foram as principais fontes naturais de radiações de altas energias, acima das produzidas nos decaimentos espontâneos de núcleos radioativos. Por conseguinte, nas interações dos raios cósmicos com a matéria, novos constituintes, até então desconhecidos, eram produzidos e foram descobertos, entre eles: os pósitrons [5[5] C.D. Anderson, Phys. Rev. 43, 491 (1933)., 6[6] S.H. Neddermeyer e C.D. Anderson, Phys. Rev. 51, 884 (1937).], os múons [7[7] J.C. Street e E.C. Stevenson, Phys. Rev. 51, 1105 (1937).] e os píons [8[8] C.M.G. Lattes, H. Muirhead, G.P.S. Occhialini e C.F. Powell, Nature 159, 694 (1947)., 9[9] C.M.G. Lattes, G.P.S. Occhialini e C.F. Powell, Nature 160, 453 (1947).]. Além disso, os raios cósmicos permitem o estudo de fenômenos no Universo em condições muito além daquelas que a humanidade é capaz de reproduzir em laboratório. Por exemplo, raios cósmicos são captados com energias ultra-altas, da ordem de 1020 eV, que superam em até 10.000 vezes as produzidas nas interações do Grande Colisor de Hádrons (LHC) do CERN. Estas partículas trazem consigo valiosas informações acerca dos ambientes astrofísicos onde foram geradas. Entender a sua origem e os processos físicos para sua produção, bem como as interações que sofrem em tamanhas energias, estão entre os problemas científicos mais importantes – e ainda em aberto – da atualidade.

Neste artigo são discutidas as contribuições de Gleb Wathagin e seu grupo de pesquisas, junto à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, relacionadas com os chuveiros penetrantes dos raios cósmicos e o impacto da observação desses chuveiros para o progresso da física de altas energias, notadamente na descoberta das partículas estranhas, ou partículas “V”. Digno de registro é o apoio de Wataghin, tanto experimental quanto teórico, à hipótese de Werner Heisenberg acerca do processo de geração dos raios cósmicos na colisão com a atmosfera.

