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Do que depende a constante elástica de uma mola?

What does the spring constant depend on?

Resumos

A Lei de Hooke costuma ser abordada em livros didáticos como um modelo do tipo caixa negra, em que a proporcionalidade entre a força aplicada em molas e as suas elongações não é explicada em termos de parâmetros do sistema investigado. Esse modelo teórico, apesar de ter grande valor didático, não possibilita a construção de respostas para perguntas como: De que modo as dimensões da mola influenciam na sua constante elástica? Neste artigo, procurando contribuir para a construção de respostas para perguntas como essa, apresentamos um modelo teórico para representar molas helicoidais em regime linear. Nele, a constante elástica de uma mola é predita em função das suas dimensões, do seu número de espiras e do módulo de cisalhamento do material do qual ela é produzida. O modelo teórico construído foi ainda contrastado empiricamente com o uso de três molas distintas, sendo que uma delas é uma mola de encadernação de plástico com baixo custo. As constantes elásticas dessas molas e de molas originadas da divisão delas foram medidas a partir de dados das forças realizadas nas suas extremidades em função das suas elongações. Dando suporte empírico ao modelo construído, os resultados mostraram que o módulo de cisalhamento das molas permanece constante frente à divisão delas, e que as constantes elásticas são inversamente proporcionais ao número de espiras das molas.

Palavras-chave:
Cisalhamento; constante elástica; mola helicoidal; lei de Hooke; módulo de cisalhamento


Hooke’s Law is usually approached in textbooks as a black box model, in which the proportionality between the applied force on springs and their deformation is not explained grounded on parameters about the investigated system. This theoretical model, despite of its great didactic value, does not allow the construction of answers to questions such as: How do the dimensions of the spring influence its elastic constant? In this article, seeking to contribute to the construction of answers to questions like this, we present a theoretical model to represent helical springs in a linear limit. In this model, the spring constant of a spring is predicted as a function of its dimensions, its number of turns and the shear modulus of the material from which it is produced. The theoretical model built was also empirically contrasted with the use of three different springs. One of them is a low-cost plastic spring. The elastic constants of these springs and of springs built from their split were measured from data about the forces acting in these springs and their deformations. Giving empirical support to the constructed model, the results showed that the shear modulus of the springs remains constant when splitting them, and that the elastic constants are inversely proportional to the number of coils of the springs.

Keywords:
Shear; elastic constant; helical spring; Hooke’s law; shear module


1. Introdução

Uma diversidade de modelos científicos podem ser construídos quando desejamos representar um mesmo objeto ou evento real. Um dos aspectos que diferenciam esses modelos é a profundidade das suas proposições. Alguns deles, caracterizados como modelos do tipo “caixa negra” [1[1] M.A. Bunge, Teoria e Realidade (Perspectiva, São Paulo, 1974).], são mais simples, limitados às relações entre variáveis de entrada e de saída, sem proposições sobre os mecanismos internos que explicam o comportamento do sistema representado. Outros, categorizados como de “caixa translúcida”, englobam proposições sobre as estruturas internas do objeto ou evento representado, carregando hipóteses sobre os mecanismos que determinam o comportamento do sistema alvo. Podemos esclarecer esse contraste de modelos tomando como exemplo a lei de Snell. Costumeiramente, ela é exposta em livros didáticos como uma relação entre ângulos de feixes de luz incidentes e refratados e os índices de refração dos meios envolvidos. Nesses casos, esse modelo científico é apresentado como uma “caixa-negra”, sem proposições sobre processos envolvidos na interação da luz com a matéria. Podemos, no entanto, incorporar nesse modelo considerações sobre a interação da radiação com os meios utilizando a Teoria Eletromagnética (veja em [2[2] R.W. Pereira, L.A. Heidemann e E.A. Veit, Rev. Bras. Ens. Fís. 43, e20200486 (2021).]), explicando os mecanismos envolvidos na reflexão e na refração da luz, contribuindo para que ele se aproxime da categoria de modelos do tipo “caixa translúcida”.

