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Astronomia como ferramenta lúdica para o ensino de física: teoria cinética dos gases através de aglomerados de estrelas

Astronomy as a playful tool for physics teaching: kinetic theory of gases through star clusters

Resumo

Este trabalho interdisciplinar propõe utilizar objetos astronômicos como ferramenta lúdica para despertar a curiosidade dos alunos, oportunizar e potencializar o processo de ensino-aprendizagem nas aulas de Física II e Mecânica Estatística. Seu objetivo consiste em discutir se a lei de distribuição de velocidades de Maxwell-Boltzmann para gases ideais também descreve o comportamento das velocidades das estrelas em aglomerados estelares. Para isso, os pensamentos investigativos dos alunos serão provocados com dados de velocidades de estrelas, obtidos através de observações do telescópio Blanco e KPNO (Observatório Nacional Kitt Peak), fornecidos na literatura para o aglomerado globular Ômega Centauri e para o aglomerado aberto Plêiades. Foi possível concluir que, em aglomerados globulares relaxados dinamicamente, embora possuam naturezas físicas muito diferentes da de gases ideais, as estrelas seguem a lei de distribuição de velocidades de Maxwell-Boltzmann. Isto ocorre porque, de fato, qualquer sistema clássico de muitos corpos que atenda as duas hipóteses usadas na dedução da distribuição de velocidades vai satisfazer a distribuição de Maxwell-Boltzmann, independente da interação entre os corpos serem de curto ou longo alcance e de serem objetos microscópios ou macroscópicos. Então, ao demonstrar que aglomerados de estrelas seguem leis semelhantes à dos gases ideais tornou-se possível utilizar o lúdico da Astronomia para incentivar os alunos no processo de aprendizagem do conteúdo de teoria cinética dos gases.

Palavras-chave:
Ensino de Física; Astronomia; aglomerados estelares; interdisciplinaridade; teoria cinética dos gases; distribuição de Maxwell-Boltzmann

Abstract

This interdisciplinary work proposes to use astronomical objects as a ludic tool to arouse student's curiosity, provide opportunities and enhance the teaching-learning process in Physics II and Statistical Mechanics classes. Its purpose is to discuss whether the Maxwell-Boltzmann velocity distribution law for ideal gases also describes the behavior of star velocities in star clusters. For this, the student's investigative thoughts it will be triggered by star velocity data, obtained through observations from the Blanco telescope and KPNO (Kitt Peak National Observatory), provided in the literature for the Omega Centauri globular cluster and the Pleiades open star cluster. It can be concluded that in dynamically relaxed globular clusters, although physically very different from ideal gases, stars follow Maxwell-Boltzmann's law of velocity distribution. This is because, in fact, any classical many-body system that satisfies the two assumptions used in the computations of velocity distribution will satisfy the Maxwell-Boltzmann distribution, regardless of whether the interaction between the bodies is of short or long-range and whether they are microscopic or macroscopic objects. Thus, by demonstrating that star clusters follow ideal gas-like laws, it became possible to use the ludic of astronomy to encourage students in the process of learning the content of the kinetic theory of gases.

Keywords:
Teaching of physics; astronomy; star clusters; interdisciplinarity; kinetic theory of gas; Maxwell-Boltzmann distribution

1. Introdução

Desde a pré-história os mistérios do céu chamam a atenção do ser humano. Assim, o fascínio pelos astros é tão antigo quanto a própria história da humanidade, o que torna a Astronomia a mais antiga das ciências naturais. Nossos antepassados tinham uma relação de deslumbre com esta ciência e deixaram alguns registros desta relação, como, por exemplo, o monumento de Stonehenge no Reino Unido e o Observatório Astronômico de Calçoene no Amapá. Este fascínio, pelos astros, pode ser utilizado como uma motivação extra nas aulas de ciências naturais. A utilização da Astronomia como ferramenta interdisciplinar para o ensino nos anos iniciais da graduação, como motivação, contextualização dos conteúdos e provocação do pensamento abstrato dos alunos, contribui para uma melhor compreensão das ciências naturais, seja em cursos de licenciatura ou de bacharelado.

