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Discretização: Uma discussão analisando o oscilador harmônico simples

Discretization: A discussion analyzing the case of the harmonic oscillator

Resumos

Nesse trabalho será descrita a dinâmica do oscilador harmônico simples a partir de variáveis discretas. As relações de recorrência resultantes dessa análise serão escritas sob a forma de transformações matriciais e, através de um processo de diagonalização, será demonstrado que a solução obtida a partir dessa abordagem converge para a solução analítica do sistema. Um abordagem nesse sentido contorna a hipótese de continuidade e é relevante por descrever a dinâmica desse sistema físico em particular a partir de um ponto de vista computacional. Além disso, o algoritmo proposto foi implementado computacionalmente e uma discussão sobre a análise do erro foi construída a partir do princípio da conservação da energia mecânica.

Palavras-chave:
Discretização; Simulação; Oscilador harmônico


In this work we will model the dynamics of the simple harmonic oscillator using discrete variables. The resulting recurrence relations were written as matrix transformations and, from a diagonalization process, we will show that the solution obtained converges to the well-known analytical solutions of the system. This approach avoids the continuity hypothesis and is relevant as it describes the dynamical of this particular system from a computational point of view. Furthermore, the algorithm we are proposing was implemented, and an error analysis was built from the principle of the conservation of mechanical energy.

Keywords:
Discretization; Simulation; harmonic oscillator


1. Introdução

Ao utilizarmos o operador derivada para modelarmos a cinemática de partículas, estamos implicitamente admitindo que a noção de continuidade se aplica a grandezas como espaço e tempo [1[1] D. Halliday, R. Resnick e J. Walker, Fundamentos de Física (LTC, Rio de Janeiro, 2006), v. 1.]. O questionamento acerca da continuidade do tempo e do espaço faz parte da trajetória humana, tendo iniciado já na Grécia Antiga [2[2] C.A. Strong, Mind 37, 393 (1928).]. O próprio desenvolvimento da física leva ao entendimento de que algumas grandezas concebidas como sendo de natureza contínua, são de fato de natureza discreta [3[3] D. Halliday, R. Resnick e J. Walker, Fundamentos de Física (LTC, Rio de Janeiro, 1995), v. 4.].

O debate acerca do significado de continuidade constituí uma importante parte da história da matemática, e a busca por uma definição formal dessa noção empírica motivou o surgimento da análise na reta [4[4] G.S.S. Ávila, Introdução à Análise Matemática (Edgard Blucher, São Paulo, 1999), v. 1.]. Uma discussão nesse sentido, no entanto, não é realizada em detalhes em livros introdutórios de cálculo diferencial [5[5] H. Anton, Cálculo: um novo horizonte (Bookman, Porto Alegre, 2006), v. 1.], e de física básica [1[1] D. Halliday, R. Resnick e J. Walker, Fundamentos de Física (LTC, Rio de Janeiro, 2006), v. 1.]. É natural que um primeiro texto sobre cálculo diferencial se oriente na direção que explora as capacidades descritivas desse ferramental matemático, e não na que discute o significado preciso dos fundamentos que o sustenta.

Existe a expectativa de que sempre é possível modelar processos físicos de forma exata através de modelos discretizados. Estes serviriam como alternativa aos modelos desenvolvidos usando a linguagem da matemática do contínuo. Essas ideias estão fundamentadas na percepção de que a teoria do autômato serve como cenário para estabelecer uma linguagem universal, do qual as relações de recorrência são um caso particular. A expectativa é de que um dia sejamos capazes de formular as regras de um automato de forma análoga a qual atualmente derivamos equações diferenciais para modelar sistemas físicos [6[6] T. Toffoli, Physica 10D 10, 117 (1984).]. Essas ideias foram extensivamente discutidas na literatura, estando presente nos trabalhos de pioneiros da computação, a exemplo do emblemático livro calculating space de Konrad Zuse1 1 Desenvolveu o primeiro computador programável, Z1, e também a primeira linguagem de programação de alto nível. [7[7] K. Zuse, Rechnender Raum (Friedrich Vieweg & Sohn, Braunschweigm, 1969), v.1. ]. Nessa mesma linha Toffoli [6[6] T. Toffoli, Physica 10D 10, 117 (1984).] sugere que modelamos sistemas físicos partindo de equações diferenciais por razões históricas. Argumenta que, em geral, a comparação desses modelos com as observações se dá através de um processo de discretização, uma vez que esses modelos são convertidos em equações de diferenças finitas. Sob essa ótica o maquinário matemático da matemática do contínuo contém muito mais informações do que seria necessário para descrever os processos físicos em questão.

