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Ciência e reparação: 100 anos das Contribuições de Lise Meitner para o Efeito Auger

Science and repair: 100 years of Lise Meitner’s Contributions to the Auger Effect

Resumos

Há 100 anos, a física austríaca Lise Meitner (1878–1968) descobriu um efeito amplamente utilizado na atualidade para analisar superfícies e estudar a dinâmica da dissociação de moléculas isoladas, o Efeito Auger, estudado em disciplinas avançadas na graduação em Física. Neste trabalho, revisaremos alguns aspectos da história de Lise Meitner e da física do efeito, que até hoje leva o nome do físico francês Pierre Auger (1899–1993), que descobriu o mesmo fenômeno cerca de dois anos depois. Assim como outros pesquisadores, endossamos a importância de renomear este efeito e reconhecer as contribuições de ambos os cientistas.

Palavras-chave:
Lise Meitner; Mulheres na Ciência; Efeito Auger; Radiação β


One hundred years ago, the nuclear physicist Lise Meitner (1878–1968) discovered an effect, which is largely used nowadays for surfaces analysis and studies related to dissociation dynamics of isolated molecules, the Auger effect, studied in advanced undergraduate physics courses. In this article, we review some aspects of Lise Meitner’s story and the physics of the effect that still has the male scientist’s name, Pierre Auger (1899–1993), who independently discovered the same phenomenon around two years later. Like other researchers, we endorse the importance of renaming this effect and recognizing both scientists’ contributions.

Keywords:
Lise Meitner; Women in Science; Auger Effect; Radiation β


1. Introdução

Na data de 8 de fevereiro de 1922, o periódico científico Zeitschrift für Physik recebia o artigo, Sobre a relação entre os raios β e γ1 1 Título original: Der Zusammenhang zwischen β-undγ-Strahlen. [1[1] L. Meitner, Z. Physik 9, 131 (1922).], submetido pela física Lise Meitner (Figura 1). O trabalho da pesquisadora foi definitivo para compreendermos o chamado Efeito Auger, amplamente utilizado em estudos de espectroscopia e dissociação molecular. No entanto, a contribuição de tamanha descoberta ainda se mantém invisível, uma vez que os cientistas reconhecem somente as contribuições do físico francês Pierre Auger (1899–1993), atribuindo (a ele) o Efeito, inclusive em livros didáticos, muito embora se reivindique, há mais de 30 anos, a contribuição de Lise Meitner (1878–1968) e a sua autoria na descoberta, ou a ambos os cientistas [2[2] R. Sietmann, Phys. Bull. 39, 316 (1988)., 3[3] D. Matsakis, A. Coster, B. Laster e R.L. Sime, Phys. Today 72, 9 (2019).].

Em 1923, Meitner publicou o artigo O espectro de raios β de U X1 e sua interpretação2 2 Título original: Das β-Strahlenspektrum von UX1 und seine Deutung. [4[4] L. Meitner, Z. Physik 17, 54 (1923).]. Neste artigo, com base nas medidas realizadas no Kaiser Wilhelm Institute for Physical Chemistry em Berlin-Dahlem, em conjunto com o físico alemão Otto Von Baeyer (1877–1946) e o químico alemão Otto Hahn (1879–1968), Meitner chegou à conclusão de que as três linhas discretas de radiação β observadas3 3 Naquela ocasião, os elétrons, quer sejam oriundos do núcleo atômico, quer sejam provenientes da eletrosfera, eram chamados igualmente de raios β. foram originadas a partir da mesma radiação proveniente do átomo UX1. Meitner também observou que os valores em energia das linhas coincidiam com a radiação Kα (decaimento radioativo) do Tório. Meitner, então corretamente interpretou que os raios β primários (radiação incidente) ejetariam o elétron da camada K, induzindo radiação Kα (fótons de raios X) que, por sua vez, ejetaria os elétrons das camadas L, M ou N.

Figure 1
Lise Meitner, física nuclear. Disponível em: https://www.loc.gov/pictures/item/90707039/.

Pierre Auger, físico francês também conhecido por suas contribuições à física dos raios cósmicos, juntamente com o físico francês Francis Perrin (1870–1942), decidiu com sucesso construir a primeira câmara de nuvens fabricada na França. Dado o êxito, decidiu continuar trabalhando em seu doutorado com a sua câmara de nuvens sob a supervisão de Jean Perrin (1870–1942), em Sorbonne. Sua ideia era estudar o processo fotoionização como um todo: desde a produção de um fotoelétron e sua vacância em camada interna, com a subsequente emissão de radiação, e a absorção desse fóton, com a emissão de um segundo elétron, hoje conhecido como elétron Auger. Em 1923, Pierre Auger publicou o seu primeiro trabalho na Academia de Ciências Francesa: Sobre os raios β secundários produzidos em um gás por raio4 4 Título original: Sur les rayons b secondaires produits dans un gaz par des rayonsX. [5[5] P. Auger, C.R.A.S. 177, 169 (1923).], enquanto Lise Meitner prosseguia seus estudos sobre os raios β.

Pesquisadores indicam que Meitner e Auger fizeram suas descobertas de forma independente [2[2] R. Sietmann, Phys. Bull. 39, 316 (1988)., 3[3] D. Matsakis, A. Coster, B. Laster e R.L. Sime, Phys. Today 72, 9 (2019)., 6[6] L. Meitner, Z. Physik 9, 145 (1922).], embora Lise tenha feito as suas descobertas dois anos antes de seu colega, conforme a data de submissão do trabalho sobre os raios β [1[1] L. Meitner, Z. Physik 9, 131 (1922).]: Sobre a origem dos espectros de raios β de substâncias radioativas [6[6] L. Meitner, Z. Physik 9, 145 (1922).]. Além disso, o histórico de publicações de Lise demonstrou que ela se dedicava ao estudo da radiação β desde 1911, inclusive em parceria com o químico alemão Otto Hahn e outros cientistas de seu grupo na Alemanha [7[7] I. LIMA, Lise Meitner e a Fissão Nuclear: caminhos para uma narrativa feminista. Tese de Doutorado, Universidade Federal da Bahia, Salvador (2019).].