A ideia de interdisciplinaridade surgiu na França e na Itália em meados da década de 60, em um momento em que estudantes reivindicavam um novo estatuto de universidade e de escola [1][1] A.C.S. Lima e C.B. de Azevedo, Revista Educação e Linguagens 2, 128 (2013).. Mas o que é interdisciplinaridade? Se analisarmos o significado da palavra em si, interdisciplinaridade seria o que é comum a duas ou mais áreas do conhecimento, em que um conteúdo interdisciplinar pode ser planejado por um ou mais professores. Porém, Fazenda [2][2] I. Fazenda (Org.), O que é Interdisciplinaridade? (Cortez Editora, São Paulo, 2008), v. 1, p. 199. define interdisciplinaridade como atitude de ousadia e de busca frente ao conhecimento, na qual cabe pensar aspectos que envolvem a cultura do local em que os professores estão inseridos. Entretanto, para Japiassu [3][3] H. Japiassu, Interdisciplinaridade e Patologia do saber (Imago, Rio de Janeiro, 1976), v. 1, p. 216., a interdisciplinaridade caracteriza-se pela intensidade das trocas entre os especialistas e pelo grau de interação real das disciplinas, no interior de um mesmo projeto de pesquisa. Independentemente das diferentes concepções sobre a interdisciplinaridade, este conceito busca, em seu âmbito, uma melhor comunicação entre educador e educando através de uma ruptura no modo convencional de ensino, trançando uma comunicação entre as disciplinas que, muitas vezes, são lecionadas em paralelo na estrutura curricular dos cursos de graduação.

Morin [4][4] E. Morin, Os setes saberes necessários à educação do futuro (Cortez Editora, São Paulo, 2000), v. 1, p. 118. defende essa discussão dialógica e afirma que o parcelamento e a compartimentação dos saberes impedem apreender “o que está tecido junto”. Ainda segundo esse autor:

O fluxo de conhecimentos, no final do século XX, traz nova luz sobre a situação do ser humano no universo. Os progressos concomitantes da cosmologia, das ciências da Terra, da ecologia, da biologia, da pré-história, nos anos 60-70, modificaram as ideias sobre o Universo, a Terra, a Vida e sobre o próprio Homem. Mas estas contribuições permanecem ainda desunidas. [4][4] E. Morin, Os setes saberes necessários à educação do futuro (Cortez Editora, São Paulo, 2000), v. 1, p. 118.

Logo, uma comunicação entre uma ou mais disciplinas se torna uma atividade vantajosa, pois:

O valor e a aplicabilidade da Interdisciplinaridade, portanto, podem-se verificar tanto na formação geral, profissional, de pesquisadores, como meio de superar a dicotomia ensino-pesquisa e como forma de permitir uma educação permanente [5][5] M.D. Silva e A.A.S. Torres, Revista Fapciência 10, 1 (2014).

Porém, ainda hoje, principalmente nas universidades, não é comum ver uma comunicação entre diferentes disciplinas. Embora o meio universitário seja um ambiente de pesquisa e inovação, ainda se nota o uso de métodos ortodoxos exclusivamente de ensino, dentro e fora das salas de aula, onde educadores reproduzem fielmente o modelo tradicionalista. Assim, chegamos a um paradoxo, pois se a própria ciência evolui com o passar dos anos, por que o modo que a mesma é ensinada permanece estagnado no tempo? O ensino é algo a ser moldado às necessidades e evoluído juntamente com o assunto a ser abordado.

Partindo desta ideia, de interdisciplinaridade, podemos aludir um método diferente do tradicional para o ensino de Física na graduação. Este artigo propõe utilizar os encantos da Astronomia para provocar o pensamento investigativo dos alunos graduandos não apenas do curso de Física, mas também de cursos afins que possuem termodinâmica em seu currículo. Mais especificamente, para esta proposta de ensino não convencional teremos como objetivo o estudo de aglomerados estelares em analogia com a teoria cinética dos gases ideais. Utilizaremos, em nosso trabalho, dados de velocidade das estrelas retirados da literatura de [6][6] R.A. Reijns, P. Seitzer, R. Arnold, K.C. Freeman, T. Ingerson, R.C.E. Van Den Bosch, G. Van de Ven e P.T. Zeeuw, A&A 445, 503 (2006). e [7][7] T. Liu, K.A. Janes e T.M. Bania, ApJ 377, 141 (1991). do aglomerado globular Ômega Centauri e do aglomerado aberto das Plêiades, cujas propriedades são apresentadas na seção 2. Em especial, analisaremos a distribuição de velocidades dos aglomerados estelares, comparando-a à distribuição de Maxwell-Boltzmann para um gás ideal. Além disso, abordaremos aqui temas como a teoria cinética dos gases e, mais precisamente, a relação entre o conceito de temperatura de um gás ideal e a velocidade média das moléculas que compõem o gás.