Na Seção 2 2. Os Chuveiros Cósmicos Ao atingirem a profundidade tipicamente da estratosfera, os raios cósmicos colidem com núcleos atômicos, produzindo cascatas de partículas secundárias, denominadas chuveiros atmosféricos extensos. Da produção de píons subsequente das colisões, duas principais componentes do chuveiro são formadas: a componente eletromagnética e a componente muônica. Os píons neutros (π0) geram as partículas da componente eletromagnética: fótons, elétrons e pósitrons. O principal modo de decaimento do π0 é em dois fótons (π0→γ+γ), que se dá quase imediatamente (τ=8,4×10-17 s) após eles serem produzidos, percorrendo a velocidades relativísticas apenas cerca de 25 nm. Os fótons interagem com o campo elétrico de outros núcleos atômicos, dando origem a pares de elétrons e pósitrons. Os elétrons e os pósitrons são acelerados nos campos elétricos da matéria emitindo mais fótons, pelo processo conhecido como Bremsstrahlung (ou “radiação de frenagem”, em alemão). Tais fótons geram mais pares de elétrons e pósitrons e assim, sucessivamente, por várias gerações. Este processo de multiplicação segue enquanto as energias cinéticas das partículas da cascata eletromagnética forem maiores que a energia crítica no ar, isto é, 84 MeV, quando perdas de energia por ionização ou excitação predominam e a atmosfera começa absorver a energia das partículas da cascata eletromagnética [10, 11]. Em 1934, com base na teoria quântica-relativística de Dirac para o elétron, Hans Bethe e Walter Heitler deduziram as fórmulas para as probabilidades de emissão de fótons ou de criação de pares [11] e a teoria de cascatas eletromagnéticas foi desenvolvida em seguida, após os trabalhos de Homi J. Bhabha e Heitler [12] e de J. F. Carlson e J. Robert Oppenheimer [13]. Nas teorias de Bhabha e Heitler, e de Carlson e Oppenheimer, expressões aproximadas para a descrição dos chuveiros foram obtidas, baseadas nas fórmulas de Bethe e Heitler para as seções de choque de Bremsstrahlung e de criação de pares. Por outro lado, sabe-se atualmente que os píons carregados dos chuveiros atmosféricos decaem em múons e neutrinos. Os múons são léptons carregados que só interagem via interação eletromagnética e interação fraca. Eles podem depositar alguma energia na matéria, ionizando e excitando os átomos atmosféricos, mas com menor probabilidade se comparados aos elétrons e aos pósitrons. Caso venham a decair, os múons produzem elétrons ou pósitrons, alimentando a cascata eletromagnética, e também neutrinos atmosféricos. Entretanto, na grande maioria dos casos, os múons propagam-se pela atmosfera em trajetórias quase retilíneas, desde o seu ponto de produção até o de absorção no interior da crosta terrestre ou no fundo do mar. Já os neutrinos são léptons desprovidos de carga elétrica e, portanto, interagem muito raramente com a matéria, praticamente, eles atravessam a matéria da atmosfera e a da Terra sem sofrer alterações. Os múons dão origem à chamada componente penetrante (“dura”) dos chuveiros. Os chuveiros penetrantes eram conhecidos e haviam sido repetidamente reportados com ocorrência bem acima da esperada por coincidências randômicas. Em 1936, Werner Heisenberg publicou o artigo Sobre a Teoria dos “Chuveiros” na Radiação Cósmica em que abordou os “chuveiros explosivos” de raios cósmicos usando a teoria da interação beta proposta por Enrico Fermi [14]. Os chamados “chuveiros explosivos”, observados em câmaras de nuvens2 por Fussel [15] e, também, por Powell [16], foram tidos como fenômenos bem diferentes das bem conhecidas cascatas eletromagnéticas. A notável contribuição de Heisenberg à física dos raios cósmicos será apresentada na Seção 7. Além de despertar o interesse de outros teóricos, deram origem a uma série de experimentos que vieram a confirmar a existência de chuveiros de partículas penetrantes, possivelmente originadas de uma única interação. A origem da componente penetrante era, nessa época, um dos problemas mais importantes da pesquisa em raios cósmicos. Em 1938, Johnson já havia concluído, após uma análise fenomenológica, que os primários da componente penetrante eram prótons [17], seguido por Blackett [18] e por Jánossy e Nicolson [19]. A investigação sistemática dos chuveiros penetrantes foi iniciada a partir do experimento do grupo de Wataghin que demonstrou a eficácia dos detectores com um aparato mais simples do que os grupos liderados por L. Jánossy [20, 21]. Os estudos de Jánossy levaram o grupo liderado por G. D. Rochester [22] a descobrir as partículas estranhas, como será discutido na Seção 5. , uma breve descrição das principais características dos chuveiros cósmicos é apresentada. São abordados, na Seção 3 3. As Primeiras Experiências no Brasil Na área de física experimental, deve-se mencionar dois importantes experimentos realizados no Brasil. O primeiro feito por Cândido Batista de Oliveira, professor da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, com um pêndulo de Foucault, em 1851, no Rio de Janeiro. Embora a competência experimental dele não fosse boa, o que possivelmente levou a erros sistemáticos no experimento, os resultados foram reportados nos Comptes Rendus, em 1851, e, em 1852, no Poggendorff Annallen (atual Annalen der Physik). Tais resultados foram comunicados na Royal Society, em 1854, por Charles Babbage, e referenciados nos Proceedings daquela sociedade [23, 24]. Em 1898, Henrique Morize defendeu uma tese cujo tema eram os raios catódicos e os raios de Roentgen [25]. Os resultados que obteve ao medir a duração da emissão dos raios-X com um dos aparatos que montou foram publicados nos Comptes Rendus [26]. No mesmo ano publicou na mesma revista um artigo no qual descreve um método prático para localizar um projétil dentro de um corpo humano com o uso dos Raios X. No ano de 1934, Theodoro Ramos, professor da Escola de Engenharia, viajou pela Europa com a incumbência de encontrar jovens cientistas para compor as cátedras da nascente Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da cidade de São Paulo. Enrico Fermi recebeu o convite de Ramos para ser professor de física no Brasil, mas declinou, indicando o jovem professor de origem ucraniana, Gleb Vassielievich Wataghin (1899–1986). Wataghin emigrou para a Itália, em 1919, fugindo da Revolução Russa. Em Turim, formou-se em física e em matemática. Entre os anos de 1925 e 1933, deu aulas na Academia Real e na Escola de Aplicação, Artilharia e Inteligência e, posteriormente, entre 1933 e 1934, na Universidade de Turim. Mudou-se para o Brasil, em 1934, e veio juntar-se a outros ilustres convidados de Ramos: Claude Lévi-Strauss, Luigi Fontapié, Giacomo Albanese, entre outros. Formava-se o embrião da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que comporia com a Escola Politécnica, as Faculdades de Medicina, de Direito e de Medicina Veterinária, além da Escola de Farmácia e Odontologia e Escola de Agronomia Luís de Queiróz, entre outras instituições isoladas, a futura Universidade de São Paulo [27]. Em São Paulo, Gleb Wataghin foi o professor da primeira geração de físicos formados no Brasil, tendo apresentado a física moderna e a mecânica quântica a seus alunos. Nas palavras de Fermi, esta teria sido a sua “segunda evangelização” – a primeira ele já fizera em Turim. Dava aulas de física para engenheiros, entre os quais, muitos foram convertidos, tornando-se físicos. Em artigo recente, Tavares, Bagdonas e Videira fazem uma análise aprofundada da careira científica e acadêmica de Gleb Wataghin e a partir das circunstâncias históricas de cruzar fronteiras para estudar na Itália, institucionalizar a pesquisa em física em um centro recém-criado no Brasil, de treinar alunos para se tornarem físicos, de propiciar a ida deles para complementação de estudos no exterior, além de manter um intercâmbio contínuo com centros avançados de pesquisa, levaram-no a consolidar uma identidade científica transnacional [28]. Outras análises sobre as atividades de Wataghin no contexto da missão italiana na USP e a criação da FFCL são encontradas nas Refs. [29, 30, 31]. A Fig. 1 mostra Gleb Wataghin no laboratório de pesquisa de raios cósmicos. Figura 1: Gleb Wataghin junto a contadores Geiger e aparelhos eletrônicos para contagem de raios cósmicos. Provavelmente na década de 1930. Foto do acervo IFUSP. O grupo de Wataghin recebeu considerável reforço em 1937 com a vinda de Giuseppe (Beppo) Occhialini (1907–1993) que aceitou uma cátedra na USP oferecida pelo governo italiano. Occhialini havia participado de pesquisas sobre raios cósmicos no Laboratório Cavendish da Universidade de Cambridge aonde fora, em 1931, aprender a técnica de câmaras de nuvens sob a liderança de P. M. Blackett [32, 33]. Durante os três anos que passou em Cambridge, Occhialini e Blackett fizeram importantes contribuições científicas e chegaram a observar a produção massiva de tracks que identificaram como pares do elétron e do antielétron previsto pela teoria relativista de Dirac, usando câmara de nuvens acoplada a contadores de Geiger-Müller.3 Eles também sugeriram um possível mecanismo para a produção dos chuveiros cósmicos baseados na colisão inicial e uma provável existência de ligações não ionizantes nos processos que dão origem aos chuveiros múltiplos [34]. Occhialini juntou-se a Wataghin, a quem conhecera durante visita em Cambridge, com objetivo de colaborar para instituir uma escola de física em São Paulo, desenvolvendo pesquisas tanto experimental quanto teórica, e formar os jovens pupilos, dentre os quais, César Lattes, que se tornou seu mais proeminente discípulo. Compartilhou com Wataghin o interesse nos chuveiros de raios cósmicos, com foco no uso de contadores de partículas para medidas de absorção. Com a entrada do Brasil na Guerra, a situação ficou insustentável para um “inimigo estrangeiro” e Occhialini renunciou à cátedra e após um curto período4 retornou para a Inglaterra, agora para Bristol, e deu início ao bem-sucedido trabalho de pesquisa sob a liderança de Cecil Powel, participando ativamente no desenvolvimento da técnica de emulsões e uso efetivo que levou à descoberta do méson pi em 1947, com a contribuição decisiva de seu ex-aluno brasileiro Cesar Lattes [35, 36]. Entre alguns de seus alunos mais conhecidos estavam Marcello Damy, Paulus Pompéia, Oscar Sala, Mário Schenberg e Roberto Salmeron e o já citado Cesar Lattes. Formou um grupo de física experimental com alguns de seus estudantes para detectar e estudar as interações de raios cósmicos. Seus experimentos contavam com instrumentação eletrônica simples, mas mundialmente competitiva, e logo publicaria os primeiros trabalhos em revistas internacionais de física. Na Fig. 2, a foto dos membros do grupo inicial de pesquisadores do Departamento de Física da FFCL da USP. Figura 2: Grupo inicial do departamento de Física, no final dos anos 30, sob a Jaboticabeira do quintal do prédio da Avenida Tiradentes, no. 11. Da direita para a esquerda: Roberto Xavier de Oliveira, Maria, Giuseppe Occhialini, Marcello Damy de Souza Santos, José, Yolande Monteaux (primeira mulher a se formar em Física no Brasil em 1937) e Abrahão de Moraes, Mario Schenberg, Gleb Wataghin e Francisco Bentivoglio Guidolin. Foto do acervo do IFUSP. Após se formar em Física em 1938, Marcello Damy de Souza Santos (1914–2009) tornou-se assistente de Wataghin nesse mesmo ano e se dedicou à construção de contadores e circuitos elétricos necessários à pesquisa dos raios cósmicos. Fez estágio com William Bragg no Laboratório Cavendish na Universidade de Cambridge. Participou da Expedição Compton e do “Symposium” de raios cósmicos. Tornou-se professor da cadeira de Física Geral e Experimental em 1941 e se tornou chefe do Departamento de Física em 1942. Durante a guerra, desenvolveu pesquisas para a Marinha, em especial, no sistema de captação de submarinos na costa brasileira. Após estágio na Universidade de Illinois sob a orientação de Donald Kerst, o inventor do betatron, e de Maurice Goldhaber, participou da construção do betatron brasileiro, que foi o primeiro acelerador do país e da América Latina, inaugurado em 1950 [37]. A Fig. 3 mostra Marcelo Damy junto a contadores Geiger e aparelhos eletrônicos para contagem de raios cósmicos. Figura 3: Marcelo Damy ao lado da instrumentação necessária para medidas de raios cósmicos. Provavelmente na década de 1930. Foto do acervo do IFUSP. Paulus Aulus Pompeia (1911–1993) formou-se engenheiro eletricista pela Escola Politécnica e físico pela FFCL/USP em 1939. Nesse mesmo ano tornou-se assistente de Wataghin e dedicou-se à construção de novos equipamentos de detecção de raios cósmicos. Em 1940, graças a Wataghin, estagiou no laboratório de Arthur Compton na Universidade de Chicago, onde desenvolveu novas técnicas de medição das radiações cósmicas. Acompanhou Compton em sua expedição ao Brasil em 1941. Regressou de vez ao Brasil quando os EUA entraram na Segunda Guerra Mundial em dezembro de 1941. Participou do esforço de guerra construindo um aparelho para medir a velocidade inicial dos projéteis e, junto com Damy, atuou no projeto Sonar. Foi um dos principais organizadores do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) a partir de 1948, tornando-se professor de Física do ITA e assumindo a direção do Departamento de Física e Química. A Fig. 4 mostra Paulus Pompéia, provavelmente no laboratório de Química, uma vez que foi um dos responsáveis pela implantação dos laboratórios de Física e Química. Muito preocupado com a qualidade de ensino, dedicou-se com afinco à formação de professores. O ambiente no ITA se deteriorou após o golpe de 64, e provocou sua aposentadoria do ITA em 1966. Nesse mesmo ano, tornou-se professor de Física Aplicada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP [37]. Figura 4: Paulus Pompéia na década de 50 provavelmente no laboratório de Química do ITA (ver a tabela Periódica e uma capela à esquerda). Foto do acervo da família. As medidas de radiação cósmica por Wataghin em São Paulo se iniciaram em 1937. Ele usou a técnica de contagem de coincidência que consiste na detecção quase simultânea de partículas subatômicas por meio de dois ou mais contadores conectados a um circuito eletrônico de coincidência. Seus assistentes, de início, Marcello Damy, e mais tarde, Paulus Pompeia, construíram os circuitos de coincidência usados pelo grupo. Tais circuitos eram cerca de dez vezes mais rápidos quando comparados com os existentes naquela época e permitiam medidas bastante precisas dos chuveiros penetrantes [38]. Em 1938, Wataghin e Damy publicaram resultados preliminares de medidas de chuveiros cósmicos realizados na mina de ouro de Morro Velho, Minas Gerais, à profundidade equivalente de água5 de 200 m e 400 m [39, 40]. Em 1940, Wataghin, Damy e Pompeia publicaram uma Carta ao Editor intitulada Simulaneous Penetrating Particles in the Cosmic Radiation no prestigiado periódico Physical Review em que foram apresentados os resultados sobre a detecção simultânea de partículas penetrantes dos chuveiros cósmicos [41].6 As medidas foram feitas em São Paulo a 800 m acima do nível do mar. Os contadores possuíam 100 cm2 de área e foram dispostos em dois arranjos de tubos de hidrogênio e argônio, conforme mostrado na Fig. 5, operando a uma pressão de 15 mm Hg, blindados com chumbo e interligados por quatro circuitos de coincidência, com tempo de coincidência de 42 μs. Os arranjos produziam coincidências sempre que as partículas atravessassem uma espessura de 16 cm de chumbo. Figura 5: Os dois arranjos de contadores utilizados por Wataghin, Damy e Pompeia para a observação de chuveiros penetrantes. As dimensões lineares são em centímetros [41]. Os contadores registraram quádrupla coincidência de partículas que atravessaram a camada de chumbo. Foram reportadas 54 coincidências com o arranjo I para um tempo de exposição de 12 dias e 2 horas e 46 coincidências com o arranjo II para um tempo de exposição de 12 dias, 23 horas e 40 minutos. As taxas de eventos obtidas, em cada caso, foram de cerca de 4,47 dia-1 e 3,54 dia-1, respectivamente. As frequências estimadas de disparos aleatórios nos dois arranjos eram de cerca de 2×10-4 min-1, ou seja, 15 vezes menor para o arranjo I e 12,5 menor para o arranjo II. Tais resultados evidenciaram a presença de pelo menos duas partículas penetrantes, passando simultaneamente pelos contadores dentro do intervalo de tempo do circuito de coincidência. Os resultados obtidos levaram os autores a “pensar que as partículas observadas estão associadas com os núcleos de chuveiros extensivos descobertos por Auger e colaboradores” e que a existência dessas partículas é de “notável interesse principalmente se essas partículas fossem os mesotrons” [41]. A foto da primeira página do manuscrito datilografado com correções, complementos e bibliografia manuscrita é mostrada na Fig. 6. Figura 6: Primeira página do manuscrito do artigo Showers of penetrating particles. O texto integral pode ser acessado emhttps://bit.ly/3vcme6n. Fonte: Acervo do IFUSP. Uma nova série de medidas foi reportada pelos mesmos autores no Physical Review usando um conjunto quíntuplo de coincidência em que confirmam a existência de chuveiros de partículas penetrantes e que o quinto contador permitiu estimar o espalhamento lateral do núcleo penetrante sobre uma área de 1 m2. Os resultados sugeriram um número médio de partículas nos chuveiros observados da ordem de 15 [46]. Após essas comunicações pioneiras, resultados complementares foram reportados na Academia Brasileira de Ciências [47] e publicados no ano seguinte no Physical Review [48]. As medidas7 obtidas abaixo de 30 m de argila (cerca de 50 m de equivalente de água) indicaram evidências da existência de chuveiros de pelo menos duas partículas tendo um alcance não inferior a 17 cm de chumbo e com o tamanho do núcleo penetrante da ordem de 0,2 m2. Nessas medidas foi usado o circuito multivibrador construído por Damy [49]. Registre-se o fato de que, na discussão dos resultados, os autores citam trabalhos realizados em 1940 por outros grupos, em particular, o de L. Jánossy e P. Ingleby [20], de Manchester, aos quais se atribuem, junto com o grupo brasileiro, os estudos iniciais dos chuveiros penetrantes. Wataghin, em depoimento ao CPDOC em 1975, relata informalmente sua participação e de seus colaboradores nas experiências que levaram à observação dos chuveiros penetrantes [50]: Na mesma época, decidi que a melhor coisa para o Brasil era formar aquela pouca gente que eu podia dar conta e depois mandar logo embora para o exterior. E pedi ao British Council, que se ocupava de bolsas de estudo e com quem eu mantinha boas relações, para dar uma bolsa ao Marcello Damy, para ir a Cambridge. Ele escolheu um dos melhores experimentais da época, um certo Carmichael.8 E naquela época, ficou trabalhando comigo o Paulus Pompéia, que era um pouquinho mais velho do que o Marcello Damy. Eu tinha que começar do nada para construir os aparelhos de raios cósmicos. Recebi, com bastante esforço, dinheiro do Ministério da Educação. Comprei – porque não podia construir – os primeiros contadores Geiger a néon, com apagamento de descarga externa, e não os de auto apagamento. Então Pompéia construiu, de maneira maravilhosa, os circuitos Leher e Harter, que ficaram muito bonitos e muito bem-feitos. Fizemos outras experiências. Neste tempo Damy me escreve: “Nós, com Carmichael, encontramos um método novo de multivibrador, tal que o poder de resolução dos contadores passou de um milésimo para um milionésimo de segundo. Aqui está o desenho. Precisa fazer assim, assim”. O Pompéia viu e disse: “Eu vou construir”. De fato, trabalhou maravilhosamente. Esta foi a origem da possibilidade para mim, com Damy e Pompéia, de observar o que depois eu mesmo chamei de chuveiros penetrantes. Mas, eu precisava eliminar a componente eletrônica… Eu tinha cinco contadores somente e não tinha mais dinheiro. Então com dois contadores se fazem dois telescópios. Pus 20 cm de chumbo entre cada um deles e chumbo ao redor de tudo e, depois, o quinto contador do lado. De modo que precisava duas partículas penetrantes para dois telescópios e uma partícula penetrante para o terceiro. Três partículas! Occhialini, que já estava aqui, e outras pessoas na Europa diziam: “Não pode ser. Deve estar errado”. Mas com o multivibrador do Damy só podia estar certo de que eram mesmo verdadeiras coincidências. Ao se conseguir três coincidências com poder de resolução de milionésimo de segundo, não era possível que fosse uma coisa casual. As notícias sobre as atividades do grupo de Wataghin apareceram na imprensa, talvez pela primeira vez, na coluna do jornalista e historiador da USP, Paulo Vanorden Shaw, na edição de 10 de dezembro de 1939 do jornal O Estado de São Paulo, que comenta a possibilidade da vinda de dois renomados físicos e da realização de um congresso, uma vez que: “A Seção de Física [da Faculdade de Filosofia] em cinco anos, de 1934 a 1939, como pude verificar, publicou um total de 80 trabalhos de pesquisa em Física, sendo 41 pelos colaboradores e alunos e 39 pelo professor Wataghin.9 A maioria destes trabalhos foi discutida e apresentada nas diferentes academias ou aceita pelas redações dos principais periódicos científicos da Itália, França, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos. A atividade científica do laboratório paulista foi notada em vários congressos, como os que se realizaram em Manchester, Paris e Washington. É de se notar que parte do aparelhamento foi construído no próprio laboratório. […] Num livro já saído, ou que sairá em breve, um célebre físico inglês citará o “método do multivibrador”, inventado e realizado pelo Dr. Damy para pesquisa de raios cósmicos.” Mais recentemente, Roberto A. Salmeron ressaltou a contribuição do grupo brasileiro [51]: “Em 1940, Paulus A. Pompéia, M. Damy de Souza Santos e G. Wataghin fizeram em São Paulo um experimento que detectou eventos inesperados: chuveiros de partículas que podiam atravessar dezenas de centímetros de chumbo. Naquela época eram conhecidos os chuveiros eletromagnéticos, mas estes podem ser parados em poucos centímetros de chumbo. Os chuveiros detectados, que atravessavam dezenas de centímetros, não podiam, portanto, ser eletromagnéticos. Eram de um novo tipo, que os autores chamaram chuveiros penetrantes.” , os experimentos seminais de Gleb Wataghin e seus jovens assistentes Marcelo Damy de Souza Santos e Paulus Aulus Pompéia, em que observaram ao final da década de 30, partículas que formavam a componente penetrante dos chuveiros cósmicos e como essas pesquisas elucidaram a natureza dessas partículas. No curso dessas atividades pioneiras no Brasil, de suma importância foi a realização do Simpósio de Raios Cósmicos no Rio de Janeiro, em 1941, com a presença de Arthur Compton1 1 Ganhador do Prêmio Nobel de Física de 1927 pela descoberta do efeito que leva seu nome. e alguns colaboradores, e reuniu a nata da comunidade científica do Rio de Janeiro e São Paulo. Este tema será considerado na Seção 4 4. O Simpósio Sobre Raios Cósmicos Em 1941, realizou-se o “Symposium sobre Raios Cósmicos”, sob os auspícios da Academia Brasileira de Ciências no Rio de Janeiro [52]. O simpósio foi organizado em decorrência de uma missão científica e diplomática norte-americana [53], chefiada por Arthur H. Compton, da qual participava Paulus Pompéia que, na época, estagiava no laboratório de Compton na Universidade de Chicago, e viera realizar medidas da radiação cósmica na América do Sul, como parte do seu programa de pesquisas. Entre os participantes do simpósio (Além dos mencionados acima), estavam do lado brasileiro: Gleb Wataghin, Giuseppe Occhialini, Mário Schenberg, Marcelo Damy de Souza Santos e Bernardo Gross, entre outros e do lado norte-americano: Donald Hughes, Ernest Wollan, William Jesse, da Universidade de Chicago e o casal Ann e Norman Hilberry da Universidade de Nova York. A Fig. 7 é o retrato oficial do evento. Figura 7: Participantes do “Symposium” sobre Raios Cósmicos na reunião final de 8 de agosto de 1941. Sentados: 1º. à esquerda, Gleb Wataghin e ao centro, Arthur Compton. Em pé: Paulus Pompéia é o segundo, Marcelo Damy o quarto da esquerda para a direita e Giuseppe Occhialini está no lado direito de Yolande Monteux. Fonte: Ref. [52]. A expedição científica comandada por Compton realizou experiências no Brasil, além do Peru. Um breve resumo das atividades e todos os trabalhos apresentados constam das Atas do Simpósio [52]. No entanto, a narrativa oral de Wataghin, em entrevista dada em 08 de julho de 1975, a Cylon Gonçalves da Silva, é sugestiva [54]: […], havia esperanças dos experimentos com balões da missão do Compton, mas, talvez apenas pela tese do Sala não rendeu muitos frutos. Poderíamos mudar o tempo do verbo de “vai ser” para “foi” com as experiências dos chuveiros penetrantes. Em 41, alguns meses antes de ir para Harvard – foi em agosto – a missão americana veio para o Brasil, e nós fizemos juntos um lançamento no Estado de São Paulo, em Bauru e em Marília, de balões a hidrogênio, que iam até 35 ou 40 km. O hidrogênio foi aquele que os alemães deixaram, porque eles tinham um Zeppelin aqui no Brasil, e o Governo brasileiro disse: “utilizem”. Quem foi de grande ajuda para mim foi o Pompéia, nesta ocasião. Com Pompéia nós fomos; e eu ia de avião, tínhamos um carro, e depois se olhava um pouquinho os ventos. Lançávamos pequenos balões, e eu ia de avião para seguir o balão onde ia cair. Às vezes, ia até o Atlântico, mas essas não eram nossas intenções. Com Pompéia lançávamos balões de hidrogênio com um peso qualquer, só para ver aonde ia, porque eu conhecia o peso dos aparelhos de Compton. Depois, Compton chegou e toda a história está descrita em um volume do simpósio de raios cósmicos, editado pela Academia Brasileira de Ciências. Existe em todas as bibliotecas; pode-se ver fotografias do Compton, dos balões, de tudo. Nesta ocasião, expus também a teoria da produção múltipla mais uma vez, baseada essencialmente também sobre um pequeno trabalho, quase esquecido, de 36, que foi publicado no Boletim Italiano, penso, da Academia de Ciências.” A Fig. 8 mostra a expedição liderada por Arthur Compton soltando balões para as medidas de raios cósmicos. Figura 8: Cena de trabalho da Expedição Compton de 1941, que realizou medidas na estratosfera por meio de balões de hidrogênio como contadores de partículas. Diversas pessoas não foram identificadas. De pé, ao centro, Arthur Compton. O primeiro à direita parece ser Oscar Sala. Foto do acervo IFUSP. Em sua palestra sobre a produção de grupos de mesotrons (mésons) em colisões de altas energias, Wataghin defende a produção múltipla dos mésons em contraposição à hipótese de Heitler e colaboradores, mencionada por ele [52, p. 129]: “We assume that the energy E of primary proton is absorbed in one or two collision processes, so that the energy loss ΔE during one collision is of the order of magnitude of E. The experimental evidence supports the idea that the primary mesotrons producing particles are rapidly absorbed in a layer of atmosphere equivalent in mass to few cm.Hg. This rapid absorption can be understood admitting a cross-section ∼10-24 cm2 for a collision with an energy loss ΔE/E∼1. Another explanation of the rapid absorption can be derived from the assumption that the primary particle suffers a great number of collisions with small relative energy losses. This assumption requires a much larger cross section and thus seems to be less plausible.” Wataghin reconhece que naquele momento não existia teoria satisfatória para explicar os resultados experimentais dos chuveiros cósmicos obtidos por seu grupo e dos chuveiros de Auger que indicavam a existência de muitos mésons nesses processos. Passa, então, a estimar o número de mésons produzidos pela colisão de um próton primário de alta energia com um próton (ou nêutron) em repouso, admitindo, porém, que muitos diferentes casos possam ser considerados nas colisões dos raios cósmicos na atmosfera. Ele considera inicialmente a colisão de dois prótons que produz n mésons no sistema do centro de massa onde o momento total é nulo.10 No apêndice, usando ideias relacionando teoria quântica e relatividade apresentadas em artigo da Nature [55] e um modelo estatístico de produção de partículas desenvolvido previamente, [56, 57], calcula a probabilidade de que numa colisão entre dois prótons sejam produzidos n mésons. Fazendo aproximações bem justificadas, estima que a probabilidade máxima ocorre quando a energia de cada méson de massa μ é cerca de 3μc2 e a energia de cada próton com massa M depois da colisão é cerca de 1,1Mc2. Assume ainda que a massa do próton é doze vezes a massa do méson, M=12 μ. A energia de cada próton antes da colisão é Eo=γ Mc2, onde γ é o conhecido fator relativístico, o momento de um deles é po=Eo/c2-M2≈E0/c, supondo altas energias. A energia disponível para os mésons é, portanto, ΔE=2γMc2-2, 2Mc2=2(γ-1,1)Mc2. Se ΔE=n3 μc2, então γ=n8+1,1≈n/8. Por outro lado, no sistema de referência da Terra no qual o próton está incialmente parado com energia dada por E1=Mc2 e sofre uma colisão de outro próton com energia dada, segue por meio da transformação de Lorentz, que E2=γ(E0+vp0)≈2γE0, em que se tomou v≈c. Logo, E2=2γE0=2γ2Mc2=2n264Mc2. Assim, Wataghin chega ao importante resultado de que o número de mésons criados é aproximadamente dado por (1) n ≈ 32 E 2 / M c 2 , e, portanto, proporcional à raiz quadrada da energia do próton incidente. Resumindo os principais resultados: a energia média dos mésons é 3μc2, no sistema do centro de massa, e a multiplicidade média dos mésons produzidos varia com a energia segundo Ecm1/2, em que Ecm é a energia da colisão no sistema do centro de massa. O trio formado por Wataghin, Damy e Pompéia apresentou ainda no “Symposium” uma curta comunicação [52, p. 155] com os resultados de novas medidas dos chuveiros penetrantes no interior de um túnel sob 33 m de argila, complementando os resultados de medidas publicados nos trabalhos anteriores [46, 47]. Occhialini teve participação relevante na visita de Arthur Compton ao Brasil e no “Symposium” no qual apresentou os trabalhos [52]: “The influence of a solar eclipse on the cosmic ray intensity”, “On the ultra-soft component of the cosmic radiation”, e “On the properties of cosmic radiation in the temperate and equatorial zones” reportando os experimentos de absorção realizados em colaboração com seus alunos. Apresentou ainda, com Marcelo Damy, “Two useful gadgets for controlled Wilson chambers”, um circuito multivibrador assimétrico e um sistema de válvulas para câmaras de nuvens mais avançado do que os sistemas convencionais descritos anteriormente por Blacket [52]. . Na Seção 5 5. Do Outro Lado do Atlântico – Os Experimentos em Manchester Lanos Jánossy foi chamado, em 1938, por Patrick Blackett11 para trabalhar na Universidade de Manchester, onde no ano anterior assumira uma cátedra e a chefia do Laboratório de Raios Cósmicos daquela Universidade. Em 1939, Jánossy e Ingleby iniciaram experimentos em que foi arranjada uma série de contadores protegidos por grande massa de chumbo, como mostrado na Fig. 9, e observaram a penetração de partículas por uma grossa camada de chumbo. Os oito contadores (H) no centro registram, independentemente, disparos simultaneamente com a coincidência quíntupla, C5, dos conjuntos de contadores 123AB. Disparos de dois ou mais contadores acompanhando a C5 eram frequentes. Como os detectores do topo e do fundo estavam separados por no mínimo 30 cm de chumbo – ou cerca de 60 unidades de cascata – seria necessário um chuveiro iniciado por um primário de pelo menos 1016 eV para dar origem a C5. No entanto, foi observada uma taxa de contagens de 1 evento a cada 5 horas, ainda assim muito acima da esperada para disparos devidos a elétrons de energia acima de 1016 eV [20]. Figura 9: Montagem experimental de Jánossy e Ingleby [20]. Figura 10: Montagem experimental de Jánossy e Rochester [22]. Com o aparato da Fig. 10, Jánossy e Rochester [22] obtiveram eventos de partículas penetrantes, tanto de chuveiros iniciados na atmosfera quanto dos produzidos localmente no absorvedor T. Neste arranjo experimental, eram registradas as coincidências sétuplas de grupos de detectores, C7, e as anticoincidências, C7-A, com o veto dos contadores (A) posicionados em torno e acima do absorvedor T. Variando a espessura do absorvedor, os autores puderam descrever a curva de transição pela fórmula empírica R=0,19+0,29(1-e-μx), onde R é a taxa de contagens, x a espessura do absorvedor e μ uma constante que depende do material, ou especificamente o inverso do livre caminho médio de interação. Neste experimento, foi encontrado para o chumbo o valor de 1/μ=50 g/cm2. Rochester assim se expressa a respeito de sua colaboração com Jánossy [58]: “With this equipment Jánossy showed there were showers, of rate about 40 per hundred penetrate great thicknesses of lead. Electromagnetic cascades were completely excluded as an electron shower wou1d require an energy in excess of l016 eV and these were very rare. Wataghin et al. also found penetrating showers with a rather simpler arrangement than Jánossy’s. [o grifo é dos autores] Thus, it seemed that if the showers were groups of penetrating particles, the equipment could be used for studying their creation and properties. This point was put to Blackett in 1940 and he agreed to let us continue research in a modest way.” Em 1940, Blackett foi convocado para trabalhar no esforço de guerra enquanto Jánossy e Rochester ficaram lecionando e com bastante tempo disponível para a pesquisa. Ambos passaram a investigar a produção primária e a detecção dos chuveiros penetrantes usando câmaras de nuvens, disponíveis em grande quantidade no laboratório. Foram obtidas inúmeras fotografias dos traços de chuveiros. Naquela época de guerra a dificuldade de acesso a trabalhos de outros grupos era grande e Rochester lembra que só conheciam a teoria de Heitler e colaboradores [59] que previa a produção única, isto é, o núcleon produz mésons um a um em sucessão, embora tenha afirmado em seu depoimento [58] que isso era “obviously wrong” sem explicar as razões dessa conclusão. Jánossy [60] chegou a sugerir que o chuveiro poderia ser gerado por uma produção única e sucessiva em um núcleo pesado, como chumbo. Segundo Jánossy: “Groups of mesons observed can be accounted for in a simple way without considering multiple processes in the strict sense.” Ao retornar ao laboratório ao final da Guerra, Blackett ficou impressionado com os resultados obtidos com as experiências dos chuveiros penetrantes e decidiu que um equipamento melhor deveria estar disponível para a continuação das pesquisas nesse tema. Rochester e um jovem colega, Clifford C. Butler, modernizaram a câmara de nuvens magnética de Blackett, instalaram iluminação com tubo de flash, e adquiriram novas lentes e filmes Kodak rápidos. Com esse novo sistema de detecção, chuveiros penetrantes produziram as partículas V neutras e carregadas que ganharam esse nome porque produziam a letra V na câmara de bolhas [61]. São partículas subatômicas instáveis que decaem em um par de partículas, por exemplo, V0→π++π-. Essas partículas receberam os nomes de káons (ou mésons K). Segundo J. Steinberg [62], o atributo de estranhas a essas partículas decorre do fato de que as partículas são produzidas em larga escala, uma indicação de que interagem por meio da força forte, mas possuem tempos de decaimento longos, característica da interação fraca. Elas deram origem a um novo número quântico chamado estranheza que deve ser conservado nas reações nucleares. Steinberg, ganhador do Prêmio Nobel de 1988, relembra o impacto no desenvolvimento da física de partículas nos anos 50 com a descoberta das partículas estranhas: “[Abraham] Pais noted in 1952 that this could be understood by inventing a feature of the strong interaction, a selection rule, which would permit their production but forbid their decay via the strong interaction. He implemented this in a mechanism that required the new heavy particles to be produced in pairs. This was extended some months later by [Murray] Gell-Mann, who ingeniously combined the selection rule with the notion of isotopic spin. It required that the pair of Pais be composed of a “strange” and an “antistrange” particle.” Como apontado por Rochester [58], o grupo de Manchester conhecia apenas o trabalho teórico do grupo de Heitler e não levaram em conta os trabalhos de Heisenberg e de Wataghin acerca da produção de mésons nos chuveiros penetrantes em um único evento, objeto da controvérsia a respeito da produção múltipla versus produção sequencial. , discutem-se as experiências realizadas concomitantemente em Manchester acerca dos chuveiros penetrantes e como elas levaram à descoberta das partículas estranhas, que revolucionaram a física de partículas nos anos 50. Na Seção 6 6. Trabalhos do Grupo de Wataghin Após a Guerra Os resultados da tese de Oscar Sala, mencionada na entrevista de Wataghin a Cylon, começaram a aparecer em 1945 [63]. O artigo relata estudos comparativos dos chuveiros penetrantes nas duas altitudes: de Campos de Jordão (1.750 m) e de São Paulo (750 m). O circuito multivibrador do Marcelo Damy é adaptado com contadores de gás álcool-argônio. Coincidências quádruplas foram observadas em dois experimentos. Um deles arranjado com disposição semelhante à dos experimentos anteriores do grupo brasileiro e no outro foi adicionado uma camada de 80 cm de água. Observaram um aumento de 23% na frequência dos chuveiros penetrantes por causa da camada de água e que essa camada absorvedora seria fonte de radiação secundária. E concluíram que as observações pareciam indicar que “grupos de partículas que penetram mais de 30 cm de Pb são produzidos em uma camada de água de apenas 80 cm”. A seguir comparam resultados obtidos em diferentes absorvedores – água, ar e argila – e especulam sobre a possibilidade de existência de diferentes tipos de chuveiros produzidas por diferentes espécies de raios cósmicos. Salmeron no tópico “Seção de choque total próton-próton a altas energias” de seu artigo destaca o que veio a seguir na pesquisa do grupo sobre raios cósmicos após a Conferência do Rio de Janeiro em 1941 a ser tratada na Seção 8 [51]: “Em 1945, Oscar Sala e Gleb Wataghin fizeram um experimento para estudar interações de raios cósmicos em parafina, que é rica em hidrogênio. Eles concluíram que a seção de choque total de interação próton-próton a altas energias deve ser 40 milibarns (O. Sala e G. Wataghin, Phys. Rev. 5 (67) 1945).12 Este é um resultado extraordinariamente correto, obtido há 55 anos com um dispositivo experimental extremamente simples. Com resultados precisos de experimentos efetuados com aceleradores, sabemos que a altas energias esta seção de choque varia de somente cerca de 10% em torno de 40 milibarns.” Na sequência, Sala e Wataghin comparam os resultados anteriores de Campos de Jordão e São Paulo com aqueles obtidos em voo na altitude de 7000 m [64]. Sugerem que a intensidade das partículas geradoras dos chuveiros penetrantes decresce muito rapidamente com a profundidade na atmosfera. No artigo subsequente, Wataghin [65] compara resultados obtidos no voo a altitude de 7.000 m, reportado no artigo anterior, com aqueles do voo a 8.000 m. Estabelece que essa intensidade segue uma lei de absorção exponencial. E obtém uma seção de choque por núcleon de aproximadamente 16 milibarns. A Fig. 11 mostra Wataghin utilizando o avião para obter medidas dos raios cósmicos a várias altitudes. Figura 11: Gleb Wataghin e pessoa não identificada junto a aparelho para medidas de raios cósmicos dentro de avião da FAB para experiência em grandes altitudes. [1940]. Foto do acervo IFUSP. Em artigo da Nature de 1948 [66] Wataghin relata os principais resultados acerca dos chuveiros penetrantes obtidos pelo grupo brasileiro, ressaltando a rápida variação da intensidade das partículas que produzem os chuveiros com a profundidade atmosférica13 d: e-xd, em que x é a profundidade medida em g/cm2 e d∼100 g/cm2. Com base nos demais resultados obtidos conclui que “a maioria dos mésons é produzida em grupos (por meio de colisões de prótons primários ou secundários e nêutrons com os núcleons) com a multiplicidade aumentando com a energia de acordo com o esquema sugeridos por nós anteriormente” (n∝E). Na verdade, o foco do artigo é apontar a diferença marcante entre a lei de absorção exponencial dos chuveiros e a lenta variação com a profundidade da frequência de partículas penetrantes individuais medidas por um telescópio. Wataghin observa que essa diferença reside no fato de que o telescópio mede a intensidade integral dos mésons produzidos dentro do ângulo sólido definido pelo telescópio, enquanto os arranjos de coincidência somente podem registrar montes de partículas criadas localmente a distâncias não mais que algumas centenas de metros acima do arranjo. Com a colaboração de Hans Albert Meyer (mais conhecido por João Alberto Mayer), Georges Schwachheim, e seu filho Andrea Wataghin, que fizeram parte do grupo remanescente da USP que investigou os chuveiros penetrantes, Wataghin publica resultados sobre a natureza dos mésons nos chuveiros penetrantes por meio de experimentos usando diferentes configurações de contadores de Geiger-Muller com as substâncias gasolina e chumbo [67]. Para explicar os resultados experimentais, são levados a supor que os mésons produzidos inicialmente nos chuveiros penetrantes são mésons-π, e que os mésons-μ, produzidos a partir do decaimento dos instáveis mésons-π, são os mésons usualmente observados na radiação cósmica e que possuem grande poder penetrante, como observado por Lattes e colaboradores [8, 9]. , os trabalhos do grupo de Wataghin após a guerra são retomados. A influência recíproca de Wataghin e Heisenberg no estudo dos raios cósmicos, na busca da solução para o problema das divergências da Eletrodinâmica Quântica (QED) e na introdução de comprimento universal mínimo são discutidos nas Seções 7 7. Convergência de Heisenberg e Wataghin Acerca dos Raios Cósmicos Segundo seu biógrafo David Cassidy, Heisenberg, em carta a Niels Bohr de 1931, “desistiu de se preocupar com questões fundamentais, que considerava muito difíceis”, em especial, o problema de aplicar a mecânica quântica a dimensões tão pequenas quanto o núcleo atômico.14 Passou a se dedicar a “problemas menos importantes”, relacionados a experimentos, que incluíam a teoria de magnetização, o espalhamento incoerente do raios-X pelo núcleo, e os impactos de partículas de altas energias na atmosfera, os raios cósmicos [68, p. 200]. Como dito na Seção 3, em 1933, Blackett e Occhialini observaram a colisão de raios cósmicos com uma fina placa de chumbo colocada dentro de uma câmara de nuvens. Logo após, Carl D. Anderson observou uma nova partícula subatômica a partir de seus estudos de fotografias de raios cósmicos em câmara de nuvens. Ele anunciou que a partícula, chamada atualmente de pósitron, tem a mesma massa do elétron, mas sua carga é positiva. Surgiram vários debates acerca desse “elétron positivo”, culminando com o reconhecimento de que a nova partícula seria o “antielétron”, proposto por Dirac na teoria quântica relativística do elétron de 1928, e despertando interesse renovado na criação e aniquilação de partículas. Dirac e seus colegas, Blackett e Occhialini, sugeriram que a criação de pares elétron-pósitron poderia estar na origem dos chuveiros cósmicos que haviam observado. Os resultados de trabalhos baseados na teoria da “Eletrodinâmica Quântica” (QED, em inglês), desenvolvidos por Robert Oppenheimer e Wendell Furry nos Estados Unidos e Hans Bethe e Walter Heitler na Grã-Bretanha carregavam o problema de infinidades a curtas distâncias de aproximação e tinham validade abaixo de um certo limiar de energia. A criação de pares poderia explicar a frenagem de partículas na matéria, mas somente para energias abaixo daquelas envolvidas nos chuveiros cósmicos. Ou seja, as teorias não conseguiam explicar as grandes distâncias percorridas pelos raios cósmicos altamente energéticos dentro de blocos de chumbo espessos [68, p. 232–235, 69]. Segundo Amit Hagar, Gleb Wataghin foi um dos primeiros a reconhecer o papel do comprimento mínimo na eliminação das divergências e a abordá-lo em três pequenos artigos publicados no segundo semestre de 1930 [70]. Em 1934, Wataghin propôs uma mudança do formalismo da teoria quântica com a introdução de “fatores de convergência” que em certo limite se anulam e dão origem a resultados convergentes [71]. Desse modo, Wataghin obteve uma energia finita para o elétron (sem estrutura) e a frequência-limite de radiação acima da qual nenhuma interação com a matéria poderia ocorrer foi estimada em 137m0c2/ℏ, que corresponde implicitamente a introduzir um comprimento universal mínimo r0=e2/m0c2. Ou seja, corresponde a introduzir o inverso da constante de estrutura fina 1α=ℏc/e2∼137. Já no Brasil, em 1939, Wataghin retoma o método dos “fatores de convergência” considerando as ideias de Heisenberg sobre as incertezas quânticas na medição em um microscópio para justificar as hipóteses assumidas no método [72]. Contudo essa abordagem aos problemas de divergência não foi aceita em geral. Segundo o historiador Helge Kragh, Heisenberg a considerou artificial e sem significado físico e, em carta a Pauli em 1937 fez crítica contundente: “o trabalho de Wataghin não vale muito; este Wataghin não pode pensar claramente” [73]. Apesar disso, 14 anos depois Feynman usaria o cut-off de Wataghin em sua famosa regularização relativista da QED, e lhe daria crédito por isso na Ref. [18] do seu artigo [74]: “This is seen to be essentially the method proposed by Wataghin [71]”. Wataghin, em seu depoimento do Cylon Gonçalves da Silva, relembra a objeção de físicos importantes ao seu trabalho [54]: De Londres fui para Copenhagen em companhia de Heitler. Mas naquela época eu estava muito convencido daquele comprimento mínimo do cut-off quer dizer são conceitos coligados. E Heitler estava violentamente contra. […] Ele me dizia, como muitos outros me disseram em Copenhagen – “Wataghin, está errado”. Eu cheguei em Copenhagen e pela primeira vez encontrei Niels Bohr. Tinha o Heitler, Heisenberg, Pauli, e Bohr me convidou para expor as minhas ideias. Pauli foi presidente da reunião, “Chairman”. Todos foram muito contra as minhas ideias, porque eu naquela época estava pensando que devia ter uma produção múltipla em raios cósmicos. Eu estava estudando raios cósmicos muito, porque era a única coisa que nós podíamos fazer na Itália. A única pessoa que naquela época me confortou foi Niels Bohr, que depois da reunião, quando eu estava sozinho, ele me convidou e disse: “Olha, Wataghin, não fique tão desesperado por estas críticas –. Eles diziam: “You are dreaming, that’s wrong and so on”. Eu penso que somente não estamos preparados”. – Porque a relatividade estava baseada naquela época no conceito de coincidentes num ponto de espaço de Minkowski de quatro dimensões, ponto-tempo. Os trabalhos de Wataghin no contexto da QED estão analisados com detalhes na Ref. [70]. Os problemas iniciais enfrentados pelos físicos na construção da Eletrodinâmica Quântica (QED) foram descritos por vários historiadores. Aos interessados na “crise quântica” dos anos 30, recomenda-se a leitura das Refs. [75, 76, 77, 78, 79]. Segundo Cassidy, “por volta de 1936, todos os experimentos sobre a absorção de raios cósmicos na matéria pareciam indicar – erroneamente, como se viu15 – um colapso da QED perto de um limite superior de energia teoricamente esperado.” Tudo indicava que as partículas interagiam com a matéria até o limiar de energia prevista pela QED e depois caminhavam através da matéria sem desacelerar [68, p. 252]. Heisenberg, por outro lado, que abandonara suas pesquisas em Eletrodinâmica Quântica por volta de 1935, adotou um procedimento diferente. Como alternativa à QED, abordou o problema a partir da teoria formulada por Enrico Fermi para tratar o decaimento-beta radioativo nuclear, proposta inicialmente em 1934. Em carta a Wolfgang Pauli, Heisenberg afirmou que “pode-se entender a existência dos chuveiros cósmicos imediatamente a partir da teoria beta de Fermi” [68, p. 252]. Em 1936, Heisenberg publicou o artigo “Sobre a Teoria do ‘Chuveiros’ na Radiação Cósmica” em que abordou os “chuveiros de explosão” de raios cósmicos usando a teoria da interação beta devido a Enrico Fermi [14]. Ele acreditava que a física a pequenas distâncias deveria ser totalmente revista e nesse artigo introduz um “comprimento universal que talvez possa estar ligado a nova mudança, um princípio no formalismo, justamente como, por exemplo, a introdução da constante c que levou à modificação da física pré-relativística”. Esse comprimento mínimo matemático, da ordem do tamanho das partículas elementares, parecia disparar “chuveiros de explosão” ou “processos múltiplos” dos raios cósmicos. Essa explosão era produzida quando a colisão das partículas ocorria numa região menor do que o comprimento mínimo universal. O resultado seria uma rajada instantânea de mésons e neutrinos que poderiam penetrar em blocos grossos de chumbo. Portanto, é nesse trabalho que, de forma pioneira, Heisenberg sugere a produção múltipla dos mésons que Wataghin viria a sustentar tanto em trabalhos teóricos como a partir dos resultados experimentais realizados no Brasil. Essas noções revolucionárias encontraram forte oposição dos seguidores de Bethe, Heitler e Oppenheimer que desenvolveram teorias alternativas de “chuveiros em cascata”, geradas por Bremsstrahlung e produção de pares e baseadas na eletrodinâmica quântica. Os resultados estavam em boa concordância com experimentos recentes de Carl Anderson para a componente “mole” dos raios cósmicos. Esses experimentos haviam identificado, pela primeira vez, dois tipos de raios cósmicos bastante diferentes no nível do mar: a componente “mole” facilmente absorvida e constituída por elétrons e fótons; e a componente “dura” (penetrante) de longo alcance. Esses resultados apareceram no artigo de Anderson e Neddermeyer [80] publicado um dia antes da submissão do artigo de Heisenberg. Seguiu-se a controvérsia entre Heisenberg que defendia a produção múltipla, ou seja, a existência dos chuveiros de explosão, e os vários físicos americanos que preferiam a ideia dos chuveiros em cascata. Em 1939, Heisenberg estendeu suas noções à teoria do méson (interação forte) das forças nucleares de Yukawa, revitalizando a controvérsia nos anos da guerra [81]. Cassidy realça que “embora chuvas de explosão, mais tarde chamadas de “processos múltiplos,” tenham sido descobertas após a guerra em eventos de raios cósmicos, a invenção de técnicas de renormalização e a confirmação experimental da eletrodinâmica quântica para as energias mais altas deixaram a física de Heisenberg apenas com apoio minoritário” [68]. É nesse contexto que apareceram os experimentos dos chuveiros penetrantes de São Paulo e de Manchester. e 8 8. Resultados do Grupo Brasileiro dão Suporte à Teoria de Heisenberg e Wataghin Em 1948, Wataghin retoma a questão dos chuveiros penetrantes e a produção múltipla dos mésons [82]. Aí deduz a fórmula que relaciona a energia do núcleon primário com o número médio de mésons produzidos dada por (2) E = 2 M ( a n 2 + b n + d ) , em que a, b e d foram determinados experimentalmente. Os dados apresentados na Tabela 1 do artigo concordam bem com essa fórmula. Na Fig. 12 encontram-se os dados tabelados para a multiplicidade média e energia dos mésons produzidos na colisão próton-próton. O comportamento da multiplicidade média dos mésons (n∝E ) fica evidente na Fig. 12, resultado esse que havia sido antecipado no artigo apresentado no “Symposium” [52]. Figura 12: Multiplicidade média n e a energia média dos mésons Eμ como função da energia primária Ep. Dados da tabela 1 da Ref. [82]. Logo a seguir, em 1949, Heisenberg retoma a discussão referente à produção múltipla de mésons nos chuveiros cósmicos por meio do artigo Productions of Mesons Showers [83]. Nele Heisenberg reafirma sua convicção de que a produção múltipla de mésons nos chuveiros penetrantes acontece em um único evento ao contrário da sugestão de Heitler e Peng de que o forte amortecimento do campo de mésons devido à interação com os núcleons levaria a uma produção sequencial de mésons, isto é, “ao colidir com uma partícula nuclear o méson se divide em um número n de mésons secundários” [84]. A teoria de Heitler e Peng consiste numa extensão para qualquer campo de partícula quantizado da teoria anterior de Heitler em que os efeitos de reação do campo de radiação em problemas de espalhamento foram tratados quanticamente de modo similar ao problema clássico do campo de reação de Lorentz. Na verdade, Heisenberg apenas generaliza o trabalho de Wataghin ao considerar uma distribuição de energias incidentes ao invés de Wataghin que considera apenas um evento na colisão. Ambos consideram a hipótese de que numa colisão de dois núcleons a altas energias, parte considerável da energia cinética no sistema centro de massa (CM) é transferida para o campo de mésons. Essa energia será dissipada, via um processo turbulento, na produção de muitos mésons. Ele admite que a distribuição espectral diferencial dI é isotrópica e dada por16 (3) d I = a d k k em que a é uma constante, k é o vetor de onda. Se e é a energia no sistema CM, o limite superior para k é grosseiramente k≈ε e o inferior a massa do méson π (ℏ=c=1). A constante a pode ser, então, obtida por meio de (4) ε = ∫ κ ε a d k k = a l n ε κ ; a = ε ln ( ε κ ) . O número médio de mésons é dado por (5) n ¯ = ∫ κ ε d I k = ∫ κ ε a d k k 2 ≈ a κ = ε κ ln ⁡ ( ε κ ) . Os resultados são transformados para o sistema do laboratório (SL) (núcleo em repouso antes da colisão) de modo a comparar com os resultados experimentais. A transformação relativística de energia entre os sistemas CM e SL fornece a relação (6) E = 2 M ( M + E ) - 2 M - Δ ε , em que E e M são a energia e massa do núcleon primário e Δε representa a energia cinética liberada para os núcleons (em CM) após a colisão e que Heisenberg considerou que pode ser bem pequena. A partir das Eqs. eq5 eeq6 “we conclude that the number of mesons varies roughly as the square-root of the primary energy (comp. Wataghin, Ref. [2])17”. A seguir, Heisenberg assume uma forma específica do espectro de prótons primários, a partir de resultados experimentais, e calcula a distribuição diferencial de mésons produzidos. Estima que a intensidade máxima de um chuveiro com n mésons seja 65n MeV. Supondo que os múons se originam do decaimento dos píons na atmosfera superior, determina sua distribuição de energia a altas energias. E promete que os detalhes dos cálculos deverão aparecer em breve. Como anunciado, Heisenberg publica no ano seguinte um artigo completo a respeito da produção múltipla de mésons oriunda da interação dos raios cósmicos com a atmosfera terrestre. Heisenberg aponta que os recentes experimentos confirmam sua antiga suposição e considera encerrada a controvérsia [85]. Em um dos primeiros parágrafos do artigo, faz menção aos “admiráveis avanços de Powell e seus colaboradores [86] na tecnologia fotográfica que levou a uma série de imagens da formação de mésons, em que a geração de muitos mésons em um único evento pode ser vista imediatamente” e o número de mésons produzidos em casos isolados é bastante grande para ser explicado como um processo de cascata, como reivindicado pelo Jánossy. Menciona ainda que resultados recentes mostram que chuveiros penetrantes aparecem mais comumente em materiais leves do que pesados e que provavelmente devem aparecer também em hidrogênio puro. Conclui o parágrafo afirmando que “se muitos mésons são gerados durante a colisão primária de dois núcleons, obviamente mais processos secundários podem estar ligados em um núcleo atômico maior”.18 Apesar dos resultados experimentais evidentes, em suas memórias, Heitler ainda insistiu que ambas as possibilidades podem ocorrer [87, p. 209]: “At about the same time, Jánossy and coworkers discovered that also showers of penetrating particles occurred. I believe it was in counter experiments. Undoubtedly, they were caused by particles strongly interacting with nuclei, nucleons or pi-mesons, giving rise to several pi-mesons and hence mu-mesons in a collision with a single nucleus. The interpretation gave rise to a controversy. Jánossy and I believed that a strongly interacting particle would collide with several nucleons in the same (heavy) nucleus, thus giving rise to the production of several pi-mesons. In fact, it could easily be seen that this must inevitably happen if the interaction is so strong. Heisenberg believed that, again owing to the strong interaction, several pi-mesons are produced in a single act of a collision with one nucleon. Probably in a penetrating shower both kinds of events occur. The first, analogous to a cascade shower, was named plural production, the second multiple production. I have not followed up the experimental outcome of this situation [o grifo é dos autores]. I did not continue theoretical work on cosmic radiation. The major problems were all solved.” Além de suas contribuições originais à teoria quântica e à relatividade, Gleb Wataghin desenvolveu mecânica estatística a altas temperaturas no estudo das colisões de altas energias dos raios cósmicos e na interpretação dos resultados experimentais obtidos [89, 90, 91]. Wataghin retornou à Itália, em 1949, para se tornar diretor do Instituto de Física da Universidade de Turim. Ele continuou a trabalhar em raios cósmicos, bem como a desenvolver seu interesse em teorias de campo não locais [28, 72]. , em especial, a disputa que colocou de um lado, Werner Heisenberg e Wataghin, e do outro, Walter Heitler e colaboradores, acerca da natureza da produção dos chuveiros penetrantes: em um único ato, conhecida como produção múltipla, ou em forma de cascata, a produção sequencial. Na Seção 9 9. Considerações Finais A importância dos chuveiros cósmicos penetrantes para o desenvolvimento da Física de Altas Energias pode ser avaliada pelo depoimento de Carl C. Anderson,19 dado no 1°. Simpósio Internacional de História da Física de Partículas realizado no Fermilab em 1980 [76] e recolhido por Rochester [58] lamentando não ter descoberto as partículas estranhas por não ter se voltado para os chuveiros penetrantes observados pela primeira vez pelos grupos de São Paulo e de Manchester: “All the clues were present and published one of the most important being the experiments of Jánossy in which he selected nuclear collisions of high energy. We needed only 20 cm lead…and triple coincidences. This would have selected nuclear events and undoubtedly would have given us hundreds of the unstable particles…subsequently discovered by Rochester and Butler.” Em sua palestra Nobel de 1948, Patrick Blackett ressalta os trabalhos pioneiros de Wataghin e Jánossy e a situação de incerteza na época sobre a natureza das partículas produzidas nos chuveiros penetrantes e o processo pelo qual são produzidas [92]: “The counter experiments of Jánossy and Wataghin at sea level showed that a rare type of shower existed consisting of a few associated penetrating rays. These penetrating showers were studied by Rochester during the War. These showers consisted of narrow groups of nearly parallel-penetrating particles. In some experiments, the counter system used to control the chamber was so rigidly defined as to be actuated only once every 24 hours or so. By this means it was possible to set a chamber so that it would wait a whole day to be activated by the particular type of shower which it was desired to photograph. As soon as the end of the War made it possible to resume work with the large magnet, a detailed study was commenced by Rochester and Butler of the penetrating showers.” Silvio Salinas comenta a divulgação da “aventura brasileira” de Wataghin feita pelo eminente físico Freeman Dyson durante um colóquio em Michigan [93]: John von Neumann, que tinha sido colega de Dyson em Princeton e era amigo de Wataghin, teria tentado convencê-lo de que seria um absurdo abandonar a Europa a fim de recomeçar a vida no Brasil, país longínquo, onde absolutamente não se fazia nenhum trabalho em Física. Para ilustrar as suas teses sobre os caminhos da ciência, Dyson aponta o enorme sucesso da decisão de Wataghin pelo Brasil; em condições improváveis, Wataghin conseguiu rapidamente formar um grupo de nível internacional. Dyson observa para aquele público norte-americano que alguns anos depois de sua chegada em São Paulo começavam a aparecer em The Physical Review os primeiros artigos brasileiros de Wataghin, escritos em colaboração com jovens brilhantes, certamente formados no ambiente que ele havia criado.” Em seu artigo sobre as contribuições científicas de Wataghin, Roberto Salmeron [51] destaca: Wataghin teve perspicácia para compreender logo que o estudo de raios cósmicos era um campo de investigação importante que poderia ser feito em boas condições no Brasil, na época em que aqui chegou. Essa sua visão marcou o desenvolvimento de certos setores da física brasileira, em alguns casos até hoje. Apesar de ser físico teórico, não tendo recebido nenhuma formação especial em métodos experimentais, ele criou em São Paulo um grupo experimental em raios cósmicos, que em poucos anos se tornou conhecido internacionalmente. Nesse artigo, foram analisados os trabalhos de Gleb Wataghin e seus assistentes Marcelo Damy e Paulus Pompeia sobre os chuveiros penetrantes de raios cósmicos e as implicações para o desenvolvimento da Física de Altas Energias. Uma discussão detalhada foi feita acerca da influência recíproca de Wataghin e Heisenberg na busca da solução para o problema das divergências da QED, na introdução de comprimento universal mínimo e, principalmente, na consolidação da hipótese da produção múltipla das partículas geradas na colisão dos raios cósmicos com a atmosfera. Foi realçado o reconhecimento da comunidade internacional pelos trabalhos do grupo brasileiro liderado por Wataghin no Departamento de Física da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP nos anos 40. O estudo de raios cósmicos no Brasil continuou no Brasil, sob a liderança de Cesar Lattes, um dos descobridores do méson pi, no Instituto de Física da Unicamp, que homenageou Wataghin, em 1967, dando-lhe o nome do Instituto. Como ficou demonstrado, os fenômenos encontrados nos raios cósmicos desempenharam papel importante na formação e testagem de ideias teóricas concernentes às partículas elementares e às forças nucleares nos anos 40 e 50. Apesar dos atuais gigantescos aceleradores de partículas, os raios cósmicos ainda constituem fontes de partículas de alta energia que estão sendo estudadas. No Brasil, diversos grupos experimentais e teóricos vieram a se consolidar em várias universidades e institutos de pesquisa como legado dos trabalhos de Wataghin e seus discípulos. Estes grupos continuam a desenvolver pesquisas de vanguarda, junto a grandes colaborações internacionais como a do Observatório Pierre Auger, na física de raios cósmicos. , considerações finais são apresentadas.