A partir das interpretações de Lise Meitner e posteriormente de Pierre Auger, sabemos que quando uma vacância é criada em uma camada interna de um átomo ou molécula, ela pode ser preenchida por um elétron de um nível de energia mais alta (estado menos ligado) com a subsequente emissão de radiação. As emissões radioativas (fluorescência) competem com as transições não radioativas nas quais um elétron de um nível de energia mais alto ocupa a vacância inicial com a simultânea emissão de um segundo elétron. Essa transição não radioativa é conhecida por decaimento Auger.

O reconhecimento e atribuição à Pierre Auger sobre o efeito recém descoberto foi construído ao longo de poucos anos. Em 1926, Lise Meitner escreveu um artigo de revisão para o 22° volume da série “Handbuch der Physik”, sobre a absorção de um raio beta ou gama no próprio átomo que emitiu aquele raio, citando, entre outros, o seu trabalho [1[1] L. Meitner, Z. Physik 9, 131 (1922).] e o de Pierre Auger [5[5] P. Auger, C.R.A.S. 177, 169 (1923).]. Neste mesmo ano, Auger concluiria a sua tese de doutorado, intitulada: O Efeito Fotoelétrico Composto5 5 Título original: L’effet photoélectrique composé. [8[8] P. Auger, Annales de Physique 6, 183 (1926).]. Em 1927, Gregor Wentzel (1898–1978), professor renomado da universidade de Leipzig, mencionou que Auger havia observado em uma câmara de nuvens efeitos fotoelétricos com emissão de um segundo elétron e até onde o conhecimento dos autores alcança, chamou pela primeira vez de Auger-Elektronen (elétron Auger) [9[9] O.H. Duparc J. Mat. Res. (formerly Z. Metallkd.) 9, 100 (2009)., 10[10] G. Wentzel, Z. Physik 43, 524 (1927).], indicando que a denominação, então, teria seguido adiante.

O objetivo deste trabalho é celebrar o centenário das contribuições de Lise Meitner para a descoberta do Efeito Auger. A cientista foi reconhecida mundialmente por suas pesquisas em Física Nuclear, especialmente acerca da fissão nuclear. Mesmo tendo recebido vários prêmios científicos relevantes (quase 50 indicações ao prêmio Nobel) [7[7] I. LIMA, Lise Meitner e a Fissão Nuclear: caminhos para uma narrativa feminista. Tese de Doutorado, Universidade Federal da Bahia, Salvador (2019).], até hoje as suas contribuições para o Efeito Auger permanecem esquecidas. Neste artigo, portanto, daremos a essa proeminente cientista a merecida visibilidade, além de reivindicar o reconhecimento, a fim de que o Efeito receba o nome de ambos os cientistas.

2. Da Infância ao Doutoramento na Universidade de Viena

Apesar das grandes inovações, como o telefone e a luz elétrica, na Viena do final do século XIX somente os filhos de nobres vienenses cursavam o nível médio (Gymnasium), no entanto só teriam acesso à universidade se aprovados em um rigoroso exame, o Matura; já às mulheres, por lei, não poderiam graduar-se [11[11] P. Rife, Lise Meitner and the Dawn of the Nuclear Age (Birkhiiuser, Basiléia, 1999).]. A educação das mulheres era vista como um desperdício de tempo e dinheiro pelo Império Austro-Húngaro, uma vez que as únicas funções sociais atribuídas a elas eram de esposa, mãe e dona de casa. Após a menarca, entre 14 e 15 anos, as jovens deixavam a escola, enquanto os rapazes ingressavam no Ensino Médio (ou Gymnasium).

Embora pertencente a uma classe abastada, Lise Meitner também saiu da escola, em 1892, no entanto a jovem sonhadora não desistiu de estudar e ingressar em uma universidade. Diferente das jovens pobres de Viena, que não tinham escolha, Lise continuou os seus estudos: especializou-se em francês e obteve o seu diploma de professora, em 1901, uma vez que era o único trabalho remunerado para uma mulher de classe média no fim do século XIX [12[12] R.L. Sime, Lise Meitner: A Life in Physics (University of California Press, Berkeley, 1996).].

Elise Meitner – conhecida por Lise Meitner – nasceu na capital austríaca em 7 de novembro 1878, sendo a terceira de oito filhos do casal judaico Philipp Meitner, e Hedwig Skovran Meitner [7[7] I. LIMA, Lise Meitner e a Fissão Nuclear: caminhos para uma narrativa feminista. Tese de Doutorado, Universidade Federal da Bahia, Salvador (2019).]. No mundo em que Lise Meitner cresceu e viveu, a visão predominante era que tanto a educação como as atribuições sociais das mulheres deveriam estar associadas ao lar, ao cuidado e à família. Apesar do incentivo materno para que estudasse música, a ópera não fazia parte de seus interesses pessoais ou profissionais. Suas paixões sempre foram a Matemática e as Ciências, distanciando-a ainda mais do dito “normal” para uma jovem daquela época [7[7] I. LIMA, Lise Meitner e a Fissão Nuclear: caminhos para uma narrativa feminista. Tese de Doutorado, Universidade Federal da Bahia, Salvador (2019).].

O direito à Educação, nos níveis médio e superior, não foi concedido “de graça” às mulheres austríacas; foram constantes as lutas contra o Estado e a sociedade patriarcal em prol de um ideal liderado pelas mulheres (grupos de estudantes, donas de casa, professoras, diretoras de escola etc.). Em 1891, meninas e mulheres conquistaram o direito de cursar o Gymnasium, (Madchen Gymnasium),6 6 Somente para meninas. mas sem o direito de prestar o Matura para as universidades. Só em 1897 as mulheres tiveram, de fato, o seu direito assegurado para cursar as cátedras filosóficas (Letras ou Ciências), a partir de uma imposição judicial ao império austríaco. Naquele momento, a luta feminista conquistou os primeiros resultados em relação ao acesso à Educação, mas ainda teriam um longo caminho a percorrer.