A atividade proposta pode ser embasada na ideia de [8][8] L.S. Vygostsky, A formação social da mente (Martins Fontes, São Paulo, 1991), 4ª ed., p. 90., de que o aprendizado é uma experiência social, onde o indivíduo mais capaz colabora com o menos capaz. Deste modo, o conhecimento seria construído de forma conjunta. Esta atividade também permite uma interação dos discentes dos anos iniciais dos cursos de ciências naturais com métodos computacionais através do ajuste da curva de Maxwell–Boltzmann, além de aproximar estes discentes de artigos científicos, nos quais podem obter os dados utilizados para o estudo proposto neste artigo.

2. Aglomerados estelares

Aglomerados estelares são, em poucas palavras, enxames de estrelas unidas pela gravidade. As estrelas nascem do colapso de nuvens de gases e poeiras, e podem surgir de forma isolada, como o nosso Sol, ou em sistemas ligados gravitacionalmente. É este segundo tipo de formação estelar que dá origem aos aglomerados estelares. Existem dois tipos básicos de aglomerados estelares, sendo eles os aglomerados abertos e os aglomerados globulares. Os primeiros são, em geral, formados desde poucas dezenas até poucos de milhares estrelas. Os aglomerados abertos são geralmente jovens, ou seja, ainda estão em processo de relaxamento [9][9] J.O. Bennet, M.O. Donahue, N. Schneider e M. Voit, The Cosmic Perspective (Pearson Education, San Francisco, 2010), p. 624.. Já os aglomerados globulares são formados por desde dezenas de milhares a até milhões de estrelas. Além disso, os aglomerados globulares são mais antigos e dinamicamente relaxados, ou seja, é possível supor que atingiram um estado próximo a um equilíbrio dinâmico [9][9] J.O. Bennet, M.O. Donahue, N. Schneider e M. Voit, The Cosmic Perspective (Pearson Education, San Francisco, 2010), p. 624.. De fato, os aglomerados globulares da nossa galáxia têm bilhões de anos de idade, contendo algumas das estrelas mais antigas conhecidas da Via Láctea. Usaremos neste trabalho o aglomerado globular Ômega Centauri e o aglomerado aberto Plêiades.

2.1. Aglomerado globular Ômega Centauri

O aglomerado NGC 5139, na Figura 1, também conhecido como Ômega Centauri, é um dos maiores aglomerados globulares que orbitam a nossa Galáxia, a Via Láctea [9][9] J.O. Bennet, M.O. Donahue, N. Schneider e M. Voit, The Cosmic Perspective (Pearson Education, San Francisco, 2010), p. 624.. Ele está localizado na constelação do Centauro e pode ser visto mesmo a olho nu em noites escuras sem lua. As Figuras 2 e 3 exibem mais detalhes sobre a posição deste aglomerado na Via Láctea. Na Figura 2, pode ser vista a posição do Ômega Centauri em um referencial heliocêntrico. Já na Figura 3 temos a posição deste aglomerado usando como referencial o centro da Via Láctea.

Figura 1
Aglomerado Globular Ômega Centauri. Imagem obtida pelo VLT Survey Telescope localizado no Observatório do Paranal do ESO. Imagem disponível em: https://www.eso.org/public/brazil/images/eso1119b/. Acesso em: dez/2018.
Figura 2
Posições dos aglomerados globulares na Via Láctea com referencial heliocêntrico. O ponto em verde próximo a 330° representa o aglomerado Ômega Centauri. As barras em rosa representam a posição dos aglomerados em relação ao plano da Galáxia. Imagem disponível em: https://calgary.rasc.ca/globulars.htm. Acesso em: dez/2018.
Figura 3
Posição exata dos aglomerados globulares na Via Láctea. O aglomerado Ômega Centauri é representado como o ponto em verde próximo a 240°. As barras em rosa representam a posição dos aglomerados globulares em relação ao plano da galáxia. Imagem disponível em: https://calgary.rasc.ca/globulars.htm. Acesso em: dez/2018.

Apesar de não ser uma estrela, este aglomerado recebeu uma classificação de Bayer para estrelas, ω, ficando assim conhecido como Ômega Centauri ou ω cent. Esta designação foi publicada primeiramente no atlas estelar “Uranometria”, em 1603, de autoria de Johann Bayer. Este método de classificação consiste em uma letra do alfabeto grego seguido do nome da constelação de origem. Esta catalogação é feita por ordem de magnitude, onde a estrela mais brilhante de uma constelação recebe a letra grega alfa e assim por diante [10][10] N.M.J. Swerdlow, Hist. Astron. 17, 189 (1986)..

