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Construções e desconstruções epistemetodológicas de/em uma pesquisa participante - um fazer coletivo com o povo Laklãnõ/Xokleng

CONSTRUCCIONES EPISTEMETOLÓGICAS Y DECONSTRUCCIONES DE/EN INVESTIGACIÓN PARTICIPANTE - UNA ACCIÓN COLECTIVA CON EL PUEBLO LAKLÃNÕ/XOKLENG

RESUMO

Este artigo apresenta registros de (des)construção, em diferentes tempos/espaços/lugares, vivenciados em uma pesquisa participante desenvolvida com o povo Laklãnõ/Xokleng, residente na Terra Indígena Ibirama, Santa Catarina, Brasil. O objetivo é socializar alguns traços dos percursos, percalços e resultados teórico-práticos identificados no estudo, destacando o protagonismo dos sujeitos indígenas. Durante o percurso, procuramos manter a pesquisa na perspectiva da interculturalidade crítica, reconhecendo a potencialidade de promover processos de decolonização na medida em que os sujeitos partícipes do processo adquirem novas compreensões acerca do próprio contexto e ressignificam saberes e práticas de forma interativa. A experiência com a pesquisa participante mostrou que o compromisso de trabalhar com populações historicamente vulnerabilizadas por processos coloniais não se deve limitar ao período de um trabalho acadêmico para não se converter em instrumento de exploração.

PALAVRAS-CHAVE
pesquisa participante; interculturalidade crítica; decolonização; povo Laklãnõ/Xokleng

RESUMEN

Este artículo presenta registros en diferentes tiempos/espacios/lugares de (de)construcción vividos en una investigación participativa desarrollada con el Pueblo Laklãnõ/Xokleng que reside en la Tierra Indígena Ibirama, Santa Catarina, Brasil. El objetivo es socializar algunos rastros de las rutas, percances y resultados teórico-prácticos identificados en la investigación, destacando el rol de los sujetos indígenas. En el camino, tratamos de mantener la investigación en la perspectiva de la interculturalidad crítica, reconociendo el potencial para promover procesos de descolonización a medida que los sujetos que participan en el proceso adquieren conocimientos sobre su contexto y los reinterpretan en prácticas interactivas. La experiencia de la investigación participante ha demostrado que el compromiso de trabajar con poblaciones históricamente vulnerables por los procesos coloniales no debe limitarse al período de trabajo académico para no convertirse en un instrumento de explotación.

PALABRAS CLAVE
investigación participante; interculturalidad crítica; descolonización; pueblo Laklãnõ/Xokleng

ABSTRACT

This article presents records of (de)construction, in different times/spaces/places, as experienced in a participatory research study developed with the Laklãnõ/Xokleng people residing in the Indigenous Territory Ibirama, in Santa Catarina, Brazil. The objective is to disclose some traces of the paths, mishaps and theoretical-practical results identified in the study, highlighting the role of indigenous subjects. Along the way, we try to keep the research in the perspective of critical interculturality, recognizing the potential to promote processes of decolonization, as the subjects who participate in the process acquire knowledge about their context and reinterpret it in interactive practices. The experience with participatory research has shown that the commitment to work with populations historically placed in vulnerable conditions by colonial processes should not be limited to the timespan of an academic work in order not to become an instrument of exploitation.

KEYWORDS
participating research; critical interculturality; decolonization; Laklãnõ/Xokleng people

INTRODUÇÃO

Apresentamos neste artigo alguns traços/momentos do percurso epistemetodológico que permeou uma pesquisa participante com o povo indígena Laklãnõ/Xokleng. Esse povo reside na Terra Indígena Ibirama (TII), Estado de Santa Catarina, Brasil. A TII está, atualmente, organizada em nove aldeias, e a Aldeia Bugio foi o recorte territorial e humano definido coletivamente como tempo/espaço/lugar para o desenvolvimento da investigação.

Inicialmente, cabe registrar que epistemetodologia é um termo cunhado na junção entre epistemologia - que se refere ao conhecimento, ao estudo científico, ao pensar e refletir - e metodologia - como método, um caminho a seguir, fazer, praticar. A reunião desses dois termos na palavra epistemetodologia procura trazer e fortalecer, em nível de terminologia, a indissociabilidade entre teoria e prática, provocando, assim, a ressignificação de concepções educacionais (Pozzer e Cecchetti, 2016POZZER, A.; CECCHETTI, E. Colonialidade do saber e formação docente: ensaios para episte(me)todologias interculturais. In: HARDT, L. S.; MOURA, R. S. de. (org.). Filosofias da educação: entre devires, interrupções e aberturas - outro mundo contemplado. Série Saberes em Diálogo, Blumenau: Edifurb, 2016, p. 73-92.). A construção de uma perspectiva epistemetodológica supõe a interação entre o aprofundamento epistêmico e a rota metodológica na dinâmica da própria investigação. Assim,

[...] a compreensão e/ou construção do conhecimento, ou o acesso a ele, não podem acontecer somente na esfera das ideias, mas também nas relações mesmas da vida, na “constituição de problemas”, o que significa vislumbrar um quefazer investigativo interpelado pelo e com o rosto e a história das outredades.1 1 Sobre outredade e outros rostos: LEVINÁS, E. Entre nosotros. Ensayos para pensar en otros. Valencia: Pre-Textos, 1993.; LEVINÁS, E. Nombres propios. Madrid: Fundación Emmanuel Mounier, 2008. (Leme, 2019LEME, M. C. G. Territórios e afetos roubados: desenvolvimento urbano e processos de des(re)territorialização de pessoas menores de idade em situação de rua e de risco social. 2019. 339 f. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Regional) - Universidade Regional de Blumenau, Blumenau, 2019., p. 40)

Para nós, que fazemos pesquisa com a preocupação central de manter a perspectiva da interculturalidade crítica, essa indissociabilidade é o fio condutor de todo e qualquer processo de investigação e/ou prática.

A pesquisa a que se refere o presente artigo foi desenvolvida entre os anos de 2014 e 2018. Insere-se em um contexto amplo de projetos de ensino, pesquisa e extensão desenvolvidos por um grupo de pesquisa com o povo indígena Laklãnõ/Xokleng, com o intuito de visibilizar a história, a cultura e as problemáticas que permeiam o contexto da TII/SC, vinculadas ao desenvolvimento no próprio território e na região de entorno. Esse povo, cuja presença guarda vestígios históricos que datam mais de 5 mil anos nessa região, integra o contexto e a problemática dos demais povos indígenas do Brasil, América Latina e Caribe que sofreram com ações antidialógicas (Freire, 1987FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.) promovidas pelos colonizadores. Assim como os demais povos aqui presentes, os Laklãnõ/Xokleng foram submetidos a violentos processos coloniais que invisibilizaram e quase extinguiram a sua existência e perduram até os dias atuais, reforçando estereótipos e preconceitos.

Todavia, a sua presença e o aumento da sua população na região do Vale do Itajaí/SC têm desafiado a lógica dominante que previa a assimilação ao contexto social nacional ou a completa aniquilação dessa etnia. A resistência indígena impõe o reconhecimento de direitos, bem como da sua contribuição para a história e cultura da sociedade. Entre as principais lutas desse povo estão: a demarcação da TII/SC conforme laudo antropológico (Pereira, 1998PEREIRA, W. S. Laudo antropológico de identificação e delimitação de terra de ocupação tradicional Xokleng: história de contato, dinâmica social e mobilidade indígena no sul do Brasil. Porto Alegre: FUNAI, 1998.); a efetivação de um estudo de impacto ambiental em decorrência da construção de uma barragem na TII para a contenção de cheias que assolavam cidades da região do Vale do Itajaí/SC e que, desde o seu início, na década de 1970, vem causando prejuízos materiais e simbólicos para o povo; a reivindicação de que a educação escolar indígena aconteça conforme aquilo que preconiza a lei, ou seja, que seja intercultural, específica, bilíngue, diferenciada e comunitária, compreendida pelo povo como possibilidade de transformar positivamente a relação com a sociedade não indígena e com impactos para o desenvolvimento da comunidade.