2. Os Chuveiros Cósmicos

Ao atingirem a profundidade tipicamente da estratosfera, os raios cósmicos colidem com núcleos atômicos, produzindo cascatas de partículas secundárias, denominadas chuveiros atmosféricos extensos. Da produção de píons subsequente das colisões, duas principais componentes do chuveiro são formadas: a componente eletromagnética e a componente muônica. Os píons neutros (π0) geram as partículas da componente eletromagnética: fótons, elétrons e pósitrons. O principal modo de decaimento do π0 é em dois fótons (π0γ+γ), que se dá quase imediatamente (τ=8,4×10-17 s) após eles serem produzidos, percorrendo a velocidades relativísticas apenas cerca de 25 nm. Os fótons interagem com o campo elétrico de outros núcleos atômicos, dando origem a pares de elétrons e pósitrons. Os elétrons e os pósitrons são acelerados nos campos elétricos da matéria emitindo mais fótons, pelo processo conhecido como Bremsstrahlung (ou “radiação de frenagem”, em alemão). Tais fótons geram mais pares de elétrons e pósitrons e assim, sucessivamente, por várias gerações. Este processo de multiplicação segue enquanto as energias cinéticas das partículas da cascata eletromagnética forem maiores que a energia crítica no ar, isto é, 84 MeV, quando perdas de energia por ionização ou excitação predominam e a atmosfera começa absorver a energia das partículas da cascata eletromagnética [10[10] J. Chirinos, AIP Conference Proceedings 1123, 39 (2009)., 11[11] W. Heitler, The Quantum Theory of Radiation (Courier Corporation, Chelmsford, 1956).].

Em 1934, com base na teoria quântica-relativística de Dirac para o elétron, Hans Bethe e Walter Heitler deduziram as fórmulas para as probabilidades de emissão de fótons ou de criação de pares [11[11] W. Heitler, The Quantum Theory of Radiation (Courier Corporation, Chelmsford, 1956).] e a teoria de cascatas eletromagnéticas foi desenvolvida em seguida, após os trabalhos de Homi J. Bhabha e Heitler [12[12] H.J. Bhabha e W. Heitler, Proc. Roy. Soc. London A159, 432 (1937).] e de J. F. Carlson e J. Robert Oppenheimer [13[13] J.F. Carlson e J.R. Oppenheimer, Phys. Rev. 51, 220 (1937).]. Nas teorias de Bhabha e Heitler, e de Carlson e Oppenheimer, expressões aproximadas para a descrição dos chuveiros foram obtidas, baseadas nas fórmulas de Bethe e Heitler para as seções de choque de Bremsstrahlung e de criação de pares.

Por outro lado, sabe-se atualmente que os píons carregados dos chuveiros atmosféricos decaem em múons e neutrinos. Os múons são léptons carregados que só interagem via interação eletromagnética e interação fraca. Eles podem depositar alguma energia na matéria, ionizando e excitando os átomos atmosféricos, mas com menor probabilidade se comparados aos elétrons e aos pósitrons. Caso venham a decair, os múons produzem elétrons ou pósitrons, alimentando a cascata eletromagnética, e também neutrinos atmosféricos. Entretanto, na grande maioria dos casos, os múons propagam-se pela atmosfera em trajetórias quase retilíneas, desde o seu ponto de produção até o de absorção no interior da crosta terrestre ou no fundo do mar. Já os neutrinos são léptons desprovidos de carga elétrica e, portanto, interagem muito raramente com a matéria, praticamente, eles atravessam a matéria da atmosfera e a da Terra sem sofrer alterações.

Os múons dão origem à chamada componente penetrante (“dura”) dos chuveiros. Os chuveiros penetrantes eram conhecidos e haviam sido repetidamente reportados com ocorrência bem acima da esperada por coincidências randômicas.

Em 1936, Werner Heisenberg publicou o artigo Sobre a Teoria dos “Chuveiros” na Radiação Cósmica em que abordou os “chuveiros explosivos” de raios cósmicos usando a teoria da interação beta proposta por Enrico Fermi [14[14] W. Heisenberg, Zeits. Phys. 101, 533 (1936).]. Os chamados “chuveiros explosivos”, observados em câmaras de nuvens2 2 A câmara de nuvens consiste em um recipiente com vapor de um gás que condensa em gotas quando uma partícula passa através dela e a trajetória das gotas pode ser fotografada e estudada. Se campos elétricos e/ou magnéticos são aplicados, é possível determinar propriedades da partícula, como a carga e a massa. por Fussel [15[15] L. Fussel, Phys. Rev. 51, 1005 (1936).] e, também, por Powell [16[16] W.M. Powell, Phys. Rev. 60, 413 (1941).], foram tidos como fenômenos bem diferentes das bem conhecidas cascatas eletromagnéticas. A notável contribuição de Heisenberg à física dos raios cósmicos será apresentada na Seção 7 7. Convergência de Heisenberg e Wataghin Acerca dos Raios Cósmicos Segundo seu biógrafo David Cassidy, Heisenberg, em carta a Niels Bohr de 1931, “desistiu de se preocupar com questões fundamentais, que considerava muito difíceis”, em especial, o problema de aplicar a mecânica quântica a dimensões tão pequenas quanto o núcleo atômico.14 Passou a se dedicar a “problemas menos importantes”, relacionados a experimentos, que incluíam a teoria de magnetização, o espalhamento incoerente do raios-X pelo núcleo, e os impactos de partículas de altas energias na atmosfera, os raios cósmicos [68, p. 200]. Como dito na Seção 3, em 1933, Blackett e Occhialini observaram a colisão de raios cósmicos com uma fina placa de chumbo colocada dentro de uma câmara de nuvens. Logo após, Carl D. Anderson observou uma nova partícula subatômica a partir de seus estudos de fotografias de raios cósmicos em câmara de nuvens. Ele anunciou que a partícula, chamada atualmente de pósitron, tem a mesma massa do elétron, mas sua carga é positiva. Surgiram vários debates acerca desse “elétron positivo”, culminando com o reconhecimento de que a nova partícula seria o “antielétron”, proposto por Dirac na teoria quântica relativística do elétron de 1928, e despertando interesse renovado na criação e aniquilação de partículas. Dirac e seus colegas, Blackett e Occhialini, sugeriram que a criação de pares elétron-pósitron poderia estar na origem dos chuveiros cósmicos que haviam observado. Os resultados de trabalhos baseados na teoria da “Eletrodinâmica Quântica” (QED, em inglês), desenvolvidos por Robert Oppenheimer e Wendell Furry nos Estados Unidos e Hans Bethe e Walter Heitler na Grã-Bretanha carregavam o problema de infinidades a curtas distâncias de aproximação e tinham validade abaixo de um certo limiar de energia. A criação de pares poderia explicar a frenagem de partículas na matéria, mas somente para energias abaixo daquelas envolvidas nos chuveiros cósmicos. Ou seja, as teorias não conseguiam explicar as grandes distâncias percorridas pelos raios cósmicos altamente energéticos dentro de blocos de chumbo espessos [68, p. 232–235, 69]. Segundo Amit Hagar, Gleb Wataghin foi um dos primeiros a reconhecer o papel do comprimento mínimo na eliminação das divergências e a abordá-lo em três pequenos artigos publicados no segundo semestre de 1930 [70]. Em 1934, Wataghin propôs uma mudança do formalismo da teoria quântica com a introdução de “fatores de convergência” que em certo limite se anulam e dão origem a resultados convergentes [71]. Desse modo, Wataghin obteve uma energia finita para o elétron (sem estrutura) e a frequência-limite de radiação acima da qual nenhuma interação com a matéria poderia ocorrer foi estimada em 137m0c2/ℏ, que corresponde implicitamente a introduzir um comprimento universal mínimo r0=e2/m0c2. Ou seja, corresponde a introduzir o inverso da constante de estrutura fina 1α=ℏc/e2∼137. Já no Brasil, em 1939, Wataghin retoma o método dos “fatores de convergência” considerando as ideias de Heisenberg sobre as incertezas quânticas na medição em um microscópio para justificar as hipóteses assumidas no método [72]. Contudo essa abordagem aos problemas de divergência não foi aceita em geral. Segundo o historiador Helge Kragh, Heisenberg a considerou artificial e sem significado físico e, em carta a Pauli em 1937 fez crítica contundente: “o trabalho de Wataghin não vale muito; este Wataghin não pode pensar claramente” [73]. Apesar disso, 14 anos depois Feynman usaria o cut-off de Wataghin em sua famosa regularização relativista da QED, e lhe daria crédito por isso na Ref. [18] do seu artigo [74]: “This is seen to be essentially the method proposed by Wataghin [71]”. Wataghin, em seu depoimento do Cylon Gonçalves da Silva, relembra a objeção de físicos importantes ao seu trabalho [54]: De Londres fui para Copenhagen em companhia de Heitler. Mas naquela época eu estava muito convencido daquele comprimento mínimo do cut-off quer dizer são conceitos coligados. E Heitler estava violentamente contra. […] Ele me dizia, como muitos outros me disseram em Copenhagen – “Wataghin, está errado”. Eu cheguei em Copenhagen e pela primeira vez encontrei Niels Bohr. Tinha o Heitler, Heisenberg, Pauli, e Bohr me convidou para expor as minhas ideias. Pauli foi presidente da reunião, “Chairman”. Todos foram muito contra as minhas ideias, porque eu naquela época estava pensando que devia ter uma produção múltipla em raios cósmicos. Eu estava estudando raios cósmicos muito, porque era a única coisa que nós podíamos fazer na Itália. A única pessoa que naquela época me confortou foi Niels Bohr, que depois da reunião, quando eu estava sozinho, ele me convidou e disse: “Olha, Wataghin, não fique tão desesperado por estas críticas –. Eles diziam: “You are dreaming, that’s wrong and so on”. Eu penso que somente não estamos preparados”. – Porque a relatividade estava baseada naquela época no conceito de coincidentes num ponto de espaço de Minkowski de quatro dimensões, ponto-tempo. Os trabalhos de Wataghin no contexto da QED estão analisados com detalhes na Ref. [70]. Os problemas iniciais enfrentados pelos físicos na construção da Eletrodinâmica Quântica (QED) foram descritos por vários historiadores. Aos interessados na “crise quântica” dos anos 30, recomenda-se a leitura das Refs. [75, 76, 77, 78, 79]. Segundo Cassidy, “por volta de 1936, todos os experimentos sobre a absorção de raios cósmicos na matéria pareciam indicar – erroneamente, como se viu15 – um colapso da QED perto de um limite superior de energia teoricamente esperado.” Tudo indicava que as partículas interagiam com a matéria até o limiar de energia prevista pela QED e depois caminhavam através da matéria sem desacelerar [68, p. 252]. Heisenberg, por outro lado, que abandonara suas pesquisas em Eletrodinâmica Quântica por volta de 1935, adotou um procedimento diferente. Como alternativa à QED, abordou o problema a partir da teoria formulada por Enrico Fermi para tratar o decaimento-beta radioativo nuclear, proposta inicialmente em 1934. Em carta a Wolfgang Pauli, Heisenberg afirmou que “pode-se entender a existência dos chuveiros cósmicos imediatamente a partir da teoria beta de Fermi” [68, p. 252]. Em 1936, Heisenberg publicou o artigo “Sobre a Teoria do ‘Chuveiros’ na Radiação Cósmica” em que abordou os “chuveiros de explosão” de raios cósmicos usando a teoria da interação beta devido a Enrico Fermi [14]. Ele acreditava que a física a pequenas distâncias deveria ser totalmente revista e nesse artigo introduz um “comprimento universal que talvez possa estar ligado a nova mudança, um princípio no formalismo, justamente como, por exemplo, a introdução da constante c que levou à modificação da física pré-relativística”. Esse comprimento mínimo matemático, da ordem do tamanho das partículas elementares, parecia disparar “chuveiros de explosão” ou “processos múltiplos” dos raios cósmicos. Essa explosão era produzida quando a colisão das partículas ocorria numa região menor do que o comprimento mínimo universal. O resultado seria uma rajada instantânea de mésons e neutrinos que poderiam penetrar em blocos grossos de chumbo. Portanto, é nesse trabalho que, de forma pioneira, Heisenberg sugere a produção múltipla dos mésons que Wataghin viria a sustentar tanto em trabalhos teóricos como a partir dos resultados experimentais realizados no Brasil. Essas noções revolucionárias encontraram forte oposição dos seguidores de Bethe, Heitler e Oppenheimer que desenvolveram teorias alternativas de “chuveiros em cascata”, geradas por Bremsstrahlung e produção de pares e baseadas na eletrodinâmica quântica. Os resultados estavam em boa concordância com experimentos recentes de Carl Anderson para a componente “mole” dos raios cósmicos. Esses experimentos haviam identificado, pela primeira vez, dois tipos de raios cósmicos bastante diferentes no nível do mar: a componente “mole” facilmente absorvida e constituída por elétrons e fótons; e a componente “dura” (penetrante) de longo alcance. Esses resultados apareceram no artigo de Anderson e Neddermeyer [80] publicado um dia antes da submissão do artigo de Heisenberg. Seguiu-se a controvérsia entre Heisenberg que defendia a produção múltipla, ou seja, a existência dos chuveiros de explosão, e os vários físicos americanos que preferiam a ideia dos chuveiros em cascata. Em 1939, Heisenberg estendeu suas noções à teoria do méson (interação forte) das forças nucleares de Yukawa, revitalizando a controvérsia nos anos da guerra [81]. Cassidy realça que “embora chuvas de explosão, mais tarde chamadas de “processos múltiplos,” tenham sido descobertas após a guerra em eventos de raios cósmicos, a invenção de técnicas de renormalização e a confirmação experimental da eletrodinâmica quântica para as energias mais altas deixaram a física de Heisenberg apenas com apoio minoritário” [68]. É nesse contexto que apareceram os experimentos dos chuveiros penetrantes de São Paulo e de Manchester. . Além de despertar o interesse de outros teóricos, deram origem a uma série de experimentos que vieram a confirmar a existência de chuveiros de partículas penetrantes, possivelmente originadas de uma única interação.

