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Capitães da Areia de Jorge Amado e o “discurso herético” de Pierre Bourdieu

Capitães da Areia de Jorge Amado y el “discurso herético” de Pierre Bourdieu

RESUMO

Mobilizar lentes interpretativas para mostrar quanto a relação com a literatura pode ser frutífera é o objetivo deste artigo. A intenção é entrelaçar as sensibilidades (literária e científica) de dois intelectuais: Jorge Amado e Pierre Bourdieu. A obra Capitães da Areia (1937) foi a referência principal para levar a efeito este exercício analítico, num momento em que se observa o recrudescimento de questões sociais, culturais, morais, doutrinárias, que marcaram o século passado. Além de desmistificar o “discurso performativo”, posto em prática pelas autoridades do Estado com o apoio dos meios de comunicação, Jorge Amado constrói um “discurso herético”. Ao apresentar uma espécie de retrato (sociológico) de crianças submetidas ao racismo social, Capitães da Areia é a explicitação da vulnerabilidade dessas crianças, que envolve o abandono, as ligações familiares, o efeito de estigmatização, o desenraizamento, o analfabetismo, a precocidade sexual e a virilidade, o prazer do risco.

Palavras-chave:
Jorge Amado; Capitães da Areia; Pierre Bourdieu; Discurso herético

RESUMEN

Este artículo moviliza las lentes interpretativas para mostrar lo fructífera que puede ser la relación con la literatura. La intención es entrelazar las sensibilidades (literarias y científicas) de dos intelectuales que nos dejaron hace dos décadas: Jorge Amado y Pierre Bourdieu. Capitães da Areia (1937) fue la principal referencia para realizar este ejercicio analítico, en un momento en el que se observa el auge de las cuestiones sociales, culturales, morales y doctrinales que marcaron el siglo pasado. Además de desmitificar el “discurso performativo” puesto en práctica por las autoridades estatales con el apoyo de los medios de comunicación, Amado construye un “discurso herético”. Al presentar una especie de retrato de los niños sometidos al racismo social, Capitães da Areia explicita la vulnerabilidad de estos niños implica el abandono, los vínculos familiares, el efecto de la estigmatización, el desarraigo, el analfabetismo, la precocidad y virilidad sexual, el placer del riesgo.

Palabras clave:
Jorge Amado; Capitães da Areia; Pierre Bourdieu; Discurso herético

ABSTRACT

The aim of this article is to mobilize interpretative lenses to show how fruitful the relationship with literature can be. The intention is to interweave the (literary and scientific) sensitivities of two intellectuals who left us two decades ago: Jorge Amado and Pierre Bourdieu. The work Capitães da Areia (1937) was the main reference to carry out this analytical exercise, at a moment in which we can observe the upsurge of social, cultural, moral, and doctrinal questions that marked the last century. Besides demystifying the “performative discourse” put into practice by State authorities with the support of the media, Jorge Amado constructs a “heretical discourse”. By presenting a kind of (sociological) portrait of children subjected to social racism, Capitães da Areia is the explicitation of the vulnerability of these children, which involves abandonment, family ties, stigmatization, rootlessness, illiteracy, sexual precocity and virility, the pleasure of risk.

Keywords:
Jorge Amado; Capitães da Areia; Pierre Bourdieu; Heretical discourse

Eu desejo que os escritores, os artistas, os filósofos e os eruditos possam se fazer ouvir diretamente em todos os domínios da vida pública para os quais são competentes. Eu acredito que todos teriam muito a ganhar se a lógica da vida intelectual, a da argumentação e da refutação, se estendesse para a vida pública. Pierre Bourdieu (1992BOURDIEU, Pierre. Les règles de l’art: Genèse et structure du champ littéraire. Paris: Éditions du Seuil, 1992., p. 352)

Inspirada pelo aforismo atribuído a Bernard de Chartres (-1130) - Somos como anões sobre os ombros de gigantes, pois podemos ver mais coisas do que eles e mais distantes, não devido à acuidade da nossa vista ou à altura do nosso corpo, mas porque somos mantidos e elevados pelas suas estaturas1 1 Nanos gigantum humeris insidentes. Aforismo que também teria sido empregado por Jean de Salisbury (1115-1180) em sua obra Metalogicon (de 1159). - decidi investir minha energia reflexiva na releitura da obra de um escritor brasileiro tendo como referência a criticidade de um sociólogo francês. Refiro-me ao “gigante baiano” Jorge Leal Amado de Faria (1912-2001) e ao “gigante francês” Pierre Félix Bourdieu (1930-2002), que desenvolveram seus trabalhos literários e científicos durante o século XX. Eles nos deixaram há duas décadas, mas suas incomensuráveis heranças permanecem para que possamos compreender processos de dominação e reprodução social que atravessam os tempos.

Jorge Amado, um dos ícones da literatura brasileira, foi escritor, jornalista e político. Seu reconhecimento nacional e internacional deve-se às quase 40 obras, de diferentes gêneros literários, publicadas e traduzidas para cerca de 50 idiomas. Algumas delas foram adaptadas para o cinema, o teatro, a televisão e histórias em quadrinhos. Além dos diversos títulos honoríficos que recebeu de instituições do país e de países estrangeiros, Jorge Amado foi o quinto ocupante da Cadeira 23 da Academias Brasileira de Letras, tendo sido eleito em 6 de abril de 1961 e se tornado um dos seus “imortais”.

Pierre Bourdieu, por sua vez, dedicou-se à análise de duas obras canônicas, pertencentes ao campo literário e ao campo artístico. Sua intenção era, além de testar seu arsenal conceitual, abrir novas perspectivas para a análise sociológica. O romance A educação sentimental de Gustave Flaubert (1821-1880) permitiu-lhe edificar a noção de gênese e estrutura do campo literário.2 2 Esse denso estudo foi publicado na obra Les règles de l’art. Genèse et structure du champ littéraire (1992). Para Bourdieu, o projeto estético desse romancista explicita-se no momento em que a autonomia dos intelectuais se encontra em fase crítica.

Visando caracterizar a noção de “revolução simbólica”, fruto do chamado “efeito Manet”, o qual desencadeia rupturas epistemológica e social, Bourdieu analisa algumas pinturas de Édouard Manet (1832-1883). Ele considera que estas levam ao nascimento do campo artístico. Objeto dos cursos que ofereceu no Collège de France entre 1998 e 2000,3 3 Esses cursos foram reunidos por colaboradores seus e estão disponíveis (Bourdieu, 2013). a tese da revolução simbólica coloca-se no quadro de uma espécie de sociologia histórica do movimento impressionista.