A população estelar de um aglomerado globular geralmente é composta por estrelas que possuem a mesma idade, porém evidências sugerem que o Ômega Centauri tem pelo menos duas populações de estrelas com diferentes idades. Alguns astrônomos propõem que este aglomerado pode ser o remanescente de uma pequena galáxia que foi gravitacionalmente tragada há muito tempo pela Via Láctea [9][9] J.O. Bennet, M.O. Donahue, N. Schneider e M. Voit, The Cosmic Perspective (Pearson Education, San Francisco, 2010), p. 624..

3. Gases Ideais e a distribuição de Maxwell-Boltzmann

O leitor pode encontrar uma descrição mais detalhada do desenvolvimento que apresentamos nesta seção em diversos livros de graduação que tratam da teoria cinética dos gases. Apresentamos aqui apenas uma breve revisão deste tema. Em 1852, o físico escocês James Clerk Maxwell resolveu o problema de se determinar a distribuição das velocidades moleculares de um gás. Seu resultado foi uma expressão conhecida como distribuição de Maxwell-Boltzmann. Para encontrar essa expressão imaginemos um gás, onde cada partícula que o compõe possui uma massa e uma velocidade diferente. Iremos assumir duas hipóteses: (I) O espaço é isotrópico e não há direção privilegiada; (II) As componentes da velocidade são consideradas independentes.

Feitas essas considerações, podemos escrever a fração do número de moléculas do gás contidas em um elemento de volume do espaço de velocidades dV=dvxdvydvz como:

(3.1) F ( v x , v y , v z ) d V

Onde F é a função distribuição de probabilidade de encontrar uma partícula do gás com velocidade v=(vx,vy,vz). Usando a hipótese da independência das velocidades, podemos reescrever:

(3.2) F ( v ) = f ( v x ) f ( v y ) f ( v z )

de modo que a (3.1) se reduz a:

F ( v x , v y , v z ) d v x d v y d v z = f ( v x ) d v x f ( v y ) d v y f ( v z ) d v z ,

com v=vx2+vy2+vz2. Derivando parcialmente a (3.2) em relação à vx obtemos:

F v x = F v v v x = d f ( v x ) d v x f ( v y ) f ( v z )

portanto,

(3.3) F v x v = f ( v x ) f ( v y ) f ( v z )

Dividindo a (3.3) por F(v)=vxf(vx)f(vy)f(vz) resulta em:

(3.4) F F v = f ( v x ) f ( v x ) v x

De forma análoga, derivando a (3.2) em relação à vy e vz obtemos:

(3.5) F ( v ) F v = f ( v x ) f ( v x ) v x = f ( v y ) f ( v y ) v y = f ( v z ) f ( v z ) v z = 2 γ

da qual identificamos que as expressões na (3.5) devem ser iguais a uma constante 2γ, pois cada termo contém uma variável independente diferente. Desta relação (3.5), obtemos as distribuições f(vx), f(vy) e f(vz):

f ( v i ) f ( v i ) v i = f f v i = 2 γ
d f f = 2 γ v i d v i
d f f = 2 γ v i d v i
l n f ( v i ) = γ v i 2 + B
(3.6) f ( v i ) = B e γ v i 2

onde i=x,y,z, e B é uma constante de normalização. Obtemos então uma distribuição gaussiana para as funções f(vx), f(vy) e f(vz). Voltando à expressão (3.2), podemos reescrevê-la a partir do resultado obtido em (3.6). Portanto,

(3.7) F ( v ) = f ( v x ) f ( v y ) f ( v z ) = B 3 e γ v 2

Para encontrar o valor da constante de normalização B usamos o fato de que f(vi) é uma distribuição de probabilidade e, portanto, devemos ter +f(vi)dvi=1. Então,

(3.8) B + e γ v i 2 d v i = 1 ,

que é uma integral gaussiana com resultado:

(3.9) B π γ = 1.

Finalmente, obtemos:

(3.10) B = ( γ π ) 1 / 2

resultando na distribuição de velocidades:

(3.11) F ( v ) = ( γ π ) 3 / 2 e γ v 2

onde o parâmetro γ da distribuição pode ser relacionado ao valor médio da energia cinética das partículas do sistema. No caso particular de gases ideais, podemos relacionar o parâmetro γ com a temperatura do sistema através do postulado da equipartição de energia. Este postulado nos diz que que E=+(12mv2)B3eγv2dv=32kT, onde E=12mv2 é a energia cinética de uma partícula do gás e T representa a temperatura. É importante lembrar que a equipartição é válida somente para gases ideais e não pode ser aplicada para sistemas gravitacionais. Neste sentido, os autores recomendam uma revisão em livros textos para uma melhor compreensão da equipartição de energia. Temos:

(3.12) 1 2 B 3 + ( m v 2 ) e γ v 2 d v = 3 2 k T
(3.13) m 3 4 1 γ = 3 2 k T

Então,

(3.14) γ = m 2 k T

e, finalmente,

(3.15) B = ( m 2 k T π ) 1 / 2

Substituindo os valores em (3.7) obtemos:

(3.16) F ( v ) = ( m 2 k T π ) 3 / 2 e m v 2 2 k T

que é a distribuição de probabilidade do gás ideal clássico.