Devemos refletir sobre uma importante questão: se as meninas deixaram de frequentar o nível médio, como poderiam ingressar na universidade tão prontamente se eram necessários quatro anos para cursar o Gymnasium? Ficariam defasadas em sua aprendizagem? Sem contar que a lei estabelecia que as professoras deveriam ter nível superior para a graduação. Para solucionar esse impasse, permitiu-se que as mulheres prestassem o Matura sem cursar o Gymnasium [11[11] P. Rife, Lise Meitner and the Dawn of the Nuclear Age (Birkhiiuser, Basiléia, 1999).].

Lise Meitner decidiu ingressar na universidade e pediu aos pais que financiassem sua preparação com aulas particulares por dois anos. Lise e mais 13 jovens mulheres submeteram-se ao Matura, em 1901, mas apenas quatro foram aprovadas; dentre elas Lise, que realizou o sonho de cursar a Universidade de Viena [11[11] P. Rife, Lise Meitner and the Dawn of the Nuclear Age (Birkhiiuser, Basiléia, 1999)., 13[13] S.S. Mizrahi, Rev. Bras. Ens. Fís. 27, 491 (2005).]. Entretanto, devemos atentar para as mulheres que prestaram o exame e o grupo das aprovadas; além de Lise, também estava Henriette Boltzmann, a filha do físico austríaco Ludwig Boltzman (1844–1906), professor na Universidade de Viena.

Destaca-se aqui o privilégio do grupo de mulheres que conseguiam fazer o Matura. Lise Meitner era uma jovem de classe média. A condição social de Meitner favorecia que ela pudesse trabalhar dando aulas de francês e, quando quisesse, seguir adiante com os seus estudos, inclusive ter aulas particulares. A realidade das meninas que moravam no campo, ou até mesmo na cidade, […] oriundas de famílias pobres, não lhes permitia fazer essa escolha. [7[7] I. LIMA, Lise Meitner e a Fissão Nuclear: caminhos para uma narrativa feminista. Tese de Doutorado, Universidade Federal da Bahia, Salvador (2019)., p. 9].

Após sete anos de espera, Lise Meitner, já com 23 anos, iniciou o curso de Física na Universidade de Viena com uma dura rotina de estudos, cerca de 25 horas semanais de aula. No segundo ano do curso, a jovem Lise teve Ludwig Boltzman como seu professor, admirando-o não apenas como cientista, mas também como ser humano. Em 1905, graduou-se na Universidade de Viena no mesmo ano em que ingressou nos estudos do doutorado [7[7] I. LIMA, Lise Meitner e a Fissão Nuclear: caminhos para uma narrativa feminista. Tese de Doutorado, Universidade Federal da Bahia, Salvador (2019).]. Em fevereiro de 1906, defendeu a sua tese de doutorado sobre os estudos no campo da condutividade elétrica, Condução do calor em sólidos não homogêneos, aprovada com louvor pela banca. Lise Meitner foi a segunda mulher a se doutorar em Física na instituição, tendo recebido o merecido título e publicado artigos na revista da Universidade de Viena.

3. De Viena para o Mundo

Concluído o seu doutoramento, Lise Meitner realizou alguns estudos no campo da radioatividade na Universidade de Viena, mas ainda não havia decidido se, de fato, seguiria por aquele caminho. Em junho de 1907 publicou o seu primeiro artigo científico sobre o espalhamento de partículas alfas no periódico Zeitschrift für Physik. Nesse trabalho, a cientista demonstrou que o espalhamento aumentava quando as alfas eram bombardeadas em átomos metálicos [14[14] L. Meitner, Z. Physik. 8, 489 (1907).]. Lise entusiasmou-se pelo trabalho desenvolvido pelo físico alemão, Max Planck (1858–1947), após assisti-lo em uma palestra em Viena.

Em 1907, mudou-se para Berlim com o intuito de trabalhar com Max Planck e continuar as suas pesquisas no domínio da radioatividade. Finalmente depois de muitas tentativas (e várias negativas), Heinrich Rubens (1865–1922) – físico e diretor do Departamento de Física Experimental na Universidade de Berlim –, indicou-lhe à oportunidade de colaborar com um jovem pesquisador, Otto Hahn, no departamento de rádio-química da mesma instituição.

O Instituto Kaiser-Wilhelm (KWI) foi inaugurando em 1912, e seu principal objetivo era incentivar a pesquisa no campo das Ciências Naturais. A instituição era dirigida pelo químico alemão Emil Fischer (1852–1919), que se manifestou inicialmente contra o ingresso de Lise para o Instituto (e de mulheres em geral), mas aceitou-a com restrições. Mais uma vez, a cientista enfrentaria muitos preconceitos. Otto Hahn e Lise Meitner trabalharam juntos no Instituto, mas em situações bem distintas. De 1907 a 1912, Lise trabalhou como pesquisadora convidada, mas sem remuneração, enquanto Hahn foi contratado, desde o seu primeiro ano em Berlim, em 1907, como professor e chefe de laboratório, com um salário de 5 mil marcos [7[7] I. LIMA, Lise Meitner e a Fissão Nuclear: caminhos para uma narrativa feminista. Tese de Doutorado, Universidade Federal da Bahia, Salvador (2019).].

Com o auxílio de eletroscópios, Hahn e Meitner iniciaram uma pesquisa sobre as radiações alfa, beta e gama. Entre 1907 a 1910, Lise publicou vários artigos sobre processos radioativos, a maioria deles em colaboração com Hahn, entretanto somente ele recebia destaque na Universidade de Berlim; a pesquisadora permanecia à margem e sem salário por longos quatro anos de colaboração. Seu único trabalho remunerado foi como assistente de Max Planck (após um ano na universidade), de quem recebeu a incumbência de corrigir os trabalhos dos seus alunos [7[7] I. LIMA, Lise Meitner e a Fissão Nuclear: caminhos para uma narrativa feminista. Tese de Doutorado, Universidade Federal da Bahia, Salvador (2019).]. Este tratamento desigual demonstra como a questão de gênero influenciou a vida profissional das mulheres de modo geral.