O desafio a que me proponho aqui consiste portanto em enlaçar os olhares críticos desses dois intelectuais,4 4 Bourdieu promove, em diferentes textos, uma reflexão sobre a noção de intelectual; é a esta reflexão que recorro aqui. Além dos próprios textos do autor, ver, a título de aprofundamento, Valle (2018). tendo como orientação metodológica a análise de conteúdo, nos termos elaborados por Bardin (1977BARDIN, Lorence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.). Tecidos minuciosamente ao longo de trajetórias geográfica e culturalmente distintas e distantes, trajetórias percorridas por sensibilidades enraizadas em contextos históricos e em espaços sociais, econômicos, políticos e culturais diversos, seus olhares revelam um forte engajamento político. Para Jorge Amado (1961AMADO, Jorge. Discurso de posse. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1961. Disponível em: Disponível em: https://www.academia.org.br/academicos/jorge-amado/discurso-de-posse . Acesso em: 25 set. 2019.
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, n.p.), por exemplo, “[...] a própria condição de escritor é uma condição política, tão politicamente poderosa que ultrapassa a própria atuação imediata de escritor”.5 5 O compromisso político do escritor foi explicitado no Discurso de posse junto à Academia Brasileira de Letras (1961). Já para Pierre Bourdieu (1998aBOURDIEU, Pierre. Contre-feux: Propos pour servir à la résistance contre l’invasion neo-libérale. Paris: Raisons d’Agir, 1998a., p. 16), “[...] não há verdadeira democracia, sem um verdadeiro contrapoder crítico”.

Assim, para levar a efeito esta reflexão, após proceder a um levantamento, certamente não exaustivo, das produções que mobilizaram o pensamento de Pierre Bourdieu para analisar a obra de Jorge Amado, decidi pautar-me numa das suas obras: Capitães da Areia6 6 Este romance tem sido apresentado como referência literária, sendo estudado no Ensino Médio e indicado em vestibulares de diversas instituições universitárias brasileiras. (1937/2003); obra canonizada, reconhecida pela sua densidade crítica e potência política, como ilustra a citação transcrita a seguir.7 7 Esta nota aparece na contracapa da 110ª edição, publicada no Rio de Janeiro pela Editora Record, em 2003.

Incinerados vários livros considerados propagandistas do Credo Vermelho: Aos 19 dias do mês de Novembro do ano de 1937, em frente à Escola de Aprendizes de Marinheiros, nesta cidade de Salvador e em presença dos senhores membros da comissão de busca e apreensões de livros, nomeada por ofício número seis, da então Comissão Executora do Estado de Guerra, composta pelos senhores [...], foram incinerados por determinação verbal do sr. [...], comandante da Sexta Região Militar, os livros apreendidos e julgados como simpatizantes do credo comunista, a saber: 808 exemplares de Capitães de Areia [...]. (Reportagem publicada no Estado da Bahia, página 3, em 17 de dezembro de 1937).

Capitães da Areia tem há um bom tempo me instigado, e não apenas pelo prazer que um texto dessa envergadura provoca, mas sobretudo porque se apresenta como um verdadeiro laboratório de experimentação sociológica. Sua releitura, num momento em que predomina uma atmosfera bastante repressiva e se observa o recrudescimento de questões sociais, culturais, morais, doutrinárias que, em grande medida, caracterizaram a mentalidade das primeiras décadas do século passado, despertou minha “emoção raciocinada”; sentimento que, segundo Sérgio Miceli (2005MICELI, Sérgio. Introdução. A emoção raciocinada. In: BOURDIEU, Pierre. Esboço de auto-análise. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 7-20.),8 8 Como assinala Miceli (2005, p. 15-16), “Na medida em que o testemunho do autor insta o leitor a rememorar o passado, logo se percebe não haver outra saída senão transformar em busca de si próprio a pulsão alheia”. guiou a reflexividade do intelectual Bourdieu (2004bBOURDIEU, Pierre. Esquisse pour une auto-analyse. Paris: Raisons d’Agir, 2004b.) no processo de elaboração do seu Esquisse pour une auto-analyse.

Evidentemente, não tenho a intenção de acrescentar novos comentários à obra de um autor que tem sido objeto de incontáveis edições e traduções e submetida à apreciação por meio de “binóculos” epistemológicos variados. Minha intenção é tão somente mobilizar lentes interpretativas, arduamente construídas por Pierre Bourdieu, que permitem realizar uma espécie de exercício analítico do mundo (social e/ou psicológico).

Tendo em vista o meu interesse pelo continuum de desigualdades cristalizadas, sua multiplicação, diversificação e ressignificação, o que vislumbro aqui é mostrar que Jorge Amado contrapõe ao “discurso performativo” um “discurso herético”, segundo a definição bourdieusiana, para quem os discursos não são apenas signos a serem decifrados e compreendidos. Eles são signos de autoridade destinados a ser reconhecidos e obedecidos. Enquanto o primeiro visa impor como legítima uma visão dominante, apoiando-se numa eficácia que é “proporcional à autoridade daquele que o anuncia”,9 9 Segundo Bourdieu (1982, p. 141), a fórmula “[...] ‘eu vos autorizo a partir’ somente é eo ipso uma autorização se aquele que a pronuncia está autorizado a autorizar, tem autoridade para autorizar”. o segundo “[...] visa não somente romper com a adesão ao mundo do senso comum professando publicamente a ruptura com a ordem ordinária, mas também produzir um novo senso comum” (Bourdieu, 1982BOURDIEU, Pierre. Ce que parler veux dire: L’économie des échanges linguistiques. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1982., p. 140 e 151).

VEICULANDO UM “DISCURSO PERFORMATIVO”

Antes de iniciar a narrativa das situações experienciadas por mais de cem “jovens bandidos”,10 10 As citações entre aspas, sem a indicação das respectivas páginas, foram retiradas da narrativa (Amado, 2003). A intenção é aproximar o leitor do tom empregado pelo autor. Serão mencionadas apenas as páginas que situam as diferentes partes do texto. “precoces criminosos” entre oito e 16 anos, relatadas em Capitães da Areia, assim nomeados porque fazem do cais “o seu quartel-general”, Jorge Amado explicita o tom crítico que mobilizou - e que o mobilizou - para edificar a trama. É neste tom crítico que reconheço sua construção reflexiva em torno da noção de “discurso herético”, produtor de uma “crítica herética”. Ou seja, trata-se de um trabalho literário de resistência à ortodoxia e ao “discurso performativo”. Segundo Bourdieu (1982BOURDIEU, Pierre. Ce que parler veux dire: L’économie des échanges linguistiques. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1982., p. 154), os dominados estão em parte ligados a essa ordem, uma vez que não conseguem “[...] se constituir em grupo separado, se mobilizar e mobilizar a força que detêm sem colocar em questão as categorias de percepção da ordem social, que, como produto dessa ordem, lhes impõem seu reconhecimento, portanto sua submissão”.

Uma reportagem transcrita, intitulada “Crianças Ladronas”, publicada na página Fatos Policiais do Jornal da Tarde, ilustrada por clichês (um da casa do Comendador, outro de um dos seus momentos de condecoração), traz a público “as aventuras sinistras” de crianças que “se entregaram no verdor dos anos a uma vida criminosa” (p. 3-6).