Outro modelo frequentemente abordado em livros didáticos como um modelo do tipo “caixa-negra” é a lei de Hooke. Argumenta-se que, na situação elástica, com uma das extremidades fixa a um suporte, podemos representar a elongação x de molas em seus regimes lineares como sendo diretamente proporcional à força F 1 1 Cabe destacar aqui que F na Equação (1) não representa a força exercida pela mola, como em definições da lei de Hooke de alguns livros, e sim a força exercida sobre a mola. aplicada à outra extremidade, ou seja:

(1) F = k x ,

onde k é definida como a constante elástica da mola. Ainda que seja argumentado que tal constante depende de características da mola, pouco é discutido sobre quais são essas características e sobre como são as relações entre essas características e o comportamento da mola.

Diversos autores se dedicaram a estudar aspectos relacionados ao comportamento de molas [3[3] D. Radomirovic e I. Kovacic, European Journal of Physics 36, 055004 (2015)., 4[4] J.D. Serna e A. Joshi, Phys. Educ. 46, 33 (2011)., 5[5] N. Aranha, J.M. Oliveira Jr., L.O. Bellio e W. Bonventi Jr., Rev. Bras. Ens. Fís. 38, e4305 (2016)., 6[6] F. Catelli e A.P. Koltz, Física na Escola 9, 33 (2008)., 7[7] R.R. Campomanes, L.A. Heidemann e E.A. Veit, Rev. Bras. Ens. Fís. 42, e20190076 (2020)., 8[8] G. Lancaster, Phys. Educ. 18, 217 (1983).]. Neste artigo, nosso objetivo é contribuir para a construção de um modelo do tipo “caixa translúcida” para representar molas helicoidais em seus regimes lineares. Para isso, começamos elucidando aspectos básicos de conceitos pouco discutidos nos livros de Física básica, como o de cisalhamento. Em seguida, deduzimos relações entre elongações de molas e as suas propriedades para, por fim, contrastar o modelo empiricamente, mostrando que o módulo de cisalhamento da mola se conserva quando elas são partidas. Diferenciamo-nos de trabalhos prévios, como os de Mohazzabi e McCrickard [9[9] P. Mohazzabi e J.P. McCrickard, American Journal of Physics 57, 639 (1989).] e de Khotimah et al. [10[10] S.N. Khotimah, S. Viridi, Widayani e Khairurrijal, Physics Education 46, 540 (2011).], por, em uma mesma publicação, realizarmos a dedução de um modelo para representar molas helicoidas e a contrastação empírica desse modelo. Além disso, avançamos em relação à dedução realizada por Mohazzabi and McCrickard [9[9] P. Mohazzabi e J.P. McCrickard, American Journal of Physics 57, 639 (1989).] na medida em que partimos de um teorema amplamente explorado em livros de engenharia: o Segundo Teorema de Castigliano [11[11] H.L. Langhaar, Energy Methods in Applied Mechanics (John Wiley & Sons, New York, 1962).]. Com isso, tornamos a dedução realizada significativamente mais simples. Além disso, com o objetivo de elucidar o significado de conceitos pouco debatidos em cursos de Física básica, como o de cisalhamento, procuramos apresentá-los dentro da dedução realizada com suficiente detalhamento, possibilitando ao leitor não familiarizado com eles a compreensão da dedução realizada.

2. Um Modelo Teórico de Mola Helicoidal

Assim como fazemos nesta seção, Mohazzabi and McCrickard [9[9] P. Mohazzabi e J.P. McCrickard, American Journal of Physics 57, 639 (1989).] constroem um modelo para molas helicoidais considerando que elas sofrem cisalhamento transversal e por torção quando são esticadas. Ainda que os autores cheguem nos mesmos resultados que encontramos neste artigo, a dedução que desenvolveremos é significativamente mais simples pelo fato de partirmos de um teorema amplamente explorado em livros de engenharia (e.g., [11[11] H.L. Langhaar, Energy Methods in Applied Mechanics (John Wiley & Sons, New York, 1962)., 12[12] R.L. Norton, Projeto de Máquinas: uma abordagem integrada (Bookman, Porto Alegre, 2013), 4 ed., 13[13] A.P. Boresi, R.J. Schmidt e O.M. Sidebotton, Advanced Mechanics of Materials (John Wiley & Sons, New York, 1993), 5 ed.]): o Teorema de Castigliano. Foge do escopo deste artigo deduzir esse teorema, que pode ser consultado em [11[11] H.L. Langhaar, Energy Methods in Applied Mechanics (John Wiley & Sons, New York, 1962).]. Essencialmente, ele relaciona deslocamentos generalizados qi em sistemas elásticos com a derivada parcial da energia potencial U desses sistemas enunciada em termos da força generalizada Qi aplicada na direção de qi, ou seja:

(2) q i = U Q i .

Podemos analisar uma situação já conhecida por meio desse teorema considerando que a energia potencial U armazenada em uma mola submetida a uma força de intensidade F em sua extremidade, como ilustrado na Figura 1a, é, em seu regime linear, dada por:

(3) U = k x 2 2 = F 2 2 k .

Figura 1
Em (a), representação de uma mola helicoidal sofrendo uma elongação x quando submetida a uma força F. Em (b), são destacados o diâmetro externo De da mola, o diâmetro interno Di, o diâmetro d do arame, e o número de espiras N da mola. Em (c), é ilustrado o ponto de aplicação de F, o centro da mola, registrando-se que ele se distancia em D2=(Di+De)4 do centro do arame da mola.

Podemos então resgatar a relação da Equação (1) utilizando o teorema de Castigliano, pois:

(4) x = U F = F k .

Desse modo, se encontrarmos a energia potencial armazenada em uma mola helicoidal em função das forças realizadas nela e em termos de propriedades da mola, como o número de espiras, poderemos, utilizando o teorema de Castigliano, identificar uma relação entre a elongação da mola e as forças aplicadas sobre ela. Para encontrar essa energia, precisaremos explicar em mais detalhes os processos envolvidos nas torções produzidas no material de uma mola quando ela é esticada.

As espiras de uma mola helicoidal, quando ela é esticada, são deformadas de duas formas. Vamos analisá-las aqui a partir do estudo de um fragmento infinitesimal do arame da mola de comprimento dL. Por um lado, ele sofre um cisalhamento transversal (ou cisalhamento direto), como é ilustrado na Figura 2a. Por outro, ele sofre um cisalhamento decorrente de torção, conforme a Figura 2b.

Figura 2
Cisalhamento transversal (a) e cisalhamento de torção (b) em um fragmento de mola.

Uma mola helicoidal, portanto, armazena energia potencial U devido a dois processos: cisalhamento transversal (Utransversal) e de torção (Utorção) [13[13] A.P. Boresi, R.J. Schmidt e O.M. Sidebotton, Advanced Mechanics of Materials (John Wiley & Sons, New York, 1993), 5 ed.]. Temos, portanto:

(5) U = U t r a n s v e r s a l + U t o r çã o .

Começaremos analisando a energia Utransversal. Analisando a Figura 3 (ou a Equação (3)), considerando que a mola está em seu regime linear (elongação diretamente proporcional à F), podemos constatar que o trabalho W realizado por F pode ser calculado por:

(6) U t r a n s v e r s a l = F x 2 .

Neste caso, x é o somatório das deformações transversais dδ (Figura 1a) de todos os fragmentos da mola (x=dδ), ou seja, é a elongação da mola.

Figura 3
Representação do trabalho realizado sobre uma mola em seu regime linear com elongação x em um gráfico da força aplicada em sua extremidade em função da sua elongação.

A elongação x pode ser calculada em função do que é denominado tensão de cisalhamento τ, definida como:

(7) τ = F A = G γ ,

onde A é a área da seção transversal do fio da mola (Figura 2), G é uma propriedade do material denominada módulo de cisalhamento, e γ é o ângulo de cisalhamento (Figura 2). A partir da definição de ângulo plano, analisando a Figura 2a, concluímos que, para pequenas deformações, cumpre-se a relação de proporcionalidade:

(8) γ t r a n s v e r s a l = d δ d L = F A G .