Em 1913, Meitner é promovida a associada no KWI, passando a ganhar um salário de 1500 marcos, porém inferior ao salário de Hahn. Naquele período, a sessão de radioatividade passou a chamar-se Laboratório Hahn-Meitner. Já em 1914, Lise recebeu um convite para trabalhar em uma instituição em Praga. Por recear que a pesquisadora abandonasse o Instituto, Fischer lhe ofereceu um aumento de salário para três mil marcos, todavia ainda muito abaixo do salário de Hahn, uma vez que ambos participavam igualmente nas pesquisas.

Na Primeira Guerra Mundial (1914–1918), Hahn e outros cientistas foram convocados e Meitner assumiu a direção do Laboratório: prosseguiu com os trabalhos em curso, publicação de artigos científicos, além de descobrir, em 1917, o elemento protactínio. Ainda que ausente, é preciso ressaltar que todos os manuscritos tiveram Otto Hahn como autor principal, muito embora Lise Meitner tenha sido a protagonista na execução dos trabalhos.

Em março de 1918, o artigo A substância original do actínio, um novo elemento radioativo de meia-vida longa7 7 Título original: Die Muttersubstanz des Actiniums, ein neues radioaktives Element von langer Lebensdaue. é submetido ao periódico Physikalische Zeitschrift e posteriormente publicado [15[15] O. Hann e L. Meitner, Z. Physik. XIX 19, 208 (1918).]. O trabalho apresenta um novo elemento como a substância-mãe originária do actíneo, obtido a partir da pechblenda. Meitner havia discutido os detalhes experimentais do trabalho com o físico austríaco Stefan Meyer (1872–1949), e pediu ao colega sugestões para nomear o novo elemento. Meyer sugeriu os nomes “Lisonium, Lisottonium ou Lisotto”, pelo papel fundamental de Meitner como a responsável pela descoberta, contudo “os autores” decidiram por proactíneo (antes do actíneo), e, mais tarde, protactínio [7[7] I. LIMA, Lise Meitner e a Fissão Nuclear: caminhos para uma narrativa feminista. Tese de Doutorado, Universidade Federal da Bahia, Salvador (2019)., 11[11] P. Rife, Lise Meitner and the Dawn of the Nuclear Age (Birkhiiuser, Basiléia, 1999).]. Somente em 1994, a International Union of Pure and Applied Chemistry (IUPAC) concedeu o nome de Meitnério ao Elemento 109, uma homenagem a Meitner.

Em 1922, Lise fez uma importante descoberta: a emissão dos elétrons “Auger”. A descoberta foi atribuída a Pierre Auger, muito embora ele tenha estudado o processo, no mínimo, dois anos após Meitner. Além de receber a homenagem, Auger foi nomeado, mundialmente, como o “descobridor do fenômeno”. Apesar de ter sido excluída de sua própria descoberta, Lise prosseguiu com os seus estudos a fim de pesquisar novos fenômenos. Autores como Sietmann [2[2] R. Sietmann, Phys. Bull. 39, 316 (1988).] defendem que a primazia da descoberta deve ser atribuída apenas à Meitner; Duparc e outros [9[9] O.H. Duparc J. Mat. Res. (formerly Z. Metallkd.) 9, 100 (2009)., 16[16] H.B. Mahke, Notes Rec. 76, 107 (2022).] apoiam que se deve manter sua atribuição somente a Auger. Enquanto, autores como Matsakis [3[3] D. Matsakis, A. Coster, B. Laster e R.L. Sime, Phys. Today 72, 9 (2019).] propõem que o Efeito Auger seja renomeado para Efeito Auger-Meitner, como reconhecimento a contribuição de Lise para a descoberta.8 8 A divergência entre tais autores será esclarecida mais adiante. Neste trabalho, por sua vez, propomos que o Efeito Auger seja renomeado para Efeito Meitner-Auger. Discutiremos a questão mais amiúde na seção posterior.

Em 1933, o nazismo ascendia na Alemanha. Naquela época, Lise pertencia ao alto escalão de cientistas no campo da Física Nuclear e da Química mundial, sendo indicada ao Prêmio Nobel quase 15 vezes [7[7] I. LIMA, Lise Meitner e a Fissão Nuclear: caminhos para uma narrativa feminista. Tese de Doutorado, Universidade Federal da Bahia, Salvador (2019).], de forma independente [17[17] I. Newhouse, E. Crawford, R.L. Sime e M. Walker, Phys. Today 51, 2 (1988).] e por seu trabalho com Hahn, ainda na década de 1930. Em 1938, Meitner se viu obrigada a fugir para a Suécia por sua origem judaica. Lise deixou tudo para trás, emprego e amigos, e recomeçou a vida com quase 60 anos. Por sua vez, as pesquisas sobre o núcleo do átomo prosseguiram com Hahn e o químico alemão Fritz Strassmann (1902–1980), que já trabalhava no Instituto Kaiser-Wilhelm (Berlim – Dahlem).

Meitner chegou a Estocolmo como refugiada de guerra e somente em 1948 tornou-se cidadã sueca. Sem receber qualquer apoio ou infraestrutura, Lise foi tratada como novata no Royal Institute of Technology; tudo o que tinha era uma sala no laboratório do físico sueco Manne Siegbahn (1886–1978), e as suas ideias. Apesar das dificuldades, em 1951 Meitner tornou-se a segunda mulher da Academia Sueca de Ciências (a primeira foi eleita em 1748). Em 1957, Lise escreveu para um amigo que ser mulher é apenas um “semicrime” na Suécia. Embora a cientista contasse com bons amigos entre os seus pares, o relacionamento desgastante com o influente Siegbahn talvez a tenha prejudicado na carreira científica e contribuído para que não fosse agraciada com um Prêmio Nobel [15[15] O. Hann e L. Meitner, Z. Physik. XIX 19, 208 (1918).].