A matéria jornalística solicita providências do Juiz de Menores e do Chefe de Polícia, diante da urgente necessidade de exterminar esse “bando que vive da rapina”, que, “naturalmente devido ao desprezo dado à sua educação por pais pouco servidos de sentimentos cristãos”, tem aterrorizado a cidade não lhe permitindo dormir “em paz o seu sono tão merecido”. Esse “grupo de meninos assaltantes e ladrões que infestam” na urbe é suficientemente conhecido e já fora denunciado várias vezes, mas, até aquele momento, não haviam encontrado “o local onde escondem o produto dos seus assaltos”.

Após identificar a “malta de jovens bandidos”, assim como o seu “comandante” - “um molecote dos seus 14 anos, que é o mais terrível de todos” -, e antes mesmo de relatar o assalto, a matéria descreve a “bela vivenda” do Comendador José Ferreira, apresentado como um dos “mais abastados e acreditados negociantes”. Beneficiário de um título honorífico que lhe aporta distinção e capital simbólico, como diria Bourdieu, o Comendador reside num palacete “cercado de jardins, na sua arquitetura colonial”, um verdadeiro “remanso de paz e trabalho honesto”, situado no “coração do mais chique bairro da cidade”.

Por volta das três horas da tarde, quando “a cidade abafava de calor”, o jardineiro Ramiro percebeu que alguns “molambos” rondavam a casa, tendo imediatamente afastado “aqueles incômodos visitantes”. Poucos minutos depois, “gritos assustados vindos do interior da residência” chamaram novamente a atenção do jardineiro que, armado “de uma foice”, adentrou a sala de jantar ainda a tempo de ver “um bando de demônios” fugindo pelas janelas, “carregados com objetos de valor”. Dirigindo-se ao jardim, Ramiro espantou-se diante de uma cena inusitada: Raul, neto do Comendador, uma “linda criança” de 11 anos, “na sua inocência” ria para o “malvado” chefe dos Capitães da Areia, reconhecido “devido a um talho que tem no rosto”. Ao se atirar sobre o ladrão, o jardineiro foi surpreendido pela “reação do moleque, que se revelou um mestre nestas brigas”, apunhalando-o no ombro e no braço, “sendo obrigado a largar o criminoso, que fugiu”.

Após reiterar a necessidade de “uma providência que traga para semelhantes malandros um justo castigo” e devolva o sossego aos alarmados e receosos “moradores do aristocrático bairro”, a matéria encerra destacando a “grande coragem” do “pequeno Raul”, um dos “ginasianos mais aplicados do Colégio Antônio Vieira”. Raul disse ter gostado do “terrível chefe dos Capitães da Areia”, pois pareceu-lhe ser “um desses meninos de cinema que fogem de casa para passar aventuras”. Ao mencionar “que tinha uma bicicleta e muitos brinquedos”, o “desalmado chefe” disse ao menino que ele “era um tolo e não sabia o que era brincar”, enquanto ele “tinha a rua e o cais”. A matéria fecha alertando sobre o “delicado problema para a infância que é o cinema” por infundir tanta “ideia errada” sobre a vida.

Como se pode ver, Jorge Amado oferece, com base em um “fato policial” corriqueiro à época e fortemente recorrente, o espelho de um mundo que naturalizou a luta de todos contra todos, tornando-a “[...] destruidora de todos os valores de solidariedade e de humanidade e, às vezes, de uma violência sem frases” (Bourdieu, 1998aBOURDIEU, Pierre. Contre-feux: Propos pour servir à la résistance contre l’invasion neo-libérale. Paris: Raisons d’Agir, 1998a., p. 98). Cercados de todos os lados pela precariedade e pelas ameaças dela derivadas, os poderosos armam-se de um léxico comum e distribuem-no gota a gota, por meio de eufemismos, fazendo uso dos diferentes meios de comunicação. Esse léxico é veiculado em todos os lugares, ao longo do dia, desde que se abre um jornal, se liga uma rádio ou a televisão, produzindo efeitos profundos, capazes de anular as defesas e as disposições subversivas (ibidem).

Assim procede o Jornal da Tarde ao divulgar um discurso performativo que, como vimos, “[...] pretende fazer advir o que ele anuncia no próprio ato de anunciar” (Bourdieu, 1982BOURDIEU, Pierre. Ce que parler veux dire: L’économie des échanges linguistiques. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1982., p. 140). Sua reportagem contribui para promover um verdadeiro “neodarwinismo social”,11 11 Bourdieu (1998a) desenvolve esta noção ao analisar a força da ideologia neoliberal, assinalando que ela repousa sobre a ideia de que o triunfo compete aos “melhores e aos mais brilhantes”. pois, ao dar ênfase aos “dramas individuais” dos poderosos, corrobora uma espécie de higienismo social, estigmatizando os malnascidos e responsabilizando-os pelas suas próprias desgraças.

INSTÂNCIAS DE PODER EM TENSÃO

Como o poder de Estado,12 12 Toda a obra de Bourdieu é atravessada pela noção de poder simbólico. Como não será possível desenvolver aqui esta noção, sugiro ver, especialmente, Bourdieu (2001). comprometido com os dominantes, está permanentemente em disputa, os que ocupam posições de reputação, funções administrativas no alto escalão, por exemplo, precisam assegurar sua legitimidade, sempre à mercê do jogo político (partidário) ou posta em risco pelo prestígio conferido pelo próprio cargo exercido. É o que se observa nas reações à reportagem do Jornal da Tarde. Duas cartas de importantes autoridades são enviadas à redação explicando suas ações e/ou omissões perante o incidente.

A primeira, publicada na primeira página, é do Secretário do Chefe de Polícia e está acompanhada de um clichê do Chefe e de “um vasto comentário elogioso” (p. 7). A carta inicia fazendo referência ao “dr. Chefe de Polícia” e à sua ciência a respeito do assalto à residência do Comendador, realizado por um “bando de crianças delinquentes”, nominadas Capitães da Areia. O Chefe informa à direção do Jornal que a “solução do problema compete antes ao juiz de menores que à polícia”. Esta somente “deve agir em obediência a um pedido do dr. Juiz de menores”. Apesar disso, assegura que serão tomadas todas as providências visando evitar novos atentados e fazer com que os autores “sejam presos para sofrerem o castigo merecido”. Esclarece ainda que, se isso ainda não foi feito, é porque a Polícia “não foi solicitada pelo juiz de menores”.