Para o restante deste trabalho, é conveniente reescrevermos o número de moléculas do gás contidas em um elemento de volume do espaço de velocidades F(v)dV em coordenadas esféricas, onde:

d V = v d v . v s e n θ d θ d φ = 4 π v 2 d v

Temos, então:

(3.17) R ( v ) = 4 π ( m 2 k T π ) 3 / 2 v 2 e m v 2 2 k T

onde R(v) é a densidade de probabilidade de encontrar uma partícula com velocidade v. Esta expressão é a famosa distribuição de velocidade de Maxwell-Boltzmann. É importante salientar que a distribuição de Maxwell-Boltzmann não é característica apenas de gases ideais. De fato, qualquer sistema clássico de muitos corpos deverá satisfazer uma distribuição de velocidades semelhante à de Maxwell-Boltzmann se forem válidas as hipóteses (I) de isotropia e (II) de independência das velocidades. Portanto, a distribuição de Maxwell-Boltzmann independe de o sistema clássico ser formado por partículas microscópicas ou corpos macroscópicos, e independe também das interações entre seus constituintes serem de curto ou longo alcance. Por isso, essa distribuição pode descrever sistemas de natureza tão distintas como gases ideais e aglomerados de estrelas. Neste sentido, a diferença entre a distribuição de velocidades de um gás ideal e de um sistema de muitos corpos não termodinâmico, como um aglomerado de estrelas, é que no lugar do fator 32kT na (3.17) temos o valor médio da energia cinética E.

4. Análise da distribuição de velocidades do Aglomerado Ômega Centauri

A ideia principal deste trabalho consiste em tratar aglomerados estelares como um gás ideal para utilizá-los como ferramentas lúdicas da aplicação do conceito da teoria cinética dos gases. Isto é possível ao testar se as medidas observacionais das velocidades das estrelas de aglomerados estelares seguem a distribuição de Maxwell-Boltzmann, equação 4.1. Para obter esta distribuição, a partir de dados observacionais, foi desenvolvido um script na linguagem gnuplot (ver Figura 4).

Figura 4
Distribuições de velocidade das estrelas do Braço Sctum-Centauri entre -50 e 50 km-1 e do aglomerado em questão, Ômega Centauri, entre 200 e 275 kms-1. Devido à grande velocidade radial do aglomerado, há uma clara distinção entre membros do aglomerado (à direita) e das estrelas de campo (à esquerda) (R. A. REIJINS et al., 2006).

O ajuste da distribuição da Maxwell-Boltzmann foi calculado 2756 velocidades radiais de 1966 estrelas individuais do aglomerado Ômega Centauri retiradas do trabalho intitulado Radial velocities in the Cluster ω Centauri[6][6] R.A. Reijns, P. Seitzer, R. Arnold, K.C. Freeman, T. Ingerson, R.C.E. Van Den Bosch, G. Van de Ven e P.T. Zeeuw, A&A 445, 503 (2006)., onde estrelas que tiveram mais de uma medida foram utilizados para quantificação dos erros nas observações. A localização do aglomerado globular ω Centauri na Via Láctea está ilustrado na Figura 3. Segundo [6][6] R.A. Reijns, P. Seitzer, R. Arnold, K.C. Freeman, T. Ingerson, R.C.E. Van Den Bosch, G. Van de Ven e P.T. Zeeuw, A&A 445, 503 (2006)., foram selecionadas estrelas a distância de um raio de aproximadamente 3,5 minutos de arco centralizados no aglomerado nas noites de 11 a 14 de fevereiro de 1992. Além disso, também foram observadas estrelas em um anel com raio interno de 3,5 minutos de arco do centro do aglomerado até 30 minutos de arco no mês de março de 1993 e fevereiro de 1994. Essas observações possibilitou o cálculo das velocidades de estrelas do aglomerado e também de estrelas de campo. As estrelas mais brilhantes foram aquelas observadas no centro do aglomerado (r <3,5 minutos). As velocidades das estrelas de campo variaram entre -50 e 50 km s1 como mostrado na Figura 4.