Lise ainda mantinha contato com Hahn e outros cientistas alemães por cartas, e assim descobriu que no bombardeio radioativo, o elemento bário era formado, possibilitando a divisão do núcleo de um átomo de urânio, sendo liberada grande quantidade de energia, ou seja, o processo de fissão nuclear. A então recente descoberta foi publicada, posteriormente, com a ajuda do físico austríaco Otto Robert Frisch (1904–1979), também físico, na revista Nature [18[18] L. Meitner and O. Frisch, Nature 143, 239 (1939).]. Lise e Frisch escreveram uma explicação física para o rompimento da tensão superficial do núcleo, a geração de energia cinética, em virtude da perda de massa e o motivo pelo qual nenhum elemento estável, além do urânio, existia naturalmente. Contudo, Otto Hahn recebeu o destaque que deveria ter sido dela, dado que o artigo do grupo de Berlim foi escrito e publicado antes. Consequentemente, apesar da publicação de um trabalho significativo, Meitner não foi reconhecida na pesquisa; por essa razão, o nome de Meitner não estava associado ao pioneirismo dos estudos sobre a desintegração do urânio.

Todavia, a interpretação química de Hahn consistiu na existência dos elementos transurânicos como explicação para a desintegração do urânio, conceito que não possuía bases teóricas suficientes para ser validado. Por outro lado, as contribuições de Meitner e Frisch trouxeram ganhos mais significativos aos estudos sobre o núcleo do átomo, com a associação do comportamento observado com a teoria da gota líquida já apresentada por Bohr, garantindo mais credibilidade à publicação. Lamentavelmente, essa não foi a compreensão do comitê do Nobel que avaliou as indicações de Meitner ao prêmio [7[7] I. LIMA, Lise Meitner e a Fissão Nuclear: caminhos para uma narrativa feminista. Tese de Doutorado, Universidade Federal da Bahia, Salvador (2019).]. De fato, Lise foi a primeira cientista a explicar a enorme fonte de energia na decomposição atômica pela conversão da massa em energia presente: a famosa equação de Einstein. Ainda assim, somente Hahn recebeu o Prêmio Nobel “pela descoberta da fissão de núcleos pesados” [7[7] I. LIMA, Lise Meitner e a Fissão Nuclear: caminhos para uma narrativa feminista. Tese de Doutorado, Universidade Federal da Bahia, Salvador (2019).]. Mais uma vez, Lise Meitner fez uma descoberta (atribuída a um homem) sem receber o merecido reconhecimento.

O conhecimento da conversão de massa em energia influenciou fortemente a construção da bomba atômica durante a Segunda Guerra Mundial. Procurada pelos membros da comunidade científica, incentivados por sua descoberta, Meitner foi convidada a trabalhar no projeto de Manhattan, no Laboratório Nacional de Los Alamos, Novo México (EUA). Ao recusar o convite, disse: “Não vou ter nada a ver com uma bomba” [7[7] I. LIMA, Lise Meitner e a Fissão Nuclear: caminhos para uma narrativa feminista. Tese de Doutorado, Universidade Federal da Bahia, Salvador (2019).]. Contudo, em agosto de 1945, Hiroshima e Nagasaki foram bombardeadas e Lise Meitner passou a ser chamada pela mídia de “a mãe da bomba atômica”, pois as pessoas acreditaram que uma mulher tenha sido a responsável pelo bombardeio. Lise recusou-se a voltar para a Alemanha, prosseguindo com a pesquisa no campo nuclear, como o trabalho sobre o primeiro reator nuclear da Suécia.

4. O Efeito Meitner-Auger

Inspirados pelo decaimento alfa, Lise Meitner e Otto Hahn pensaram, inicialmente, que tinham demonstrado que os raios betas (β) eram monoenergéticos a partir de um espectrômetro magnético e chapas fotográficas. No entanto, em 1913, ao usar contadores Geiger, o físico britânico James Chadwick (1891–1974) mediu que as partículas β apresentavam um espectro contínuo em vez de um conjunto de linhas discretas. Chadwick foi recomendado pelo físico e químico britânico Ernest Rutherford (1871–1937) para trabalhar em Berlim com o físico alemão Hans Wilhelm Geiger (1882–1945), seu ex-assistente. A pesquisa sobre o decaimento beta continuou após 1918, com Meitner em Berlim, e no grupo de Rutherford, em Cambridge.

No início da década de 1920 surgiu a chamada controvérsia dos raios beta. O físico britânico Charles Drumond Ellis (1895–1980), ex-aluno de Rutherford, postulou que o espectro β contínuo seria de origem nuclear. Ellis propôs, em 1921 (confirmando em 1923), um mecanismo para explicar o espectro de linha discreta de raios beta, atribuindo o mecanismo a Rutherford. Para Ellis, por meio de algum processo até então desconhecido, o Raio β dá origem a um raio γ, que ao atravessar a eletrosfera do átomo poderia ser absorvido e ionizar um elétron de alta velocidade.

Meitner manteve a hipótese original de raios β nucleares monocromáticos. Ela atribuiu, com sucesso, as linhas β discretas aos vários efeitos internos – incluindo (agora) o chamado Efeito Auger (melhor dizendo, Meitner-Auger) –, em dois artigos publicados em 1922 [1[1] L. Meitner, Z. Physik 9, 131 (1922)., 6[6] L. Meitner, Z. Physik 9, 145 (1922).], e novamente em 1923 [4[4] L. Meitner, Z. Physik 17, 54 (1923).]. Meitner propôs ainda ad hoc que o espectro β contínuo deveria ser explicado por alguns efeitos perturbativos nos raios β primários monocromáticos. Para Meitner, um raio beta primário monocromático (nuclear) se transformaria em um raio γ ainda no núcleo: o raio γ passa inalterado ou ioniza o átomo, criando raios β secundários nas camadas atômicas. Em seu artigo de 1923, Meitner defendeu que os raios β primários ejetam elétrons K – produzindo assim radiação Kα, que por sua vez dispersa elétrons das camadas L, M e N. Meitner afirmou que todo o processo ocorreria em um mesmo átomo. Atualmente, essa explicação inicial é conhecida como efeito Auger (aqui chamado de Meitner-Auger).