O teor dessa carta provocou, evidentemente, a reação do Juiz de Menores. Em sua carta à redação do Jornal da Tarde, publicada “com o clichê do respectivo juiz em uma coluna”, acompanhada de “um pequeno comentário elogioso” (p. 8-9), começa fazendo alusão ao “espinhoso cargo” que ocupa e aos seus “raros momentos de lazer” dadas as suas “múltiplas e variadas preocupações”. O Juiz esclarece que, ao folhear naquela manhã o “brilhante vespertino”, tomou conhecimento “de uma epístola do infatigável doutor Chefe de Polícia do Estado”, explicando por que ainda não havia intensificado “a meritória campanha contra os menores delinquentes que infestam” a cidade. “A bem da verdade”, verdade que afirmou colocar como farol para iluminar a estrada da sua vida, sentiu-se obrigado a “declarar que a desculpa não procede”. Não compete ao juizado “perseguir e prender os menores delinquentes”, mas tão somente “designar o local onde devem cumprir pena” e “velar pelo seu destino posterior”. O Juiz salienta também que poderá ser encontrado onde o dever o chama, pois, “em 50 anos de vida impoluta”, jamais deixou de cumpri-lo.

Sua missiva, com forte apelo à ideologia da competência, encerra informando ter mandado, nos últimos meses, vários “delinquentes” para o Reformatório, não podendo ser responsabilizado pelas suas fugas. Por não se impressionarem “com o exemplo de trabalho que encontram naquele estabelecimento de educação”, tornam-se ainda “mais perversos” e abandonam “um ambiente onde se respiram paz e trabalho e onde são tratados com o maior carinho”. Um problema que, na sua opinião, somente os psicólogos conseguem resolver.

Apesar da tensão entre as autoridades da polícia e do executivo, revelada nas cartas endereçadas ao Jornal, no que concerne sobretudo às competências funcionais, o que se observa é a predominância de um discurso performativo que se materializa nas diretivas, ordens, prescrições, relatórios de polícia. Para Bourdieu (2004aBOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004a., p. 164), esse discurso “[...] impõe um ponto de vista, o da instituição [...]”, determinando “[...] o que as pessoas têm de fazer, considerando o que elas são”. Ou seja, a narrativa jornalística reproduz, como revela Jorge Amado, o enunciado performativo respaldado no “ponto de vista oficial”.

ESPAÇO PARA O CONTRADITÓRIO

O discurso oficial (performativo), no que se refere aos Capitães da Areia, atua para legitimar a violência estrutural que põe em prática. A mídia, por sua vez, como nos ensina Bourdieu (1998aBOURDIEU, Pierre. Contre-feux: Propos pour servir à la résistance contre l’invasion neo-libérale. Paris: Raisons d’Agir, 1998a., p. 88), apresenta-se como “[...] um fator de despolitização que age prioritariamente sobre as frações mais despolitizadas do público, sobre as mulheres mais que sobre os homens, sobre os menos instruídos mais que sobre os mais instruídos, sobre os mais pobres mais que sobre os mais ricos”; mas essa ação precisa ser dissimulada. Por essa razão, empenha-se na preservação da credibilidade e procura se resguardar de suspeitas que podem indicar parcialidade. Esse foi o procedimento adotado pelo Jornal da Tarde, ao publicar, na quinta página, entre os anúncios, sem clichês e sem comentários, a carta de uma mãe endereçada à redação (p. 10-11).

Maria Ricardina, costureira, inicia sua carta pedindo desculpas pelos erros e pela letra, por não ser “costureira nestas coisas de escrever”. Ela viu uma notícia sobre os furtos dos Capitães da Areia, falando sobre o “tal reformatório” para onde o “doutor dos menores” manda os filhos dos pobres e deseja “botar os pontos nos ii”. Ela afirma ter testemunhado pessoalmente o que ocorre no Reformatório, porque o seu filho esteve naquele “inferno em vida” durante seis meses e se não o tivesse tirado de lá não sabe se “viveria mais seis meses”. Para esta mãe, se as crianças não se emendam é porque “o menos que acontece [...] é apanhar duas e três vezes por dia”. Além disso, “o diretor de lá vive caindo de bêbado e gosta de ver o chicote cantar nas costas” dos que têm a desgraça de “cair nas mãos daqueles guardas sem alma”. É por isso que existem os Capitães da Areia, afirma ela, que prefere ver o filho “no meio deles que no reformatório”.

Maria Ricardina encerra sua missiva sugerindo que o Jornal mande em segredo uma pessoa no Reformatório para “ver que comida eles comem, o trabalho de escravo que têm [...], e as surras que tomam”. Ela insiste para que a visita não seja anunciada, pois “se souberem vira um céu aberto”. Se querem ver “uma coisa de cortar o coração”, precisam chegar “de repente”. Ela também sugere que vão conversar com o padre José Pedro, que “foi capelão de lá e viu tudo isso”.

Citado pela mãe, o padre José Pedro também envia sua carta à redação do Jornal da Tarde, a qual é publicada na terceira página, sem comentários, com o título “Será Verdade?” (p. 12). Após apresentar suas “saudações em Cristo”, o padre informa ter lido a carta da mãe fazendo apelo a ele, como pessoa, para que esclarecesse “o que é a vida das crianças recolhidas ao reformatório de menores”. Ele sente-se, portanto, “obrigado a sair da obscuridade para vir dizer que infelizmente Maria Ricardina tem razão”. Em suas idas ao Reformatório o que vê são crianças “tratadas como feras”, pois esqueceram “a lição do suave Mestre”. Quando deveriam procurar conquistá-las “com bons tratos, fazem-nas mais revoltadas ainda com espancamentos seguidos e castigos físicos verdadeiramente desumanos”. A consequência disso é que se mostram “pouco dispostas a aceitar “o consolo da religião”, em razão do “ódio que estão acumulando naqueles jovens corações tão dignos de piedade”.

O tom “sagrado” empregado pelas autoridades contrapõe-se radicalmente ao tom “profano” utilizado pela mãe de um dos Capitães da Areia e por um padre que acaba sendo associado aos “propagandistas do Credo Vermelho”. Publicada entre anúncios, a carta da mãe tratando de uma matéria relativa aos fatos policiais revela a pouca importância dada à denúncia, mas sobretudo à denunciante. Fica evidente tratar-se de alguém sem nenhuma autoridade para pôr em xeque o ponto de vista oficial. Já a carta do padre pode indicar a intenção do Jornal em se legitimar como veículo de esclarecimento, pois introduz dúvidas sobre as funções supostamente educativas exercidas pelo Reformatório, e isso desde o título atribuído à matéria: “Será Verdade?”.

COM A PALAVRA, O DIRETOR DO REFORMATÓRIO BAIANO

A reação do diretor do Reformatório às manifestações da mãe e do padre, como não poderia deixar de ser, foi imediata e respaldou-se nas imprecisões que são próprias das situações controversas. Como lembra Bourdieu (2004aBOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004a., p. 80), “[...] a escolha das palavras, sobretudo na polêmica, não é inocente”. Sua carta foi publicada na terceira página do Jornal da Tarde com um clichê do Reformatório e uma notícia adiantando que na próxima segunda-feira um redator faria uma visita ao estabelecimento (p. 14-15).