A Figura 4 mostra a distribuição das velocidades radiais do aglomerado Ômega Centauri, ou seja, a componente da velocidade de cada estrela na direção do observador que está localizado na Terra. Esta componente é conhecida como velocidade na linha de visada do observador e sua velocidade é derivada através do efeito Doppler. O efeito Doppler é uma propriedade física observada nas ondas de uma fonte em movimento, quando elas são emitidas ou refletidas. Este efeito gera um aumento na frequência da onda caso a fonte esteja se aproximando; se a fonte está se afastando, a frequência da onda diminui. Na área de estudo da Astronomia e da Astrofísica, nomeamos o aumento da frequência da luz como blueshift e a diminuição como redshift.

Vamos considerar, portanto, uma distribuição isotrópica para as velocidades. Podem-se notar, no histograma da Figura 4, dois picos: um menor, com velocidades entre -50 e 50 km s1, e um maior, com velocidades entre 200 e 275 km s1. O pico menor, na distribuição das velocidades, está associado as estrelas de campo na direção do aglomerado, mas que não pertencem ao mesmo, ou seja, estrelas que estão na mesma linha de visada do aglomerado, porém não fazem parte dele. Estas são estrelas pertencentes a um dos setes braços da nossa Galáxia, o Scutum-Centauri ou Braço de Centauri [6][6] R.A. Reijns, P. Seitzer, R. Arnold, K.C. Freeman, T. Ingerson, R.C.E. Van Den Bosch, G. Van de Ven e P.T. Zeeuw, A&A 445, 503 (2006)..

A velocidade das estrelas de campo pertencentes ao Braço de Centauri, apesar de estar contida nos dados originais do trabalho [6][6] R.A. Reijns, P. Seitzer, R. Arnold, K.C. Freeman, T. Ingerson, R.C.E. Van Den Bosch, G. Van de Ven e P.T. Zeeuw, A&A 445, 503 (2006)., é totalmente irrelevante para o objetivo final desta análise. Logo, subtraímos essa componente da nossa análise, e a Figura 5 demonstra a distribuição de velocidades radiais das estrelas da amostra analisada. Além disso, nesta figura fizemos um deslocamento das velocidades para a esquerda, subtraindo 200 kms1 da velocidade das estrelas. Esta velocidade está relacionada à velocidade relativa da Terra em relação ao aglomerado [6][6] R.A. Reijns, P. Seitzer, R. Arnold, K.C. Freeman, T. Ingerson, R.C.E. Van Den Bosch, G. Van de Ven e P.T. Zeeuw, A&A 445, 503 (2006).. A mudança aplicada no referencial, sem perda de generalidade, foi necessária para ter essas velocidades começando na origem do eixo de referência, facilitando assim a modelagem dos dados com a distribuição de Maxwell-Boltzmann. É importante lembrar que apesar de, tanto a Terra quanto o aglomerado, não serem referenciais inerciais, considerá-los como inerciais é uma boa aproximação. Desta forma, o deslocamento feito com os pontos do histograma não interferiu na modelagem.

Figura 5
Ajustes da distribuição de velocidade, Equação 4.1, aos dados do aglomerado globular Ômega Centauri.

Como a distribuição de Maxwell-Boltzmann R(v) em (3.17) é uma função densidade de probabilidade de encontrar uma estrela do sistema com velocidade v, o número N(v) de estrelas na amostra, com essa velocidade, deve ser proporcional a:

(4.1) N ( v ) = N e R ( v ) = 4 π v 2 ( a π ) 3 / 2 e a v 2 N e

onde Ne é o número total de estrelas na amostra e a é uma constante característica para o aglomerado, desempenhando um papel análogo à constante γ=m2kT para um gás ideal. Para determinar o valor de a para o aglomerado de Ômega Centauri, fizemos um ajuste dos dados observados e obtivemos o resultado do ajuste que está mostrado como linha contínua na Figura 5. Este ajuste, foi feito através do método de mínimos quadrados. Para nossa amostra foi usado Ne=1966, e obtido o valor a=0.00359374.