O processo de emissão Auger foi observado e publicado por Lise Meitner [19[19] L. Meitner, Z. Phys. 9, 131 (1922).], em 1922, como um efeito não esperado em seu estudo dos raios β. Esse efeito deu origem à técnica da espectroscopia de elétrons Auger (melhor dizendo, elétrons Meitner-Auger). A espectroscopia de elétrons Auger, cujo acrônimo em inglês é AES (Auger Electron Spectroscopy), é uma técnica muito conhecida para o estudo analítico de superfícies e moléculas isoladas. Em física atômica e molecular, a espectroscopia de elétrons Meitner-Auger ressonante [20[20] A.C.F. Santos, D.N. Vasconcelos, M.A. MacDonald, M.M. Sant’Anna, B.N.C Tenório, A.B. Rocha, V. Morcelle, V.S. Bonfim, N. Appathurai, L. Zuine, J. Phys B: At. Mol. Opt. Phys 54, 015202 (2021).] tem sido usada para estudar a dinâmica ultrarrápida fotoinduzida, também conhecida como dissociação ultrarrápida. Os espectros de elétrons Meitner-Auger são geralmente utilizados para determinar os átomos emissores, além de informações sobre o seu ambiente químico.

4.1. Conversão interna

A desexcitação nuclear pode ocorrer de diversos modos; um dos processos é a conversão interna. Nesse processo, a energia de excitação nuclear é transferida diretamente para um elétron atômico em vez de ser emitida como um fóton, ou seja, a conversão interna é um processo de decaimento não radioativo, cujo núcleo excitado interage eletromagneticamente com um dos elétrons orbitais do átomo. Isso faz com que o elétron seja emitido (ejetado) do átomo; um elétron de alta energia é emitido do átomo radioativo, mas não do núcleo. Por esse motivo, os elétrons de alta velocidade resultantes da conversão interna não são chamados de partículas β, uma vez que são provenientes do decaimento β, sendo novamente criados no processo de decaimento nuclear.

O elétron é ejetado com uma energia cinética igual à energia de excitação menos sua energia de ligação atômica. Ao contrário do decaimento β, na conversão interna os elétrons são monoenergéticos, tendo energia cinética na ordem de algumas centenas de keV até alguns MeV. Enquanto os elétrons da camada K são os elétrons mais prováveis de serem ejetados, os elétrons em outros orbitais também podem receber a energia de excitação. Assim, uma fonte radioativa de conversão interna exibirá um grupo de linhas de conversão interna, sendo as diferenças de energia iguais às diferenças nas energias de ligação de seus respectivos orbitais. A conversão interna torna-se possível sempre que o decaimento γ ocorre, exceto no caso em que o átomo está totalmente ionizado. Durante a conversão interna, o número atômico não muda e, portanto (como é o caso com o decaimento gama), não ocorre nenhuma transmutação de um elemento para outro.

Uma vez que um elétron é ejetado do átomo, um buraco aparece na camada do elétron ejetado, sendo posteriormente preenchido por outros elétrons que descem a esse nível de energia inferior vazio e, no processo, emitem raios-X característicos, elétrons Meitner-Auger, ou ambos. O átomo emite elétrons de alta energia e fótons de raios-X, portanto nenhum deles se originam naquele núcleo. O átomo forneceu a energia necessária para ejetar o elétron, que por sua vez causou os últimos eventos e outras emissões. Como os elétrons primários da conversão interna carregam uma parte fixa (grande) da energia de decaimento característica, eles têm um espectro de energia discreto em vez do espectro espalhado (contínuo) característico das partículas beta. Enquanto o espectro de energia das partículas β é plotado como uma grande saliência, o espectro de energia dos elétrons convertidos internamente é plotado como um único pico agudo (Figura 2).

Figure 2
Transição Auger-Meitner normal. A) Após a ionização de um elétron da camada K (seta 1), um elétron da camada L2,3 decai para a camada K (seta 2) enquanto o excesso de energia é utilizado para ejetar um terceiro elétron da camada L2,3 (seta 3). B) Uma das vacâncias no nível L2,3 é preenchida por um elétron da camada M, enquanto um segundo elétron da camada M é ejetado (processo L2,3MM). Fonte: Elaborado pelo autor.

4.2. O efeito Meitner-Auger em física atômica e molecular

Quando um elétron de uma camada interna é ionizado ou excitado para estados desocupados mais elevados, é necessário o emprego de energias maiores do que para a excitação de um elétron de valência, isso porque os elétrons na camada interna possuem energias de ligação maiores. A excitação da camada interna, portanto, precisa de fótons no ultravioleta extremo ou mesmo de raios-X (energia superiores a 100 eV), ou colisões entre elétrons ou outras partículas carregadas energéticas.

No caso de átomos ou moléculas constituídos por elementos com número atômico Z, pequeno, a excitação de um elétron de uma camada interna é seguida, principalmente, pelo decaimento não radioativo: o efeito Meitner-Auger. A Figura 2, a seguir, ilustra o processo Auger-Meitner. O excesso de energia disponível durante a transição de um elétron do nível L2,3 para a camada K, ΔE = EL2,3 - EK pode ser utilizada para emitir um fóton (decaimento radioativo), ou pode ser transferida para outro elétron do mesmo nível pela interação elétron-elétron. Para os elementos do terceiro período da tabela periódica (seus átomos apresentam três níveis), o principal canal para a desexcitação após a ionização de um elétron da camada K é a emissão Meitner-Auger do tipo KL2,3L2,3. O decaimento radioativo (fluorescência) desempenha um papel menor para esses sistemas. Se a ionização ocorrer devido a um fóton, o elétron ejetado é conhecido como fotoelétron.