O conjunto do contexto histórico de violência, luta e resistência levou-nos a questionar:

  1. qual a origem da força e resistência do povo Laklãnõ/Xokleng diante dos processos coloniais longos e violentos promovidos pelas culturas colonizadoras;

  2. qual o papel - espaço e lugar - de uma educação escolar intercultural, específica, diferenciada, bilíngue e comunitária no contexto de história, cultura e resistência para esse povo. E, para responder às questões, construímos, em conjunto, um percurso epistemetodológico sobre o qual objetivamos, no recorte ora apresentado, socializar traços, percalços e resultados teórico-práticos identificados na pesquisa, destacando o protagonismo dos sujeitos indígenas.

Compreendemos que as possíveis respostas a essas questões poderiam se configurar como possibilidade(s) para promover e fortalecer processos de decolonização para e com o povo indígena ao identificar, visibilizar e sistematizar práticas, modos de ser e conviver pautados em lógicas de vida que não são as de produção e consumo do mundo globalizado e capitalista. Para que fosse possível chegar a essas respostas, foi essencial a presença ativa das pessoas indígenas que se constituíram como sujeitos pesquisantes.

Para nos acompanhar no processo de elaboração desse caminho, debruçamo-nos principalmente sobre autores como Brandão, Freire, Fals Borda e Gajardo. Mesmo não sendo citado diretamente na pesquisa e no seu relatório final, uma leitura inquietante logo no início foi a de Mills (2009MILLS, C. W. Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios. Seleção e introdução Celso Castro. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.), que trata o trabalho do cientista social como um processo de artesanato intelectual. Para esse autor, o trabalho intelectual (trans)forma o próprio trabalhador/pesquisador na mesma medida em que este aperfeiçoa o seu produto. Esses autores ajudaram-nos na tarefa de reparar o contexto e a realidade, considerando que:

O ato de reparar está diretamente ligado à ampliação de dado nível de consciência, trazendo luz, clareza aos fatos, relações e concepções, que, sob um olhar que não vê, podem ser naturalizadas e reproduzidas nas práticas cotidianas. Visualizar sob vários pontos de vista, analisar, questionar e buscar compreender são atitudes que possibilitam lampejos de lucidez, brechas necessárias para resistir e intervir na realidade. (Fleuri, et al., 2013FLEURI, R. M.; OLIVEIRA, L. B. de.; HARDI, L. S.; CECCHETTI, E.; KOCH, S. R. Diversidade religiosa e direitos humanos: conhecer, respeitar e conviver., 2013., p. 12)

Ao compartilharmos essa experiência de construção epistemetodológica, não pretendemos estabelecer regras e/ou procedimentos para o desenvolvimento de uma pesquisa participante, a não ser esse de manter a constante vigília para não reproduzir ações antidialógicas que intentam “[...] oprimir mais, não só economicamente, mas culturalmente, roubando ao oprimido conquistado sua palavra também, sua expressividade, sua cultura” (Freire, 1987FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987., p. 136). Essas ações antidialógicas são responsáveis pelas colonialidades produzidas durante todo o período em que perdurou o processo colonial na América Latina. A base para a produção dessas colonialidades foi o estabelecimento de relações de trabalho pautadas na construção da ideia de raça, que classificou sujeitos como mais ou menos racionais e civilizados e que ainda estrutura relações sociais em toda a América Latina e Caribe atualmente (Quijano, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina, 2005, p. 117-142.).

Introduzido o contexto de produção deste trabalho, na sequência apresentamos os fundamentos em que se construiu a pesquisa para, em seguida, descrevermos a forma como se estabeleceram os vínculos entre os sujeitos pesquisantes, ou seja, pessoas ligadas à universidade e pessoas ligadas à comunidade indígena. Foi esse contexto que permitiu o desenvolvimento de tal trabalho, incluindo a forma como foram produzidos e revelados os elementos que se converteram em dados de análise. Chegamos, na parte seguinte do texto, à forma como foi produzida a análise e, por fim, às considerações finais.

PESQUISA PARTICIPANTE - O DESAFIO DE PESQUISAR COM

Desde os primeiros passos, uma pesquisa desenvolvida com populações indígenas, e não sobre elas, exige o estabelecimento de uma relação de reciprocidade e dialogicidade em que a pessoa que se coloca como pesquisadora e a comunidade tomam decisões compartilhadas, traçando o percurso e definindo os procedimentos em acordo, o que coloca todas as pessoas envolvidas como sujeitos pesquisantes. Os saberes locais e as formas como a população lê e interpreta a realidade devem ocupar e preencher tempos, espaços e lugares durante e na pesquisa, permitindo que as reflexões acerca dos fenômenos estudados tenham por base o real e o vivido. A pesquisa, experienciada nessa forma, abre-se como possibilidade na e para a promoção de mudanças e transformações no território, compreendendo que a relação dinâmica entre a objetividade e a subjetividade dos sujeitos é que constitui um território e promove territorialidades. Isso porque território:

[…] alude ao espaço geográfico simbolicamente estruturado e politicamente construído por um determinado coletivo humano, cujos modos organizacionais e de subsistência, relações de poder e definições identitárias são, por sua vez, intrinsecamente dependentes dele. (Aráoz, 2015ARÁOZ, H. El territorio moderno y la geografía (colonial) del capital. Una arqueología mínima. Memória e Sociedade, Bogotá, 2015, v. 19, n. 39, p. 174-191. https://doi.org/10.11144/Javeriana.mys19-39.tmgc
https://doi.org/https://doi.org/10.11144...
, p. 176, tradução nossa)

Nessa dinâmica, a comunidade indígena não é um objeto sobre o qual se debruça a pessoa que pesquisa, mas sim um sujeito partícipe com quem são tomadas as decisões no decorrer do percurso. Agir de forma a desconsiderar essa participação ativa e não integrar a percepção da população local sobre a própria realidade transforma a ação de pesquisar naquilo que Freire (1987FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.) chamou de ações antidialógicas e inclui como estratégias a conquista, a manipulação, a divisão e a invasão cultural. Essas ações “[...] poderiam dar a impressão, numa apreciação ingênua, de um diálogo [mas que], em última análise, são meios de que se servem os dominadores para realizar suas finalidades” (Freire, 1987FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987., p. 144-145). Ou seja, um processo reprodutor de colonialidades, compreendidas como:

[…] um padrão de poder que surgiu como resultado do colonialismo moderno, mas em vez de se limitar a uma relação formal de poder entre dois povos ou nações, antes se refere à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si, por meio do mercado capitalista mundial e da ideia de raça. Assim, embora o colonialismo preceda a colonialidade, a colonialidade sobrevive ao colonialismo. (Maldonado-Torres, 2007MALDONADO-TORRES, N. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. (ed.). El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Universidad Central-IESCO, Siglo del Hombre Editores, 2007, p. 127-167., p. 131, tradução nossa)