Neste trabalho a cinemática do oscilador harmônico simples será descrita admitindo que tanto o espaço quanto o tempo são grandezas discretizadas. Dessa forma, a definição de derivada será evitada, e consequentemente a hipótese de continuidade será contornada durante a análise da dinâmica desse sistema físico em particular. Tradicionalmente o processo de discretização de uma equação diferencial é apresentado como um recurso numérico para obter uma aproximação de sua solução. Esse tipo de abordagem é explorada no vasto campo da análise numérica [8[8] W.H. Press, S.A. Teukolsky, W.T. Vetterling e B.P. Flannery, Numerical Recipes: The Art of Scientific Computing (Cambridge University Press, Cambridge, 2007), v. 1, p. 899.]. Recentemente uma abordagem que segue essa linha foi apresentada em [9[9] B.R. Segatto, Revista Brasileira de Ensino de Física 42, e20180346 (2020).] para esse mesmo sistema físico. O presente trabalho serve como alternativa à discussão apresentada pelo autor.

O tratamento que será apresentado faz uso de alguns resultados desenvolvidos em álgebra linear e assume a forma de relações de recorrência. Essa abordagem pode servir como estímulo para que os estudantes estabeleçam um primeiro contato com simulações computacionais visto que, uma vez estabelecido o algoritmo, sua implementação é trivial. A implementação pode ser realizada até mesmo gerando uma tabela numérica usando uma calculadora. Nessa mesma linha, é também trivial realizar uma simulação computacional através de alguma linguagem de programação de alto nível e, consequentemente, produzir uma animação.2 2 Ver mais detalhes em https://www.glowscript.org/.

Mostraremos que a solução desenvolvida nesse trabalho converge para a solução analítica do sistema evocando a noção intuitiva de limite. Nesse caminho utilizaremos resultados que muitas vezes são os precursores dos utilizados em uma descrição realizada através da matemática do contínuo. Esses fatos reforçam o caráter didático de nossa proposta.

Além disso, as relações de recorrência resultantes da nossa análise serão exploradas computacionalmente, e por essa razão uma discussão sobre propagação de erro e custo computacional será apresentada no presente trabalho.

Por fim, defenderemos que essa análise serve como ponto de partida para uma discussão sobre o conceito de natureza finita estabelecido for Eduard Fredkin3 3 Pioneiro da computação, estabeleceu o gate de Fredkin e um modelo conservativo de computação baseado em colisões elásticas. Sugere que, em um nível fundamental, todas as grandezas físicas são discretizadas. Cunhou o termo física digital [10[10] E. Fredkin, International Journal of Theoretical Physics 42, 189 (2003).]. Esse conceito contrasta com a idéia de que o processo de discretização de uma equação diferencial está necessariamente associado a uma aproximação [11[11] W.E. Boyce e R.C. Diprima, Equações diferenciais elementares e problemas de valores de contorno (LTC, Rio de Janeiro, 2002), v. 1. ], linha que usualmente guia a análise computacional de sistemas dinâmicos. Esse trabalho foi, em parte, motivado pela recente experiência vivida pelo autor ao desenhar um modelo de computação baseado em colisões elásticas para integrais elípticas [12[12] I.A.C. Melnik, Russian Journal of Nonlinear Dynamics 18, 83 (2022).]. Por essa razão a discussão do trabalho segue um enfoque voltado para questões computacionais.

1.1. Solução usual

O problema do oscilador harmônico simples é descrito por uma equação diferencial cuja solução é trivial. Será reproduzida aqui a solução dessa equação usando uma notação vetorial, uma notação que é semelhante a da solução baseada em variáveis discretas que é apresentada posteriormente. Considere que inicialmente o sistema está em uma posição x[0] com velocidade v[0]. Dado ωR, a equação que descreve a dinâmica do oscilador é

(1) d 2 x ( t ) d t 2 = - ω 2 x ( t ) ,

que também pode ser representado pelo sistema de equações lineares de primeira ordem, cuja representação matricial é

(2) d d t [ x ( t ) v ( t ) ] = [ 0 1 - ω 2 0 ] [ x ( t ) v ( t ) ]