De forma esquemática, a Figura 2 apresenta o efeito Meitner-Auger normal. A excitação para o contínuo (ionização) de um elétron da camada K é acompanhada pelo decaimento KL2,3L2,3, resultando em duas vacâncias nos níveis L2,3. Esse processo pode continuar e resultar no decaimento Auger L2,3 MM, onde um elétron da camada M preenche uma das vacâncias da camada L2,3 enquanto um segundo elétron, também da camada M, é ejetado (Elétron Meitner-Auger). Se a camada M é a camada mais externa (valência), o processo também é conhecido com L2,3VV. A segunda vacância no nível L2,3 também pode ser preenchida por outro elétron da camada M, provocando uma nova emissão de um elétron dessa camada, resultando numa ionização quádrupla (quatro elétrons ejetados do átomo), representado por V-4, o que significa que quatro elétrons da camada de valência foram ejetados. A energia cinética, KMeitner-Auger, do elétron Meitner-Auger normal é constante e é dada por KMeitner-Auger = EL2,3 - EK - ELig, onde Elig é a energia de ligação do elétron Meitner-Auger.

5. Lise Meitner: Questões de Gênero e Reconhecimento Tardio

Em 1946, em visita aos Estados Unidos, Meitner foi tratada como celebridade pela imprensa americana e, naquele mesmo ano, o National Women’s Press Club a elegeu como “A Mulher do Ano”. Em 1949, Lise recebeu a medalha Max Planck, da Deutsche Physikalische Gesellschaft (Sociedade Alemã de Físicos), atualmente denominada Sociedade Alemã de Física.

No ano de 1966, Hahn, Meitner e Strassmann dividiram o prêmio americano Enrico Fermi, sendo a primeira vez que o prêmio foi concedido a uma mulher. Em 1999, os membros da Royal Swedish Academy of Sciences (Academia Real das Ciências da Suécia) receberam uma medalha com a efígie de Lise Meitner (Figura 3), onde se leem as palavras: “FISSIONEM NUCLEAREM ILUSTRAVIT” (fissão nuclear explicada).

Figure 3
Medalha em homenagem a Lise Meitner recebida pelos membros da Academia Real das Ciências da Suécia, em 1999 [21[21] A. Bárány, A Tribute to the Memory of (Elise) Lise Meitner (1878–1968) (Royal Swedish Academy of Engineering Sciences, Stockholm, 2020)., p. 26].

Historicamente, mulheres cientistas são menos reconhecidas pelos seus feitos acadêmicos. A expressão “efeito Matilda” surgiu em 1993 pela historiadora americana Margaret W. Rossiter, em homenagem à americana sufragista e crítica feminista, Matilda Joslyn Gage (1826–1898), escritora do ensaio Woman as an Inventor (A mulher enquanto inventora), publicado em 1883 [22[22] M.W. Rossiter, Social Studies and Science 23, 325 (1993).]. A referida expressão foi criada pelas denúncias de casos cujos trabalhos, realizados por mulheres, tiveram as autorias atribuídas a homens, ou ainda a participação das mulheres nos trabalhos foi rebaixada.

Uma das hipóteses para o efeito Matilda associa-se ao pensamento patriarcal, que por sua vez apagou e omitiu a história das mulheres [12[12] R.L. Sime, Lise Meitner: A Life in Physics (University of California Press, Berkeley, 1996)., 13[13] S.S. Mizrahi, Rev. Bras. Ens. Fís. 27, 491 (2005).], e que ainda hoje mostra-se presente na esfera acadêmica. Lise Meitner está entre os exemplos de mulheres que tiveram seus trabalhos atribuídos a homens, como a descoberta atribuída a Otto Hahn. Atualmente, historiadores se esforçam para inserir as mulheres definitivamente na História, a fim de abandonar de vez o estereótipo de ciência predominantemente masculina, branca e europeia [23[23] I.P.C. Lima, Revista Gênero 16, 1 (2015).]. A exclusão das mulheres da história constitui-se uma dupla exclusão: as mulheres da História e o trabalho científico [23[23] I.P.C. Lima, Revista Gênero 16, 1 (2015)., 24[24] G. Lerner, A criação do patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens (Cultrix, São Paulo, 2019).].

Concluímos que a vida científica de Lise Meitner foi marcada pela discriminação de uma cientista ao longo da História, o que não diminui os seus grandes feitos para a Física Nuclear, como as descobertas sobre a radiação, a divisão do núcleo atômico, a energia nuclear. De fato, Meitner enfrentou dois grandes desafios: ser mulher e judia no período da ocupação nazista na Alemanha. Todavia, já na fase adulta, foi batizada e tornou-se protestante, não seguindo o judaísmo, o que demonstra que a perseguição sofrida por ela era étnica e não de origem religiosa [12[12] R.L. Sime, Lise Meitner: A Life in Physics (University of California Press, Berkeley, 1996).]. Apesar de tantas contribuições à Ciência, atualmente permanece relegada. Muitos já ouviram falar de Marie Curie, mesmo que relacionada ao trabalho de Pierre Curie, seu marido, mas poucos conhecem Lise Meitner.

Lise aposentou-se para viver em Cambridge, Inglaterra, onde faleceu algumas semanas antes de completar 90 anos de idade, na data de 27 de outubro de 1968.

6. Considerações Finais

Lise Meitner foi uma das maiores cientistas do século XX. A despeito de uma trajetória profissional marcada pelas barreiras do preconceito de gênero e étnico, manteve-se firme e consciente de seu papel na sociedade, como mulher e pesquisadora, tornando-se uma das maiores cientistas da história da Física Nuclear.

Bagdonas, Zanetic e Gurgel destacam que:

Na historiografia contemporânea, não há mais o interesse de debater prioridades científicas como forma de buscar quem deveria receber, por justiça, o crédito merecido. Os historiadores da ciência são atualmente céticos sobre o conceito de ‘descoberta’ como um evento discreto para o qual certa pessoa deve receber ‘crédito’ ou ‘prioridade’. […] Kuhn defendeu que o modo como normalmente se usa o termo ‘descoberta’ induz a erros sobre como ocorre o processo de criação de teorias científicas. Quando se diz que alguém descobriu algo em certa data temos a impressão de um acontecimento pontual e individual, mas isso raramente acontece na história da ciência. [25[25] A. Bagdonas, J. Zanetic e I. Gurgel, Rev. Bras. Ens. Fís. 39, e2602 (2017)., p. 11].