Esse tipo de ação reproduz um sistema de dominação historicamente conhecido das populações indígenas que, travestindo-se de natural, deve ser analisado nas diferentes dimensões da vida e experiência humanas que compõem um paradigma e incluem: o epistêmico - como colonialidade do saber (Mignolo, 2005MIGNOLO, W. D. A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfério ocidental no horizonte conceitual da modernidade. In: LANDER, E. (org.) A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Colección Sur-Sur, CLACSO: Buenos Aires, 2005, p. 33-49.); o metodológico - colonialidade do poder (Quijano, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina, 2005, p. 117-142.) -; o ontológico - colonialidade do ser (Mignolo, 2003MIGNOLO, W. D. Os esplendores e as misérias da ‘ciência’: colonialidades, geopolítica do conhecimento e pluri-versalidade epistêmica. In: SANTOS, B. S. (org.). Conhecimento prudente para uma vida descente: um discurso sobre as ciências revisitado. Porto: Afrontamento, 2003, p. 631-671.); e o cosmogônico ou axiológico - colonialidade do crer ou acreditar (Walsh, 2009WALSH, C. Interculturalidad, estado, sociedad: luchas (de)coloniales de nuestra época. Quito: Universidad Andina Simon Bolívar/Abya Yala, 2009.). Resumidamente, as quatro dimensões podem ser explicadas como:

[…] ontológica (sobre a natureza da realidade), epistemológica (sobre a natureza do conhecimento e o processo para a sua geração e apropriação), metodológica (sobre o método e natureza de indagar/investigar) e axiológica (sobre os valores éticos e estéticos e a natureza da intervenção), em que responde às respectivas questões: o que é a realidade?, o que é relevante conhecer na realidade, e por meio de que processo?, como saber o que é relevante conhecer na realidade?, que valores éticos e estéticos devem prevalecer na intervenção para saber o que é relevante conhecer na realidade? (Silva, 2013SILVA, J. S. La pedagogía de la felicidad en una educación para la vida. El paradigma del “buen vivir”/“vivir bien” y la construcción pedagógica del “día después del desarrollo”. In: WALSH, C. (ed.). Pedagogías decoloniales: prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. Tomo I. Serie Pensamiento Decolonial. Quito, Ecuador: Ediciones Abya-Yala, 2013, p. 469-507., p. 474, nota de rodapé, tradução nossa)

Para contrapor esse sistema, a pesquisa buscou estabelecer relações pautadas em ações dialógicas que têm a colaboração, a união, a organização e a síntese cultural como princípios relacionais. Essas estratégias permitem “[...] que a denúncia do ‘regime que segrega esta injustiça e engendra esta miséria’ seja feita com suas vítimas a fim de buscar a libertação dos homens [e das mulheres] em co-laboração com eles [e elas]” (Freire, 1987FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987., p. 171, grifo no original). Nessa busca por não reproduzir um sistema de dominação, reconhecemos a necessidade de que:

Mudemos a pele! Adotemos agora “metodicamente” a pele do índio, do africano escravo, do mestiço humilhado, do camponês empobrecido, do operário explorado, dos milhões de marginalizados amontoados pelas cidades latino-americanas contemporâneas. Façamos nossos os “olhos” do povo oprimido [...]. (Dussel, 1993DUSSEL, E. 1492 o encobrimento do outro: a origem do mito da Modernidade., 1993., p. 90)

Ampliamos a metáfora apresentada por Dussel (1993DUSSEL, E. 1492 o encobrimento do outro: a origem do mito da Modernidade., 1993.) por percebermos que essa relação e esse sistema estão entranhados na sociedade, cujas colonialidades produzidas por séculos de dominação continuam presentes no cotidiano. Assim, para além da pele, é necessário mudar vísceras e órgãos vitais na tentativa de sentir e compreender em alteridade o Outro, conscientes de que, para a comunidade indígena, o Outro somos nós. Esse desafio epistemetodológico possibilita-nos perceber e sentir não só as dores, mas também a presença e a força da comunidade indígena e, ao percebê-la na sua condição de opressão e de possibilidade, estabelecermos com ela uma relação dialógica reconhecendo que, nesse encontro, homens e mulheres comungam da busca por conhecer, cientes da sua condição de incompletude e de ser mais (Freire, 1987FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.).

Uma pesquisa que pauta suas ações em práticas dialógicas não sobrepõe o conhecimento científico ao conhecimento popular para não incorrer no risco de alienação e submissão. A ciência prática e a expressão cultural dos grupos considerados e/ou nominados como populares, o que inclui as comunidades indígenas, devem ser reconhecidas no valor que possuem para que seja possível compreender como se estruturam “[...] para procurar formas de incorporá-las às necessidades coletivas mais gerais, sem ocasionar a perda de sua identidade e seu teor específico” (Fals Borda, 2006FALS BORDA, O. Aspectos teóricos da pesquisa participante: considerações sobre o significado e o papel da ciência na participação popular. In: BRANDÃO, C. R. (org.). Pesquisa Participante., 2006, p. 42-62., p. 47). Dessa forma, a pesquisa pode ser um meio de promoção da participação popular e de desenvolvimento da autonomia de sujeitos para que possam agir sobre/nos/com os seus territórios. Nessa perspectiva libertadora e dialógica, pesquisadores e pesquisadoras, com os grupos populares, são sujeitos cognoscentes e pesquisantes que agem em conjunto para desvelar a realidade concreta (Freire, 2006FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. 33. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006.).

A opção pela forma de fazer pesquisa indica intencionalidade e, portanto, revela o caráter ideológico e político da atividade científica. Cabe questionar, dessa forma, a quem deseja servir essa ciência e pesquisa, desenvolvendo uma prática coerente com a resposta (Freire, 2006FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. 33. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006.). Essa posição em relação à nossa pesquisa agregou a ela a perspectiva da interculturalidade crítica, que tem por objetivo promover a decolonização do saber, do poder, do ser e do crer. Assim,

[...] a pesquisa pode se constituir como fator mobilizador da interação entre sujeitos, na medida em que pode promover a compreensão, ressignificação e transformação de seu próprio contexto interativo. Trata-se de elaborar e mobilizar formas de saber, poder, ser e viver que possam garantir a convivência de todos os seres humanos com a natureza e entre si, para além de dispositivos e de estruturas de dominação sociocultural e de destruição sistemática da natureza, vigentes no atual contexto mundial. (Fleuri, Coppete e Azibeiro, 2009FLEURI, R. M.; COPPETE, M. C.; AZIBEIRO, N. E. Pesquisas interculturais: descolonializar o saber, o poder, o ser e o viver. In: OLIVEIRA, L. B. de.; CECCHETTI, E.; CEZARO, R. A. de.; KOCH, S. R. Culturas e diversidade religiosa na América Latina: pesquisas e perspectivas pedagógicas. Blumenau: Edifurb; São Leopoldo: Nova Harmonia, 2009, p. 30-46., p. 31)

Nessa perspectiva intercultural e decolonizante, reconhecemos que a ciência não é uma entidade com vida própria, mas sim resultado da ação intencional do ser humano “[...] que responde a necessidades coletivas concretas - inclusive àquelas considerações artísticas, sobrenaturais e extracientíficas - e também aos objetivos específicos determinados pelas classes sociais dominantes em períodos históricos precisos” (Fals Borda, 2006FALS BORDA, O. Aspectos teóricos da pesquisa participante: considerações sobre o significado e o papel da ciência na participação popular. In: BRANDÃO, C. R. (org.). Pesquisa Participante., 2006, p. 42-62., p. 43-44, grifo no original). A interculturalidade como experiência existencial (Marin, 2010MARIN, J. A perspectiva intercultural como base para um projeto de educação democrática: povos autóctones e sociedade multicultural na América Latina. Visão Global, Joaçaba, v. 13, n. 1, p. 13-52, 2010.) move-nos a estabelecer novas e diferentes relações com a ciência, compreendendo que:

Mais do que um simples conceito de inter-relação, a interculturalidade indica e significa processos de construção de conhecimentos “outros”, de uma prática política “outra”, de um poder social “outro”, de uma sociedade e de sistemas de vida “outros”. Em suma, marca diferentes formas de pensar, agir e viver em relação aos padrões de poder que a modernidade e a colonialidade têm instalado. (Walsh, 2009WALSH, C. Interculturalidad, estado, sociedad: luchas (de)coloniales de nuestra época. Quito: Universidad Andina Simon Bolívar/Abya Yala, 2009., p. 232, tradução nossa)

A (cons)ciência dessa intencionalidade exige da pessoa que pesquisa e que se propõe a não reproduzir ações antidialógicas a participação direta que, de forma indutiva, descreve, analisa, explica os fenômenos com base em elementos presentes no seu ambiente natural, sempre considerando o significado que os sujeitos da pesquisa, no caso a população indígena, atribuíram às próprias experiências e à sua realidade (Bogdan e Biklen, 1994BOGDAN, R.; BIKLEN, S. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora, 1994.). Realidade que é tomada como realidade concreta, ou seja:

[...] algo mais que fatos ou dados tomados mais ou menos em si mesmos. Ela é todos esses fatos e todos esses dados e mais a percepção que deles esteja tendo a população neles envolvida. Assim, a realidade concreta se dá a mim na relação dialética entre objetividade e subjetividade. (Freire, 2006FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. 33. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006., p. 35)

Além da relação entre a objetividade dos elementos e fatos que se colocam/encontram no contexto real e a subjetividade da leitura/visão que os sujeitos apresentam em relação a esse contexto, a pesquisa científica exige o estabelecimento de uma relação entre o que foi identificado no contexto pesquisado e o campo teórico. A seleção e delimitação do campo teórico permitem que ela ganhe consistência, sendo dois dos primeiros desafios do trabalho e tarefas que acompanham a pessoa que pesquisa durante todas as etapas. Em coerência com a perspectiva da interculturalidade crítica assumida na pesquisa com a população indígena, o aporte teórico buscou referências que discutissem processos de construção de colonialidade e pedagogias decoloniais.

A perspectiva decolonial e intercultural exige uma construção dialógica, desafiando os sujeitos pesquisantes a compreender como a realidade é construída, percebida, experienciada e vivida. As situações existenciais são selecionadas de acordo com o significado e importância atribuídos pelo próprio grupo e em relação ao marco teórico. Nesse caminho, a pesquisa coloca-se para e com o grupo como meio de perceber os problemas de modo crítico e como resultado de um contexto social e histórico, buscando “[...] assumir, de forma cada vez mais lúcida e autônoma, seu papel de protagonista e ator social” (Oliveira e Oliveira, 2006OLIVEIRA, R. D. de.; OLIVEIRA, M. D. de. Pesquisa social e ação educativa: conhecer a realidade para poder transformá-la. In: BRANDÃO, C. R. (org.). Pesquisa Participante., 2006, p. 17-33., p. 27). A pesquisa define-se, assim, como participante, pois

[...] responde especialmente às necessidades básicas de populações que compreendem operários, camponeses, agricultores e índios - as classes mais carentes nas estruturas sociais contemporâneas - levando em conta suas aspirações e potencialidades de conhecer e agir. É a metodologia que procura incentivar o desenvolvimento autônomo (autoconfiante) a partir das bases e uma relativa independência do exterior [...]. (Fals Borda, 2006FALS BORDA, O. Aspectos teóricos da pesquisa participante: considerações sobre o significado e o papel da ciência na participação popular. In: BRANDÃO, C. R. (org.). Pesquisa Participante., 2006, p. 42-62., p. 43, grifos no original)

É importante ressaltar que a participação em todas as etapas da pesquisa deve ser prevista e incentivada pela pessoa que pesquisa. Nem sempre, porém, é possível que toda a comunidade se mobilize o tempo todo em todas as etapas. O que garante a sua característica de pesquisa participante é que ela constitui “[...] politicamente uma pesquisa participando sendo orientada para e servindo a projetos populares de produção e uso de saber” (Brandão, 2001BRANDÃO, C. R. (org.). Repensando a pesquisa participante. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 2001., p. 251). Muitos projetos desenvolvidos com essa perspectiva tiveram graus de participação distintos. Gajardo (2001GAJARDO, M. Pesquisa participante: propostas e projetos. In: BRANDÃO, C. R. (org.). Repensando a pesquisa participante. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 2001, p. 15-50.), referindo-se a um estudo publicado por Ema Rubín de Celis em 1982, descreveu uma tipologia com cinco níveis possíveis de participação das comunidades em projetos dessa natureza:

  1. participação a partir da devolução de informação;

  2. participação a partir da coleta de dados;

  3. participação em todo o processo sobre o tema proposto pelo cientista;

  4. participação em todo o processo sobre um tema proposto pelo próprio grupo;

  5. participação na pesquisa da ação educativa. (Gajardo, 2001GAJARDO, M. Pesquisa participante: propostas e projetos. In: BRANDÃO, C. R. (org.). Repensando a pesquisa participante. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 2001, p. 15-50., p. 44)

Os níveis descritos revelam que não há uma única forma de fazer pesquisa participante e nem a necessidade de que todos os níveis sejam atendidos. Ou seja, ela não é, por princípio, normativa e constitui-se conforme a realidade concreta de cada contexto. O que valida o seu caráter participante é ser um instrumento a serviço de uma prática política no interior da comunidade, com base nas decisões ou necessidades dessa comunidade. Uma pesquisa que se configura como instrumento de educação popular da comunidade deve considerar que, “quando as pessoas do povo vêm participar dela, há de ser porque de algum modo ela já faz parte de suas práticas, de seus projetos de classe e é, por isso, participante” (Brandão, 2001BRANDÃO, C. R. (org.). Repensando a pesquisa participante. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 2001., p. 252). A forma como foi sendo constituído o interesse e o tema a ser pesquisado é, nesse sentido, muito importante. Por isso, na próxima sessão, debruçamo-nos sobre a construção de vínculos e relações antes da pesquisa, durante o seu desenvolvimento e depois dela.

CONSTRUÇÃO DAS RELAÇÕES ENTRE AS PESSOAS PESQUISANTES

Registramos que a aproximação com a comunidade indígena Laklãnõ/Xokleng não se deu, inicialmente, por interesse em desenvolver uma pesquisa. O primeiro encontro, em 2014, teve como proposta desenvolver um trabalho educacional com os estudantes do ensino médio da Escola Indígena de Educação Básica (EIEB) Vanhecu Patté, localizada na Aldeia Bugio, umas das nove aldeias que integram a TII/SC. O convite veio por intermédio do Conselho de Missão entre Povos Indígenas (COMIN) e relacionava-se a um projeto para a promoção de aulas nas diferentes áreas de conhecimento que compõem as provas aplicadas no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). A área trabalhada com o grupo escolar à época foi a de linguagens e suas tecnologias e redação. Isso ocorreu sistematicamente, com três encontros anuais em 2014, 2015 e 2016. Em 2017 as aulas aconteceram na Escola Indígena de Educação Básica Laklãnõ, que se localiza na Aldeia Sede. Esse projeto foi o início de uma relação que vem sendo profícua no sentido de desencadear a participação em outros encontros, projetos e demais trabalhos de interesse da comunidade indígena.