Aplicando a Equação (8) para toda a mola, somando todos os dδ e dL, temos:

(9) γ t r a n s v e r s a l = F A G = x L .

Substituindo a Equação (9) na Equação (6), temos:

(10) U t r a n s v e r s a l = F 2 L 2 A G .

Para calcular a energia potencial armazenada pelo cisalhamento de torção, usamos argumento semelhante ao construído na Equação (6). Portanto:

(11) U t o r çã o = T θ 2 ,

onde T é a intensidade do torque resultante realizado na mola e θ é o ângulo de torção ao qual ela é submetida (Figura 2b).

Para encontrar o valor de θ em função de parâmetros da mola, começaremos analisando a Figura 4. Podemos constatar que a tensão de cisalhamento τ em uma seção reta do fio da mola varia, sendo tão maior quanto mais próximo da borda for o ponto de análise.

Figura 4
Representação da seção transversal do fio da mola.

Considerando que Fr é diretamente proporcional à distância r até o centro do arame, podemos representar a tensão de cisalhamento em r como:

(12) τ r = r r τ m á x ,

onde τmáx é a tensão de cisalhamento por torção máxima em uma seção da mola, ou seja, a tensão de cisalhamento na borda do arame da mola.

Para encontrarmos o valor de T, precisamos entender que, como ilustrado na Figura 2a, a força F que atua sobre toda a área A da mola é decorrente da força F aplicada no meio da mola, como ilustrado nas Figuras 1a e 1c. Como a mola está em equilíbrio, o torque realizado por F sobre a mola é compensado pelo torque realizado pela mola, decorrente da sua torção. Ou seja, o torque Tm realizado pela mola tem intensidade igual à intensidade do torque T realizado sobre a mola.

Considerando que o ângulo entre F e a direção do arame da mola é π2 (Figura 1c), a intensidade do torque T realizado por F em relação ao centro do arame da mola é T=FD2. Já a intensidade do torque Tm realizado pela mola é igual ao somatório dos torques realizados pelas forças Fr originadas pela sua torção. Usando a Equação (7), podemos representar a intensidade de tal torque pela seguinte integral:

(13) T m = A τ r r d A = τ m á x r A r 2 d A .

Definimos aqui outro conceito frequente em cursos de engenharia, mas pouco explorado no ensino de Física: o Segundo Momento de Inércia J. Matematicamente, ele é representado por:

(14) J = r 2 d A .

Para o caso das molas maciças, podemos constatar na Figura 4 que dA=2πrdr. Logo, como d=2r:

(15) J = 0 r 2 π r 3 d r = π r 4 2 = π d 4 32 .

Concluímos, das equações (13), (14) e (15), que:

(16) T m = τ m á x J r = τ m á x π d 4 32 r .

Na Figura 2b, o ângulo γtorção representado se refere a um ponto na borda do fio da mola. Tal ângulo, portanto, é o ângulo de cisalhamento por torção máximo, e se relaciona com τmáx. Desse modo, analisando a Figura 2b e usando a Equação (7), temos:

(17) γ t o r çã o = τ m á x G d S d L = θ r L .

Ou seja:

(18) θ = L τ m á x G r .

Considerando que as intensidades de T e Tm são iguais, e usando as Equações (18) e (16), temos:

(19) θ = T L G J .

Substituindo a Equação (19) na Equação (11), encontramos a energia potencial armazenada na mola por torção:

(20) U t o r çã o = T 2 L 2 G J .

Das Equações (10) e (20), finalmente podemos inferir a energia potencial total da mola [14[14] D.B. Marghitu, Mechanical Engineer’s Handbook (Academic Press, San Diego, 2001).]:

(21) U = U t r a n s v e r s a l + U t o r çã o = F 2 L 2 A G + T 2 L 2 G J .

Como T=FD/2, e o segundo momento de inércia de uma seção circular maciça de diâmetro d é dado por J=πd4/32, podemos encontrar a energia potencial da mola em função da força realizada sobre ela na direção x, o que possibilita utilizarmos o teorema de Castigliano (Equação (2)) para inferirmos o valor de k. Sendo L=πDN, A=πd2/4, e definindo C=D/d como o índice da mola, temos:

(22) x = U F = 8 F D 3 N d 4 G + 2 F 2 D N d 2 G = 8 F C 3 N G d ( 1 + 1 2 C 2 ) .