O diretor começa sua missiva dizendo-se a par do que chama de “campanha que o brilhante órgão da imprensa baiana [...] tem feito contra os crimes apavorantes dos Capitães da Areia”. Assinala que foi com grande interesse que “leu duas cartas de acusações contra o estabelecimento”, o qual, não fosse sua modéstia, chamaria de “modular”. Ele esclarece que as duas cartas o atingiram de modo diferenciado.

A primeira, vinda “de uma mulherzinha do povo”, incapaz de compreender o trabalho educativo que está sendo realizado, não é senão mais uma das muitas que querem impedir o Reformatório de cumprir sua missão. Segundo o diretor, primeiramente essas mães vêm “pedir lugar para os filhos”, mas logo sentem falta “do produto dos seus furtos”. Por isso, assim que os veem “submetidos a uma vida exemplar”, são as primeiras a reclamar ao invés de “beijar as mãos daqueles que estão fazendo dos seus filhos homens de bem”. Elas os criam “na rua, na pândega”, permitindo formar esse “bando de delinquentes que amedronta a cidade e impede que ela viva sossegadamente”. Como se pode ver, o discurso do diretor mostra o modo como são tratadas as famílias desmobilizadas e desmoralizadas pela acumulação de fracassos e decepções: é “uma missão impossível” enfrentar a “[...] inércia de uma administração atomizada e atomizante, encerrada na rigidez das suas rotinas e dos seus pressupostos” (Bourdieu, 1993cBOURDIEU, Pierre. Une mission impossible. In: BOURDIEU, Pierre (org.). La misère du monde. Paris: Éditions du Seuil, 1993c. p. 351-375., p. 354).

Em contrapartida, a segunda carta, lançando “graves acusações”, deixou-o mais abismado, sobretudo por ser do padre José Pedro. Esse sacerdote esqueceu as funções do seu cargo e abusou delas para penetrar no “estabelecimento de educação”, até mesmo “em horas proibidas pelo regulamento”. Para o diretor, desde que esse “padre do demônio” começou a frequentar o estabelecimento, “os casos de rebeldia e contravenções aos regulamentos aumentaram”. Esse “falso vigário de Cristo” é “um instigador do mau caráter geral dos menores”, incentivando-os à revolta e à desobediência. Por essa razão, vai “fechar-lhe as portas” do Reformatório.

Sua missiva finaliza assinalando que faz questão que o Jornal envie um redator na segunda-feira, para que se possa dar ao público “ciência exata e fé verdadeira sobre a maneira como são tratados os menores que se regeneram no Reformatório”. Ele explica também que se não propõe que venham “em qualquer dia é porque estas visitas devem ser feitas nos horários permitidos pelo regulamento”, não sendo costume seu dele se afastar.

A manifestação do diretor do Reformatório, per se, revela sem nenhuma sutileza ou dissimulação seu total desprezo pela população pobre e por suas precárias condições de vida. A falta de solidariedade, de humanidade e tolerância de alguém que está à frente de um estabelecimento destinado a acolher “menores delinquentes e abandonados” também se expressa por meio do apego ao regulamento. Esse dispositivo orienta os procedimentos de rotina e legitima as medidas disciplinares, de caráter profilático, adotadas não raramente por meio de práticas abusivas e violentas; práticas que levam à substituição da função educativa pela função policial. Bourdieu (2004aBOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004a., p. 98-99, grifos do original) lembra que, “[...] quanto mais a situação for carregada de violência em potencial, mais haverá necessidade de adotar certas formalidades [...]”, pois “[...] há uma virtude própria na forma”.

A CONSAGRAÇÃO DO “DISCURSO PERFORMATIVO”

A reportagem “Crianças Ladronas” tem seu desfecho com a visita do redator do Jornal da Tarde ao Reformatório Baiano. Jorge Amado transcreve os títulos da matéria publicada na segunda edição de terça-feira, distribuída por toda a primeira página e ilustrada por diversos clichês do prédio e um do seu diretor (p. 15). Os títulos são suficientemente claros para explicitar o conteúdo abordado, assim como o tom adotado pelo Jornal para tratar de uma questão que gerou polêmica, tensões e dúvidas: “Um estabelecimento modelar onde reinam a paz e o trabalho”; “Um diretor que é um amigo”; “Ótima comida”; “Crianças que trabalham e se divertem”; “Crianças ladronas em caminho da regeneração”; “Acusações improcedentes”; “Só um incorrigível reclama”; “O Reformatório Baiano é uma grande família”; “Onde deviam estar os Capitães da Areia”.

Depreende-se da sensibilidade literária de Jorge Amado o quanto a imprensa jornalística joga o jogo dos mandatários do Estado, colocando-se a serviço dos dominantes. E isso, no caso da reportagem sobre os Capitães da Areia, não apenas pelo tom acusatório e discriminador adotado, mas também pela maior ou menor visibilidade dada às cartas enviadas à redação e pelo diferenciado peso dado aos clichês que ilustram cada matéria.

O DESTINO SOCIAL OS REUNIU

Jorge Amado (2003AMADO, Jorge. Capitães da Areia. Rio de Janeiro: Record, 110. ed., 2003.) inicia sua narrativa descrevendo o lugar onde dormem os Capitães da Areia: “Sob a lua, num velho trapiche abandonado”, próximo a um imenso casarão perdido na imensidão do areal que se havia apropriado de tudo. Após ter sido habitado por ratos que se tornaram seus “senhores exclusivos”, fazendo suas “corridas brincalhonas” e roendo a “madeira das portas monumentais”, chegaram seus novos moradores: “moleques de todas as cores e de idades as mais variadas, desde os 9 aos 16 anos”.

A narrativa não possui o teor idílico, romantizado, aventureiro, que Raul, neto do Comendador, encontrava nos cinemas; ao contrário, mostra as contradições que cercam a vida das crianças brasileiras. Aquelas que a irmã do padre José Pedro está se preparando na Escola Normal para ensinar são “crianças com livros, com pai, com mãe... não serão iguais a estas abandonadas na rua, dormindo sob a lua, nas pontes, nos trapiches”. Os Capitães da Areia passaram a viver num espaço físico que os segregava socialmente. Importante lembrar, com Bourdieu (1993aBOURDIEU, Pierre. Effets de lieu. In: BOURDIEU, Pierre (org.). La misère du monde. Paris: Éditions du Seuil, 1993a. p. 249-262., p. 251), que “[...] a estrutura do espaço social se manifesta nos diversos contextos sob a forma de oposições espaciais, o espaço habitado (ou apropriado) funcionando como uma espécie de simbolização espontânea do espaço social”.