A origem da componente penetrante era, nessa época, um dos problemas mais importantes da pesquisa em raios cósmicos. Em 1938, Johnson já havia concluído, após uma análise fenomenológica, que os primários da componente penetrante eram prótons [17[17] T.H. Johnson, Rev. Mod. Phys. 11, 208 (1939).], seguido por Blackett [18[18] P.M.S. Blackett, Proc. Phys. Soc. 53, 203 (1941).] e por Jánossy e Nicolson [19[19] L. Jánossy e P. Nicolson, Proc. Roy. Soc. A192, 99 (1947).].

A investigação sistemática dos chuveiros penetrantes foi iniciada a partir do experimento do grupo de Wataghin que demonstrou a eficácia dos detectores com um aparato mais simples do que os grupos liderados por L. Jánossy [20[20] L. Jánossy e P. Ingleby, Nature 145, 511 (1940)., 21[21] L. Jánossy, Proc. Roy. Soc. A179, 361 (1941).]. Os estudos de Jánossy levaram o grupo liderado por G. D. Rochester [22[22] L. Jánossy e G.D. Rochester, Proc. Roy. Soc. A182, 180 (1943).] a descobrir as partículas estranhas, como será discutido na Seção 5 5. Do Outro Lado do Atlântico – Os Experimentos em Manchester Lanos Jánossy foi chamado, em 1938, por Patrick Blackett11 para trabalhar na Universidade de Manchester, onde no ano anterior assumira uma cátedra e a chefia do Laboratório de Raios Cósmicos daquela Universidade. Em 1939, Jánossy e Ingleby iniciaram experimentos em que foi arranjada uma série de contadores protegidos por grande massa de chumbo, como mostrado na Fig. 9, e observaram a penetração de partículas por uma grossa camada de chumbo. Os oito contadores (H) no centro registram, independentemente, disparos simultaneamente com a coincidência quíntupla, C5, dos conjuntos de contadores 123AB. Disparos de dois ou mais contadores acompanhando a C5 eram frequentes. Como os detectores do topo e do fundo estavam separados por no mínimo 30 cm de chumbo – ou cerca de 60 unidades de cascata – seria necessário um chuveiro iniciado por um primário de pelo menos 1016 eV para dar origem a C5. No entanto, foi observada uma taxa de contagens de 1 evento a cada 5 horas, ainda assim muito acima da esperada para disparos devidos a elétrons de energia acima de 1016 eV [20]. Figura 9: Montagem experimental de Jánossy e Ingleby [20]. Figura 10: Montagem experimental de Jánossy e Rochester [22]. Com o aparato da Fig. 10, Jánossy e Rochester [22] obtiveram eventos de partículas penetrantes, tanto de chuveiros iniciados na atmosfera quanto dos produzidos localmente no absorvedor T. Neste arranjo experimental, eram registradas as coincidências sétuplas de grupos de detectores, C7, e as anticoincidências, C7-A, com o veto dos contadores (A) posicionados em torno e acima do absorvedor T. Variando a espessura do absorvedor, os autores puderam descrever a curva de transição pela fórmula empírica R=0,19+0,29(1-e-μx), onde R é a taxa de contagens, x a espessura do absorvedor e μ uma constante que depende do material, ou especificamente o inverso do livre caminho médio de interação. Neste experimento, foi encontrado para o chumbo o valor de 1/μ=50 g/cm2. Rochester assim se expressa a respeito de sua colaboração com Jánossy [58]: “With this equipment Jánossy showed there were showers, of rate about 40 per hundred penetrate great thicknesses of lead. Electromagnetic cascades were completely excluded as an electron shower wou1d require an energy in excess of l016 eV and these were very rare. Wataghin et al. also found penetrating showers with a rather simpler arrangement than Jánossy’s. [o grifo é dos autores] Thus, it seemed that if the showers were groups of penetrating particles, the equipment could be used for studying their creation and properties. This point was put to Blackett in 1940 and he agreed to let us continue research in a modest way.” Em 1940, Blackett foi convocado para trabalhar no esforço de guerra enquanto Jánossy e Rochester ficaram lecionando e com bastante tempo disponível para a pesquisa. Ambos passaram a investigar a produção primária e a detecção dos chuveiros penetrantes usando câmaras de nuvens, disponíveis em grande quantidade no laboratório. Foram obtidas inúmeras fotografias dos traços de chuveiros. Naquela época de guerra a dificuldade de acesso a trabalhos de outros grupos era grande e Rochester lembra que só conheciam a teoria de Heitler e colaboradores [59] que previa a produção única, isto é, o núcleon produz mésons um a um em sucessão, embora tenha afirmado em seu depoimento [58] que isso era “obviously wrong” sem explicar as razões dessa conclusão. Jánossy [60] chegou a sugerir que o chuveiro poderia ser gerado por uma produção única e sucessiva em um núcleo pesado, como chumbo. Segundo Jánossy: “Groups of mesons observed can be accounted for in a simple way without considering multiple processes in the strict sense.” Ao retornar ao laboratório ao final da Guerra, Blackett ficou impressionado com os resultados obtidos com as experiências dos chuveiros penetrantes e decidiu que um equipamento melhor deveria estar disponível para a continuação das pesquisas nesse tema. Rochester e um jovem colega, Clifford C. Butler, modernizaram a câmara de nuvens magnética de Blackett, instalaram iluminação com tubo de flash, e adquiriram novas lentes e filmes Kodak rápidos. Com esse novo sistema de detecção, chuveiros penetrantes produziram as partículas V neutras e carregadas que ganharam esse nome porque produziam a letra V na câmara de bolhas [61]. São partículas subatômicas instáveis que decaem em um par de partículas, por exemplo, V0→π++π-. Essas partículas receberam os nomes de káons (ou mésons K). Segundo J. Steinberg [62], o atributo de estranhas a essas partículas decorre do fato de que as partículas são produzidas em larga escala, uma indicação de que interagem por meio da força forte, mas possuem tempos de decaimento longos, característica da interação fraca. Elas deram origem a um novo número quântico chamado estranheza que deve ser conservado nas reações nucleares. Steinberg, ganhador do Prêmio Nobel de 1988, relembra o impacto no desenvolvimento da física de partículas nos anos 50 com a descoberta das partículas estranhas: “[Abraham] Pais noted in 1952 that this could be understood by inventing a feature of the strong interaction, a selection rule, which would permit their production but forbid their decay via the strong interaction. He implemented this in a mechanism that required the new heavy particles to be produced in pairs. This was extended some months later by [Murray] Gell-Mann, who ingeniously combined the selection rule with the notion of isotopic spin. It required that the pair of Pais be composed of a “strange” and an “antistrange” particle.” Como apontado por Rochester [58], o grupo de Manchester conhecia apenas o trabalho teórico do grupo de Heitler e não levaram em conta os trabalhos de Heisenberg e de Wataghin acerca da produção de mésons nos chuveiros penetrantes em um único evento, objeto da controvérsia a respeito da produção múltipla versus produção sequencial. .

3. As Primeiras Experiências no Brasil

Na área de física experimental, deve-se mencionar dois importantes experimentos realizados no Brasil. O primeiro feito por Cândido Batista de Oliveira, professor da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, com um pêndulo de Foucault, em 1851, no Rio de Janeiro. Embora a competência experimental dele não fosse boa, o que possivelmente levou a erros sistemáticos no experimento, os resultados foram reportados nos Comptes Rendus, em 1851, e, em 1852, no Poggendorff Annallen (atual Annalen der Physik). Tais resultados foram comunicados na Royal Society, em 1854, por Charles Babbage, e referenciados nos Proceedings daquela sociedade [23[23] I.C. Moreira e L. Massarani, Revista da SBHC 18, 3 (1997)., 24[24] I.C. Moreira, Física na Escola 2, 33 (2001).].

Em 1898, Henrique Morize defendeu uma tese cujo tema eram os raios catódicos e os raios de Roentgen [25[25] I.C. Moreira, Física na Escola 4, 33 (2003).]. Os resultados que obteve ao medir a duração da emissão dos raios-X com um dos aparatos que montou foram publicados nos Comptes Rendus [26[26] H. Morize, Compt. Rendus 127, 546 (1898).]. No mesmo ano publicou na mesma revista um artigo no qual descreve um método prático para localizar um projétil dentro de um corpo humano com o uso dos Raios X.

No ano de 1934, Theodoro Ramos, professor da Escola de Engenharia, viajou pela Europa com a incumbência de encontrar jovens cientistas para compor as cátedras da nascente Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da cidade de São Paulo. Enrico Fermi recebeu o convite de Ramos para ser professor de física no Brasil, mas declinou, indicando o jovem professor de origem ucraniana, Gleb Vassielievich Wataghin (1899–1986). Wataghin emigrou para a Itália, em 1919, fugindo da Revolução Russa. Em Turim, formou-se em física e em matemática. Entre os anos de 1925 e 1933, deu aulas na Academia Real e na Escola de Aplicação, Artilharia e Inteligência e, posteriormente, entre 1933 e 1934, na Universidade de Turim. Mudou-se para o Brasil, em 1934, e veio juntar-se a outros ilustres convidados de Ramos: Claude Lévi-Strauss, Luigi Fontapié, Giacomo Albanese, entre outros. Formava-se o embrião da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que comporia com a Escola Politécnica, as Faculdades de Medicina, de Direito e de Medicina Veterinária, além da Escola de Farmácia e Odontologia e Escola de Agronomia Luís de Queiróz, entre outras instituições isoladas, a futura Universidade de São Paulo [27[27] L. Pereira, Gleb Wataghin: descobridor de um novo mundo, disponível em https://bit.ly/3joXOBh, acessado em 16/08/2022.
https://bit.ly/3joXOBh...
].

Em São Paulo, Gleb Wataghin foi o professor da primeira geração de físicos formados no Brasil, tendo apresentado a física moderna e a mecânica quântica a seus alunos. Nas palavras de Fermi, esta teria sido a sua “segunda evangelização” – a primeira ele já fizera em Turim. Dava aulas de física para engenheiros, entre os quais, muitos foram convertidos, tornando-se físicos.

Em artigo recente, Tavares, Bagdonas e Videira fazem uma análise aprofundada da careira científica e acadêmica de Gleb Wataghin e a partir das circunstâncias históricas de cruzar fronteiras para estudar na Itália, institucionalizar a pesquisa em física em um centro recém-criado no Brasil, de treinar alunos para se tornarem físicos, de propiciar a ida deles para complementação de estudos no exterior, além de manter um intercâmbio contínuo com centros avançados de pesquisa, levaram-no a consolidar uma identidade científica transnacional [28[28] H.D. Tavares, A. Bagdonas e A.A.P. Videira, Hist. Stud. Natur. Sci. 50, 248 (2020).]. Outras análises sobre as atividades de Wataghin no contexto da missão italiana na USP e a criação da FFCL são encontradas nas Refs. [29[29] L.V.S. da Silva e B. Bontempi Jr., RUDN J. Russ. Hist. 19, 965 (2020)., 30[30] A.A.P. Videira, M.C. Bustamante, Quipu 10, 263 (1993)., 31[31] L.V.S. da Silva e B. Bontempi Jr., Lettera Matematica 6, 203 (2018).].

A Fig. 1 mostra Gleb Wataghin no laboratório de pesquisa de raios cósmicos.

Figura 1:
Gleb Wataghin junto a contadores Geiger e aparelhos eletrônicos para contagem de raios cósmicos. Provavelmente na década de 1930. Foto do acervo IFUSP.

O grupo de Wataghin recebeu considerável reforço em 1937 com a vinda de Giuseppe (Beppo) Occhialini (1907–1993) que aceitou uma cátedra na USP oferecida pelo governo italiano. Occhialini havia participado de pesquisas sobre raios cósmicos no Laboratório Cavendish da Universidade de Cambridge aonde fora, em 1931, aprender a técnica de câmaras de nuvens sob a liderança de P. M. Blackett [32[32] M.C. Bustamante, em: The Scientific Legacy of Beppo Occhialini, editado por P. Redondi, G. Sironi, P. Tucci e G. Vegni (Springer, New York, 2006)., 33[33] M.C. Bustamante, em: New Dictionary of Scientific Biography (Charles Scribner’s Sons, Nova York, 2007).]. Durante os três anos que passou em Cambridge, Occhialini e Blackett fizeram importantes contribuições científicas e chegaram a observar a produção massiva de tracks que identificaram como pares do elétron e do antielétron previsto pela teoria relativista de Dirac, usando câmara de nuvens acoplada a contadores de Geiger-Müller.3 3 Poucos meses antes, Carl Anderson, assistente de Millikan no Caltech, já havia relatado a existência de novas partículas positivas de pequena massa, mas sem referência à teoria do Dirac. Eles também sugeriram um possível mecanismo para a produção dos chuveiros cósmicos baseados na colisão inicial e uma provável existência de ligações não ionizantes nos processos que dão origem aos chuveiros múltiplos [34[34] P.M.S. Blackett e G.P.S. Occhialin, Proc. R. Soc. A139, 699 (1933).].

Occhialini juntou-se a Wataghin, a quem conhecera durante visita em Cambridge, com objetivo de colaborar para instituir uma escola de física em São Paulo, desenvolvendo pesquisas tanto experimental quanto teórica, e formar os jovens pupilos, dentre os quais, César Lattes, que se tornou seu mais proeminente discípulo. Compartilhou com Wataghin o interesse nos chuveiros de raios cósmicos, com foco no uso de contadores de partículas para medidas de absorção.

Com a entrada do Brasil na Guerra, a situação ficou insustentável para um “inimigo estrangeiro” e Occhialini renunciou à cátedra e após um curto período4 4 Devido a sua expertise como alpinista, tornou-se guia do Parque Nacional de Itatiaia. Depois do armistício italiano, em setembro de 1943, Occhialini trabalhou no Laboratório de Bioquímica, liderado por Carlos Chagas, no Rio de Janeiro em técnicas de fotografia e processamento de chapas. retornou para a Inglaterra, agora para Bristol, e deu início ao bem-sucedido trabalho de pesquisa sob a liderança de Cecil Powel, participando ativamente no desenvolvimento da técnica de emulsões e uso efetivo que levou à descoberta do méson pi em 1947, com a contribuição decisiva de seu ex-aluno brasileiro Cesar Lattes [35[35] C.L. Vieira e A.A.P. Videira, Rev. Bras. Ens. Fis. 33, 2603 (2011)., 36[36] C.L. Vieira e A.A.P. Videira, Phys. Perspect. 16, 3 (2014).].

Entre alguns de seus alunos mais conhecidos estavam Marcello Damy, Paulus Pompéia, Oscar Sala, Mário Schenberg e Roberto Salmeron e o já citado Cesar Lattes. Formou um grupo de física experimental com alguns de seus estudantes para detectar e estudar as interações de raios cósmicos. Seus experimentos contavam com instrumentação eletrônica simples, mas mundialmente competitiva, e logo publicaria os primeiros trabalhos em revistas internacionais de física. Na Fig. 2, a foto dos membros do grupo inicial de pesquisadores do Departamento de Física da FFCL da USP.

Figura 2:
Grupo inicial do departamento de Física, no final dos anos 30, sob a Jaboticabeira do quintal do prédio da Avenida Tiradentes, no. 11. Da direita para a esquerda: Roberto Xavier de Oliveira, Maria, Giuseppe Occhialini, Marcello Damy de Souza Santos, José, Yolande Monteaux (primeira mulher a se formar em Física no Brasil em 1937) e Abrahão de Moraes, Mario Schenberg, Gleb Wataghin e Francisco Bentivoglio Guidolin. Foto do acervo do IFUSP.

Após se formar em Física em 1938, Marcello Damy de Souza Santos (1914–2009) tornou-se assistente de Wataghin nesse mesmo ano e se dedicou à construção de contadores e circuitos elétricos necessários à pesquisa dos raios cósmicos. Fez estágio com William Bragg no Laboratório Cavendish na Universidade de Cambridge. Participou da Expedição Compton e do “Symposium” de raios cósmicos. Tornou-se professor da cadeira de Física Geral e Experimental em 1941 e se tornou chefe do Departamento de Física em 1942. Durante a guerra, desenvolveu pesquisas para a Marinha, em especial, no sistema de captação de submarinos na costa brasileira. Após estágio na Universidade de Illinois sob a orientação de Donald Kerst, o inventor do betatron, e de Maurice Goldhaber, participou da construção do betatron brasileiro, que foi o primeiro acelerador do país e da América Latina, inaugurado em 1950 [37[37] S. Lamarão, em Anais eletrônicos do 15º. Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, 16 a 18 de novembro de 2016, editado por: Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia (Sociedade Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, 2016).]. A Fig. 3 mostra Marcelo Damy junto a contadores Geiger e aparelhos eletrônicos para contagem de raios cósmicos.

Figura 3:
Marcelo Damy ao lado da instrumentação necessária para medidas de raios cósmicos. Provavelmente na década de 1930. Foto do acervo do IFUSP.

Paulus Aulus Pompeia (1911–1993) formou-se engenheiro eletricista pela Escola Politécnica e físico pela FFCL/USP em 1939. Nesse mesmo ano tornou-se assistente de Wataghin e dedicou-se à construção de novos equipamentos de detecção de raios cósmicos. Em 1940, graças a Wataghin, estagiou no laboratório de Arthur Compton na Universidade de Chicago, onde desenvolveu novas técnicas de medição das radiações cósmicas. Acompanhou Compton em sua expedição ao Brasil em 1941. Regressou de vez ao Brasil quando os EUA entraram na Segunda Guerra Mundial em dezembro de 1941. Participou do esforço de guerra construindo um aparelho para medir a velocidade inicial dos projéteis e, junto com Damy, atuou no projeto Sonar. Foi um dos principais organizadores do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) a partir de 1948, tornando-se professor de Física do ITA e assumindo a direção do Departamento de Física e Química. A Fig. 4 mostra Paulus Pompéia, provavelmente no laboratório de Química, uma vez que foi um dos responsáveis pela implantação dos laboratórios de Física e Química. Muito preocupado com a qualidade de ensino, dedicou-se com afinco à formação de professores. O ambiente no ITA se deteriorou após o golpe de 64, e provocou sua aposentadoria do ITA em 1966. Nesse mesmo ano, tornou-se professor de Física Aplicada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP [37[37] S. Lamarão, em Anais eletrônicos do 15º. Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, 16 a 18 de novembro de 2016, editado por: Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia (Sociedade Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, 2016).].

Figura 4:
Paulus Pompéia na década de 50 provavelmente no laboratório de Química do ITA (ver a tabela Periódica e uma capela à esquerda). Foto do acervo da família.

As medidas de radiação cósmica por Wataghin em São Paulo se iniciaram em 1937. Ele usou a técnica de contagem de coincidência que consiste na detecção quase simultânea de partículas subatômicas por meio de dois ou mais contadores conectados a um circuito eletrônico de coincidência. Seus assistentes, de início, Marcello Damy, e mais tarde, Paulus Pompeia, construíram os circuitos de coincidência usados pelo grupo. Tais circuitos eram cerca de dez vezes mais rápidos quando comparados com os existentes naquela época e permitiam medidas bastante precisas dos chuveiros penetrantes [38[38] C. Dobrigkeit, em: 4th School of Cosmic Ray and Astrophysics. (São Paulo, 2011).].

Em 1938, Wataghin e Damy publicaram resultados preliminares de medidas de chuveiros cósmicos realizados na mina de ouro de Morro Velho, Minas Gerais, à profundidade equivalente de água5 5 Em física, uma profundidade em metros de água equivalente (ou m.w.e) é uma medida padrão de atenuação de raios cósmicos em laboratórios subterrâneos. Um laboratório a uma profundidade de 1,000 m.w.e está protegido dos raios cósmicos de modo equivalente a um laboratório de 1.000 m abaixo da superfície da água (Wikipedia). de 200 m e 400 m [39[39] G. Wataghin e M.D. de Souza Santos, La Ricerca Scientifica 2, 1 (1938)., 40[40] G. Wataghin e M.D. de Souza Santos, An. Acad. Bras. Cienc. 11, 1 (1939).].

Em 1940, Wataghin, Damy e Pompeia publicaram uma Carta ao Editor intitulada Simulaneous Penetrating Particles in the Cosmic Radiation no prestigiado periódico Physical Review em que foram apresentados os resultados sobre a detecção simultânea de partículas penetrantes dos chuveiros cósmicos [41[41] G. Wataghin, M.D. de Souza Santos e P.A. Pompeia, Phys. Rev. 57, 61 (1940).].6 6 Essa Carta ao Editor constitui o primeiro trabalho experimental de um grupo brasileiro publicado no prestigiado periódico Physical Review. Contudo, segundo Dobrigkeit [38], a primeira publicação sobre raios cósmicos no Brasil é de autoria do alemão naturalizado brasileiro Bernhard Gross, do Instituto Nacional de Tecnologia, que chegou ao Rio de Janeiro em 1933. No artigo que aparece no ano seguinte [42] são apresentados resultados de medidas da intensidade de raios cósmicos na estratosfera e sob água. Gross também publicou, já no Brasil, no Physical Review resultados provenientes de pesquisa fenomenológica sobre raios cósmicos [43, 44]. Para o leitor interessado, Bustamante e Videira fizeram uma análise dos trabalhos de Gross sobre raios cósmicos durante os anos 30 no Rio de Janeiro [45]. As medidas foram feitas em São Paulo a 800 m acima do nível do mar. Os contadores possuíam 100 cm2 de área e foram dispostos em dois arranjos de tubos de hidrogênio e argônio, conforme mostrado na Fig. 5, operando a uma pressão de 15 mm Hg, blindados com chumbo e interligados por quatro circuitos de coincidência, com tempo de coincidência de 42 μs. Os arranjos produziam coincidências sempre que as partículas atravessassem uma espessura de 16 cm de chumbo.