Entre as ações desenvolvidas, encontram-se projetos de extensão que envolvem a aplicação da Lei 11.645/2008 nas escolas da rede pública da região, de formação para professores indígenas, eventos com debate de temas como a Barragem Norte e a inclusão de estudantes indígenas na universidade, entre outras ações. Houve também a participação em várias atividades promovidas pela comunidade na TII/SC, como nas comemorações que ocorrem anualmente nos meses de abril e setembro, celebrando respectivamente a Semana dos Povos Indígenas e a resistência e sobrevivência do Povo Laklãnõ/Xokleng desde a chamada Pacificação e/ou Contato (que ocorreu em 22 de setembro de 1914, quando essa etnia foi aldeada e passou a residir na TII/SC).

Merece menção ainda a formação com o envolvimento de lideranças, comunidade e escola que ocorreu em agosto de 2015, sobre a elaboração do Projeto Político-Pedagógico (PPP) da EIEB Vanhecu Patté. A escola já se vinha organizando e tinha feito um primeiro encontro em 11 de agosto, quando apresentou a proposta para a comunidade e uma estrutura de elaboração do PPP e identificou a necessidade de ampliar o conhecimento acerca das etapas de elaboração, função e respaldo legal do documento. Dessa percepção, recebemos e acolhemos a demanda de um trabalho de formação com a comunidade sobre a elaboração de um PPP. Agendamos o encontro para o dia 28 de agosto de 2015. Nessa data, reunimo-nos na escola com docentes, pais, mães, estudantes e representantes da comunidade. Também participaram desse encontro professores e estudantes da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) que, na época, desenvolviam o projeto Ação e Saberes Indígenas na Escola, vinculado ao Governo Federal e que abrangia as duas escolas na TII/SC e as demais escolas dos povos Kaingang e Guarani que vivem no Estado de Santa Catarina.

Este relato demonstra que o vínculo entre as pessoas que se tornaram pesquisantes, no desenvolvimento do trabalho, foi sendo construído ao longo de, pelo menos, dois anos antes de efetivamente se iniciar a pesquisa participante sobre a qual nos reportamos neste texto. Essa convivência inicial permitiu conhecer mais de perto e buscar com profundidade a história e a organização social na TII/SC, mais especificamente na Aldeia Bugio. Foi essa relação, construída aos poucos, que gerou confiança e despertou interesse na realização de uma investigação científica que sistematizasse e visibilizasse os modos de ser e aprender na Aldeia Bugio, que se efetivam na EIEB Vanhecu Patté e, de alguma forma, pareciam revitalizar a força e fortalecer a persistência e a resistência dessa comunidade. As perguntas que permearam a pesquisa nasceram da observação dessa realidade e dos anseios da comunidade externados nessa convivência, considerando que as possíveis respostas trariam à luz temas-problemas encobertos por um contexto histórico pautado por ações antidialógicas (Freire, 1987FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.).

Após a definição do campo de ação, conversamos com a direção da escola e com a liderança local para externar nosso desejo de desenvolver um estudo e pesquisa que contribuísse para visibilizar interna e externamente à TII/SC, com o registro e socialização das reflexões e ações da comunidade escolar da EIEB Vanhecu Patté, os seus desafios, pressupostos, objetivos e propostas em sintonia com a história e cultura Laklãnõ/Xokleng. Com a anuência da direção e da liderança, ampliamos a consulta aos professores e professoras e obtivemos a sua concordância para a realização da pesquisa de forma participativa.

No diálogo com a comunidade escolar, definimos que, para atingirmos a profundidade pretendida, além da pesquisa bibliográfica que incluía referencial teórico, programas de governo e legislação pertinente à temática, os procedimentos metodológicos agregariam o levantamento de dados com base na análise de documentos pedagógicos (DP) especificamente relacionados à EIEB Vanhecu Patté e a elaboração de Relatos Pedagógicos (RP) pelos/as professores/as. Inicialmente, os relatos foram orais, gravados em encontros entre a pesquisadora e cada professor para posterior transcrição.

A riqueza das informações levou o grupo a propor uma sistematização por meio de uma oficina de produção textual. A efetivação deu-se por meio de um projeto de formação continuada denominado “Memórias dos modos tradicionais de ensinar e aprender da etnia Laklãnõ/Xokleng”, realizado em 2018, sob a apreciação e aprovação da Coordenadoria Regional de Ensino de Ibirama, responsável pelas escolas vinculadas ao sistema estadual de educação daquela região em Santa Catarina. O produto do projeto foi um dossiê sob o título Experiências Pedagógicas de Professores e Professoras Indígenas na EIEB Vanhecu Patté, que incluía também um documentário com uma roda de conversa com anciões e anciãs da Aldeia Bugio publicado em um e-book (EIEB Vanhecu Patté, 2018EIEB VANHECU PATTÉ. Experiências pedagógicas de professores e professoras indígenas na E.I.E.B. Vanhecu Patté. José Boiteux, 2018.).

A definição dos sujeitos, formas de participação e tipos de documento analisados no estudo e investigação foram se dando no diálogo com o grupo de professores e gestores da EIEB Vanhecu Patté, incluindo o projeto de formação continuada - considerando que, “na situação grupal, a partilha e o contraste de experiências constrói um quadro de interesses e preocupações comuns que, em parte experienciadas por todos, são raramente articuladas por um único indivíduo” (Gaskell, 2002GASKELL, G. Entrevistas individuais e grupais. In: BAUER, M. W.; GASKELL, G. (org.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 64-89., p. 77). Essa perspectiva de diálogo grupal esteve particularmente afinada com as características e contexto da comunidade indígena, em que o coletivo se sobrepõe ao individual, principalmente nas questões relacionadas à educação, cultura e território Laklãnõ/Xokleng.

Feitos esses diálogos com o grupo, as fontes de produção e análise de dados reuniram os RP, DP, Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) e documentário (DOC), sobre os quais nos deteremos na sequência do texto.

RELATOS PEDAGÓGICOS - SISTEMATIZANDO PRÁTICAS

Os RP foram produzidos seguindo-se um roteiro de questões elaborado e aprovado previamente pelo grupo e que tinha como objetivo registrar práticas e formas de organização das atividades que integram o currículo específico, intercultural, diferenciado, bilíngue e comunitário da EIEB Vanhecu Patté. O roteiro foi pensado para ajudar a elaboração dos relatos, não se configurando, todavia, em esquema rígido, podendo cada participante aprofundar mais um aspecto do que outro e acrescentar outros que considerasse pertinente. Considerando a oralidade como aspecto cultural marcante para essa comunidade indígena, o grupo acordou que os RP seriam produzidos por meio da gravação de som em encontros dialogados entre a pesquisadora e cada participante individualmente, para ser, posteriormente, transcritos. Foram esses relatos que depois serviram de base para o projeto de formação continuada já descrito acima.

Considerando a flexibilidade em relação ao roteiro produzido, podemos relacioná-lo com a técnica de entrevistas semiestruturadas, estabelecendo um diálogo durante o qual “as perguntas são normalmente especificadas, mas o entrevistador [e o entrevistado] está mais livre para ir além das respostas de uma maneira que pareceria prejudicial para as metas de padronização e comparabilidade.” (May, 2004MAY, T. Pesquisa Social: questões, métodos e processos. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2004., p. 148)

A participação nessa etapa foi voluntária e decidida em reunião pedagógica realizada na escola. Dos então 21 professores/as, 13 disponibilizaram-se a participar. Os encontros foram realizados em 13 e 14 de dezembro de 2017, quando as atividades com os alunos na escola já se haviam encerrado e os professores estavam fechando notas e entregando diários. Cada participante, a seu tempo, fez o seu relato em diálogos que variaram de 18 minutos a 1 hora e 14 minutos. A maioria ficou em torno de 35 minutos. Ficou acordado que cada diálogo seria transcrito e, após essa transcrição, ele seria revisado e validado com cada participante, sendo possível, no momento da validação, alterar ou acrescentar informações se necessário.