Ao analisar o ajuste na Figura 5 é notório perceber que, qualitativamente, a distribuição de velocidade das estrelas segue uma distribuição de Maxwell-Boltzmann. O erro na modelagem foi derivado usando medidas de chi-quadrado, e este alcançou um valor de aproximadamente ~3%. De acordo com [6][6] R.A. Reijns, P. Seitzer, R. Arnold, K.C. Freeman, T. Ingerson, R.C.E. Van Den Bosch, G. Van de Ven e P.T. Zeeuw, A&A 445, 503 (2006)., as incertezas nas medidas das velocidades radiais derivadas das observações usadas neste trabalho foram de aproximadamente 2 kms1 e essa não foi adicionada nos ajustes, pois significa cerca de 10% da velocidade mais provável das estrelas do Ômega Centauri.

Note que um aglomerado globular é um objeto constituído de um grande número de estrelas ligadas gravitacionalmente devido a um potencial gravitacional gerado pela massa total do objeto. Apesar da velocidade média das estrelas, em relação ao centro de massa, ser nula, cada estrela do aglomerado tem uma velocidade individual não-nula, resultando em uma distribuição de velocidades a princípio aleatória. Entretanto, neste trabalho foi possível concluir que muito embora aglomerados de estrelas possuam uma natureza física muito diferente da de um gás ideal, a distribuição de velocidade de Maxwell-Boltzmann para um gás descreve muito bem a distribuição de velocidades das estrelas nesses objetos.

Assim, é notório que a distribuição de velocidade de Maxwell-Boltzmann é válida não somente para gases ideais, mas também para qualquer sistema de muitos corpos que obedeçam às hipóteses mostradas na seção 3. Portanto, a distribuição de velocidade desses sistemas independe do tipo de partícula que o constituem e do tipo de interação, de curto alcance no caso de um gás molecular e de longo alcance para sistemas gravitacionais. Neste sentido, um questionamento é importante: essa afirmativa é correta para aglomerados que estão longe do equilíbrio dinâmico?

Para mostrar o padrão da distribuição de velocidades para um sistema longe do equilíbrio precisamos estudar estrelas de aglomerados jovens, pois elas não tiveram tempo para relaxar (entrar em equilíbrio dinâmico). Para isso, vamos utilizar o aglomerado aberto das Plêiades, na Figura 6. As Plêiades também são conhecidas como “as sete irmãs”, apesar de terem apenas seis estrelas que podem ser vistas a olho nu. As Plêiades são um aglomerado relativamente jovem, com cerca de 100 milhões de anos [9][9] J.O. Bennet, M.O. Donahue, N. Schneider e M. Voit, The Cosmic Perspective (Pearson Education, San Francisco, 2010), p. 624.. Utilizamos um processo de ajuste da curva (4.1) semelhante ao usado no caso do aglomerado de Ômega Centauri. Utilizamos os dados das velocidades das estrelas das Plêiades retirados do trabalho publicado por [7][7] T. Liu, K.A. Janes e T.M. Bania, ApJ 377, 141 (1991)., onde foi medido a velocidades radiais de 70 estrelas deste aglomerado aberto. Para o caso das Plêiades temos Ne=70 e encontramos a=0.0461729, com um erro de aproximadamente 16%. É notório que os valores dos erros dos ajustes realizados nas distribuições de velocidades das estrelas do aglomerado globular Ômega Centauri são menores que os derivados para o aglomerado aberto Plêiades.

Figura 6
Aglomerado aberto Plêiades, também conhecido como sete irmãs. Imagem produzida pelo Instituto de Ciência do Telescópio Espacial (STScI) usando o Telescópio Espacial Hubble.

A figura 7 mostra os resultados do ajuste da distribuição de velocidades de Maxwell-Boltzmann com os dados das velocidades das estrelas do aglomerado aberto Plêiades. Neste caso, é perceptível que os dados das velocidades das estrelas do aglomerado não podem ser bem descritos pela distribuição de Maxwell-Boltzmann. Assim, podemos concluir que sistemas fora do equilíbrio dinâmico não seguem a distribuição de Maxwell-Boltzmann de um gás ideal. Isto é consequência do fato de que as hipóteses de isotropia e independência de velocidades, usadas na dedução da distribuição de Maxwell-Boltzmann, não se aplicam neste sistema fora do equilíbrio.

Figura 7
Ajuste da distribuição de velocidade, Equação 4.1, feito das velocidades radiais de 70 estrelas do Aglomerado Aberto Plêiades. Velocidades em (kms)^(-1) deslocada para a origem do gráfico.