Figura 5:
Os dois arranjos de contadores utilizados por Wataghin, Damy e Pompeia para a observação de chuveiros penetrantes. As dimensões lineares são em centímetros [41[41] G. Wataghin, M.D. de Souza Santos e P.A. Pompeia, Phys. Rev. 57, 61 (1940).].

Os contadores registraram quádrupla coincidência de partículas que atravessaram a camada de chumbo. Foram reportadas 54 coincidências com o arranjo I para um tempo de exposição de 12 dias e 2 horas e 46 coincidências com o arranjo II para um tempo de exposição de 12 dias, 23 horas e 40 minutos. As taxas de eventos obtidas, em cada caso, foram de cerca de 4,47 dia-1 e 3,54 dia-1, respectivamente. As frequências estimadas de disparos aleatórios nos dois arranjos eram de cerca de 2×10-4 min-1, ou seja, 15 vezes menor para o arranjo I e 12,5 menor para o arranjo II. Tais resultados evidenciaram a presença de pelo menos duas partículas penetrantes, passando simultaneamente pelos contadores dentro do intervalo de tempo do circuito de coincidência. Os resultados obtidos levaram os autores a “pensar que as partículas observadas estão associadas com os núcleos de chuveiros extensivos descobertos por Auger e colaboradores” e que a existência dessas partículas é de “notável interesse principalmente se essas partículas fossem os mesotrons” [41[41] G. Wataghin, M.D. de Souza Santos e P.A. Pompeia, Phys. Rev. 57, 61 (1940).]. A foto da primeira página do manuscrito datilografado com correções, complementos e bibliografia manuscrita é mostrada na Fig. 6.

Figura 6:
Primeira página do manuscrito do artigo Showers of penetrating particles. O texto integral pode ser acessado emhttps://bit.ly/3vcme6n. Fonte: Acervo do IFUSP.

Uma nova série de medidas foi reportada pelos mesmos autores no Physical Review usando um conjunto quíntuplo de coincidência em que confirmam a existência de chuveiros de partículas penetrantes e que o quinto contador permitiu estimar o espalhamento lateral do núcleo penetrante sobre uma área de 1 m2. Os resultados sugeriram um número médio de partículas nos chuveiros observados da ordem de 15 [46[46] G. Wataghin, M.D. de Souza Santos e P.A. Pompeia, Phys. Rev. 57, 339 (1940).].

Após essas comunicações pioneiras, resultados complementares foram reportados na Academia Brasileira de Ciências [47[47] P.A. Pompeia, M.D. de Souza Santos e G. Wataghin, An. Acad. Bras. Cienc. 12, 229 (1940).] e publicados no ano seguinte no Physical Review [48[48] M.D. de Souza Santos, P.A. Pompeia e G. Wataghin, Phys. Rev. 59, 902 (1941).]. As medidas7 7 Experimentos foram realizados no túnel da Avenida 9 de Julho, em São Paulo, em construção na época. obtidas abaixo de 30 m de argila (cerca de 50 m de equivalente de água) indicaram evidências da existência de chuveiros de pelo menos duas partículas tendo um alcance não inferior a 17 cm de chumbo e com o tamanho do núcleo penetrante da ordem de 0,2 m2. Nessas medidas foi usado o circuito multivibrador construído por Damy [49[49] M.D. de Souza Santos, An. Acad. Bras. Cienc. 12, 179 (1940).].

Registre-se o fato de que, na discussão dos resultados, os autores citam trabalhos realizados em 1940 por outros grupos, em particular, o de L. Jánossy e P. Ingleby [20[20] L. Jánossy e P. Ingleby, Nature 145, 511 (1940).], de Manchester, aos quais se atribuem, junto com o grupo brasileiro, os estudos iniciais dos chuveiros penetrantes.

Wataghin, em depoimento ao CPDOC em 1975, relata informalmente sua participação e de seus colaboradores nas experiências que levaram à observação dos chuveiros penetrantes [50[50] G. Wataghin, Depoimento de 1975, disponível em: https://bit.ly/3uEsVPX, acessado em 16/08/2022.
https://bit.ly/3uEsVPX...
]:

Na mesma época, decidi que a melhor coisa para o Brasil era formar aquela pouca gente que eu podia dar conta e depois mandar logo embora para o exterior. E pedi ao British Council, que se ocupava de bolsas de estudo e com quem eu mantinha boas relações, para dar uma bolsa ao Marcello Damy, para ir a Cambridge. Ele escolheu um dos melhores experimentais da época, um certo Carmichael.8 8 Hugh Carmichael teve contribuições importantes no estudo de raios cósmicos. Realizou medidas da radiação cósmica no polo norte geomagnético. E naquela época, ficou trabalhando comigo o Paulus Pompéia, que era um pouquinho mais velho do que o Marcello Damy. Eu tinha que começar do nada para construir os aparelhos de raios cósmicos. Recebi, com bastante esforço, dinheiro do Ministério da Educação. Comprei – porque não podia construir – os primeiros contadores Geiger a néon, com apagamento de descarga externa, e não os de auto apagamento. Então Pompéia construiu, de maneira maravilhosa, os circuitos Leher e Harter, que ficaram muito bonitos e muito bem-feitos. Fizemos outras experiências. Neste tempo Damy me escreve: “Nós, com Carmichael, encontramos um método novo de multivibrador, tal que o poder de resolução dos contadores passou de um milésimo para um milionésimo de segundo. Aqui está o desenho. Precisa fazer assim, assim”. O Pompéia viu e disse: “Eu vou construir”. De fato, trabalhou maravilhosamente. Esta foi a origem da possibilidade para mim, com Damy e Pompéia, de observar o que depois eu mesmo chamei de chuveiros penetrantes. Mas, eu precisava eliminar a componente eletrônica… Eu tinha cinco contadores somente e não tinha mais dinheiro. Então com dois contadores se fazem dois telescópios. Pus 20 cm de chumbo entre cada um deles e chumbo ao redor de tudo e, depois, o quinto contador do lado. De modo que precisava duas partículas penetrantes para dois telescópios e uma partícula penetrante para o terceiro. Três partículas! Occhialini, que já estava aqui, e outras pessoas na Europa diziam: “Não pode ser. Deve estar errado”. Mas com o multivibrador do Damy só podia estar certo de que eram mesmo verdadeiras coincidências. Ao se conseguir três coincidências com poder de resolução de milionésimo de segundo, não era possível que fosse uma coisa casual.

As notícias sobre as atividades do grupo de Wataghin apareceram na imprensa, talvez pela primeira vez, na coluna do jornalista e historiador da USP, Paulo Vanorden Shaw, na edição de 10 de dezembro de 1939 do jornal O Estado de São Paulo, que comenta a possibilidade da vinda de dois renomados físicos e da realização de um congresso, uma vez que:

“A Seção de Física [da Faculdade de Filosofia] em cinco anos, de 1934 a 1939, como pude verificar, publicou um total de 80 trabalhos de pesquisa em Física, sendo 41 pelos colaboradores e alunos e 39 pelo professor Wataghin.9 9 A extraordinária produtividade em pesquisa de Wataghin e seus colaboradores, de 80 trabalhos no período de cinco anos publicados por cerca de meia dúzia de pesquisadores merece ser ressaltada. A maioria destes trabalhos foi discutida e apresentada nas diferentes academias ou aceita pelas redações dos principais periódicos científicos da Itália, França, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos. A atividade científica do laboratório paulista foi notada em vários congressos, como os que se realizaram em Manchester, Paris e Washington. É de se notar que parte do aparelhamento foi construído no próprio laboratório. […] Num livro já saído, ou que sairá em breve, um célebre físico inglês citará o “método do multivibrador”, inventado e realizado pelo Dr. Damy para pesquisa de raios cósmicos.”

Mais recentemente, Roberto A. Salmeron ressaltou a contribuição do grupo brasileiro [51[51] R.A. Salmeron, Rev. Estud. Avan. 16, 310 (2002).]:

“Em 1940, Paulus A. Pompéia, M. Damy de Souza Santos e G. Wataghin fizeram em São Paulo um experimento que detectou eventos inesperados: chuveiros de partículas que podiam atravessar dezenas de centímetros de chumbo. Naquela época eram conhecidos os chuveiros eletromagnéticos, mas estes podem ser parados em poucos centímetros de chumbo. Os chuveiros detectados, que atravessavam dezenas de centímetros, não podiam, portanto, ser eletromagnéticos. Eram de um novo tipo, que os autores chamaram chuveiros penetrantes.”

4. O Simpósio Sobre Raios Cósmicos

Em 1941, realizou-se o “Symposium sobre Raios Cósmicos”, sob os auspícios da Academia Brasileira de Ciências no Rio de Janeiro [52[52] Anais da Academia Brasileira de Ciências. “Symposium” de Raios Cósmicos. (Rio de Janeiro, 1943). Disponível em https://bit.ly/3v6sIVp.
https://bit.ly/3v6sIVp...
]. O simpósio foi organizado em decorrência de uma missão científica e diplomática norte-americana [53[53] I. Silva e O. Freire Jr., Rev. Bras. Hist. 34, 181 (2014).], chefiada por Arthur H. Compton, da qual participava Paulus Pompéia que, na época, estagiava no laboratório de Compton na Universidade de Chicago, e viera realizar medidas da radiação cósmica na América do Sul, como parte do seu programa de pesquisas.

Entre os participantes do simpósio (Além dos mencionados acima), estavam do lado brasileiro: Gleb Wataghin, Giuseppe Occhialini, Mário Schenberg, Marcelo Damy de Souza Santos e Bernardo Gross, entre outros e do lado norte-americano: Donald Hughes, Ernest Wollan, William Jesse, da Universidade de Chicago e o casal Ann e Norman Hilberry da Universidade de Nova York. A Fig. 7 é o retrato oficial do evento.

Figura 7:
Participantes do “Symposium” sobre Raios Cósmicos na reunião final de 8 de agosto de 1941. Sentados: 1º. à esquerda, Gleb Wataghin e ao centro, Arthur Compton. Em pé: Paulus Pompéia é o segundo, Marcelo Damy o quarto da esquerda para a direita e Giuseppe Occhialini está no lado direito de Yolande Monteux. Fonte: Ref. [52[52] Anais da Academia Brasileira de Ciências. “Symposium” de Raios Cósmicos. (Rio de Janeiro, 1943). Disponível em https://bit.ly/3v6sIVp.
https://bit.ly/3v6sIVp...
].

A expedição científica comandada por Compton realizou experiências no Brasil, além do Peru. Um breve resumo das atividades e todos os trabalhos apresentados constam das Atas do Simpósio [52[52] Anais da Academia Brasileira de Ciências. “Symposium” de Raios Cósmicos. (Rio de Janeiro, 1943). Disponível em https://bit.ly/3v6sIVp.
https://bit.ly/3v6sIVp...
]. No entanto, a narrativa oral de Wataghin, em entrevista dada em 08 de julho de 1975, a Cylon Gonçalves da Silva, é sugestiva [54[54] G. Wataghin, Boletim Informativo – IFGW 287, 1 (1982).]:

[…], havia esperanças dos experimentos com balões da missão do Compton, mas, talvez apenas pela tese do Sala não rendeu muitos frutos. Poderíamos mudar o tempo do verbo de “vai ser” para “foi” com as experiências dos chuveiros penetrantes. Em 41, alguns meses antes de ir para Harvard – foi em agosto – a missão americana veio para o Brasil, e nós fizemos juntos um lançamento no Estado de São Paulo, em Bauru e em Marília, de balões a hidrogênio, que iam até 35 ou 40 km. O hidrogênio foi aquele que os alemães deixaram, porque eles tinham um Zeppelin aqui no Brasil, e o Governo brasileiro disse: “utilizem”. Quem foi de grande ajuda para mim foi o Pompéia, nesta ocasião. Com Pompéia nós fomos; e eu ia de avião, tínhamos um carro, e depois se olhava um pouquinho os ventos. Lançávamos pequenos balões, e eu ia de avião para seguir o balão onde ia cair. Às vezes, ia até o Atlântico, mas essas não eram nossas intenções. Com Pompéia lançávamos balões de hidrogênio com um peso qualquer, só para ver aonde ia, porque eu conhecia o peso dos aparelhos de Compton. Depois, Compton chegou e toda a história está descrita em um volume do simpósio de raios cósmicos, editado pela Academia Brasileira de Ciências. Existe em todas as bibliotecas; pode-se ver fotografias do Compton, dos balões, de tudo. Nesta ocasião, expus também a teoria da produção múltipla mais uma vez, baseada essencialmente também sobre um pequeno trabalho, quase esquecido, de 36, que foi publicado no Boletim Italiano, penso, da Academia de Ciências.”

A Fig. 8 mostra a expedição liderada por Arthur Compton soltando balões para as medidas de raios cósmicos.

Figura 8:
Cena de trabalho da Expedição Compton de 1941, que realizou medidas na estratosfera por meio de balões de hidrogênio como contadores de partículas. Diversas pessoas não foram identificadas. De pé, ao centro, Arthur Compton. O primeiro à direita parece ser Oscar Sala. Foto do acervo IFUSP.

Em sua palestra sobre a produção de grupos de mesotrons (mésons) em colisões de altas energias, Wataghin defende a produção múltipla dos mésons em contraposição à hipótese de Heitler e colaboradores, mencionada por ele [52[52] Anais da Academia Brasileira de Ciências. “Symposium” de Raios Cósmicos. (Rio de Janeiro, 1943). Disponível em https://bit.ly/3v6sIVp.
https://bit.ly/3v6sIVp...
, p. 129]:

“We assume that the energy E of primary proton is absorbed in one or two collision processes, so that the energy loss ΔE during one collision is of the order of magnitude of E. The experimental evidence supports the idea that the primary mesotrons producing particles are rapidly absorbed in a layer of atmosphere equivalent in mass to few cm.Hg. This rapid absorption can be understood admitting a cross-section 10-24 cm2 for a collision with an energy loss ΔE/E1. Another explanation of the rapid absorption can be derived from the assumption that the primary particle suffers a great number of collisions with small relative energy losses. This assumption requires a much larger cross section and thus seems to be less plausible.”

Wataghin reconhece que naquele momento não existia teoria satisfatória para explicar os resultados experimentais dos chuveiros cósmicos obtidos por seu grupo e dos chuveiros de Auger que indicavam a existência de muitos mésons nesses processos. Passa, então, a estimar o número de mésons produzidos pela colisão de um próton primário de alta energia com um próton (ou nêutron) em repouso, admitindo, porém, que muitos diferentes casos possam ser considerados nas colisões dos raios cósmicos na atmosfera.

Ele considera inicialmente a colisão de dois prótons que produz n mésons no sistema do centro de massa onde o momento total é nulo.10 10 Segundo Salmeron [51] “Wataghin foi um dos primeiros físicos a compreender que as colisões devem ser analisadas no sistema do centro de massa.” No apêndice, usando ideias relacionando teoria quântica e relatividade apresentadas em artigo da Nature [55[55] G. Wataghin, Nature 142, 393 (1938).] e um modelo estatístico de produção de partículas desenvolvido previamente, [56[56] G. Wataghin, Compt. Rend. 207, 421 (1938)., 57[57] G. Wataghin, An. Acad. Bras. Cien. 15, 355 (1943).], calcula a probabilidade de que numa colisão entre dois prótons sejam produzidos n mésons. Fazendo aproximações bem justificadas, estima que a probabilidade máxima ocorre quando a energia de cada méson de massa μ é cerca de 3μc2 e a energia de cada próton com massa M depois da colisão é cerca de 1,1Mc2. Assume ainda que a massa do próton é doze vezes a massa do méson, M=12 μ.

A energia de cada próton antes da colisão é Eo=γ Mc2, onde γ é o conhecido fator relativístico, o momento de um deles é po=Eo/c2-M2E0/c, supondo altas energias.

A energia disponível para os mésons é, portanto, ΔE=2γMc2-2, 2Mc2=2(γ-1,1)Mc2. Se ΔE=n3 μc2, então γ=n8+1,1n/8.

Por outro lado, no sistema de referência da Terra no qual o próton está incialmente parado com energia dada por E1=Mc2 e sofre uma colisão de outro próton com energia dada, segue por meio da transformação de Lorentz, que E2=γ(E0+vp0)2γE0, em que se tomou vc. Logo, E2=2γE0=2γ2Mc2=2n264Mc2. Assim, Wataghin chega ao importante resultado de que o número de mésons criados é aproximadamente dado por

(1) n 32 E 2 / M c 2 ,

e, portanto, proporcional à raiz quadrada da energia do próton incidente.

Resumindo os principais resultados: a energia média dos mésons é 3μc2, no sistema do centro de massa, e a multiplicidade média dos mésons produzidos varia com a energia segundo Ecm1/2, em que Ecm é a energia da colisão no sistema do centro de massa.

O trio formado por Wataghin, Damy e Pompéia apresentou ainda no “Symposium” uma curta comunicação [52[52] Anais da Academia Brasileira de Ciências. “Symposium” de Raios Cósmicos. (Rio de Janeiro, 1943). Disponível em https://bit.ly/3v6sIVp.
https://bit.ly/3v6sIVp...
, p. 155] com os resultados de novas medidas dos chuveiros penetrantes no interior de um túnel sob 33 m de argila, complementando os resultados de medidas publicados nos trabalhos anteriores [46[46] G. Wataghin, M.D. de Souza Santos e P.A. Pompeia, Phys. Rev. 57, 339 (1940)., 47[47] P.A. Pompeia, M.D. de Souza Santos e G. Wataghin, An. Acad. Bras. Cienc. 12, 229 (1940).].

Occhialini teve participação relevante na visita de Arthur Compton ao Brasil e no “Symposium” no qual apresentou os trabalhos [52[52] Anais da Academia Brasileira de Ciências. “Symposium” de Raios Cósmicos. (Rio de Janeiro, 1943). Disponível em https://bit.ly/3v6sIVp.
https://bit.ly/3v6sIVp...
]: “The influence of a solar eclipse on the cosmic ray intensity”, “On the ultra-soft component of the cosmic radiation”, e “On the properties of cosmic radiation in the temperate and equatorial zones” reportando os experimentos de absorção realizados em colaboração com seus alunos. Apresentou ainda, com Marcelo Damy, “Two useful gadgets for controlled Wilson chambers”, um circuito multivibrador assimétrico e um sistema de válvulas para câmaras de nuvens mais avançado do que os sistemas convencionais descritos anteriormente por Blacket [52[52] Anais da Academia Brasileira de Ciências. “Symposium” de Raios Cósmicos. (Rio de Janeiro, 1943). Disponível em https://bit.ly/3v6sIVp.
https://bit.ly/3v6sIVp...
].

5. Do Outro Lado do Atlântico – Os Experimentos em Manchester

Lanos Jánossy foi chamado, em 1938, por Patrick Blackett11 11 Vencedor do Nobel de 1948 pelo “seu desenvolvimento do método da câmara de nuvem de Wilson e suas descobertas nos campos da física nuclear e da radiação cósmica”. para trabalhar na Universidade de Manchester, onde no ano anterior assumira uma cátedra e a chefia do Laboratório de Raios Cósmicos daquela Universidade. Em 1939, Jánossy e Ingleby iniciaram experimentos em que foi arranjada uma série de contadores protegidos por grande massa de chumbo, como mostrado na Fig. 9, e observaram a penetração de partículas por uma grossa camada de chumbo. Os oito contadores (H) no centro registram, independentemente, disparos simultaneamente com a coincidência quíntupla, C5, dos conjuntos de contadores 123AB. Disparos de dois ou mais contadores acompanhando a C5 eram frequentes. Como os detectores do topo e do fundo estavam separados por no mínimo 30 cm de chumbo – ou cerca de 60 unidades de cascata – seria necessário um chuveiro iniciado por um primário de pelo menos 1016 eV para dar origem a C5. No entanto, foi observada uma taxa de contagens de 1 evento a cada 5 horas, ainda assim muito acima da esperada para disparos devidos a elétrons de energia acima de 1016 eV [20[20] L. Jánossy e P. Ingleby, Nature 145, 511 (1940).].

Figura 9:
Montagem experimental de Jánossy e Ingleby [20[20] L. Jánossy e P. Ingleby, Nature 145, 511 (1940).].
Figura 10:
Montagem experimental de Jánossy e Rochester [22[22] L. Jánossy e G.D. Rochester, Proc. Roy. Soc. A182, 180 (1943).].

Com o aparato da Fig. 10, Jánossy e Rochester [22[22] L. Jánossy e G.D. Rochester, Proc. Roy. Soc. A182, 180 (1943).] obtiveram eventos de partículas penetrantes, tanto de chuveiros iniciados na atmosfera quanto dos produzidos localmente no absorvedor T. Neste arranjo experimental, eram registradas as coincidências sétuplas de grupos de detectores, C7, e as anticoincidências, C7-A, com o veto dos contadores (A) posicionados em torno e acima do absorvedor T. Variando a espessura do absorvedor, os autores puderam descrever a curva de transição pela fórmula empírica R=0,19+0,29(1-e-μx), onde R é a taxa de contagens, x a espessura do absorvedor e μ uma constante que depende do material, ou especificamente o inverso do livre caminho médio de interação. Neste experimento, foi encontrado para o chumbo o valor de 1/μ=50 g/cm2.

Rochester assim se expressa a respeito de sua colaboração com Jánossy [58[58] G.D. Rochester, J. Phys. Colloques 43, 169 (1982).]:

“With this equipment Jánossy showed there were showers, of rate about 40 per hundred penetrate great thicknesses of lead. Electromagnetic cascades were completely excluded as an electron shower wou1d require an energy in excess of l016 eV and these were very rare. Wataghin et al. also found penetrating showers with a rather simpler arrangement than Jánossy’s. [o grifo é dos autores] Thus, it seemed that if the showers were groups of penetrating particles, the equipment could be used for studying their creation and properties. This point was put to Blackett in 1940 and he agreed to let us continue research in a modest way.”

Em 1940, Blackett foi convocado para trabalhar no esforço de guerra enquanto Jánossy e Rochester ficaram lecionando e com bastante tempo disponível para a pesquisa. Ambos passaram a investigar a produção primária e a detecção dos chuveiros penetrantes usando câmaras de nuvens, disponíveis em grande quantidade no laboratório. Foram obtidas inúmeras fotografias dos traços de chuveiros.

Naquela época de guerra a dificuldade de acesso a trabalhos de outros grupos era grande e Rochester lembra que só conheciam a teoria de Heitler e colaboradores [59[59] J. Hamilton, W. Heitler e H.W. Peng, Phys. Rev. 64, 78 (1943).] que previa a produção única, isto é, o núcleon produz mésons um a um em sucessão, embora tenha afirmado em seu depoimento [58[58] G.D. Rochester, J. Phys. Colloques 43, 169 (1982).] que isso era “obviously wrong” sem explicar as razões dessa conclusão. Jánossy [60[60] L. Jánossy, Phys. Rev. 64, 345 (1941).] chegou a sugerir que o chuveiro poderia ser gerado por uma produção única e sucessiva em um núcleo pesado, como chumbo. Segundo Jánossy: Groups of mesons observed can be accounted for in a simple way without considering multiple processes in the strict sense.”

Ao retornar ao laboratório ao final da Guerra, Blackett ficou impressionado com os resultados obtidos com as experiências dos chuveiros penetrantes e decidiu que um equipamento melhor deveria estar disponível para a continuação das pesquisas nesse tema. Rochester e um jovem colega, Clifford C. Butler, modernizaram a câmara de nuvens magnética de Blackett, instalaram iluminação com tubo de flash, e adquiriram novas lentes e filmes Kodak rápidos. Com esse novo sistema de detecção, chuveiros penetrantes produziram as partículas V neutras e carregadas que ganharam esse nome porque produziam a letra V na câmara de bolhas [61[61] G. Rochester e C. Butler, Nature 160, 855 (1947).]. São partículas subatômicas instáveis que decaem em um par de partículas, por exemplo, V0π++π-. Essas partículas receberam os nomes de káons (ou mésons K).