O trabalho de transcrição foi realizado em janeiro de 2018, e a validação com os participantes foi feita na primeira semana de fevereiro de 2018. Como ocorre em quase todo início de ano, houve mudança de professores na escola, pois estes são contratados temporariamente pelo Governo do Estado. No momento da validação dos diálogos, três participantes haviam saído da escola e se mudado de aldeia. Como não houve validação das informações, essas contribuições não integraram o dossiê produzido na formação continuada. Além desses três que haviam se mudado, o professor da língua guarani, que trabalhava com algumas crianças dessa etnia que frequentam a escola na Aldeia Bugio, não havia retornado e não havia certeza da sua permanência. Assim, das 13 gravações transcritas, nove foram validadas.

Durante a transcrição e no momento da leitura em conjunto com cada participante para a validação do conteúdo, dois aspectos ficaram evidentes. O primeiro foi que a presença de anciões, anciãs, sábias e sábios era um diferencial importante para a forma como a escola se organizava em torno dos conhecimentos da história, cultura e língua indígenas. Foi unânime a percepção de que seria necessário conversar também com essas pessoas. O segundo foi que havia uma riqueza muito grande de informações presente nas transcrições, porém seria necessário organizar o texto já que a transcrição continha várias repetições e “vícios” próprios e comuns na linguagem oral. Isso motivou o grupo a participar da oficina de produção textual viabilizada pelo projeto de extensão já mencionado, o que resultou no dossiê de vivências pedagógicas.

No dia do primeiro encontro dessa oficina, discutimos em grupo a conversa com os anciões e anciãs. Partiu do corpo docente a indicação de uma roda de conversa na Casa do Artesanato, lugar onde os anciões e anciãs costumam se reunir em volta do fogo, partilhar alimentos, produzir artesanato e contar histórias. Organizamos um encontro no dia 1º de março de 2018 com um grupo pequeno de anciões para apresentar a proposta, que incluía gravar a roda em vídeo, produzindo um DOC para a escola. A roda seria mediada pela pesquisadora, que faria algumas perguntas sobre a história da fundação da Aldeia Bugio e a presença da escola nessa comunidade. Com a anuência, o próprio grupo de anciões, com o apoio dos professores da escola, comprometeu-se a ampliar a roda, convidando mais pessoas. Marcamos o segundo encontro para o dia 15 de março, no período matutino.

O grupo de participantes indígenas aumentou em relação ao primeiro encontro. Além dos que estavam presentes, fomos informados de que um dos fundadores da Aldeia Bugio e a sua esposa, Sr. Ivo Clendo e Dona Coctá C. Clendo, gostariam de participar, porém a idade avançada e a saúde, naquele momento, dificultavam a permanência de ambos fora de casa por muito tempo. Por esse motivo, combinamos de fazer uma gravação na residência deles assim que se encerrasse a atividade na Casa do Artesanato. Essa organização resultou em duas filmagens, uma com duração em torno de 1 hora e 30 minutos e a outra com 56 minutos. O título escolhido pelo grupo de professores para o DOC foi Memórias Laklãnõ/Xokleng: saberes e resistências da e na Aldeia Bugio - Parte 1 e Parte 2. Com a permissão da escola, o documentário foi transcrito e o texto foi incorporado ao Dossiê Pedagógico e utilizado como fonte de dados para a pesquisa.

Todas as (re)definições que integram o relatório final da pesquisa, sob a anuência da escola e do corpo docente, vêm ao encontro do que apontamos como uma pesquisa que participa, é orientada e está a serviço da/pela própria comunidade (Brandão, 2001BRANDÃO, C. R. (org.). Repensando a pesquisa participante. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 2001.).

PAPÉIS QUE REVELAM HISTÓRIAS

Concomitantemente a todo o movimento e trabalho de elaboração dos RP e de transcrição do DOC que culminaram no dossiê, fomos buscando DP com os quais pudéssemos dialogar e que trouxessem os registros dos processos e das práticas relatadas pelo corpo docente. Professores e professoras da escola contribuíram também para essa etapa ao disponibilizarem o que havia no arquivo da escola em relação a projetos e planejamentos de eventos e de aulas que haviam sido mencionados nos encontros dialogados como práticas entre os anos de 2015 e 2017.

Além dos documentos selecionados e disponibilizados pela escola, integraram a análise documental os TCC produzidos pela primeira turma que se formou no curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica, ofertado pela UFSC em 2015. Foram selecionados os TCC elaborados por estudantes indígenas da etnia Laklãnõ/Xokleng e realizados especificamente na Aldeia Bugio. Compreendemos que a utilização desses TCC ampliou a participação e fortaleceu a presença das percepções da comunidade indígena sobre a sua realidade nesta pesquisa.

Completa os documentos analisados o relatório produzido pelo projeto Ação e Saberes Indígenas na Escola, também coordenado pela UFSC, selecionando-se desse material especificamente as ações realizadas com a comunidade indígena Laklãnõ/Xokleng.

Os documentos selecionados para a pesquisa não foram “[...] tratados simplesmente como fonte de informação, como recurso, mas também como ‘produtos sociais’” (Amado; Ferreira, 2013AMADO, J.; FERREIRA, S. Documentos pessoais (e não pessoais). In: AMADO, J. (org.). Manual de investigação qualitativa em educação. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2013, p. 275-298., p. 277). O objetivo da análise documental foi verificar como são elaborados os registros das práticas descritas nos encontros dialogados, considerando que uma das vantagens desse tipo de análise é que o pesquisador, pelo menos em parte, não exerce influência por meio da sua presença em relação ao dado, como pode ocorrer com mais frequência em entrevistas ou observações. Todavia, durante as análises tivemos sempre em consideração que:

Se, efetivamente, a análise documental elimina em parte a dimensão da influência, dificilmente mensurável, do pesquisador sobre o sujeito, não é menos verdade que o documento constitui um instrumento que o pesquisador não domina. A informação, aqui, circula em sentido único; pois, embora tagarela, o documento permanece surdo, e o pesquisador não pode dele exigir precisões suplementares. (Cellard, 2010CELLARD, A. A análise documental. In: POUPART, J.; DESLAURIERS, J-P.; GROULX, L-H.; LAPERRIÈRE, A.; MAYER, R.; PIRES, A. P.; JACCOUD, M.; CELLARD, A.; HOULE, G.; GIORGI, A. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 295-316., p. 295-296)

Por documento entendemos todo e qualquer texto escrito e registrado em papel de fontes primárias ou secundárias, observando que “distinguem-se, geralmente, as fontes ‘primárias’, produzidas por testemunhas diretas do fato, das fontes ‘secundárias’, que provêm de pessoas que não participaram dele, mas que o reproduziram posteriormente” (Cellard, 2010CELLARD, A. A análise documental. In: POUPART, J.; DESLAURIERS, J-P.; GROULX, L-H.; LAPERRIÈRE, A.; MAYER, R.; PIRES, A. P.; JACCOUD, M.; CELLARD, A.; HOULE, G.; GIORGI, A. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 295-316., p. 297, em nota de rodapé). Essas fontes podem ser de natureza pública ou privada, arquivadas ou não. Os documentos arquivados são os que se encontram sob a guarda de um depositário, como no caso de arquivos de governos, de escolas, de natureza jurídica (nestes casos, arquivos públicos) e de documentos de instituições não governamentais como sindicatos, empresas etc. (nestes casos, arquivos privados). Entre os documentos não arquivados, também se faz distinção entre os de domínio público, como jornais, revistas, folhetos de propaganda etc., e os de domínio privado, que se constituem em documentos pessoais como diários, cartas, documentos de família etc. (Cellard, 2010CELLARD, A. A análise documental. In: POUPART, J.; DESLAURIERS, J-P.; GROULX, L-H.; LAPERRIÈRE, A.; MAYER, R.; PIRES, A. P.; JACCOUD, M.; CELLARD, A.; HOULE, G.; GIORGI, A. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 295-316.).