Como x=F/k temos:

(23) k = G d 8 C 3 N ( C 2 C 2 + 0,5 ) .

Nos casos em que Dd, frequentemente respeitado em molas helicoidais, temos:

(24) k = G d 8 C 3 N .

Conclui-se, portanto, que a constante elástica k de molas helicoidais depende do módulo de cisalhamento e do diâmetro do arame da mola, assim como do diâmetro e do número de espiras da mola. Na próxima seção, apresentamos uma contrastação empírica desse modelo teórico.

3. Contrastação Empírica do Modelo Teórico Construído

Para contrastarmos empiricamente predições construídas com a Equação (24), utilizamos três tipos de molas cujas características, medidas com um paquímetro digital, estão sintetizadas na Tabela 1.

Tabela 1
Molas utilizadas para a contrastação empírica do modelo de mola helicoidal.

Destaca-se que a Mola 3 é uma espiral de encadernação,2 2 Tais molas são frequentemente conhecidas como “espirais” de encadernação. Uma espiral, no entanto, é uma curva plana. Como destacado por Axt, Bonadiman e Silveira [15], o que costumamos denominar vulgarmente de “espiral” de encadernação é, de modo mais preciso, uma helicóide de encadernação. Neste artigo, usamos o termo “espiral” sem aspas. de fácil acesso em papelarias. Para contrastar as predições da Equação (24), cortamos todas as molas e analisamos se o módulo de cisalhamento delas, característica conservada nelas após serem cortadas, de fato pode ser considerado constante neste procedimento. Para isso, medimos o valor de k de todas as molas (originais e cortadas) pelo tradicional método de se pendurar objetos de massas conhecidas na sua extremidade. A declividade da reta do gráfico da força peso desses objetos em função da elongação da mola é igual à constante elástica k da mola. A Figura 5 ilustra a montagem experimental.

Figura 5
Mola com carga suspensa no seu extremo inferior. Com a régua fixada ao fundo, foram medidas as elongações da mola quando ela sustentava diferentes objetos com diferentes massas.

3.1. Análise da Mola 1

Na Figura 6 são plotados os dados coletados da força aplicada para diversos valores de carga em função da elongação da Mola 1. Realizando uma regressão linear dos dados, inferimos o valor de k1=(4,17±0,04)Nm. Destaca-se que, para pequenas elongações, a mola não apresenta comportamento hookeano [8[8] G. Lancaster, Phys. Educ. 18, 217 (1983).].

Figura 6
Força aplicada em função da elongação da Mola 1 original.

Após a coleta dos dados sintetizados na Figura 6, cortamos a mola em duas partes aproximadamente iguais e medimos as constantes elásticas de cada uma das metades. Em seguida, cortamos cada metade em duas novas partes aproximadamente iguais e repetimos os mesmos procedimentos. Os dados da Tabela 2 sintetizam os resultados obtidos com a Mola 1. Os valores do módulo de cisalhamento G foram obtidos a partir do uso dos dados das Tabelas 1 e 2 sobre a Mola 1 e a Equação (24).

Tabela 2
Dados coletados a partir da Mola 1.

Pode-se constatar na Tabela 2 que o valor de G é aproximadamente constante para todas as molas. Nota-se também que as molas geradas do corte da mola original possuem constante elástica duas vezes maior do que a mola original, o que corrobora os modelos de associação de molas em série frequentemente abordados em livros didáticos. O valor médio do módulo de cisalhamento da Mola 1 foi G=(183±5) GPa.

Além da análise resultante dos dados da Tabela 2, inferimos também o módulo de cisalhamento das molas por meio da declividade α da reta ajustada ao gráfico das constantes elásticas das molas em função dos inversos dos seus números de espiras (1N), que é apresentado na Figura 7.

Figura 7
Constantes elásticas das molas originadas da Mola 1 em função dos inversos dos seus números de espiras.