Segundo J. Steinberg [62[62] J. Steinberg, When the bubble chamber first burst onto the scene, disponível em: https://bit.ly/3xorg2v, acessado em 16/08/2022.
https://bit.ly/3xorg2v...
], o atributo de estranhas a essas partículas decorre do fato de que as partículas são produzidas em larga escala, uma indicação de que interagem por meio da força forte, mas possuem tempos de decaimento longos, característica da interação fraca. Elas deram origem a um novo número quântico chamado estranheza que deve ser conservado nas reações nucleares. Steinberg, ganhador do Prêmio Nobel de 1988, relembra o impacto no desenvolvimento da física de partículas nos anos 50 com a descoberta das partículas estranhas:

“[Abraham] Pais noted in 1952 that this could be understood by inventing a feature of the strong interaction, a selection rule, which would permit their production but forbid their decay via the strong interaction. He implemented this in a mechanism that required the new heavy particles to be produced in pairs. This was extended some months later by [Murray] Gell-Mann, who ingeniously combined the selection rule with the notion of isotopic spin. It required that the pair of Pais be composed of a “strange” and an “antistrange” particle.”

Como apontado por Rochester [58[58] G.D. Rochester, J. Phys. Colloques 43, 169 (1982).], o grupo de Manchester conhecia apenas o trabalho teórico do grupo de Heitler e não levaram em conta os trabalhos de Heisenberg e de Wataghin acerca da produção de mésons nos chuveiros penetrantes em um único evento, objeto da controvérsia a respeito da produção múltipla versus produção sequencial.

6. Trabalhos do Grupo de Wataghin Após a Guerra

Os resultados da tese de Oscar Sala, mencionada na entrevista de Wataghin a Cylon, começaram a aparecer em 1945 [63[63] O. Sala e G. Wataghin, Phys. Rev. 67, 55 (1945).]. O artigo relata estudos comparativos dos chuveiros penetrantes nas duas altitudes: de Campos de Jordão (1.750 m) e de São Paulo (750 m). O circuito multivibrador do Marcelo Damy é adaptado com contadores de gás álcool-argônio. Coincidências quádruplas foram observadas em dois experimentos. Um deles arranjado com disposição semelhante à dos experimentos anteriores do grupo brasileiro e no outro foi adicionado uma camada de 80 cm de água. Observaram um aumento de 23% na frequência dos chuveiros penetrantes por causa da camada de água e que essa camada absorvedora seria fonte de radiação secundária. E concluíram que as observações pareciam indicar que “grupos de partículas que penetram mais de 30 cm de Pb são produzidos em uma camada de água de apenas 80 cm”. A seguir comparam resultados obtidos em diferentes absorvedores – água, ar e argila – e especulam sobre a possibilidade de existência de diferentes tipos de chuveiros produzidas por diferentes espécies de raios cósmicos.

Salmeron no tópico “Seção de choque total próton-próton a altas energias” de seu artigo destaca o que veio a seguir na pesquisa do grupo sobre raios cósmicos após a Conferência do Rio de Janeiro em 1941 a ser tratada na Seção 8 8. Resultados do Grupo Brasileiro dão Suporte à Teoria de Heisenberg e Wataghin Em 1948, Wataghin retoma a questão dos chuveiros penetrantes e a produção múltipla dos mésons [82]. Aí deduz a fórmula que relaciona a energia do núcleon primário com o número médio de mésons produzidos dada por (2) E = 2 M ( a n 2 + b n + d ) , em que a, b e d foram determinados experimentalmente. Os dados apresentados na Tabela 1 do artigo concordam bem com essa fórmula. Na Fig. 12 encontram-se os dados tabelados para a multiplicidade média e energia dos mésons produzidos na colisão próton-próton. O comportamento da multiplicidade média dos mésons (n∝E ) fica evidente na Fig. 12, resultado esse que havia sido antecipado no artigo apresentado no “Symposium” [52]. Figura 12: Multiplicidade média n e a energia média dos mésons Eμ como função da energia primária Ep. Dados da tabela 1 da Ref. [82]. Logo a seguir, em 1949, Heisenberg retoma a discussão referente à produção múltipla de mésons nos chuveiros cósmicos por meio do artigo Productions of Mesons Showers [83]. Nele Heisenberg reafirma sua convicção de que a produção múltipla de mésons nos chuveiros penetrantes acontece em um único evento ao contrário da sugestão de Heitler e Peng de que o forte amortecimento do campo de mésons devido à interação com os núcleons levaria a uma produção sequencial de mésons, isto é, “ao colidir com uma partícula nuclear o méson se divide em um número n de mésons secundários” [84]. A teoria de Heitler e Peng consiste numa extensão para qualquer campo de partícula quantizado da teoria anterior de Heitler em que os efeitos de reação do campo de radiação em problemas de espalhamento foram tratados quanticamente de modo similar ao problema clássico do campo de reação de Lorentz. Na verdade, Heisenberg apenas generaliza o trabalho de Wataghin ao considerar uma distribuição de energias incidentes ao invés de Wataghin que considera apenas um evento na colisão. Ambos consideram a hipótese de que numa colisão de dois núcleons a altas energias, parte considerável da energia cinética no sistema centro de massa (CM) é transferida para o campo de mésons. Essa energia será dissipada, via um processo turbulento, na produção de muitos mésons. Ele admite que a distribuição espectral diferencial dI é isotrópica e dada por16 (3) d I = a d k k em que a é uma constante, k é o vetor de onda. Se e é a energia no sistema CM, o limite superior para k é grosseiramente k≈ε e o inferior a massa do méson π (ℏ=c=1). A constante a pode ser, então, obtida por meio de (4) ε = ∫ κ ε a d k k = a l n ε κ ; a = ε ln ( ε κ ) . O número médio de mésons é dado por (5) n ¯ = ∫ κ ε d I k = ∫ κ ε a d k k 2 ≈ a κ = ε κ ln ⁡ ( ε κ ) . Os resultados são transformados para o sistema do laboratório (SL) (núcleo em repouso antes da colisão) de modo a comparar com os resultados experimentais. A transformação relativística de energia entre os sistemas CM e SL fornece a relação (6) E = 2 M ( M + E ) - 2 M - Δ ε , em que E e M são a energia e massa do núcleon primário e Δε representa a energia cinética liberada para os núcleons (em CM) após a colisão e que Heisenberg considerou que pode ser bem pequena. A partir das Eqs. eq5 eeq6 “we conclude that the number of mesons varies roughly as the square-root of the primary energy (comp. Wataghin, Ref. [2])17”. A seguir, Heisenberg assume uma forma específica do espectro de prótons primários, a partir de resultados experimentais, e calcula a distribuição diferencial de mésons produzidos. Estima que a intensidade máxima de um chuveiro com n mésons seja 65n MeV. Supondo que os múons se originam do decaimento dos píons na atmosfera superior, determina sua distribuição de energia a altas energias. E promete que os detalhes dos cálculos deverão aparecer em breve. Como anunciado, Heisenberg publica no ano seguinte um artigo completo a respeito da produção múltipla de mésons oriunda da interação dos raios cósmicos com a atmosfera terrestre. Heisenberg aponta que os recentes experimentos confirmam sua antiga suposição e considera encerrada a controvérsia [85]. Em um dos primeiros parágrafos do artigo, faz menção aos “admiráveis avanços de Powell e seus colaboradores [86] na tecnologia fotográfica que levou a uma série de imagens da formação de mésons, em que a geração de muitos mésons em um único evento pode ser vista imediatamente” e o número de mésons produzidos em casos isolados é bastante grande para ser explicado como um processo de cascata, como reivindicado pelo Jánossy. Menciona ainda que resultados recentes mostram que chuveiros penetrantes aparecem mais comumente em materiais leves do que pesados e que provavelmente devem aparecer também em hidrogênio puro. Conclui o parágrafo afirmando que “se muitos mésons são gerados durante a colisão primária de dois núcleons, obviamente mais processos secundários podem estar ligados em um núcleo atômico maior”.18 Apesar dos resultados experimentais evidentes, em suas memórias, Heitler ainda insistiu que ambas as possibilidades podem ocorrer [87, p. 209]: “At about the same time, Jánossy and coworkers discovered that also showers of penetrating particles occurred. I believe it was in counter experiments. Undoubtedly, they were caused by particles strongly interacting with nuclei, nucleons or pi-mesons, giving rise to several pi-mesons and hence mu-mesons in a collision with a single nucleus. The interpretation gave rise to a controversy. Jánossy and I believed that a strongly interacting particle would collide with several nucleons in the same (heavy) nucleus, thus giving rise to the production of several pi-mesons. In fact, it could easily be seen that this must inevitably happen if the interaction is so strong. Heisenberg believed that, again owing to the strong interaction, several pi-mesons are produced in a single act of a collision with one nucleon. Probably in a penetrating shower both kinds of events occur. The first, analogous to a cascade shower, was named plural production, the second multiple production. I have not followed up the experimental outcome of this situation [o grifo é dos autores]. I did not continue theoretical work on cosmic radiation. The major problems were all solved.” Além de suas contribuições originais à teoria quântica e à relatividade, Gleb Wataghin desenvolveu mecânica estatística a altas temperaturas no estudo das colisões de altas energias dos raios cósmicos e na interpretação dos resultados experimentais obtidos [89, 90, 91]. Wataghin retornou à Itália, em 1949, para se tornar diretor do Instituto de Física da Universidade de Turim. Ele continuou a trabalhar em raios cósmicos, bem como a desenvolver seu interesse em teorias de campo não locais [28, 72]. [51[51] R.A. Salmeron, Rev. Estud. Avan. 16, 310 (2002).]:

“Em 1945, Oscar Sala e Gleb Wataghin fizeram um experimento para estudar interações de raios cósmicos em parafina, que é rica em hidrogênio. Eles concluíram que a seção de choque total de interação próton-próton a altas energias deve ser 40 milibarns (O. Sala e G. Wataghin, Phys. Rev. 5 (67) 1945).12 12 A referência correta é a Ref. [63]. Este é um resultado extraordinariamente correto, obtido há 55 anos com um dispositivo experimental extremamente simples. Com resultados precisos de experimentos efetuados com aceleradores, sabemos que a altas energias esta seção de choque varia de somente cerca de 10% em torno de 40 milibarns.”

Na sequência, Sala e Wataghin comparam os resultados anteriores de Campos de Jordão e São Paulo com aqueles obtidos em voo na altitude de 7000 m [64[64] O. Sala e G. Wataghin, Phys. Rev. 70, 430 (1946).]. Sugerem que a intensidade das partículas geradoras dos chuveiros penetrantes decresce muito rapidamente com a profundidade na atmosfera. No artigo subsequente, Wataghin [65[65] G. Wataghin, Phys. Rev. 71, 453 (1947).] compara resultados obtidos no voo a altitude de 7.000 m, reportado no artigo anterior, com aqueles do voo a 8.000 m. Estabelece que essa intensidade segue uma lei de absorção exponencial. E obtém uma seção de choque por núcleon de aproximadamente 16 milibarns. A Fig. 11 mostra Wataghin utilizando o avião para obter medidas dos raios cósmicos a várias altitudes.

Figura 11:
Gleb Wataghin e pessoa não identificada junto a aparelho para medidas de raios cósmicos dentro de avião da FAB para experiência em grandes altitudes. [1940]. Foto do acervo IFUSP.

Em artigo da Nature de 1948 [66[66] G. Wataghin, Nature 161, 91 (1948).] Wataghin relata os principais resultados acerca dos chuveiros penetrantes obtidos pelo grupo brasileiro, ressaltando a rápida variação da intensidade das partículas que produzem os chuveiros com a profundidade atmosférica13 13 A Profundidade de Interação d é uma medida do comprimento do caminho que permita prever a absorção dos raios cósmicos. Em todo ponto da trajetória r, o número de interações é proporcional a ρdr, de forma que ∫ρdr deve ser proporcional à absorção total. Se a densidade tem unidades de g/cm3 e o comprimento do caminho está em unidades de cm, então esta Profundidade de Interação tem unidades de g/cm2. Parece muito estranha essa unidade, mas permite comparar os efeitos da passagem dos raios cósmicos por quilômetros da atmosfera superior com a passagem por alguns centímetros de água. d: e-xd, em que x é a profundidade medida em g/cm2 e d100 g/cm2. Com base nos demais resultados obtidos conclui que “a maioria dos mésons é produzida em grupos (por meio de colisões de prótons primários ou secundários e nêutrons com os núcleons) com a multiplicidade aumentando com a energia de acordo com o esquema sugeridos por nós anteriormente” (nE). Na verdade, o foco do artigo é apontar a diferença marcante entre a lei de absorção exponencial dos chuveiros e a lenta variação com a profundidade da frequência de partículas penetrantes individuais medidas por um telescópio. Wataghin observa que essa diferença reside no fato de que o telescópio mede a intensidade integral dos mésons produzidos dentro do ângulo sólido definido pelo telescópio, enquanto os arranjos de coincidência somente podem registrar montes de partículas criadas localmente a distâncias não mais que algumas centenas de metros acima do arranjo.

Com a colaboração de Hans Albert Meyer (mais conhecido por João Alberto Mayer), Georges Schwachheim, e seu filho Andrea Wataghin, que fizeram parte do grupo remanescente da USP que investigou os chuveiros penetrantes, Wataghin publica resultados sobre a natureza dos mésons nos chuveiros penetrantes por meio de experimentos usando diferentes configurações de contadores de Geiger-Muller com as substâncias gasolina e chumbo [67[67] H.A. Meyer, G. Schwachheim, A. Wataghin e G. Wataghin, Phys. Rev. 75, 908 (1949).]. Para explicar os resultados experimentais, são levados a supor que os mésons produzidos inicialmente nos chuveiros penetrantes são mésons-π, e que os mésons-μ, produzidos a partir do decaimento dos instáveis mésons-π, são os mésons usualmente observados na radiação cósmica e que possuem grande poder penetrante, como observado por Lattes e colaboradores [8[8] C.M.G. Lattes, H. Muirhead, G.P.S. Occhialini e C.F. Powell, Nature 159, 694 (1947)., 9[9] C.M.G. Lattes, G.P.S. Occhialini e C.F. Powell, Nature 160, 453 (1947).].

7. Convergência de Heisenberg e Wataghin Acerca dos Raios Cósmicos

Segundo seu biógrafo David Cassidy, Heisenberg, em carta a Niels Bohr de 1931, “desistiu de se preocupar com questões fundamentais, que considerava muito difíceis”, em especial, o problema de aplicar a mecânica quântica a dimensões tão pequenas quanto o núcleo atômico.14 14 No entanto, seis meses após descoberta do nêutron por Chadwick em 1932, Heisenberg apresentou a primeira teoria quântica do núcleo, estabelecendo fundamentos da física nuclear. Passou a se dedicar a “problemas menos importantes”, relacionados a experimentos, que incluíam a teoria de magnetização, o espalhamento incoerente do raios-X pelo núcleo, e os impactos de partículas de altas energias na atmosfera, os raios cósmicos [68[68] D.C. Cassidy, Beyond Uncertainty Heisenberg, Quantum Physics, and the Bomb (Belevue Press, New York, 2009)., p. 200].

Como dito na Seção 3 3. As Primeiras Experiências no Brasil Na área de física experimental, deve-se mencionar dois importantes experimentos realizados no Brasil. O primeiro feito por Cândido Batista de Oliveira, professor da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, com um pêndulo de Foucault, em 1851, no Rio de Janeiro. Embora a competência experimental dele não fosse boa, o que possivelmente levou a erros sistemáticos no experimento, os resultados foram reportados nos Comptes Rendus, em 1851, e, em 1852, no Poggendorff Annallen (atual Annalen der Physik). Tais resultados foram comunicados na Royal Society, em 1854, por Charles Babbage, e referenciados nos Proceedings daquela sociedade [23, 24]. Em 1898, Henrique Morize defendeu uma tese cujo tema eram os raios catódicos e os raios de Roentgen [25]. Os resultados que obteve ao medir a duração da emissão dos raios-X com um dos aparatos que montou foram publicados nos Comptes Rendus [26]. No mesmo ano publicou na mesma revista um artigo no qual descreve um método prático para localizar um projétil dentro de um corpo humano com o uso dos Raios X. No ano de 1934, Theodoro Ramos, professor da Escola de Engenharia, viajou pela Europa com a incumbência de encontrar jovens cientistas para compor as cátedras da nascente Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da cidade de São Paulo. Enrico Fermi recebeu o convite de Ramos para ser professor de física no Brasil, mas declinou, indicando o jovem professor de origem ucraniana, Gleb Vassielievich Wataghin (1899–1986). Wataghin emigrou para a Itália, em 1919, fugindo da Revolução Russa. Em Turim, formou-se em física e em matemática. Entre os anos de 1925 e 1933, deu aulas na Academia Real e na Escola de Aplicação, Artilharia e Inteligência e, posteriormente, entre 1933 e 1934, na Universidade de Turim. Mudou-se para o Brasil, em 1934, e veio juntar-se a outros ilustres convidados de Ramos: Claude Lévi-Strauss, Luigi Fontapié, Giacomo Albanese, entre outros. Formava-se o embrião da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que comporia com a Escola Politécnica, as Faculdades de Medicina, de Direito e de Medicina Veterinária, além da Escola de Farmácia e Odontologia e Escola de Agronomia Luís de Queiróz, entre outras instituições isoladas, a futura Universidade de São Paulo [27]. Em São Paulo, Gleb Wataghin foi o professor da primeira geração de físicos formados no Brasil, tendo apresentado a física moderna e a mecânica quântica a seus alunos. Nas palavras de Fermi, esta teria sido a sua “segunda evangelização” – a primeira ele já fizera em Turim. Dava aulas de física para engenheiros, entre os quais, muitos foram convertidos, tornando-se físicos. Em artigo recente, Tavares, Bagdonas e Videira fazem uma análise aprofundada da careira científica e acadêmica de Gleb Wataghin e a partir das circunstâncias históricas de cruzar fronteiras para estudar na Itália, institucionalizar a pesquisa em física em um centro recém-criado no Brasil, de treinar alunos para se tornarem físicos, de propiciar a ida deles para complementação de estudos no exterior, além de manter um intercâmbio contínuo com centros avançados de pesquisa, levaram-no a consolidar uma identidade científica transnacional [28]. Outras análises sobre as atividades de Wataghin no contexto da missão italiana na USP e a criação da FFCL são encontradas nas Refs. [29, 30, 31]. A Fig. 1 mostra Gleb Wataghin no laboratório de pesquisa de raios cósmicos. Figura 1: Gleb Wataghin junto a contadores Geiger e aparelhos eletrônicos para contagem de raios cósmicos. Provavelmente na década de 1930. Foto do acervo IFUSP. O grupo de Wataghin recebeu considerável reforço em 1937 com a vinda de Giuseppe (Beppo) Occhialini (1907–1993) que aceitou uma cátedra na USP oferecida pelo governo italiano. Occhialini havia participado de pesquisas sobre raios cósmicos no Laboratório Cavendish da Universidade de Cambridge aonde fora, em 1931, aprender a técnica de câmaras de nuvens sob a liderança de P. M. Blackett [32, 33]. Durante os três anos que passou em Cambridge, Occhialini e Blackett fizeram importantes contribuições científicas e chegaram a observar a produção massiva de tracks que identificaram como pares do elétron e do antielétron previsto pela teoria relativista de Dirac, usando câmara de nuvens acoplada a contadores de Geiger-Müller.3 Eles também sugeriram um possível mecanismo para a produção dos chuveiros cósmicos baseados na colisão inicial e uma provável existência de ligações não ionizantes nos processos que dão origem aos chuveiros múltiplos [34]. Occhialini juntou-se a Wataghin, a quem conhecera durante visita em Cambridge, com objetivo de colaborar para instituir uma escola de física em São Paulo, desenvolvendo pesquisas tanto experimental quanto teórica, e formar os jovens pupilos, dentre os quais, César Lattes, que se tornou seu mais proeminente discípulo. Compartilhou com Wataghin o interesse nos chuveiros de raios cósmicos, com foco no uso de contadores de partículas para medidas de absorção. Com a entrada do Brasil na Guerra, a situação ficou insustentável para um “inimigo estrangeiro” e Occhialini renunciou à cátedra e após um curto período4 retornou para a Inglaterra, agora para Bristol, e deu início ao bem-sucedido trabalho de pesquisa sob a liderança de Cecil Powel, participando ativamente no desenvolvimento da técnica de emulsões e uso efetivo que levou à descoberta do méson pi em 1947, com a contribuição decisiva de seu ex-aluno brasileiro Cesar Lattes [35, 36]. Entre alguns de seus alunos mais conhecidos estavam Marcello Damy, Paulus Pompéia, Oscar Sala, Mário Schenberg e Roberto Salmeron e o já citado Cesar Lattes. Formou um grupo de física experimental com alguns de seus estudantes para detectar e estudar as interações de raios cósmicos. Seus experimentos contavam com instrumentação eletrônica simples, mas mundialmente competitiva, e logo publicaria os primeiros trabalhos em revistas internacionais de física. Na Fig. 2, a foto dos membros do grupo inicial de pesquisadores do Departamento de Física da FFCL da USP. Figura 2: Grupo inicial do departamento de Física, no final dos anos 30, sob a Jaboticabeira do quintal do prédio da Avenida Tiradentes, no. 11. Da direita para a esquerda: Roberto Xavier de Oliveira, Maria, Giuseppe Occhialini, Marcello Damy de Souza Santos, José, Yolande Monteaux (primeira mulher a se formar em Física no Brasil em 1937) e Abrahão de Moraes, Mario Schenberg, Gleb Wataghin e Francisco Bentivoglio Guidolin. Foto do acervo do IFUSP. Após se formar em Física em 1938, Marcello Damy de Souza Santos (1914–2009) tornou-se assistente de Wataghin nesse mesmo ano e se dedicou à construção de contadores e circuitos elétricos necessários à pesquisa dos raios cósmicos. Fez estágio com William Bragg no Laboratório Cavendish na Universidade de Cambridge. Participou da Expedição Compton e do “Symposium” de raios cósmicos. Tornou-se professor da cadeira de Física Geral e Experimental em 1941 e se tornou chefe do Departamento de Física em 1942. Durante a guerra, desenvolveu pesquisas para a Marinha, em especial, no sistema de captação de submarinos na costa brasileira. Após estágio na Universidade de Illinois sob a orientação de Donald Kerst, o inventor do betatron, e de Maurice Goldhaber, participou da construção do betatron brasileiro, que foi o primeiro acelerador do país e da América Latina, inaugurado em 1950 [37]. A Fig. 3 mostra Marcelo Damy junto a contadores Geiger e aparelhos eletrônicos para contagem de raios cósmicos. Figura 3: Marcelo Damy ao lado da instrumentação necessária para medidas de raios cósmicos. Provavelmente na década de 1930. Foto do acervo do IFUSP. Paulus Aulus Pompeia (1911–1993) formou-se engenheiro eletricista pela Escola Politécnica e físico pela FFCL/USP em 1939. Nesse mesmo ano tornou-se assistente de Wataghin e dedicou-se à construção de novos equipamentos de detecção de raios cósmicos. Em 1940, graças a Wataghin, estagiou no laboratório de Arthur Compton na Universidade de Chicago, onde desenvolveu novas técnicas de medição das radiações cósmicas. Acompanhou Compton em sua expedição ao Brasil em 1941. Regressou de vez ao Brasil quando os EUA entraram na Segunda Guerra Mundial em dezembro de 1941. Participou do esforço de guerra construindo um aparelho para medir a velocidade inicial dos projéteis e, junto com Damy, atuou no projeto Sonar. Foi um dos principais organizadores do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) a partir de 1948, tornando-se professor de Física do ITA e assumindo a direção do Departamento de Física e Química. A Fig. 4 mostra Paulus Pompéia, provavelmente no laboratório de Química, uma vez que foi um dos responsáveis pela implantação dos laboratórios de Física e Química. Muito preocupado com a qualidade de ensino, dedicou-se com afinco à formação de professores. O ambiente no ITA se deteriorou após o golpe de 64, e provocou sua aposentadoria do ITA em 1966. Nesse mesmo ano, tornou-se professor de Física Aplicada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP [37]. Figura 4: Paulus Pompéia na década de 50 provavelmente no laboratório de Química do ITA (ver a tabela Periódica e uma capela à esquerda). Foto do acervo da família. As medidas de radiação cósmica por Wataghin em São Paulo se iniciaram em 1937. Ele usou a técnica de contagem de coincidência que consiste na detecção quase simultânea de partículas subatômicas por meio de dois ou mais contadores conectados a um circuito eletrônico de coincidência. Seus assistentes, de início, Marcello Damy, e mais tarde, Paulus Pompeia, construíram os circuitos de coincidência usados pelo grupo. Tais circuitos eram cerca de dez vezes mais rápidos quando comparados com os existentes naquela época e permitiam medidas bastante precisas dos chuveiros penetrantes [38]. Em 1938, Wataghin e Damy publicaram resultados preliminares de medidas de chuveiros cósmicos realizados na mina de ouro de Morro Velho, Minas Gerais, à profundidade equivalente de água5 de 200 m e 400 m [39, 40]. Em 1940, Wataghin, Damy e Pompeia publicaram uma Carta ao Editor intitulada Simulaneous Penetrating Particles in the Cosmic Radiation no prestigiado periódico Physical Review em que foram apresentados os resultados sobre a detecção simultânea de partículas penetrantes dos chuveiros cósmicos [41].6 As medidas foram feitas em São Paulo a 800 m acima do nível do mar. Os contadores possuíam 100 cm2 de área e foram dispostos em dois arranjos de tubos de hidrogênio e argônio, conforme mostrado na Fig. 5, operando a uma pressão de 15 mm Hg, blindados com chumbo e interligados por quatro circuitos de coincidência, com tempo de coincidência de 42 μs. Os arranjos produziam coincidências sempre que as partículas atravessassem uma espessura de 16 cm de chumbo. Figura 5: Os dois arranjos de contadores utilizados por Wataghin, Damy e Pompeia para a observação de chuveiros penetrantes. As dimensões lineares são em centímetros [41]. Os contadores registraram quádrupla coincidência de partículas que atravessaram a camada de chumbo. Foram reportadas 54 coincidências com o arranjo I para um tempo de exposição de 12 dias e 2 horas e 46 coincidências com o arranjo II para um tempo de exposição de 12 dias, 23 horas e 40 minutos. As taxas de eventos obtidas, em cada caso, foram de cerca de 4,47 dia-1 e 3,54 dia-1, respectivamente. As frequências estimadas de disparos aleatórios nos dois arranjos eram de cerca de 2×10-4 min-1, ou seja, 15 vezes menor para o arranjo I e 12,5 menor para o arranjo II. Tais resultados evidenciaram a presença de pelo menos duas partículas penetrantes, passando simultaneamente pelos contadores dentro do intervalo de tempo do circuito de coincidência. Os resultados obtidos levaram os autores a “pensar que as partículas observadas estão associadas com os núcleos de chuveiros extensivos descobertos por Auger e colaboradores” e que a existência dessas partículas é de “notável interesse principalmente se essas partículas fossem os mesotrons” [41]. A foto da primeira página do manuscrito datilografado com correções, complementos e bibliografia manuscrita é mostrada na Fig. 6. Figura 6: Primeira página do manuscrito do artigo Showers of penetrating particles. O texto integral pode ser acessado emhttps://bit.ly/3vcme6n. Fonte: Acervo do IFUSP. Uma nova série de medidas foi reportada pelos mesmos autores no Physical Review usando um conjunto quíntuplo de coincidência em que confirmam a existência de chuveiros de partículas penetrantes e que o quinto contador permitiu estimar o espalhamento lateral do núcleo penetrante sobre uma área de 1 m2. Os resultados sugeriram um número médio de partículas nos chuveiros observados da ordem de 15 [46]. Após essas comunicações pioneiras, resultados complementares foram reportados na Academia Brasileira de Ciências [47] e publicados no ano seguinte no Physical Review [48]. As medidas7 obtidas abaixo de 30 m de argila (cerca de 50 m de equivalente de água) indicaram evidências da existência de chuveiros de pelo menos duas partículas tendo um alcance não inferior a 17 cm de chumbo e com o tamanho do núcleo penetrante da ordem de 0,2 m2. Nessas medidas foi usado o circuito multivibrador construído por Damy [49]. Registre-se o fato de que, na discussão dos resultados, os autores citam trabalhos realizados em 1940 por outros grupos, em particular, o de L. Jánossy e P. Ingleby [20], de Manchester, aos quais se atribuem, junto com o grupo brasileiro, os estudos iniciais dos chuveiros penetrantes. Wataghin, em depoimento ao CPDOC em 1975, relata informalmente sua participação e de seus colaboradores nas experiências que levaram à observação dos chuveiros penetrantes [50]: Na mesma época, decidi que a melhor coisa para o Brasil era formar aquela pouca gente que eu podia dar conta e depois mandar logo embora para o exterior. E pedi ao British Council, que se ocupava de bolsas de estudo e com quem eu mantinha boas relações, para dar uma bolsa ao Marcello Damy, para ir a Cambridge. Ele escolheu um dos melhores experimentais da época, um certo Carmichael.8 E naquela época, ficou trabalhando comigo o Paulus Pompéia, que era um pouquinho mais velho do que o Marcello Damy. Eu tinha que começar do nada para construir os aparelhos de raios cósmicos. Recebi, com bastante esforço, dinheiro do Ministério da Educação. Comprei – porque não podia construir – os primeiros contadores Geiger a néon, com apagamento de descarga externa, e não os de auto apagamento. Então Pompéia construiu, de maneira maravilhosa, os circuitos Leher e Harter, que ficaram muito bonitos e muito bem-feitos. Fizemos outras experiências. Neste tempo Damy me escreve: “Nós, com Carmichael, encontramos um método novo de multivibrador, tal que o poder de resolução dos contadores passou de um milésimo para um milionésimo de segundo. Aqui está o desenho. Precisa fazer assim, assim”. O Pompéia viu e disse: “Eu vou construir”. De fato, trabalhou maravilhosamente. Esta foi a origem da possibilidade para mim, com Damy e Pompéia, de observar o que depois eu mesmo chamei de chuveiros penetrantes. Mas, eu precisava eliminar a componente eletrônica… Eu tinha cinco contadores somente e não tinha mais dinheiro. Então com dois contadores se fazem dois telescópios. Pus 20 cm de chumbo entre cada um deles e chumbo ao redor de tudo e, depois, o quinto contador do lado. De modo que precisava duas partículas penetrantes para dois telescópios e uma partícula penetrante para o terceiro. Três partículas! Occhialini, que já estava aqui, e outras pessoas na Europa diziam: “Não pode ser. Deve estar errado”. Mas com o multivibrador do Damy só podia estar certo de que eram mesmo verdadeiras coincidências. Ao se conseguir três coincidências com poder de resolução de milionésimo de segundo, não era possível que fosse uma coisa casual. As notícias sobre as atividades do grupo de Wataghin apareceram na imprensa, talvez pela primeira vez, na coluna do jornalista e historiador da USP, Paulo Vanorden Shaw, na edição de 10 de dezembro de 1939 do jornal O Estado de São Paulo, que comenta a possibilidade da vinda de dois renomados físicos e da realização de um congresso, uma vez que: “A Seção de Física [da Faculdade de Filosofia] em cinco anos, de 1934 a 1939, como pude verificar, publicou um total de 80 trabalhos de pesquisa em Física, sendo 41 pelos colaboradores e alunos e 39 pelo professor Wataghin.9 A maioria destes trabalhos foi discutida e apresentada nas diferentes academias ou aceita pelas redações dos principais periódicos científicos da Itália, França, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos. A atividade científica do laboratório paulista foi notada em vários congressos, como os que se realizaram em Manchester, Paris e Washington. É de se notar que parte do aparelhamento foi construído no próprio laboratório. […] Num livro já saído, ou que sairá em breve, um célebre físico inglês citará o “método do multivibrador”, inventado e realizado pelo Dr. Damy para pesquisa de raios cósmicos.” Mais recentemente, Roberto A. Salmeron ressaltou a contribuição do grupo brasileiro [51]: “Em 1940, Paulus A. Pompéia, M. Damy de Souza Santos e G. Wataghin fizeram em São Paulo um experimento que detectou eventos inesperados: chuveiros de partículas que podiam atravessar dezenas de centímetros de chumbo. Naquela época eram conhecidos os chuveiros eletromagnéticos, mas estes podem ser parados em poucos centímetros de chumbo. Os chuveiros detectados, que atravessavam dezenas de centímetros, não podiam, portanto, ser eletromagnéticos. Eram de um novo tipo, que os autores chamaram chuveiros penetrantes.” , em 1933, Blackett e Occhialini observaram a colisão de raios cósmicos com uma fina placa de chumbo colocada dentro de uma câmara de nuvens. Logo após, Carl D. Anderson observou uma nova partícula subatômica a partir de seus estudos de fotografias de raios cósmicos em câmara de nuvens. Ele anunciou que a partícula, chamada atualmente de pósitron, tem a mesma massa do elétron, mas sua carga é positiva. Surgiram vários debates acerca desse “elétron positivo”, culminando com o reconhecimento de que a nova partícula seria o “antielétron”, proposto por Dirac na teoria quântica relativística do elétron de 1928, e despertando interesse renovado na criação e aniquilação de partículas. Dirac e seus colegas, Blackett e Occhialini, sugeriram que a criação de pares elétron-pósitron poderia estar na origem dos chuveiros cósmicos que haviam observado.