No entanto, é fato notório que pesquisadores e pesquisadoras de grupos sub representados têm sidos obliterados com respeito às suas contribuições para a ciência, vide por exemplo [26[26] R.F. Morais e A.C.F Santos, Física na Escola 15, 19 (2017).].

Por suas contribuições para a observação do Efeito Meitner-Auger, Lise tem sido objeto de discussão na literatura por décadas. Alguns pesquisadores defendem que Lise Meitner deveria ter sido a única a receber o crédito para o chamado efeito “Auger” [2[2] R. Sietmann, Phys. Bull. 39, 316 (1988).]; outros ainda defendem que embora Meitner devesse ter ganhado o Prêmio Nobel com Otto Hahn, os créditos pela descrição correta do efeito foram atribuídos legitimamente a Pierre Auger [9[9] O.H. Duparc J. Mat. Res. (formerly Z. Metallkd.) 9, 100 (2009).]. Ainda há os que reconhecem seu pioneirismo de Lise Meitner, tanto na pesquisa como na previsão teórica do efeito, mas sustentam que a atribuição deve ser mantida apenas ao cientista francês [16[16] H.B. Mahke, Notes Rec. 76, 107 (2022).]. Como autores deste artigo, compartilhamos uma terceira via [3[3] D. Matsakis, A. Coster, B. Laster e R.L. Sime, Phys. Today 72, 9 (2019).]: devemos honrar ambos contribuidores, renomeando o Efeito para Meitner-Auger.

Agradecimentos

V. Morcelle agradece ao apoio financeiro parcial da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ (Proc. E-26/210.846/2021 (262589)) e CAPES (Proc. 88887.630416/2021-00). Os autores agradecem à Carla Dawidman pelo cuidadoso trabalho de revisão.

Referências

  • [1]
    L. Meitner, Z. Physik 9, 131 (1922).
  • [2]
    R. Sietmann, Phys. Bull. 39, 316 (1988).
  • [3]
    D. Matsakis, A. Coster, B. Laster e R.L. Sime, Phys. Today 72, 9 (2019).
  • [4]
    L. Meitner, Z. Physik 17, 54 (1923).
  • [5]
    P. Auger, C.R.A.S. 177, 169 (1923).
  • [6]
    L. Meitner, Z. Physik 9, 145 (1922).
  • [7]
    I. LIMA, Lise Meitner e a Fissão Nuclear: caminhos para uma narrativa feminista. Tese de Doutorado, Universidade Federal da Bahia, Salvador (2019).
  • [8]
    P. Auger, Annales de Physique 6, 183 (1926).
  • [9]
    O.H. Duparc J. Mat. Res. (formerly Z. Metallkd.) 9, 100 (2009).
  • [10]
    G. Wentzel, Z. Physik 43, 524 (1927).
  • [11]
    P. Rife, Lise Meitner and the Dawn of the Nuclear Age (Birkhiiuser, Basiléia, 1999).
  • [12]
    R.L. Sime, Lise Meitner: A Life in Physics (University of California Press, Berkeley, 1996).
  • [13]
    S.S. Mizrahi, Rev. Bras. Ens. Fís. 27, 491 (2005).
  • [14]
    L. Meitner, Z. Physik. 8, 489 (1907).
  • [15]
    O. Hann e L. Meitner, Z. Physik. XIX 19, 208 (1918).
  • [16]
    H.B. Mahke, Notes Rec. 76, 107 (2022).
  • [17]
    I. Newhouse, E. Crawford, R.L. Sime e M. Walker, Phys. Today 51, 2 (1988).
  • [18]
    L. Meitner and O. Frisch, Nature 143, 239 (1939).
  • [19]
    L. Meitner, Z. Phys. 9, 131 (1922).
  • [20]
    A.C.F. Santos, D.N. Vasconcelos, M.A. MacDonald, M.M. Sant’Anna, B.N.C Tenório, A.B. Rocha, V. Morcelle, V.S. Bonfim, N. Appathurai, L. Zuine, J. Phys B: At. Mol. Opt. Phys 54, 015202 (2021).
  • [21]
    A. Bárány, A Tribute to the Memory of (Elise) Lise Meitner (1878–1968) (Royal Swedish Academy of Engineering Sciences, Stockholm, 2020).
  • [22]
    M.W. Rossiter, Social Studies and Science 23, 325 (1993).
  • [23]
    I.P.C. Lima, Revista Gênero 16, 1 (2015).
  • [24]
    G. Lerner, A criação do patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens (Cultrix, São Paulo, 2019).
  • [25]
    A. Bagdonas, J. Zanetic e I. Gurgel, Rev. Bras. Ens. Fís. 39, e2602 (2017).
  • [26]
    R.F. Morais e A.C.F Santos, Física na Escola 15, 19 (2017).
  • 1
    Título original: Der Zusammenhang zwischen β-undγ-Strahlen.
  • 2
    Título original: Das β-Strahlenspektrum von UX1 und seine Deutung.
  • 3
    Naquela ocasião, os elétrons, quer sejam oriundos do núcleo atômico, quer sejam provenientes da eletrosfera, eram chamados igualmente de raios β.
  • 4
    Título original: Sur les rayons b secondaires produits dans un gaz par des rayonsX.
  • 5
    Título original: L’effet photoélectrique composé.
  • 6
    Somente para meninas.
  • 7
    Título original: Die Muttersubstanz des Actiniums, ein neues radioaktives Element von langer Lebensdaue.
  • 8
    A divergência entre tais autores será esclarecida mais adiante.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2022
  • Revisado
    16 Jul 2022
  • Aceito
    15 Jul 2022
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