Da Equação (24), conclui-se α=(d4G)(8D3) . Na Figura 7, temos α=(680±8)mN, o que nos possibilita inferir que G=(181±3) GPa, valor que está em acordo com a margem de incerteza do valor medido com o procedimento anterior.

3.2. Análise da Mola 2

Procedimentos semelhantes aos realizados com a Mola 1 foram realizados com a Mola 2. Este caso se diferencia pelo fato de termos realizado medidas com fragmentos com tamanhos de 1/6 e 2/6 do tamanho da mola original. Além disso, a Mola 2 possui menor diâmetro tanto em suas espiras como no arame da qual é fabricada. A Tabela 3 sintetiza os resultados.

Tabela 3
Dados coletados a partir da Mola 2.

Da Tabela 3, concluímos que o valor de G é aproximadamente constante para todas as molas. O valor médio do módulo de cisalhamento foi G=(134±6) GPa. De forma análoga ao realizado para a Mola 1, plotamos os valores das constantes elásticas das molas em função do inverso do número de espiras (1N), como é apresentado na Figura 8.

Figura 8
Constantes elásticas das molas em função dos inversos dos seus números de espiras. Mantivemos os dados dos casos com as molas 1 e 2 para fins de comparação.

Da Figura 8, inferimos que, para a Mola 2, α=(396±9)mN, o que nos possibilita concluir que G=(133±4) GPa. Esse valor está dentro da margem de incerteza do valor medido com o procedimento anterior. Destaca-se que, na Figura 8, também são plotados os dados da Mola 1 para comparação. As constantes elásticas das molas originadas da Mola 1 são maiores em relação às molas que surgiram da Mola 2. Por outro lado, o módulo de cisalhamento da Mola 1 é maior do que o da Mola 2. Isso se deve à competição de efeitos devido à diferença nos valores dos diâmetros de mola e do fio entre as molas. Destaca-se ainda na Figura 8 que, para ambos os casos (molas 1 e 2), as constantes elásticas original e das molas cortadas são inversamente proporcionais ao número de espiras das molas, como previsto na Equação (24), dando apoio empírico ao modelo teórico construído.

3.3. Análise da Mola 3

Na Tabela 4, sintetizamos os resultados obtidos das análises com a Mola 3. Destaca-se que essa mola é uma espiral de encadernação facilmente adquirida em papelarias.

Tabela 4
Dados coletados a partir da Mola 3.

Assim como ocorreu com as molas 1 e 2, os dados da Tabela 4 mostram que o valor de G é aproximadamente constante para todas as molas originadas da Mola 3. O valor médio do módulo de cisalhamento foi G=(0,47±0,04) GPa. Plotamos na Figura 9 os valores das constantes elástica das molas de plástico em função do inverso do número de espiras.

Figura 9
Constantes elásticas das molas originadas da Mola 3 em função dos inversos dos seus números de espiras.

A declividade da reta da Figura 9, α=(256±7)mN, nos possibilita inferir um valor de módulo de cisalhamento da Mola 3 de G=(0,46±0,02) GPa, um valor coerente com as medições realizadas com o procedimento anterior. Esse resultado também fornece apoio empírico ao modelo teórico contrastado.

4. Considerações Finais

É natural que o primeiro contato que temos com modelos científicos em situações de ensino formal envolva o uso de modelos menos complexos, possibilitando a compreensão dos aspectos mais gerais das teorizações investigadas. Muitas vezes esses modelos são tratados como modelos do tipo “caixa negra”, como ocorre com a Lei de Hooke, usualmente exposta em livros didáticos sem explicações sobre os mecanismos internos do sistema que vinculam a força realizada em molas e as suas elongações. Por isso, esse modelo não possibilita responder questões como: Como varia a constante elástica de uma mola em função do número de espiras? De que modo as dimensões da mola influenciam na sua constante elástica?