Os documentos analisados na pesquisa eram de natureza pública e encontravam-se arquivados. Estavam sob o domínio institucional da EIEB Vanhecu Patté ou disponíveis na plataforma online da UFSC, como os TCC da Licenciatura Intercultural Indígena, ou ainda acessíveis para consulta, a exemplo do relatório produzido com base no projeto Ação e Saberes Indígenas, que, no início de 2018, estava exposto no Museu de Arqueologia e Etnologia da UFSC.

Para a realização da análise preliminar que incluía a seleção dos documentos, consideramos que “[...] é impossível transformar um documento; é preciso aceitá-lo tal como ele se apresenta, tão incompleto, parcial ou impreciso que seja” (Cellard, 2010CELLARD, A. A análise documental. In: POUPART, J.; DESLAURIERS, J-P.; GROULX, L-H.; LAPERRIÈRE, A.; MAYER, R.; PIRES, A. P.; JACCOUD, M.; CELLARD, A.; HOULE, G.; GIORGI, A. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 295-316., p. 299). Isso significa que mesmo os documentos à primeira vista e aparentemente com pouco conteúdo, no cômputo geral da análise podem revelar detalhes ou confirmar impressões do pesquisador acerca do problema investigado. Essa percepção revela-se particularmente importante no trabalho com populações cuja tradição é marcadamente oral, contendo, portanto, poucos registros escritos. Ressaltamos que os documentos selecionados e aceitos na sua condição original para a pesquisa passaram por uma avaliação crítica, compondo um quadro analítico elaborado com base nas indicações de Amado e Ferreira (2013AMADO, J.; FERREIRA, S. Documentos pessoais (e não pessoais). In: AMADO, J. (org.). Manual de investigação qualitativa em educação. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2013, p. 275-298.) e Cellard (2010CELLARD, A. A análise documental. In: POUPART, J.; DESLAURIERS, J-P.; GROULX, L-H.; LAPERRIÈRE, A.; MAYER, R.; PIRES, A. P.; JACCOUD, M.; CELLARD, A.; HOULE, G.; GIORGI, A. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 295-316.). Diante das orientações desses autores, foram consideradas sete dimensões para a análise documental, conforme explicitado no Quadro 1.

Quadro 1 -
Análise documental preliminar.

Com relação aos documentos, ressaltamos que, a exemplo de Cellard (2010CELLARD, A. A análise documental. In: POUPART, J.; DESLAURIERS, J-P.; GROULX, L-H.; LAPERRIÈRE, A.; MAYER, R.; PIRES, A. P.; JACCOUD, M.; CELLARD, A.; HOULE, G.; GIORGI, A. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 295-316., p. 305), “privilegiamos, aqui, no âmbito de uma pesquisa qualitativa, a qualidade e a diversidade, mas não necessariamente a quantidade”. Assim, a seleção dos documentos pautou-se pelos critérios de credibilidade, confiabilidade, proximidade e profundidade, entendendo que estes é que conferem qualidade à análise sobre a qual nos deteremos no item a seguir.

DIALOGANDO COM OS REGISTROS - AUSCULTAR, SISTEMATIZAR E ANALISAR

Para dialogarmos com os registros em uma perspectiva dialógica, as diversas leituras buscaram identificar temas que respondessem à indagação: “em torno do que vamos dialogar?” Esse questionamento caminhou junto da convicção de que o resultado da análise deveria permitir a “[...] devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que este lhe entregou [...]”, mas que não apresentavam uma articulação evidente entre si (Freire, 1987FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987., p. 84). Essa forma de ler deu-se à medida que as informações, dados e registros foram sendo buscados e/ou produzidos com os participantes e na seleção dos documentos. A análise de conteúdo, feita com base em um processo inferencial, buscou desvelar o que não é possível perceber imediatamente quando se observa o contexto ou mesmo os dados isoladamente. Assim,

[...] o aspecto mais importante da análise de conteúdo é o facto de ela permitir, além de uma rigorosa e objetiva representação dos conteúdos ou elementos das mensagens (discursos, entrevista, texto, artigo, etc.) através da sua codificação e classificação por categorias e subcategorias, o avanço (fecundo, sistemático, verificável e até certo ponto replicável) no sentido da captação do seu sentido pleno (à causa de inferências interpretativas derivadas ou inspiradas nos quadros de referência teóricos do investigador), por zonas menos evidentes constituídas pelo referido “contexto” ou “condições” e produção. (Amado, Costa e Crusoé, 2013AMADO, J.; COSTA, A. P.; CRUSOÉ, N. A técnica da análise de conteúdo. In: AMADO, J. (org.). Manual de investigação qualitativa em educação. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2013, p. 301-351., p. 304-305)

Para analisar o conteúdo de todos os registros que incluíram os RP e a transcrição do DOC que compunha o dossiê e documentos de arquivo público, pautamo-nos, inicialmente, pela técnica de indução para a construção do universo temático de análise, compreendido como conjunto de temas em interação (Freire, 1987FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.). Para tanto, foram feitas leituras exaustivas de todo o material, ou seja, das unidades de registro, primeiramente de forma mais rudimentar para conhecer o contexto geral de todos os registros obtidos. Em seguida, de forma aprofundada quando colocamos todos os dados e registros em diálogo, buscando destacar a presença de elementos e identificar princípios que nos ajudassem a responder às perguntas de pesquisa.

Especificamente para sistematizar e ordenar os relatos pedagógicos, nove no total, atribuímos para cada um uma cor diferente. Em seguida, retomamos as questões guia dos encontros dialogados e destacamos as palavras ou expressões-chave, ou seja, o tema principal em torno do qual os relatos pedagógicos pudessem dialogar entre si, conosco e com a fundamentação teórica. A ordenação, juntando todos os relatos conforme as questões, possibilitou analisar todos os registros relacionados a cada um dos temas principais de forma vertical, e as diferentes cores permitiam tanto manter a identidade de cada sujeito na análise vertical como, horizontalmente, localizar e analisar as respostas de um mesmo sujeito ao guia de questões completo. A Figura 1 exemplifica o exercício para destacar o tema principal das duas primeiras questões.

Figura 1 -
Sistematização dos relatos pedagógicos.

Após a sistematização vertical dos RP, com a identificação dos temas principais e dos documentos com base no Quadro 1 (após estar complementado com as informações), e da transcrição do DOC, passamos para leituras mais atentas. Foi então possível destacar partes dos textos e fazer anotações paralelas que se converteram em três listas (DOC, RP e DP) de elementos, fatos e princípios em relação ao objetivo da investigação presentes nos registros.

Da análise comparativa dessas listas, identificamos a possibilidade de trabalhar com quatro universos temáticos de análise (ver Quadro 2 na sequência do texto). Cada universo agregava temas geradores de análise, cuja ideia geral se expressava resumidamente por expressões ou dimensões da realidade (Freire, 1987FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.). Durante esse processo de identificação do universo temático de análise, tomamos por base a orientação para a análise de conteúdo sobre categorização, a qual explica que:

Quadro 2 -
Universos temáticos de análise.