Todavia, é a delinear uma espécie de perfis (sociológicos)13 13 A inspiração que levou à construção desses perfis, ainda que tenha como base uma metodologia distinta, vem da obra La misère du monde de Bourdieu (1993a). de alguns dos Capitães da Areia que Jorge Amado se dedica efetivamente. Primeiramente, por perceber que as experiências pessoais - desde as mais dramáticas - têm suas raízes alhures. Seus destinos sociais levaram-nos àquele trapiche e casarão abandonados, tão abandonados quanto eles o foram desde a mais tenra idade. Vítimas incontestes de um Estado demissionário que trata a população despossuída como se não tivesse existência social, acabaram se reunindo num lugar “[...] degradante e imundo, estando destinados à degradação que pesa sobre eles como uma maldição” (Bourdieu, 1993bBOURDIEU, Pierre. La démission de l’État. In: BOURDIEU, Pierre (org.). La misère du monde. Paris: Éditions du Seuil, 1993b. p. 377-350., p. 344).

Em seguida, Jorge Amado mostra, assim como faria Bourdieu mais tarde por meio da noção de habitus,14 14 “Os condicionamentos associados a uma classe particular de condições de existência produzem habitus, sistemas de disposições duráveis e transmissíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípios geradores e organizadores de práticas e de representações […]” (Bourdieu, 1980, p. 88-89). que as estruturas sociais se convertem progressivamente em estruturas mentais. No caso dos meninos eleitos para compor o grupo dos Capitães da Areia, são as exigências de sobrevivência, sentidas a cada momento, que os forçam a transitar entre o mundo infanto-juvenil e o mundo adulto, que os induzem a desenvolver táticas e artimanhas exclusivas dos homens adultos. Sem-Pernas, por exemplo, “nunca tivera uma alegria de criança. Se fizera homem antes dos dez anos para lutar pela mais miserável das vidas: a vida de criança abandonada”. Como mostra Bourdieu (1984BOURDIEU, Pierre. La “jeunesse” n’est qu’un mot. In: BOURDIEU, Pierre. Questions de sociologie. Paris: Éditions de Minuit, 1984. p. 143-154.), o rompimento das barreiras geracionais confirma a complexidade da relação entre a idade social e a idade biológica, as quais visam tão somente impor limites e produzir uma ordem que deve ser mantida e que deve manter cada um no lugar que lhe foi destinado.

Os Capitães da Areia procedem de lugares diversos, mas suas origens sociais estão muito próximas. Cada retrato (sociológico) apresentado vai sendo delineado no desenvolvimento da trama literária (p. 17-256). Ou seja, os meninos vão ganhando identidade à medida que circulam pela cidade, que a consideram sua, e assim vão compondo sua hexis corporal.15 15 Para Bourdieu (1979, p. 100), a hexis corporal integra a conformação propriamente física do corpo, a maneira de se apresentar (a pronúncia, o modo de se vestir, se cuidar, se maquiar, a escolha de um tipo de esporte etc.) e exprime o “ser profundo”, a verdadeira natureza da pessoa, segundo o postulado da correspondência entre o físico e o moral. Eles exprimem por meio dela suas relações com o mundo social: “Vestidos de farrapos, sujos, semiesfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando pontas de cigarro, eram, na verdade, os donos da cidade, os que a conheciam totalmente, os que totalmente a amavam, os seus poetas”.

Para levar a efeito minha reflexão, tomarei como referência alguns desses retratos para ilustrar as dimensões analíticas priorizadas, a saber: o abandono, as ligações familiares, o efeito de estigmatização, o desenraizamento, o analfabetismo, a precocidade sexual e a virilidade, o prazer do risco. Minha intenção é mostrar que Jorge Amado, além de desmistificar o discurso performativo ancorado em formas diversificadas de violência, posto em prática pelas autoridades do Estado e veiculado pelos meios de comunicação, constrói um discurso herético.

O ABANDONO

A primeira violência experimentada pelos Capitães da Areia é certamente o abandono, comum a todos eles. Pedro Bala, o chefe, por exemplo, “vagabundeia nas ruas da Bahia” desde os cinco anos de idade, quando seu pai (o Loiro, como era chamado) foi “pegado por uma bala” enquanto lutava pelos direitos dos estivadores em greve nas docas. Já não tinha mais mãe, ela morrera quando ele tinha apenas seis meses. A posição de chefe foi conquistada numa briga com Raimundo, o antigo chefe, que batia covardemente em Barandão, o que lhe custou a “cicatriz vermelha no rosto”. O direito de liderá-los ficou assegurado desde então. Abandono também caracteriza a trajetória de João Grande, que perdera o pai, “um carroceiro gigantesco”, atropelado por um caminhão “quando tentava desviar o cavalo para um lado da rua”. Desde aquele dia em que desceu o morro para conquistar a cidade misteriosa passou a viver junto ao grupo, tornando-se um dos seus líderes. Sua força muscular o fazia temido e por isso dormia “na porta do trapiche, como um cão de fila, um punhal na mão, para evitar alguma surpresa”.

AS LIGAÇÕES FAMILIARES

Muito cedo perderam suas ligações familiares, geralmente em decorrência da morte dos pais, ou principalmente da mãe, sendo forçados a sobreviver por conta própria. Tinham portanto uma vaga noção do que poderia ser uma família, faltavam-lhes referências. Isso não os impedia de sonhar com um ambiente familiar. Esse é o caso de Sem-Pernas. Ele ressentia-se da rejeição que conhecera muito cedo porque não tinha “ninguém no mundo”, porque era “aleijado”, mas também guardava no fundo do coração a lembrança da carícia suave de um beijo, “uma carícia como nunca tivera, uma carícia de mãe”.

A noite de chegada de Dora, única menina admitida entre os Capitães da Areia, acompanhada do irmão de seis anos, Zé Fuinha, cujos pais haviam sido levados pela varíola, trouxe “grande paz”. Após perambular pelas ruas à procura de trabalho, eles foram levados para o trapiche por João Grande e João José, o Professor, gerando uma grande confusão, pois os meninos a olharam como se olha para uma mulher: “não tão vendo que é uma menina”, gritava o Professor. A delicadeza de Dora fez com que rapidamente fosse acolhida como mãe: “é como uma mãezinha”; como irmã: era “exatamente igual a uma irmã”; como noiva: “exatamente igual a uma noiva”, pensava Pedro Bala enquanto admirava o reflexo das estrelas “no mar azul da Bahia”. O sentimento de abandono ficara mais leve: viam em Dora “uma sertaneja forte, defendendo seu pedaço de terra contra os coronéis [...]. Os cabelos loiros eram carapinha rala, os olhos doces eram os olhos achinesados da sertaneja, o rosto grave, era o rosto sombrio da camponesa explorada. E o sorriso era o mesmo sorriso de orgulho de mãe para filho”.