Ao supormos que as soluções são da forma u(t)(x(t),v(t))=ϵert concluímos que existem dois valores de r que tornam essa igualdade verdadeira. Esses valores são λ1=iω e λ2=-iω e definem os autovalores da matriz dos coeficientes em (2). Sejam v1=(1,iω) e v2=(1,-iω) os autovetores associados a λ1 e a λ2, a solução geral do sistema é

(3) u ( t ) = [ x ( t ) v ( t ) ] = c 1 [ 1 i ω ] e i ω t + c 2 [ 1 - i ω ] e - i ω t ,

onde c1 e c2 são constantes a serem determinadas a partir das condições iniciais do problema. Utilizando a identidade de Euler

(4) e i θ = cos θ + i sen θ

temos que

(5) x ( t ) = x [ 0 ] cos ω t + v [ 0 ] ω sen w t .

2. Solução Através da Matemática do Discreto

Iremos analisar a dinâmica do sistema descrito anteriormente sem utilizar explicitamente os conceitos de derivada e integral. Nessa abordagem será assumido que o espaço e o tempo são variáveis discretas. Não serão questionados nesse momento as validades dessas hipóteses, serão sim analisadas suas consequências no processo de descrição do movimento do oscilador harmônico simples.

Assuma que a dinâmica ocorra durante o tempo tf que é constituído por um número N de subintervalos indivisíveis. Sendo assim, a duração de cada intervalo é

(6) Δ t = t f N .

Nesse cenário, o tempo será sempre um múltiplo de Δt, e assim escrevemos

(7) t = j * Δ t ,

com jN. Tanto a posição, denotada por x[j], quanto a velocidade, denotada por v[j], passam a ser variáveis discretas indexadas pela variável j. Assim como o que ocorre em uma animação, onde vários desenhos são manipulados para gerar a impressão de movimento, a dinâmica da partícula passa a ser constituída por vários frames que mudam com uma frequência Δt-1. Para cada frame temos um valor correspondente de j, e consequentemente de x[j] e v[j]. Tanto x[j] quanto v[j] variam abruptamente entre dois estados sucessivos. A massa, inicialmente localizada em x[0], onde está com velodidade v[0], tem sua dinâmica modelada pelas seguintes relações de recorrência

(8) x [ j ] = x [ j - 1 ] + v [ j - 1 ] Δ t v [ j ] = v [ j - 1 ] + a [ j - 1 ] Δ t ,

onde a[j-1]=-ω2x[j-1] pois no caso do oscilador harmônico a aceleração é proporcional à posição. A constante de proporcionalidade é a variável -ω2, definida pela massa e pela constante elástica da mola. Dados x[0] e v[0] as esquações anteriores definem quaisquer x[j] e v[j] para 1jN, com j. Estamos assim admitindo que a particula move-se entre x[j-1] e x[j] sem passar por nenhum ponto intermediário, em um tempo Δt e com velocidade v[j-1]. Além disso ao atingir a posição x[j] a velocidade da partícula muda abruptamente desde v[j-1] até v[j]. Após uma análise matricial, mostraremos que o resultado obtido dessa análise converge para a equação mostrada em (5) quando N. Iniciaremos definindo

(9) u [ j ] = ( x [ j ] , v [ j ] )

e

(10) A = [ 1 Δ t - ω 2 Δ t 1 , ]

e assim as equações (8) podem ser escritas na forma matricial como

(11) u [ j ] = A u [ j - 1 ] ,

e é trivial mostrar que a solução dessa relação de recorrência é

(12) u [ j ] = A j u [ 0 ] .

Dessa forma Aj relaciona a posição e a velocidade inicial com a posição em um estado posterior indexado pela variável j.

Podemos determinar Aj de forma mais eficiente se formos capazes de determinar a matriz P tal que

(13) A = P D P - 1 ,

onde a matriz D é uma matriz diagonal. Em uma linguagem usada em álgebra linear a matriz A representa o operador linear que leva u[j-1] no vetor u[j] e a matriz D é a sua forma diagonal, tendo como elementos não nulos os autovalores de A. A matriz P é a matriz mudança de base entre a base canônica e a base de autovetores de A. Para uma revisão detalhada desse assunto o leitor deve buscar livros especializados de álgebra linear, à exemplo de [13[13] J.L. Boldrini, S.I.R. Costa, V.L. Figueiredo e H.G. Wetzler, Álgebra Linear (Harbra, São Paulo, 1986), v. 1. ]. Temos que

(14) D = [ 1 + i ω Δ t 0 0 1 - i ω Δ t ]

e

(15) P = [ 1 i - i ω t ω ]

onde i=-1. Como consequência da propriedade associativa da multiplicação de matrizes e da definição de matriz inversa temos que

(16) A j = P D j P - 1 .