A palavra-chave ou a expressão mais ampla que traduz a categoria deve ser escolhida de modo a refletir, com exaustividade e precisão, o sentido das unidades de registro e dos indicadores em que tais unidades se traduzem. A elaboração de um subconjunto de categorias (subcategorias) pode ser um recurso para explicitar melhor todo o sentido da categoria. A categoria terá, assim, um sentido mais amplo do que o das subcategorias, obrigando a que estas fiquem subordinadas àquela e que a informação que estas contêm seja fundamental para um melhor entendimento da categoria. (Amado, Costa e Crusoé, 2013AMADO, J.; COSTA, A. P.; CRUSOÉ, N. A técnica da análise de conteúdo. In: AMADO, J. (org.). Manual de investigação qualitativa em educação. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2013, p. 301-351., p. 333, grifo no original)

Não utilizamos a palavra “categoria” e os seus derivados, pois elas expressam conceitos como divisão, classe ou posição na hierarquia, que não condizem com a busca que nos propusemos a fazer durante a análise. Diferente disso, a palavra “universo”, entre os seus significados, pode representar um “[...] conjunto de partes harmoniosamente reunidas” (Houaiss, Villar e Frando, 2010HOUAISS, A.; VILLAR, M. S.; FRANCO, F. M. M. Minidicionário Houaiss da língua portuguesa. 4. ed. rev. e aumentada. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010., p. 784). Por isso, recorremos a Freire (1987FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.), cujo emprego da palavra “universo” vai ao encontro do conceito apresentado.

Na ação dialógica proposta por Freire (1987FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.), segundo a qual o diálogo tem sempre a intencionalidade de impulsionar ações reflexivas, é possível identificar em dada realidade diferentes universos temáticos de análise, que agregam temas geradores construídos por expressões e/ou dimensões da realidade. Freire (1987FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987., p. 93) esclarece que “estes temas chamam geradores porque, qualquer que seja a natureza de sua compreensão, como a ação por eles provocada, contêm em si a possibilidade de desdobrar-se em outros tantos temas que, por sua vez, provocam novas tarefas que devem ser cumpridas.”

Assim, mesmo que sistematizados e apresentados no quadro que orientou a análise, os temas não são estáticos ou independentes entre si, sendo possível colocá-los em diálogo. O Quadro 2 traz os quatro universos temáticos identificados na sistematização dos registros e dos dados, assim como os seus respectivos temas geradores e expressões e/ou dimensões da realidade.

Cada um desses universos temáticos, os seus temas geradores e expressões ou dimensões da realidade trouxeram elementos e princípios revelados ao longo da análise e construíram respostas às questões de pesquisa. Chegar a eles exigiu um exercício constante de (re)aproximação e afastamento, de reparar e sentir, de introspecção e silêncios para que fosse possível perceber onde eles estavam, o que os encobria e como trazê-los à tona. Identificados os elementos e destacados os seus princípios, chegamos à etapa final da pesquisa.

O tempo completo da pesquisa, desde a definição do tema, contatos iniciais, levantamento, produção, análise de dados, registros e conclusão, ficou em torno de 30 meses, em períodos intercalados e com maior concentração no segundo semestre de 2017 e no primeiro de 2018. Durante todo percurso, a pesquisa colocou-se como instrumento de visibilização, reflexão e apoio coletivo para e com o povo Laklãnõ/Xokleng. Ou seja, para além de “[...] conhecer para explicar, a pesquisa [pretendeu] compreender para servir” (Brandão, 2001BRANDÃO, C. R. (org.). Repensando a pesquisa participante. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 2001., p. 12). Dessa forma, esteve a e em serviço desse povo como possibilidade a mais para ampliar e ocupar tempos/ espaços/ lugares sociais e políticos e romper com processos de colonização e subalternização a que ele tem sido submetido sistemática e historicamente.

Em coerência com o acima exposto e com os procedimentos de uma pesquisa participante (Brandão, 2001BRANDÃO, C. R. (org.). Repensando a pesquisa participante. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 2001.), antes de finalizarmos o texto, os resultados foram apresentados aos professores da EIEB Vanhecu Patté. Fomos à escola no dia 28 de agosto de 2018 e, como não havia possibilidade de reunir toda a equipe docente para uma apresentação, conversamos individualmente com cada professor e professora sobre a sua participação na construção do trabalho e de que forma ela contribuiu para chegarmos aos resultados. Além dos professores, foi possível apresentar o texto a dois dos anciões que participaram do DOC. O que percebemos nesse diálogo foi que cada um e cada uma reconheceu a si e à comunidade, ou seja, os seus modos de ser, estar e conviver estavam presentes no texto como um todo. Foi pautado nesse sentimento que cada participante optou por ter a sua identificação nominal, abrindo mão do anonimato, em todas as citações presentes no texto final do trabalho. As suas identidades estão reveladas porque são autores, sujeitos pesquisantes que se reconheceram, se alegraram e se orgulharam com o resultado.

CONCLUSÃO

A partilha desta experiência de construção epistemetodológica, reproduzindo neste texto muito - e ao mesmo tempo somente uma parte - do que está presente na pesquisa completa que integra a tese, foi uma tarefa que se colocou como necessária dadas as peculiaridades de percurso, vivenciadas temporalmente, mas inconclusas e em contínuos processos de reconstrução. Socializar a experiência de construção da pesquisa pode contribuir para que pesquisadores e pesquisadoras que se propuserem a desenvolver um trabalho de forma participativa não tenham receio de percorrer um caminho que se constrói a cada passo e em colaboração, união, organização coletivas para, no fim, produzir uma síntese entre outras sínteses possíveis - ou seja, com os olhares, leituras e critérios definidos pelo grupo.

Este caminho foi guiado pela perspectiva da interculturalidade crítica e decolonialidade, buscando manter vigilância constante em relação às armadilhas que as ações antidialógicas colocam no nosso cotidiano. São ações coloniais que encobrem problemas e naturalizam fenômenos historicamente construídos. Construir percursos que considerem esses aspectos faz-se devir em desafio e compromisso entre e com pesquisadores que intentam conhecer, aprender e apreender caminhando com os sujeitos partícipes e artífices da e na vida contemporânea.

Como mencionado, o encontro com o povo Laklãnõ/Xokleng não se deu com o intuito de desenvolver a pesquisa em um primeiro momento. Isso aconteceu no decorrer do encontro. Um encontro que também não se encerrou com a finalização da pesquisa e que continua polinizando ações dialógicas como seminários e palestras em eventos, programas de formação de professoras da rede de educação básica em diferentes munícipios da região, levando a temática indígena e o contexto do povo para diversos espaços educacionais. Sempre que possível, pessoas da comunidade indígena, principalmente professores, participam dessas formações e são os responsáveis pelas oficinas e encontros de formação.

Também fruto dessa relação e do conjunto de ações que vai além desta pesquisa, a comunidade conquistou um curso de Pedagogia Indígena específico para o povo Xokleng, que pretende formar 45 professores indígenas para atuar nas escolas da TII ou mesmo fora dela. O curso é ofertado pela Universidade Regional de Blumenau (FURB) em parceria com o Governo do Estado de Santa Catarina, e seu projeto pedagógico foi escrito com a presença de professores e lideranças indígenas. Todas essas ações têm sido possíveis graças à relação de confiança, parceria, respeito e reciprocidade que vem sendo construída e solidificada ao longo do tempo entre a universidade em questão e o povo indígena Laklãnõ/Xokleng.

Seguimos, portanto, participando e buscando construir possibilidades para e com populações cujo contexto tem sido, majoritariamente, de violação de direitos e que, mesmo assim, seguem resistindo e lutando. Não é simples, também não é fácil, mas se mostra possível, viável e necessário.

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  • Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    05 Fev 2021
  • Aceito
    11 Nov 2021
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