O EFEITO DE ESTIGMATIZAÇÃO

A situação de abandono que os acompanhava produzia consequências. Eram constantemente vítimas de estigmas: feios, sujos, malvados, bexiguentos.16 16 Uma alusão ao filme de Ettore Scola, Brutti, Sporchi e Cattivi, de 1976. Trata-se, como lembra Bourdieu (2019BOURDIEU, Pierre. Proposições para o ensino do futuro: Relatório do Collège de France (1985). In: SOULIÉ, Charles (org.). Pierre Bourdieu: uma sociologia ambiciosa da educação. Florianópolis: EdUFSC, 2019. p. 235-265., p. 245), do efeito de estigmatização que “[...] encerra as vítimas socialmente designadas [...] no círculo vicioso do fracasso”, as maldições podendo tornar-se fatais. Os Capitães da Areia conviviam com o desprezo e a humilhação em todas as situações do dia a dia. Enquanto caminhavam ao lado do padre José Pedro, que os levara para ver as luzes do carrossel, recém-montado na cidade, “pareciam um bando de bons meninos que vinham do catecismo”. Todavia, cruzaram com a viúva Margarida, que não hesitou em expelir o seu escárnio: “O senhor não se envergonha de estar nesse meio, padre? Um sacerdote do Senhor? Um homem de responsabilidade no meio dessa gentalha...” “São crianças”, responde o padre, sendo imediatamente rebatido pela viúva: “Isso não são crianças, são ladrões. Velhacos, ladrões”. As beatas pareciam, portanto, sentir prazer em queimar as vítimas: “Não se aproxime de mim, imundície”. O padre José Pedro, porém, não era como os outros padres. Assim como as crianças, era estigmatizado pelo clero, que o considerava incapaz de “compreender os desígnios de Deus. Não tinha inteligência”, falava “igual a um comunista”.

Ao desenhar a giz um homem de sobretudo que parecia ter muito dinheiro, o Professor levou dois pontapés porque o homem não gostou do retrato: “Toma, corneta, para aprender a não fazer burla de um homem”. O medo da varíola (da bexiga) também pesava sobre as crianças. A senhora que havia prometido trabalho para Dora tinha medo de tocá-la, “queria que fosse dali, antes de contagiar a casa”. Essas situações provocavam sofrimentos profundos de rejeição e instigavam muito ódio nas crianças: “Ninguém quer filha de bexiguento”; “Quem é que quer saber da gente? Quem? Só ladrão, só ladrão...”

O DESENRAIZAMENTO

Traduzido por um sentimento de não pertencimento, a sensação de perda das raízes acompanhava muitos daqueles meninos, gerando neles ainda mais insegurança. Ainda que a maioria não lembrasse como, quando, em que condições chegara à cidade, ou se nela nascera, alguns guardavam em suas memórias episódios que os ligava a determinados contextos. Volta Seca jamais esqueceu que era afilhado de Lampião: “é meu padrim...” E foi ao ajudar Nhozinho França a manipular o carrossel que o “sertão vai entrando pelo nariz e pelos olhos de Volta Seca”. Ele recorda até mesmo qual dos cavalos “tinha sido cavalgado por seu padrinho Virgulino Ferreira Lampião”, numa das passagens do brinquedo pelo sertão. De repente, tudo começa a fazer sentido para ele: “Fora sempre um deslocado na cidade, com uma fala diferente, falando em Lampião, dizendo meu padrim, imitando as vozes dos animais sertanejos”.

Ao pensar sobre o Nordeste brasileiro ao longo do século XX, à luz da perspectiva bourdieusiana, Garcia (2005GARCIA, Afrânio. O desenraizamento brasileiro. In: ENCREVÉ, Pierre; LAGRAVE, Rose-Marie (org.). Trabalhar com Bourdieu. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. p. 309-314., p. 310-311) ajuda a compreender esse sentimento de não pertencimento que persegue Volta Seca: “[...] o ingresso num mundo novo significa uma ruptura com a sociabilidade tradicional, mas também uma ruptura com todas as representações que a fundam [...]. O desenraizamento fora do campesinato tradicional não fornece absolutamente os instrumentos do enraizamento no mundo moderno”.17 17 Pierre Bourdieu e Abdelmalek Sayad (1964) desenvolvem um estudo aprofundado sobre a crise da agricultura tradicional na Argélia. Eles mostram as nefastas consequências da lógica colonizadora sobre as populações rurais forçadas a se deslocar para a cidade.

O ANALFABETISMO

O analfabetismo também os nivelava, confirmando a demissão do Estado no que concerne ao direito à educação.18 18 A Constituição Federal de 1934, art. 149, estabeleceu o direito à educação como responsabilidade da família e dos poderes públicos, assim como o “acesso a todos os graus do ensino”. Todavia, parâmetros restritivos à escolarização foram instituídos pelo mesmo dispositivo legal, como mostra Valle e Ruschel (2009). O Professor era exceção. Ele lia correntemente, embora tivesse frequentado a escola apenas um ano e meio. Desde que furtara “um livro de histórias numa estante numa casa da Barra” tinha se tornado perito nesse tipo de furto. Ele lia-os, à luz de velas, “numa ânsia que era quase febre”, e os guardava para si, protegendo-os dos ratos que por ali viviam. Também lia para os outros meninos que se encantavam com “histórias de aventureiros, de homens do mar, de personagens heroicos e lendários”. Apesar de míope, “magro e triste”, sua imaginação o levava a criar “os melhores planos de roubo”, fazendo-se respeitar entre os meninos. Já Pirulito estava aprendendo com o padre José Pedro a ler e a escrever pois também queria ser padre.

Não era assim em matéria de cálculo. Aprendiam muito cedo a manipular o dinheiro e eram astuciosos nos negócios com adultos, abusadores e receptadores: “O senhor dá cinquenta a cada um e parece que ainda vai fazer negócio. São 150 bicos pros três. Senão, não tem embrulho”. Eram igualmente hábeis no jogo de cartas, as trapaças passando imperceptíveis aos marinheiros que costumavam se reunir nas docas.

A PRECOCIDADE SEXUAL E A VIRILIDADE

Duas condições presentes desde a mais tenra idade entre os Capitães da Areia eram a precocidade sexual e a virilidade, os mais velhos atuando na iniciação dos mais novos. Gato, por exemplo, não hesitava em se vangloriar das suas aventuras sexuais. Ele “andava pelas ruas das mulheres [...], assoviando como se fosse um daqueles malandros da cidade”. Essa precocidade também alimentava a virilidade, qualidade reconhecida pelos meninos que rapidamente descobriam “os mistérios do sexo”: “o frangote parece um homem”, murmura Dalva após ter sido atirada na cama pelo Gato, “o elegante do grupo”. Bourdieu (1998bBOURDIEU, Pierre. La domination masculine. Paris: Éditions du Seuil, 1998b.) ensina-nos que, ao reforçar as solidariedades viris, a virilidade19 19 Bourdieu (1998b) explora a noção de virilidade na obra A dominação masculina, referindo-se ao seu aspecto ético, à quididade do virtus, da honra, o que implica um dever-ser que se impõe sobre o mundo sem discussão, não sendo exagero tratá-la como um dos sinais de nobreza (masculina). figura como princípio de conservação e de aumento da honra (masculina), permanecendo indissociável, ao menos tacitamente, da robustez física, da coragem, mas também da violência. Eles costumavam perambular pelas areias das docas, “considerada a cama de amor de todos os malandros, de todos os ladrões, de todos os marítimos”. Jovens desavisadas que por ali passassem eram constantemente vítimas daqueles que “não podem pagar mulher e têm sede de um corpo na cidade santa da Bahia”.