De um ponto de vista computacional, a igualdade em (16) fornece uma maneira mais eficiente de determinar a matriz Aj. Através dela o problema de calcular a j-ésima potência de uma matriz passa a ser equivalente ao problema de calcular a j-ésima potência de dois números, e assim o número de operações envolvidas na implementação das recorrências em (8) é reduzido. Nesse sentido a diagonalização da matriz A nos permite obter o estado j do sistema sem a necessidade de determinar todos os estados anteriores, como fica sugerido pelas relações de recorrências que definem o algoritmo. Além disso, conforme mostraremos a seguir, a equação (16) pode ser usada para obter a solução analítica do problema proposto.

Para determinar a matriz Dj considere as variáveis complexas

(17) z ± = 1 ± i ω Δ t = r ( cos Δ ϕ ± i sen Δ ϕ ) ,

onde a segunda igualdade define a forma polar de z±, de forma que

(18) r = 1 + ω 2 Δ t 2 ,

e

(19) tg ( Δ ϕ ) = ω Δ t .

A fórmula de De Moivre é uma igualdade precursora a identidade de Euler (4). Evocando esse resultado em (17) concluímos que

(20) z ± j = r j [ cos ( j Δ ϕ ) ± i sen ( j Δ ϕ ) ] ,

e portanto

(21) D j = r j [ z + j 0 0 z - j ]

fica definida em termos de r e do ângulo jΔϕ. Determinando a matriz P-1, a equação (16) implica que

(22) A j = r j [ cos ( j Δ ϕ ) 1 ω sen ( j Δ ϕ ) - ω sen ( j Δ ϕ ) cos ( j Δ ϕ ) ] ,

E assim a matriz Aj não possuí parte imaginária. Fazendo N, a igualdade em (6) implica que Δt0. Da equação (19) concluímos que ΔϕωΔt, e da igualdade (7) temos

(23) j Δ ϕ j ω Δ t = ω t .

Do teorema binomial temos que nessa situação rj1, e assim

(24) A j [ cos ω t 1 ω sen ω t - ω sen ω t cos ω t ] .

Ao substituirmos esse limite na equação (12) obtemos o mesmo resultado que obteríamos usando a abordagem usual.

O método apresentado aqui deve ser encarado como um recurso didático, onde o problema proposto é solucionado sem apelar explicitamente as definições de derivada e de integral, e portanto sem evocar a hipótese de continuidade na qual essas definições se apoiam.

2.1. Discussão

As hipóteses de discretização usadas para descrever a cinemática do sistema não possuem significado físico dentro da concepção estabelecida pela mecânica newtoniana que opera dentro da matemática do contínuo. No entanto, mostramos que quando Δt0 a solução obtida a partir desse tratamento converge para a solução obtida a partir de uma equação diferencial.

De fato, as recorrências em (8) podem ser obtidas a partir de aplicações sucessivas do método de Euler para a equação diferencial em (1). Dessa forma, a convergência expressa em (24) revela a convergência desse método numérico quando aplicado ao caso do oscilador harmônico simples.

Ao serem desacopladas, as relações de recorrência em (8) assumem a forma de relações de segunda ordem ordem, sendo trivial mostrar que

(25) x [ j + 2 ] = 2 x [ j + 1 ] - ( 1 + ω 2 Δ t 2 ) x [ j ] ,

e que

(26) v [ j + 2 ] = 2 v [ j + 1 ] - ( 1 + ω 2 Δ t 2 ) v [ j ] .

Recorrências que definem o método de Verlet [14[14] L. Verlet, Physical Review 159, 98 (1967).], método que foi redescoberto diversas vezes ao longo do tempo e que é empregado para integrar as equações de movimento. Assim como a equação (1) é uma equação diferencial de segunda ordem em x(t), as recorrências acima são de segunda ordem. Uma interessante demonstração foi apresentada recentemente por [15[15] M.M. Almeida, Revista Brasileira de Ensino de Física 41, e20190039 (2019).], onde a equação (25) foi obtida a partir da aplicação sucessiva do teorema do valor médio para derivadas.