5. Definição de uma Temperatura para Aglomerados

Na teoria cinética dos gases ideais, o conceito de temperatura T está diretamente relacionado à energia cinética do sistema. Como vimos na seção 3, a temperatura é uma medida relacionada a energia cinética média, ou seja, uma quantificação dos movimentos das partículas constituintes do gás. Essa relação, dada pelo postulado da equipartição de energia, é:

(5.1) m v 2 2 = 3 2 k T

Devido a relação entre o conceito de temperatura e a velocidade média das partículas do sistema, a temperatura aparece naturalmente na distribuição de velocidade de Maxwell-Boltzmann (3.17). Podemos usar esta relação para definir uma temperatura Te para aglomerados estelares, através da função (4.1) ajustada, usando:

(5.2) a = m 2 k e T e

onde ke é uma constante que, de forma análoga à constante de Boltzmann em (5.1), relaciona a energia cinética média com a escala de temperatura Te do aglomerado. Como a energia cinética das estrelas é muitas ordens de grandeza maior do que a energia cinética de moléculas em gases ideais, não é conveniente usar a escala de temperatura em Kelvin para aglomerados. Definiremos uma nova escala de temperatura onde ke=1, e m é medido em massas solares. Neste caso, da equação (5.2), obtemos:

(5.3) T e = m 2 a

onde consideramos que, como aproximação, todas as estrelas do aglomerado tem a mesma massa. Para o aglomerado de Ômega Centauri temos:

(5.4) m = M n = 5 × 10 6 M 10 × 10 6 M = 0.5 M

em unidades de massa solar, onde M é a massa total do aglomerado e n é o seu número de estrelas (Meylan et al., 1995[11] G. Meylan, M. Mayor, A. Duquennoy e P. Dubath, A&A 303, 761 (1995).).

Finalmente, de (5.3) e (5.4), usando o valor da constante a, encontrada na seção anterior para Ômega Centauri, obtemos a temperatura:

T e 69.5654.

É importante ressaltar aqui que Te não representa uma temperatura no sentido da termodinâmica. Isto porque o aglomerado, embora seja um sistema de muitos corpos, é finito. Mas isso não impede de fazermos uma analogia com um gás ideal. Embora essa quantidade não seja uma temperatura termodinâmica, ela é uma medida relacionada à energia cinética média das estrelas do aglomerado. Para o caso do aglomerado aberto Plêiades, não é necessário definir sua temperatura, pois o mesmo não representa um sistema em equilíbrio (relaxado). Logo, a analogia com o equilíbrio termodinâmico não é válida para o mesmo, sendo assim, optamos por definir a temperatura apenas para o aglomerado globular Ômega Centauri.

6. Conclusão

A busca por ferramentas lúdicas para ensinar Física é um grande desafio para educadores da atualidade. Ao ouvir a frase “ferramenta lúdica para o ensino de Física” somos arremetidos a pensar em atividades em laboratórios de Física. Entretanto, já é sabido que a Astronomia é um tema que sempre encantou a humanidade, desde muitos séculos, por ter disponível o maior laboratório natural, o céu.

O principal resultado deste trabalho foi demonstrar que, embora aglomerados globulares possuam uma natureza física muito diferente da de um gás ideal, a distribuição de velocidade de Maxwell-Boltzmann para um gás descreve muito bem a distribuição de velocidades das estrelas nesses objetos. De fato, a distribuição de velocidade de Maxwell-Boltzmann é válida não somente para gases ideais, mas também para qualquer sistema clássico de muitos corpos que obedeça às hipóteses mostradas na seção 3.

Ademais, além da distribuição de Maxwell-Boltzmann descrever bem o comportamento de sistemas estelares como aglomerados globulares, ainda podemos utilizá-los como um bom exemplo de interdisciplinaridade entre a Astronomia e o estudo da teoria cinética dos gases, provando que as distribuições de velocidade de sistemas de muitos corpos independem das características físicas do sistema abordado.

O objetivo deste trabalho não foi demonstrar todas as deduções relativas à teoria cinética dos gases, recomenda-se a leitura de um livro texto para compreensão sobre outras deduções a respeito do tema aqui abordado. Temas como a evolução de aglomerados também foram omitidos, pois os mesmos fogem do objetivo aqui apresentado e não são essenciais para os resultados obtidos. Os autores recomendam a consulta de livros texto de Astronomia aos leitores que desejam aprofundar seus conhecimentos neste tema.

Agradecimentos

Os autores agradecem a Bruna Ferreira Gugliano e Aline Gonçalves de Moura pela revisão textual. Silva-Oliveira agradece o suporte da CAPES. Sales e Lazo agradecem ao suporte do CNPq e FAPERGS.

Referências

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    G. Meylan, M. Mayor, A. Duquennoy e P. Dubath, A&A 303, 761 (1995).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    08 Mar 2019
  • Revisado
    10 Out 2019
  • Aceito
    08 Dez 2019
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