Procurando dar subsídios para quem quiser dar respostas a questões como essas, apresentamos neste artigo um modelo teórico que representa molas helicoidais em regime linear. Proporcionando uma aproximação da Física com temas tratados em cursos de engenharia, partimos do teorema de Castigliano, e usamos conceitos pouco usuais em cursos de Física Básica, como o de tensão de cisalhamento. Além disso, contrastamos o modelo construído empiricamente. O fato de o módulo de cisalhamento de molas permanecer constante frente à divisão delas fornece apoio empírico para o modelo, assim como a constatação de que a constante elástica das molas investigadas é inversamente proporcional ao número de espiras delas.

Apesar da complexidade do modelo teórico construído impossibilitar sua dedução em um contexto tradicional de Ensino Médio, as relações construídas podem ser exploradas. Como mostramos no estudo com a Mola 3, pode-se investigar a relação entre a constante elástica de molas e o número de espiras com experimentos de baixo custo, com o uso de espirais de encadernação de plástico, de modo semelhante ao sugerido por Axt, Bonadiman, e Silveira [15[15] R. Axt, H. Bonadiman e F.L. Silveira, Rev. Bras. Ens. Fís. 27, 593 (2005).]. Em nível superior, o modelo pode ser explorado em disciplinas dos cursos de Física que abordam tópicos de mecânica. Cabe destacar, no entanto, que ainda que tenhamos tornado o modelo de mola helicoidal mais “transparente” (em contraponto ao modelo de caixa negra proporcionado pela Lei de Hooke), modelos mais sofisticados poderiam ser construídos, especialmente por meio de modelos que representem o módulo de cisalhamento em função de características mais fundamentais dos materiais. A discussão subjacente aos procedimentos expostos neste artigo, relacionada ao processo de aprofundamento dos modelos científicos [16[16] R.V. Brandão, I.S. Araujo e E.A. Veit, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 28, 507 (2011)., 17[17] L.A. Heidemann, I.S. Araujo e E.A. Veit, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 33, 3 (2016).], podem amparar debates sobre elementos da Natureza da Ciência tanto na Educação Básica como em cursos de Ensino Superior.

Agradecimentos

Agradecemos à professora Eliane Angela Veit e ao professor Fernando Lang da Silveira pela leitura crítica do artigo. Agradecemos também aos árbitros pelo parecer criterioso que contribuiu para a melhora do presente trabalho.

Referências

  • [1]
    M.A. Bunge, Teoria e Realidade (Perspectiva, São Paulo, 1974).
  • [2]
    R.W. Pereira, L.A. Heidemann e E.A. Veit, Rev. Bras. Ens. Fís. 43, e20200486 (2021).
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    J.D. Serna e A. Joshi, Phys. Educ. 46, 33 (2011).
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    R.L. Norton, Projeto de Máquinas: uma abordagem integrada (Bookman, Porto Alegre, 2013), 4 ed.
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  • [15]
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  • [16]
    R.V. Brandão, I.S. Araujo e E.A. Veit, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 28, 507 (2011).
  • [17]
    L.A. Heidemann, I.S. Araujo e E.A. Veit, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 33, 3 (2016).
  • 1
    Cabe destacar aqui que F na Equação (1) não representa a força exercida pela mola, como em definições da lei de Hooke de alguns livros, e sim a força exercida sobre a mola.
  • 2
    Tais molas são frequentemente conhecidas como “espirais” de encadernação. Uma espiral, no entanto, é uma curva plana. Como destacado por Axt, Bonadiman e Silveira [15[15] R. Axt, H. Bonadiman e F.L. Silveira, Rev. Bras. Ens. Fís. 27, 593 (2005).], o que costumamos denominar vulgarmente de “espiral” de encadernação é, de modo mais preciso, uma helicóide de encadernação. Neste artigo, usamos o termo “espiral” sem aspas.
  • 3
    Como G=G(D,N,K,d) (veja na Equação (24)), calculamos as incertezas dos valores de G medidos a partir das suas derivadas, ou seja:
    ΔG=(GD)2(ΔD)2+(Gk)2(Δk)2+(Gd)2(Δd)2+(GN)2(ΔN)2.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Jun 2022
  • Revisado
    03 Jul 2022
  • Aceito
    07 Jul 2022
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