3. Implementação do Algoritmo

Demonstramos que o algoritmo fornecido pelas relações de recorrência escritas em (8) está correto, uma vez que a solução obtida através delas converge para a solução correta desde que Δt0. Assim, implementa-lo em alguma linguagem de computação é um caminho natural. Caso os alunos envolvidos nessa atividade não tenham familiaridade com implementação de algoritmos, sugerimos que essas equações sejam usadas para pelo menos gerar uma tabela com algumas estimativas para a posição da partícula.

Ao simular computacionalmente a evolução de um sistema dinâmico, devemos especificar a duração da simulação tf. Além disso devemos especificar uma unidade elementar de tempo, Δt, definindo o número de subintervalos N que divide tf. Essas hipóteses, inerentes a qualquer simulação computacional, embasam a percepção de que a natureza é fundamentalmente finita [10[10] E. Fredkin, International Journal of Theoretical Physics 42, 189 (2003).]. Seguindo essa hipótese, nosso mundo é um sistema finito que, além disso, armazena uma quantidade finita de informação por unidade de volume.

Nesse trabalho especificamos tf em unidades do período de oscilação T=2πω-1 e Δt é determinado considerando que cada intervalo de tempo T é dividido em um número nT de subintervalos de mesma largura. Dessas considerações, segue que

(27) t f = t T T ,

equação que define a variável adimensional tT, além disso

(28) N = n T t T ,

onde nT e tT são parâmetros livres da simulação.

Figura 1
Os painéis da esquerda mostram variação relativa da energia cinética por partícula ao longo da evolução do sistema. Os pontos foram obtidos aplicando os algoritmo descrito no texto, enquanto que a curva contínua representa a equação (34). Os paineis a direita mostram o espaço de fase do sistema. Os pontos foram obtidos aplicando o algoritmo considerando com ω=0.25 e Em[N]/Em[0]=1.3. As elipses contínuas limitam os pontos da simulação e foram geradas a partir da análise do erro associado ao algoritmo. Em a tT = 1, em btT = 2 e em c tT = 4.

3.1. Conservação de energia e análise de erro

Mostramos que quando Δt0 a solução gerada pelas relações de recorrência em (8) converge para a solução analítica. Agora estamos interessados em avaliar como a diferença entre essas soluções varia a medida que Δt se aproxima de zero.

A análise que segue está baseada no princípio da conservação da energia mecânica. Obteremos uma equação para a energia mecânica por unidade de massa para cada estado j, aqui denotada por Em[j]. A razão Em[j]/Em[0] será usada como um estimador do erro que, quando Δt0, mostraremos depender do parâmetro

(29) γ t T n T = ( t T T ) Δ t ,

onde a igualdade foi obtida das equações (6), (27) e (28). Da definição de energia mecânica temos

(30) E m [ j ] = ω 2 x [ j ] 2 2 + v [ j ] 2 2 .

Das igualdades (9), (12) e (22) temos

(31) E m [ j ] = r 2 j [ ω 2 x [ 0 ] 2 2 + v [ 0 ] 2 2 ] = E m [ 0 ] r 2 j ,

e das equações (18) e (6) decorre que

(32) r 2 j = ( 1 + ω 2 t f 2 N 2 ) j = [ 1 + 1 N ( ω 2 t T 2 T 2 t T n T ) ] j ,

onde na segunda igualdade foram usadas as equações (27) e (28). Usando ainda a definição em (29) é trivial mostrar que

(33) r 2 j = [ 1 + ( 1 N ) 4 π 2 γ ] j e ( j N ) 4 π 2 γ .

Essa aproximação, válida desde que γ0, é mais precisa do que a que seria obtida considerando apenas o primeiro termo da expansão binomial. Ao compararmos as séries de Taylor destas funções, concluímos que a aproximação é válida mesmo quando termos que envolvem γ2 não sejam despreziveis. Com essas considerações temos

(34) E m [ j ] E m [ 0 ] = e ( j N ) 4 π 2 γ ,

e portanto a variação relativa máxima da energia por unidade de massa, que ocorre quando j=N, é definida pela variável γ. Essa variação é consequência do erro associado a discretização e não possuí signficado físico. Assim a equação (34) mostra que uma certa energia mecânica por unidade de massa é artificialmente inserida em cada interação.

Os gráficos na Figura 1 foram gerados aplicando as relações de recorrência em (8) considerando x[0]=0m e v[0]=5 ms-1. Para o painel a tT = 1, para o painel b tT = 2 e para o painel c tT = 4. Em todos os casos assumimos que Em[N]/Em[0]=1.3. Nos paineis á esquerda é apresentado o gráfico da função (34), em vermelho, junto com o valor da razão Em[j]/Em[0] para jN, em preto. Já nos painéis à direita temos o plano de fase do sistema. Os pontos em preto estão limitados pelas elipses associadas as energias Em[0] e Em[N] e representam os valores da posição e velocidade associada a cada estado.