Os resultados de trabalhos baseados na teoria da “Eletrodinâmica Quântica” (QED, em inglês), desenvolvidos por Robert Oppenheimer e Wendell Furry nos Estados Unidos e Hans Bethe e Walter Heitler na Grã-Bretanha carregavam o problema de infinidades a curtas distâncias de aproximação e tinham validade abaixo de um certo limiar de energia. A criação de pares poderia explicar a frenagem de partículas na matéria, mas somente para energias abaixo daquelas envolvidas nos chuveiros cósmicos. Ou seja, as teorias não conseguiam explicar as grandes distâncias percorridas pelos raios cósmicos altamente energéticos dentro de blocos de chumbo espessos [68[68] D.C. Cassidy, Beyond Uncertainty Heisenberg, Quantum Physics, and the Bomb (Belevue Press, New York, 2009)., p. 232–235, 69[69] D.C. Cassidy, Hist. Stud. Phys. Sci. 12, 1 (1981).].

Segundo Amit Hagar, Gleb Wataghin foi um dos primeiros a reconhecer o papel do comprimento mínimo na eliminação das divergências e a abordá-lo em três pequenos artigos publicados no segundo semestre de 1930 [70[70] A. Hagar, Stud. Hist. Phil. Mod. Phys. 46, 217 (2014).].

Em 1934, Wataghin propôs uma mudança do formalismo da teoria quântica com a introdução de “fatores de convergência” que em certo limite se anulam e dão origem a resultados convergentes [71[71] G. Wataghin, Zeits. Phys. 88, 547 (1934).]. Desse modo, Wataghin obteve uma energia finita para o elétron (sem estrutura) e a frequência-limite de radiação acima da qual nenhuma interação com a matéria poderia ocorrer foi estimada em 137m0c2/, que corresponde implicitamente a introduzir um comprimento universal mínimo r0=e2/m0c2. Ou seja, corresponde a introduzir o inverso da constante de estrutura fina 1α=c/e2137. Já no Brasil, em 1939, Wataghin retoma o método dos “fatores de convergência” considerando as ideias de Heisenberg sobre as incertezas quânticas na medição em um microscópio para justificar as hipóteses assumidas no método [72[72] G. Wataghin, Nature 144, 754 (1939).].

Contudo essa abordagem aos problemas de divergência não foi aceita em geral. Segundo o historiador Helge Kragh, Heisenberg a considerou artificial e sem significado físico e, em carta a Pauli em 1937 fez crítica contundente: “o trabalho de Wataghin não vale muito; este Wataghin não pode pensar claramente” [73[73] H. Kragh, Rev. d’Histoire Sciences 44, 401 (1995).]. Apesar disso, 14 anos depois Feynman usaria o cut-off de Wataghin em sua famosa regularização relativista da QED, e lhe daria crédito por isso na Ref. [18[18] P.M.S. Blackett, Proc. Phys. Soc. 53, 203 (1941).] do seu artigo [74[74] R.P. Feynman, Phys. Rev. 74, 1430 (1948).]: “This is seen to be essentially the method proposed by Wataghin [71[71] G. Wataghin, Zeits. Phys. 88, 547 (1934).]”.

Wataghin, em seu depoimento do Cylon Gonçalves da Silva, relembra a objeção de físicos importantes ao seu trabalho [54[54] G. Wataghin, Boletim Informativo – IFGW 287, 1 (1982).]:

De Londres fui para Copenhagen em companhia de Heitler. Mas naquela época eu estava muito convencido daquele comprimento mínimo do cut-off quer dizer são conceitos coligados. E Heitler estava violentamente contra. […] Ele me dizia, como muitos outros me disseram em Copenhagen – “Wataghin, está errado”. Eu cheguei em Copenhagen e pela primeira vez encontrei Niels Bohr. Tinha o Heitler, Heisenberg, Pauli, e Bohr me convidou para expor as minhas ideias. Pauli foi presidente da reunião, “Chairman”. Todos foram muito contra as minhas ideias, porque eu naquela época estava pensando que devia ter uma produção múltipla em raios cósmicos. Eu estava estudando raios cósmicos muito, porque era a única coisa que nós podíamos fazer na Itália. A única pessoa que naquela época me confortou foi Niels Bohr, que depois da reunião, quando eu estava sozinho, ele me convidou e disse: “Olha, Wataghin, não fique tão desesperado por estas críticas –. Eles diziam: “You are dreaming, that’s wrong and so on”. Eu penso que somente não estamos preparados”. – Porque a relatividade estava baseada naquela época no conceito de coincidentes num ponto de espaço de Minkowski de quatro dimensões, ponto-tempo.

Os trabalhos de Wataghin no contexto da QED estão analisados com detalhes na Ref. [70[70] A. Hagar, Stud. Hist. Phil. Mod. Phys. 46, 217 (2014).].

Os problemas iniciais enfrentados pelos físicos na construção da Eletrodinâmica Quântica (QED) foram descritos por vários historiadores. Aos interessados na “crise quântica” dos anos 30, recomenda-se a leitura das Refs. [75[75] L.M. Brown e L. Hoddeson, Phys. Today 35, 36 (1982)., 76[76] L.M. Brown e L. Hoddeson, The Birth of Particle Physics: Based on a Fermilab Symposium (Cambridge University Press, Cambridge, 1983)., 77[77] A. Rueger, Hist. Stud. Phys. Biol. Sci. 22, 309 (1992)., 78[78] O. Darrigol, Rev. Hist. Sci. 41, 225 (1988)., 79[79] L.M. Brown e H. Rechenberg, Am. J. Phys. 59, 595 (1991).].

Segundo Cassidy, “por volta de 1936, todos os experimentos sobre a absorção de raios cósmicos na matéria pareciam indicar – erroneamente, como se viu15 15 O problema do infinito na QED foi resolvido por Julius Schwinger, Richard P. Feynman e Sin-Itiro Tomonaga por volta de 1949 e que, por isso, foram agraciados com o Prêmio Nobel de Física de 1965. – um colapso da QED perto de um limite superior de energia teoricamente esperado.” Tudo indicava que as partículas interagiam com a matéria até o limiar de energia prevista pela QED e depois caminhavam através da matéria sem desacelerar [68[68] D.C. Cassidy, Beyond Uncertainty Heisenberg, Quantum Physics, and the Bomb (Belevue Press, New York, 2009)., p. 252].

Heisenberg, por outro lado, que abandonara suas pesquisas em Eletrodinâmica Quântica por volta de 1935, adotou um procedimento diferente. Como alternativa à QED, abordou o problema a partir da teoria formulada por Enrico Fermi para tratar o decaimento-beta radioativo nuclear, proposta inicialmente em 1934. Em carta a Wolfgang Pauli, Heisenberg afirmou que “pode-se entender a existência dos chuveiros cósmicos imediatamente a partir da teoria beta de Fermi” [68[68] D.C. Cassidy, Beyond Uncertainty Heisenberg, Quantum Physics, and the Bomb (Belevue Press, New York, 2009)., p. 252].

Em 1936, Heisenberg publicou o artigo “Sobre a Teoria do ‘Chuveiros’ na Radiação Cósmica” em que abordou os “chuveiros de explosão” de raios cósmicos usando a teoria da interação beta devido a Enrico Fermi [14[14] W. Heisenberg, Zeits. Phys. 101, 533 (1936).]. Ele acreditava que a física a pequenas distâncias deveria ser totalmente revista e nesse artigo introduz um “comprimento universal que talvez possa estar ligado a nova mudança, um princípio no formalismo, justamente como, por exemplo, a introdução da constante c que levou à modificação da física pré-relativística”. Esse comprimento mínimo matemático, da ordem do tamanho das partículas elementares, parecia disparar “chuveiros de explosão” ou “processos múltiplos” dos raios cósmicos. Essa explosão era produzida quando a colisão das partículas ocorria numa região menor do que o comprimento mínimo universal. O resultado seria uma rajada instantânea de mésons e neutrinos que poderiam penetrar em blocos grossos de chumbo. Portanto, é nesse trabalho que, de forma pioneira, Heisenberg sugere a produção múltipla dos mésons que Wataghin viria a sustentar tanto em trabalhos teóricos como a partir dos resultados experimentais realizados no Brasil.

Essas noções revolucionárias encontraram forte oposição dos seguidores de Bethe, Heitler e Oppenheimer que desenvolveram teorias alternativas de “chuveiros em cascata”, geradas por Bremsstrahlung e produção de pares e baseadas na eletrodinâmica quântica. Os resultados estavam em boa concordância com experimentos recentes de Carl Anderson para a componente “mole” dos raios cósmicos. Esses experimentos haviam identificado, pela primeira vez, dois tipos de raios cósmicos bastante diferentes no nível do mar: a componente “mole” facilmente absorvida e constituída por elétrons e fótons; e a componente “dura” (penetrante) de longo alcance. Esses resultados apareceram no artigo de Anderson e Neddermeyer [80[80] C.D Anderson e S. Neddermeyer, Phys. Rev. 50, 263 (1936).] publicado um dia antes da submissão do artigo de Heisenberg.

Seguiu-se a controvérsia entre Heisenberg que defendia a produção múltipla, ou seja, a existência dos chuveiros de explosão, e os vários físicos americanos que preferiam a ideia dos chuveiros em cascata. Em 1939, Heisenberg estendeu suas noções à teoria do méson (interação forte) das forças nucleares de Yukawa, revitalizando a controvérsia nos anos da guerra [81[81] W. Heisenberg, Zeits. Phys. 113, 61 (1939).].

Cassidy realça que “embora chuvas de explosão, mais tarde chamadas de “processos múltiplos,” tenham sido descobertas após a guerra em eventos de raios cósmicos, a invenção de técnicas de renormalização e a confirmação experimental da eletrodinâmica quântica para as energias mais altas deixaram a física de Heisenberg apenas com apoio minoritário” [68[68] D.C. Cassidy, Beyond Uncertainty Heisenberg, Quantum Physics, and the Bomb (Belevue Press, New York, 2009).].

É nesse contexto que apareceram os experimentos dos chuveiros penetrantes de São Paulo e de Manchester.

8. Resultados do Grupo Brasileiro dão Suporte à Teoria de Heisenberg e Wataghin

Em 1948, Wataghin retoma a questão dos chuveiros penetrantes e a produção múltipla dos mésons [82[82] G. Wataghin, Phys. Rev. 74, 975 (1948).]. Aí deduz a fórmula que relaciona a energia do núcleon primário com o número médio de mésons produzidos dada por

(2) E = 2 M ( a n 2 + b n + d ) ,

em que a, b e d foram determinados experimentalmente. Os dados apresentados na Tabela 1 do artigo concordam bem com essa fórmula. Na Fig. 12 encontram-se os dados tabelados para a multiplicidade média e energia dos mésons produzidos na colisão próton-próton. O comportamento da multiplicidade média dos mésons (nE ) fica evidente na Fig. 12, resultado esse que havia sido antecipado no artigo apresentado no “Symposium” [52[52] Anais da Academia Brasileira de Ciências. “Symposium” de Raios Cósmicos. (Rio de Janeiro, 1943). Disponível em https://bit.ly/3v6sIVp.
https://bit.ly/3v6sIVp...
].

Figura 12:
Multiplicidade média n e a energia média dos mésons Eμ como função da energia primária Ep. Dados da tabela 1 da Ref. [82[82] G. Wataghin, Phys. Rev. 74, 975 (1948).].

Logo a seguir, em 1949, Heisenberg retoma a discussão referente à produção múltipla de mésons nos chuveiros cósmicos por meio do artigo Productions of Mesons Showers [83[83] W. Heisenberg, Nature 164, 65 (1949).]. Nele Heisenberg reafirma sua convicção de que a produção múltipla de mésons nos chuveiros penetrantes acontece em um único evento ao contrário da sugestão de Heitler e Peng de que o forte amortecimento do campo de mésons devido à interação com os núcleons levaria a uma produção sequencial de mésons, isto é, “ao colidir com uma partícula nuclear o méson se divide em um número n de mésons secundários” [84[84] W. Heitler e H.W. Peng, Proc. Camb. Phil. Soc. 38, 296 (1942).]. A teoria de Heitler e Peng consiste numa extensão para qualquer campo de partícula quantizado da teoria anterior de Heitler em que os efeitos de reação do campo de radiação em problemas de espalhamento foram tratados quanticamente de modo similar ao problema clássico do campo de reação de Lorentz.

Na verdade, Heisenberg apenas generaliza o trabalho de Wataghin ao considerar uma distribuição de energias incidentes ao invés de Wataghin que considera apenas um evento na colisão. Ambos consideram a hipótese de que numa colisão de dois núcleons a altas energias, parte considerável da energia cinética no sistema centro de massa (CM) é transferida para o campo de mésons. Essa energia será dissipada, via um processo turbulento, na produção de muitos mésons. Ele admite que a distribuição espectral diferencial dI é isotrópica e dada por16 16 Ao final do artigo, ele ressalta que essa hipótese necessita de uma base teórica, pois foi assumida no artigo anterior para fitar os resultados experimentais.

(3) d I = a d k k

em que a é uma constante, k é o vetor de onda. Se e é a energia no sistema CM, o limite superior para k é grosseiramente kε e o inferior a massa do méson π (=c=1). A constante a pode ser, então, obtida por meio de

(4) ε = κ ε a d k k = a l n ε κ ; a = ε ln ( ε κ ) .

O número médio de mésons é dado por

(5) n ¯ = κ ε d I k = κ ε a d k k 2 a κ = ε κ ln ( ε κ ) .

Os resultados são transformados para o sistema do laboratório (SL) (núcleo em repouso antes da colisão) de modo a comparar com os resultados experimentais. A transformação relativística de energia entre os sistemas CM e SL fornece a relação

(6) E = 2 M ( M + E ) - 2 M - Δ ε ,

em que E e M são a energia e massa do núcleon primário e Δε representa a energia cinética liberada para os núcleons (em CM) após a colisão e que Heisenberg considerou que pode ser bem pequena.

A partir das Eqs. eq5 eeq6 “we conclude that the number of mesons varies roughly as the square-root of the primary energy (comp. Wataghin, Ref. [2[2] W. Kolhoester, Phys. Z. 14, 1066 (1913).])17 17 Ref. [2] são os artigos de Wataghin do ano anterior [82] e o do “Symposium” [52]. ”. A seguir, Heisenberg assume uma forma específica do espectro de prótons primários, a partir de resultados experimentais, e calcula a distribuição diferencial de mésons produzidos. Estima que a intensidade máxima de um chuveiro com n mésons seja 65n MeV. Supondo que os múons se originam do decaimento dos píons na atmosfera superior, determina sua distribuição de energia a altas energias. E promete que os detalhes dos cálculos deverão aparecer em breve.

Como anunciado, Heisenberg publica no ano seguinte um artigo completo a respeito da produção múltipla de mésons oriunda da interação dos raios cósmicos com a atmosfera terrestre. Heisenberg aponta que os recentes experimentos confirmam sua antiga suposição e considera encerrada a controvérsia [85[85] W. Heisenberg, Zeits. Phys. 126, 569 (1949).]. Em um dos primeiros parágrafos do artigo, faz menção aos “admiráveis avanços de Powell e seus colaboradores [86[86] R. Brown, U. Camerini, P.H. Fowler, H. Muirhead, C.F. Powell e D.M. Ritson, Nature 163, 47 (1949).] na tecnologia fotográfica que levou a uma série de imagens da formação de mésons, em que a geração de muitos mésons em um único evento pode ser vista imediatamente” e o número de mésons produzidos em casos isolados é bastante grande para ser explicado como um processo de cascata, como reivindicado pelo Jánossy. Menciona ainda que resultados recentes mostram que chuveiros penetrantes aparecem mais comumente em materiais leves do que pesados e que provavelmente devem aparecer também em hidrogênio puro. Conclui o parágrafo afirmando que “se muitos mésons são gerados durante a colisão primária de dois núcleons, obviamente mais processos secundários podem estar ligados em um núcleo atômico maior”.18 18 Uma das referências citadas é o artigo On the Production of Showers of Penetrating Particles, do grupo da USP, em que ficou evidente que “o coeficiente de absorção dos raios primários ou a constituição e multiplicidade dos chuveiros produzidos depende da estrutura nuclear” usando dois materiais: ferro e água [88].