A equação (34) será usadada para, uma vez definido o valor da razão Em[N]/Em[0], calcular o respectivo número de iterações. O custo computacional depende dessa variável, que é pode ser calculada considerando o primeiro número natural maior do que N, onde

(35) N = 4 π 2 [ t T 2 ln ( E m [ N ] E m [ 0 ] ] ) ] .

Essa equação mostra a dependência do tempo de execução do algoritmo com os parâmetros de entrada tT e Em[N]/Em[0]. Estes estipulam, respectivamente, o tempo de duração da simulação e o erro máximo que será admitido.

Os pontos pretos da Figura 1 representam estimativas da posição obtidas adotando distintos valores para tT e nT. A linha sólida representa a solução exata correspondente as condições iniciais do problema. O erro é um elemento inerente a qualquer técnica numérica, e na Figura 1 fica evidenciado pela discrepância entre os pontos e a curva sólida.

A cada interação o algoritmo possuí associado um erro que depende do valor de Δt adotado. Esse erro se propaga de uma interação para a outra, e por essa razão observamos a discrepância entre os pontos e a curva aumentar com j nessa figura. O erro é máximo quando j = N, de onde concluímos que ele é proporcional a tT. Por outro lado, se considerarmos tT fixo, esperamos que o erro em cada interação seja inversamente proporcional a nT, uma vez que ΔtnT-1.

4. Conclusão

A relevância da nossa análise consiste no fato de que ela mostra que a dinâmica do oscilador harmônico simples pode ser modelada a partir da matemática do discreto, o que contrasta com a solução tradicionalmente exposta na literatura [1[1] D. Halliday, R. Resnick e J. Walker, Fundamentos de Física (LTC, Rio de Janeiro, 2006), v. 1.].

Nessa análise a fórmula de De Moivre é evocada, resultado que pode ser demonstrado a partir das identidades trigonométricas envolvendo a soma de arcos e que é uma fórmula precursora à identidade de Euler. Na abordagem que seguimos são utilizados resultados estudados em um curso básico de álgebra linear de nível introdutório. Defendemos assim que, embora a solução apresentada seja formalmente imprecisa, pois viola os axiomas da mecânica clássica, ela é um interessante complemento a abordagem tradicional, realizada através da matemática do contínuo.

As relações de recorrência foram implementadas numericamente, e assim construímos o plano de fase de alguns estados do sistema juntos às curvas obtidas a partir da solução da equação diferencial em questão. Nesse caso a solução obtida não é exata, e por essa razão mostramos como o controle do erro está relacionado com o custo computacional do algoritmo. Esses elementos são inerentes a qualquer simulação computacional, e a discussão aqui apresentada torna-se relevante para estudantes que buscam um primeiro contato com simulações computacionais.

A abordagem proposta nesse trabalho, ao ser realizada usando linguagem estabelecida pela matemática do discreto, não evoca explicitamente a noção de continuidade. Sugerimos que esse simples exemplo analítico e computacional possa servir como cenário onde questões mais fundamentais possam ser discutidas. A ideia de que o próprio espaço e o tempo talvez possuam natureza granular também nos remete aos trabalhos e alguns pioneiros da computação. Acreditamos que uma discussão nesse sentido seja particularmente importante, principalmente quando vivemos em uma sociedade que migra para a digitalização do cotidiano e onde o real cada vez mais se mistura ao digital. A um nível fundamental, não podemos esquecer que a computação é realizada por processos físicos, sendo as máquinas apenas os meios no qual o processamento da informação ocorre. Não nos esqueçamos também que o estudo das máquinas sempre esteve intrinsicamente associado ao desenvolvimento científico.

Referências

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  • 1
    Desenvolveu o primeiro computador programável, Z1, e também a primeira linguagem de programação de alto nível.
  • 2
    Ver mais detalhes em https://www.glowscript.org/.
  • 3
    Pioneiro da computação, estabeleceu o gate de Fredkin e um modelo conservativo de computação baseado em colisões elásticas. Sugere que, em um nível fundamental, todas as grandezas físicas são discretizadas. Cunhou o termo física digital

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    02 Mar 2022
  • Revisado
    09 Jun 2022
  • Aceito
    03 Jul 2022
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