Apesar dos resultados experimentais evidentes, em suas memórias, Heitler ainda insistiu que ambas as possibilidades podem ocorrer [87[87] W.H. Heitler, em: Early History of Cosmic Ray Studies: Personal Reminiscences with Old Photographs, editado por Y. Sekido e H. Elliot (Springer Netherlands, Berlim, 1985)., p. 209]:

“At about the same time, Jánossy and coworkers discovered that also showers of penetrating particles occurred. I believe it was in counter experiments. Undoubtedly, they were caused by particles strongly interacting with nuclei, nucleons or pi-mesons, giving rise to several pi-mesons and hence mu-mesons in a collision with a single nucleus. The interpretation gave rise to a controversy. Jánossy and I believed that a strongly interacting particle would collide with several nucleons in the same (heavy) nucleus, thus giving rise to the production of several pi-mesons. In fact, it could easily be seen that this must inevitably happen if the interaction is so strong. Heisenberg believed that, again owing to the strong interaction, several pi-mesons are produced in a single act of a collision with one nucleon. Probably in a penetrating shower both kinds of events occur. The first, analogous to a cascade shower, was named plural production, the second multiple production. I have not followed up the experimental outcome of this situation [o grifo é dos autores]. I did not continue theoretical work on cosmic radiation. The major problems were all solved.”

Além de suas contribuições originais à teoria quântica e à relatividade, Gleb Wataghin desenvolveu mecânica estatística a altas temperaturas no estudo das colisões de altas energias dos raios cósmicos e na interpretação dos resultados experimentais obtidos [89[89] G. Wataghin, Anais Acad. Bras. Cienc. 15, 355 (1943)., 90[90] G. Wataghin, Phys. Rev. 63, 137 (1943)., 91[91] G. Wataghin, Phys. Rev. 66, 149 (1944).].

Wataghin retornou à Itália, em 1949, para se tornar diretor do Instituto de Física da Universidade de Turim. Ele continuou a trabalhar em raios cósmicos, bem como a desenvolver seu interesse em teorias de campo não locais [28[28] H.D. Tavares, A. Bagdonas e A.A.P. Videira, Hist. Stud. Natur. Sci. 50, 248 (2020)., 72[72] G. Wataghin, Nature 144, 754 (1939).].

9. Considerações Finais

A importância dos chuveiros cósmicos penetrantes para o desenvolvimento da Física de Altas Energias pode ser avaliada pelo depoimento de Carl C. Anderson,19 19 O Prêmio Nobel de Física de 1936 foi dividido em partes iguais entre Victor Hess “pela descoberta dos raios cósmicos” e por Carl Anderson “pela sua descoberta do pósitron”. Anderson nesse mesmo ano descobriu o múon. dado no 1°. Simpósio Internacional de História da Física de Partículas realizado no Fermilab em 1980 [76[76] L.M. Brown e L. Hoddeson, The Birth of Particle Physics: Based on a Fermilab Symposium (Cambridge University Press, Cambridge, 1983).] e recolhido por Rochester [58[58] G.D. Rochester, J. Phys. Colloques 43, 169 (1982).] lamentando não ter descoberto as partículas estranhas por não ter se voltado para os chuveiros penetrantes observados pela primeira vez pelos grupos de São Paulo e de Manchester:

“All the clues were present and published one of the most important being the experiments of Jánossy in which he selected nuclear collisions of high energy. We needed only 20 cm lead…and triple coincidences. This would have selected nuclear events and undoubtedly would have given us hundreds of the unstable particles…subsequently discovered by Rochester and Butler.”

Em sua palestra Nobel de 1948, Patrick Blackett ressalta os trabalhos pioneiros de Wataghin e Jánossy e a situação de incerteza na época sobre a natureza das partículas produzidas nos chuveiros penetrantes e o processo pelo qual são produzidas [92[92] P.M.S. Blackett, Cloud chamber researches in nuclear physics and cosmic radiation, disponível em: https://bit.ly/3ux4yU7, acessado em 16/08/2022.
https://bit.ly/3ux4yU7...
]:

“The counter experiments of Jánossy and Wataghin at sea level showed that a rare type of shower existed consisting of a few associated penetrating rays. These penetrating showers were studied by Rochester during the War. These showers consisted of narrow groups of nearly parallel-penetrating particles. In some experiments, the counter system used to control the chamber was so rigidly defined as to be actuated only once every 24 hours or so. By this means it was possible to set a chamber so that it would wait a whole day to be activated by the particular type of shower which it was desired to photograph. As soon as the end of the War made it possible to resume work with the large magnet, a detailed study was commenced by Rochester and Butler of the penetrating showers.”

Silvio Salinas comenta a divulgação da “aventura brasileira” de Wataghin feita pelo eminente físico Freeman Dyson durante um colóquio em Michigan [93[93] S.S. Salinas, Física na Escola 6, 42 (2005).]:

John von Neumann, que tinha sido colega de Dyson em Princeton e era amigo de Wataghin, teria tentado convencê-lo de que seria um absurdo abandonar a Europa a fim de recomeçar a vida no Brasil, país longínquo, onde absolutamente não se fazia nenhum trabalho em Física. Para ilustrar as suas teses sobre os caminhos da ciência, Dyson aponta o enorme sucesso da decisão de Wataghin pelo Brasil; em condições improváveis, Wataghin conseguiu rapidamente formar um grupo de nível internacional. Dyson observa para aquele público norte-americano que alguns anos depois de sua chegada em São Paulo começavam a aparecer em The Physical Review os primeiros artigos brasileiros de Wataghin, escritos em colaboração com jovens brilhantes, certamente formados no ambiente que ele havia criado.”

Em seu artigo sobre as contribuições científicas de Wataghin, Roberto Salmeron [51[51] R.A. Salmeron, Rev. Estud. Avan. 16, 310 (2002).] destaca:

Wataghin teve perspicácia para compreender logo que o estudo de raios cósmicos era um campo de investigação importante que poderia ser feito em boas condições no Brasil, na época em que aqui chegou. Essa sua visão marcou o desenvolvimento de certos setores da física brasileira, em alguns casos até hoje. Apesar de ser físico teórico, não tendo recebido nenhuma formação especial em métodos experimentais, ele criou em São Paulo um grupo experimental em raios cósmicos, que em poucos anos se tornou conhecido internacionalmente.

Nesse artigo, foram analisados os trabalhos de Gleb Wataghin e seus assistentes Marcelo Damy e Paulus Pompeia sobre os chuveiros penetrantes de raios cósmicos e as implicações para o desenvolvimento da Física de Altas Energias. Uma discussão detalhada foi feita acerca da influência recíproca de Wataghin e Heisenberg na busca da solução para o problema das divergências da QED, na introdução de comprimento universal mínimo e, principalmente, na consolidação da hipótese da produção múltipla das partículas geradas na colisão dos raios cósmicos com a atmosfera. Foi realçado o reconhecimento da comunidade internacional pelos trabalhos do grupo brasileiro liderado por Wataghin no Departamento de Física da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP nos anos 40. O estudo de raios cósmicos no Brasil continuou no Brasil, sob a liderança de Cesar Lattes, um dos descobridores do méson pi, no Instituto de Física da Unicamp, que homenageou Wataghin, em 1967, dando-lhe o nome do Instituto.

Como ficou demonstrado, os fenômenos encontrados nos raios cósmicos desempenharam papel importante na formação e testagem de ideias teóricas concernentes às partículas elementares e às forças nucleares nos anos 40 e 50. Apesar dos atuais gigantescos aceleradores de partículas, os raios cósmicos ainda constituem fontes de partículas de alta energia que estão sendo estudadas. No Brasil, diversos grupos experimentais e teóricos vieram a se consolidar em várias universidades e institutos de pesquisa como legado dos trabalhos de Wataghin e seus discípulos. Estes grupos continuam a desenvolver pesquisas de vanguarda, junto a grandes colaborações internacionais como a do Observatório Pierre Auger, na física de raios cósmicos.

Agradecimentos

Os autores agradecem: a Ildeu Moreira pela leitura atenta do manuscrito e sugestões sobre as experiências iniciais da física no Brasil; a Guto Videira e Cecília Bustamente por compartilhar várias referências suas; a Ivã Gurgel pela gentileza em fornecer as fotos do acervo do IFUSP; e a Pedro Pompéia e Raul Abramo, ambos netos de Paulus, pelas conversas sobre seu avô. Os autores são gratos aos revisores da RBEF pelas valiosas sugestões. Um dos autores (NS) é grato a Marcel Novaes por discussões sobre a física de espalhamento e a Olival Freire pelo incentivo para a realização da pesquisa histórica.

Referências

  • [1]
    V.F. Hess, Phys. Z. 13, 1084 (1912).
  • [2]
    W. Kolhoester, Phys. Z. 14, 1066 (1913).
  • [3]
    W. Kolhoester, Dtsch. Phys. Ges. Verh. 16, 719 (1914).
  • [4]
    R.A. Millikan, Nature 116, 823 (1925).
  • [5]
    C.D. Anderson, Phys. Rev. 43, 491 (1933).
  • [6]
    S.H. Neddermeyer e C.D. Anderson, Phys. Rev. 51, 884 (1937).
  • [7]
    J.C. Street e E.C. Stevenson, Phys. Rev. 51, 1105 (1937).
  • [8]
    C.M.G. Lattes, H. Muirhead, G.P.S. Occhialini e C.F. Powell, Nature 159, 694 (1947).
  • [9]
    C.M.G. Lattes, G.P.S. Occhialini e C.F. Powell, Nature 160, 453 (1947).
  • [10]
    J. Chirinos, AIP Conference Proceedings 1123, 39 (2009).
  • [11]
    W. Heitler, The Quantum Theory of Radiation (Courier Corporation, Chelmsford, 1956).
  • [12]
    H.J. Bhabha e W. Heitler, Proc. Roy. Soc. London A159, 432 (1937).
  • [13]
    J.F. Carlson e J.R. Oppenheimer, Phys. Rev. 51, 220 (1937).
  • [14]
    W. Heisenberg, Zeits. Phys. 101, 533 (1936).
  • [15]
    L. Fussel, Phys. Rev. 51, 1005 (1936).
  • [16]
    W.M. Powell, Phys. Rev. 60, 413 (1941).
  • [17]
    T.H. Johnson, Rev. Mod. Phys. 11, 208 (1939).
  • [18]
    P.M.S. Blackett, Proc. Phys. Soc. 53, 203 (1941).
  • [19]
    L. Jánossy e P. Nicolson, Proc. Roy. Soc. A192, 99 (1947).
  • [20]
    L. Jánossy e P. Ingleby, Nature 145, 511 (1940).
  • [21]
    L. Jánossy, Proc. Roy. Soc. A179, 361 (1941).
  • [22]
    L. Jánossy e G.D. Rochester, Proc. Roy. Soc. A182, 180 (1943).
  • [23]
    I.C. Moreira e L. Massarani, Revista da SBHC 18, 3 (1997).
  • [24]
    I.C. Moreira, Física na Escola 2, 33 (2001).
  • [25]
    I.C. Moreira, Física na Escola 4, 33 (2003).
  • [26]
    H. Morize, Compt. Rendus 127, 546 (1898).
  • [27]
    L. Pereira, Gleb Wataghin: descobridor de um novo mundo, disponível em https://bit.ly/3joXOBh, acessado em 16/08/2022.
    » https://bit.ly/3joXOBh
  • [28]
    H.D. Tavares, A. Bagdonas e A.A.P. Videira, Hist. Stud. Natur. Sci. 50, 248 (2020).
  • [29]
    L.V.S. da Silva e B. Bontempi Jr., RUDN J. Russ. Hist. 19, 965 (2020).
  • [30]
    A.A.P. Videira, M.C. Bustamante, Quipu 10, 263 (1993).
  • [31]
    L.V.S. da Silva e B. Bontempi Jr., Lettera Matematica 6, 203 (2018).
  • [32]
    M.C. Bustamante, em: The Scientific Legacy of Beppo Occhialini, editado por P. Redondi, G. Sironi, P. Tucci e G. Vegni (Springer, New York, 2006).
  • [33]
    M.C. Bustamante, em: New Dictionary of Scientific Biography (Charles Scribner’s Sons, Nova York, 2007).
  • [34]
    P.M.S. Blackett e G.P.S. Occhialin, Proc. R. Soc. A139, 699 (1933).
  • [35]
    C.L. Vieira e A.A.P. Videira, Rev. Bras. Ens. Fis. 33, 2603 (2011).
  • [36]
    C.L. Vieira e A.A.P. Videira, Phys. Perspect. 16, 3 (2014).
  • [37]
    S. Lamarão, em Anais eletrônicos do 15º. Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, 16 a 18 de novembro de 2016, editado por: Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia (Sociedade Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, 2016).
  • [38]
    C. Dobrigkeit, em: 4th School of Cosmic Ray and Astrophysics. (São Paulo, 2011).
  • [39]
    G. Wataghin e M.D. de Souza Santos, La Ricerca Scientifica 2, 1 (1938).
  • [40]
    G. Wataghin e M.D. de Souza Santos, An. Acad. Bras. Cienc. 11, 1 (1939).
  • [41]
    G. Wataghin, M.D. de Souza Santos e P.A. Pompeia, Phys. Rev. 57, 61 (1940).
  • [42]
    B. Gross, Rev. Bras. Eng. 27, 6 (1934).
  • [43]
    B. Gross, Phys. Rev. 50, 1188 (1936).
  • [44]
    B. Gross, Phys. Rev. 55, 112 (1939).
  • [45]
    M.C. Bustamante e A.A.P. Videira, Quipu 8, 325 (1991).
  • [46]
    G. Wataghin, M.D. de Souza Santos e P.A. Pompeia, Phys. Rev. 57, 339 (1940).
  • [47]
    P.A. Pompeia, M.D. de Souza Santos e G. Wataghin, An. Acad. Bras. Cienc. 12, 229 (1940).
  • [48]
    M.D. de Souza Santos, P.A. Pompeia e G. Wataghin, Phys. Rev. 59, 902 (1941).
  • [49]
    M.D. de Souza Santos, An. Acad. Bras. Cienc. 12, 179 (1940).
  • [50]
    G. Wataghin, Depoimento de 1975, disponível em: https://bit.ly/3uEsVPX, acessado em 16/08/2022.
    » https://bit.ly/3uEsVPX
  • [51]
    R.A. Salmeron, Rev. Estud. Avan. 16, 310 (2002).
  • [52]
    Anais da Academia Brasileira de Ciências. “Symposium” de Raios Cósmicos. (Rio de Janeiro, 1943). Disponível em https://bit.ly/3v6sIVp
    » https://bit.ly/3v6sIVp
  • [53]
    I. Silva e O. Freire Jr., Rev. Bras. Hist. 34, 181 (2014).
  • [54]
    G. Wataghin, Boletim Informativo – IFGW 287, 1 (1982).
  • [55]
    G. Wataghin, Nature 142, 393 (1938).
  • [56]
    G. Wataghin, Compt. Rend. 207, 421 (1938).
  • [57]
    G. Wataghin, An. Acad. Bras. Cien. 15, 355 (1943).
  • [58]
    G.D. Rochester, J. Phys. Colloques 43, 169 (1982).
  • [59]
    J. Hamilton, W. Heitler e H.W. Peng, Phys. Rev. 64, 78 (1943).
  • [60]
    L. Jánossy, Phys. Rev. 64, 345 (1941).
  • [61]
    G. Rochester e C. Butler, Nature 160, 855 (1947).
  • [62]
    J. Steinberg, When the bubble chamber first burst onto the scene, disponível em: https://bit.ly/3xorg2v, acessado em 16/08/2022.
    » https://bit.ly/3xorg2v
  • [63]
    O. Sala e G. Wataghin, Phys. Rev. 67, 55 (1945).
  • [64]
    O. Sala e G. Wataghin, Phys. Rev. 70, 430 (1946).
  • [65]
    G. Wataghin, Phys. Rev. 71, 453 (1947).
  • [66]
    G. Wataghin, Nature 161, 91 (1948).
  • [67]
    H.A. Meyer, G. Schwachheim, A. Wataghin e G. Wataghin, Phys. Rev. 75, 908 (1949).
  • [68]
    D.C. Cassidy, Beyond Uncertainty Heisenberg, Quantum Physics, and the Bomb (Belevue Press, New York, 2009).
  • [69]
    D.C. Cassidy, Hist. Stud. Phys. Sci. 12, 1 (1981).
  • [70]
    A. Hagar, Stud. Hist. Phil. Mod. Phys. 46, 217 (2014).
  • [71]
    G. Wataghin, Zeits. Phys. 88, 547 (1934).
  • [72]
    G. Wataghin, Nature 144, 754 (1939).
  • [73]
    H. Kragh, Rev. d’Histoire Sciences 44, 401 (1995).
  • [74]
    R.P. Feynman, Phys. Rev. 74, 1430 (1948).
  • [75]
    L.M. Brown e L. Hoddeson, Phys. Today 35, 36 (1982).
  • [76]
    L.M. Brown e L. Hoddeson, The Birth of Particle Physics: Based on a Fermilab Symposium (Cambridge University Press, Cambridge, 1983).
  • [77]
    A. Rueger, Hist. Stud. Phys. Biol. Sci. 22, 309 (1992).
  • [78]
    O. Darrigol, Rev. Hist. Sci. 41, 225 (1988).
  • [79]
    L.M. Brown e H. Rechenberg, Am. J. Phys. 59, 595 (1991).
  • [80]
    C.D Anderson e S. Neddermeyer, Phys. Rev. 50, 263 (1936).
  • [81]
    W. Heisenberg, Zeits. Phys. 113, 61 (1939).
  • [82]
    G. Wataghin, Phys. Rev. 74, 975 (1948).
  • [83]
    W. Heisenberg, Nature 164, 65 (1949).
  • [84]
    W. Heitler e H.W. Peng, Proc. Camb. Phil. Soc. 38, 296 (1942).
  • [85]
    W. Heisenberg, Zeits. Phys. 126, 569 (1949).
  • [86]
    R. Brown, U. Camerini, P.H. Fowler, H. Muirhead, C.F. Powell e D.M. Ritson, Nature 163, 47 (1949).
  • [87]
    W.H. Heitler, em: Early History of Cosmic Ray Studies: Personal Reminiscences with Old Photographs, editado por Y. Sekido e H. Elliot (Springer Netherlands, Berlim, 1985).
  • [88]
    H.A. Meyer, G. Schwachheim e A. Wataghin. Phys. Rev. 74, 846 (1948).
  • [89]
    G. Wataghin, Anais Acad. Bras. Cienc. 15, 355 (1943).
  • [90]
    G. Wataghin, Phys. Rev. 63, 137 (1943).
  • [91]
    G. Wataghin, Phys. Rev. 66, 149 (1944).
  • [92]
    P.M.S. Blackett, Cloud chamber researches in nuclear physics and cosmic radiation, disponível em: https://bit.ly/3ux4yU7, acessado em 16/08/2022.
    » https://bit.ly/3ux4yU7
  • [93]
    S.S. Salinas, Física na Escola 6, 42 (2005).
  • 1
    Ganhador do Prêmio Nobel de Física de 1927 pela descoberta do efeito que leva seu nome.
  • 2
    A câmara de nuvens consiste em um recipiente com vapor de um gás que condensa em gotas quando uma partícula passa através dela e a trajetória das gotas pode ser fotografada e estudada. Se campos elétricos e/ou magnéticos são aplicados, é possível determinar propriedades da partícula, como a carga e a massa.
  • 3
    Poucos meses antes, Carl Anderson, assistente de Millikan no Caltech, já havia relatado a existência de novas partículas positivas de pequena massa, mas sem referência à teoria do Dirac.
  • 4
    Devido a sua expertise como alpinista, tornou-se guia do Parque Nacional de Itatiaia. Depois do armistício italiano, em setembro de 1943, Occhialini trabalhou no Laboratório de Bioquímica, liderado por Carlos Chagas, no Rio de Janeiro em técnicas de fotografia e processamento de chapas.
  • 5
    Em física, uma profundidade em metros de água equivalente (ou m.w.e) é uma medida padrão de atenuação de raios cósmicos em laboratórios subterrâneos. Um laboratório a uma profundidade de 1,000 m.w.e está protegido dos raios cósmicos de modo equivalente a um laboratório de 1.000 m abaixo da superfície da água (Wikipedia).
  • 6
    Essa Carta ao Editor constitui o primeiro trabalho experimental de um grupo brasileiro publicado no prestigiado periódico Physical Review. Contudo, segundo Dobrigkeit [38[38] C. Dobrigkeit, em: 4th School of Cosmic Ray and Astrophysics. (São Paulo, 2011).], a primeira publicação sobre raios cósmicos no Brasil é de autoria do alemão naturalizado brasileiro Bernhard Gross, do Instituto Nacional de Tecnologia, que chegou ao Rio de Janeiro em 1933. No artigo que aparece no ano seguinte [42[42] B. Gross, Rev. Bras. Eng. 27, 6 (1934).] são apresentados resultados de medidas da intensidade de raios cósmicos na estratosfera e sob água. Gross também publicou, já no Brasil, no Physical Review resultados provenientes de pesquisa fenomenológica sobre raios cósmicos [43[43] B. Gross, Phys. Rev. 50, 1188 (1936)., 44[44] B. Gross, Phys. Rev. 55, 112 (1939).]. Para o leitor interessado, Bustamante e Videira fizeram uma análise dos trabalhos de Gross sobre raios cósmicos durante os anos 30 no Rio de Janeiro [45[45] M.C. Bustamante e A.A.P. Videira, Quipu 8, 325 (1991).].
  • 7
    Experimentos foram realizados no túnel da Avenida 9 de Julho, em São Paulo, em construção na época.
  • 8
    Hugh Carmichael teve contribuições importantes no estudo de raios cósmicos. Realizou medidas da radiação cósmica no polo norte geomagnético.
  • 9
    A extraordinária produtividade em pesquisa de Wataghin e seus colaboradores, de 80 trabalhos no período de cinco anos publicados por cerca de meia dúzia de pesquisadores merece ser ressaltada.
  • 10
    Segundo Salmeron [51[51] R.A. Salmeron, Rev. Estud. Avan. 16, 310 (2002).] “Wataghin foi um dos primeiros físicos a compreender que as colisões devem ser analisadas no sistema do centro de massa.”
  • 11
    Vencedor do Nobel de 1948 pelo “seu desenvolvimento do método da câmara de nuvem de Wilson e suas descobertas nos campos da física nuclear e da radiação cósmica”.
  • 12
    A referência correta é a Ref. [63[63] O. Sala e G. Wataghin, Phys. Rev. 67, 55 (1945).].
  • 13
    A Profundidade de Interação d é uma medida do comprimento do caminho que permita prever a absorção dos raios cósmicos. Em todo ponto da trajetória r, o número de interações é proporcional a ρdr, de forma que ρdr deve ser proporcional à absorção total. Se a densidade tem unidades de g/cm3 e o comprimento do caminho está em unidades de cm, então esta Profundidade de Interação tem unidades de g/cm2. Parece muito estranha essa unidade, mas permite comparar os efeitos da passagem dos raios cósmicos por quilômetros da atmosfera superior com a passagem por alguns centímetros de água.
  • 14
    No entanto, seis meses após descoberta do nêutron por Chadwick em 1932, Heisenberg apresentou a primeira teoria quântica do núcleo, estabelecendo fundamentos da física nuclear.
  • 15
    O problema do infinito na QED foi resolvido por Julius Schwinger, Richard P. Feynman e Sin-Itiro Tomonaga por volta de 1949 e que, por isso, foram agraciados com o Prêmio Nobel de Física de 1965.
  • 16
    Ao final do artigo, ele ressalta que essa hipótese necessita de uma base teórica, pois foi assumida no artigo anterior para fitar os resultados experimentais.
  • 17
    Ref. [2[2] W. Kolhoester, Phys. Z. 14, 1066 (1913).] são os artigos de Wataghin do ano anterior [82[82] G. Wataghin, Phys. Rev. 74, 975 (1948).] e o do “Symposium” [52[52] Anais da Academia Brasileira de Ciências. “Symposium” de Raios Cósmicos. (Rio de Janeiro, 1943). Disponível em https://bit.ly/3v6sIVp.
    https://bit.ly/3v6sIVp...
    ].
  • 18
    Uma das referências citadas é o artigo On the Production of Showers of Penetrating Particles, do grupo da USP, em que ficou evidente que “o coeficiente de absorção dos raios primários ou a constituição e multiplicidade dos chuveiros produzidos depende da estrutura nuclear” usando dois materiais: ferro e água [88[88] H.A. Meyer, G. Schwachheim e A. Wataghin. Phys. Rev. 74, 846 (1948).].
  • 19
    O Prêmio Nobel de Física de 1936 foi dividido em partes iguais entre Victor Hess “pela descoberta dos raios cósmicos” e por Carl Anderson “pela sua descoberta do pósitron”. Anderson nesse mesmo ano descobriu o múon.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2022
  • Revisado
    09 Ago 2022
  • Aceito
    15 Ago 2022
Sociedade Brasileira de Física Caixa Postal 66328, 05389-970 São Paulo SP - Brazil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: marcio@sbfisica.org.br