O PRAZER DO RISCO

O risco era uma espécie de estimulante para os Capitães da Areia. Habituados a caminhar sobre o fio da navalha, encontravam prazer ao pôr em prática planos ousados e perigosos: “um capitão da areia é igual a um homem valente”. Não dissimulavam, todavia, o medo que os perseguia quando da realização desses planos: “tive um cagaço da desgraça”. Mas o enfrentavam com coragem, compartilhando as experiências, as táticas adotadas nas situações que exigiam reações improvisadas, habilidades não previstas. Pedro Bala narra as aventuras vividas na noite passada na prisão, quando se fez ser pego porque queria recuperar a imagem de Ogum, pertencente a Don’Aninha, que a polícia havia levado. Prometeu devolvê-la a essa grande mãe de santo, amiga “de todos os negros e todos os pobres da Bahia”, que “bem merecia que um corresse risco por ela”. O risco, não raramente, estava vinculado a um sentimento de lealdade, presente não somente entre os integrantes do grupo, mas também naqueles com quem firmavam alianças de confiança, com quem estabeleciam certas solidariedades.

A FORÇA DE UM “DISCURSO HERÉTICO”

Minha expectativa, desde o início, foi mostrar quanto a relação entre sociologia e literatura pode ser frutífera, pois permite associar distintas sensibilidades, seja pelo que têm de histórico, seja pelas suas possibilidades trans-históricas.20 20 Para Bourdieu (1992, p. 14), “[...] a análise científica, quando é capaz de apresentar o que torna a obra de arte necessária, isto é, a fórmula informante, o princípio gerador, a razão de ser, fornece à experiência artística, e ao prazer que a acompanha, sua melhor justificativa, seu mais rico alimento”. Por meio da obra Capitães da Areia, tecida na complexa dinâmica do jogo institucional, econômico, político, jurídico, policial, religioso, Jorge Amado cria um discurso herético que se contrapõe ao discurso performativo. Por representar o interesse dos poderosos, o discurso performativo perpetua o tom acusatório em relação à população pobre. Seu objetivo é fundamentar o senso comum, dar legitimidade às violências que vitimam particularmente as crianças e naturalizar todo tipo de racismo social (relativo à classe, à etnia, ao gênero, à inteligência, às deficiências).

Todo discurso que rompe com a ordem estabelecida é considerado subversivo pois põe em risco regalias cristalizadas, transmitidas de geração em geração. O discurso herético de Jorge Amado contribui, portanto, para corroer os pilares, moralistas e ideológicos, que dão sustentação a essa ordem. Ele mostra que “os menores” não são “criminosos natos”, mas crianças vítimas do desprezo das instituições sociais que, em vez de protegê-las, submetem-nas a punições, à tortura, por aqueles que detêm o privilégio dos privilégios e se amparam na magia dos atos de instituição.21 21 Bourdieu (1982) desenvolve esta noção no quadro de uma reflexão sobre o que chama de “ritos de instituição”. Perseguidas por um Estado que representa unicamente os interesses de “homens de bem”, que são também “homens de bens”, essas crianças aprendem desde muito pequenas a conhecer e a conviver com todas as misérias do mundo. Elas precisam sobreviver às ações policialescas, seja na prisão, no Reformatório de Menores Delinquentes e Abandonados que acolhe os meninos, no Orfanato que acolhe as meninas, seja n condenação à morte, como no caso do lazareto, para onde são levados os bexiguentos pobres (sendo “raro o homem que volta de lá”).

A força do discurso herético de Jorge Amado não está apenas no aspecto sedutor do seu texto literário, mas na sensibilidade crítica que mobiliza para apreender a dialética entre os espaços de autoridade - e de autoritarismo - e os espaços de resistência que teimam em se manter e se fortalecer. A obra Capitães da Areia é a representação, em linguagem dramatizada, das desigualdades e injustiças sociais que persistem na sociedade brasileira.

NÃO, denuncia Jorge Amado com toda sua potência de escritor, eles não se tornarão aquilo que são (feios, sujos, malvados, bexiguentos). Apesar da vida que lhes foi destinada, são crianças, têm sonhos. Pedro Bala, que achava “a greve batuta” e a via como “a festa dos pobres”, sonhava com a revolução. Tinham lhe ensinado que “a revolução é uma pátria e uma família”. Dora sonhava sair do Orfanato, pois não era “uma menina sem ninguém”, tinha “um noivo, uma legião de irmãos de quem cuidar”. O Professor, por sua vez, sonhava ir para o Rio de Janeiro aprender a pintar, queria fazer o retrato dos meninos. O sonho de Volta Seca era encontrar o seu padrim; sentia que “o sertão o chamava, a luta do cangaço o chamava”. Enquanto Gato queria enricar, Pirulito desejava realizar o sonho do padre José Pedro, que nunca vira “uma vocação tão decidida. Ele havia se tornado sua “grande conquista” entre os Capitães da Areia.

SIM, brada Jorge Amado, são crianças, crianças que tentam dormir em espaços que dividem com ratos, espiando pelas frestas do casarão, “com os olhos puxados para as luzes dos navios, com os ouvidos presos às canções que vinham das embarcações”. Dormindo ou acordados, “indiferentes ao vento que circundava o casarão uivando, indiferentes à chuva que muitas vezes os lavava”, os Capitães da Areia sonhavam sonhos de criança. Quando brincavam, esqueciam que “não eram iguais às demais crianças”, esqueciam que “não tinham lar, nem pai, nem mãe, que viviam de furto como homens, que eram temidos na cidade como ladrões”, e dentro de cada uma delas “ia uma alegria de primavera...”

REFERÊNCIAS

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  • AMADO, Jorge. Discurso de posse. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1961. Disponível em: Disponível em: https://www.academia.org.br/academicos/jorge-amado/discurso-de-posse Acesso em: 25 set. 2019.
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  • VALLE, Ione Ribeiro; RUSCHEL, Elizete. A meritocracia na política educacional brasileira (1930-2000). Revista Portuguesa de Educação, Porto/Portugal, v. 22, n. 1, p. 179-206, 2009. https://doi.org/10.21814/rpe.13957
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  • VALLE, Ione Ribeiro. Um conceito reinterpretado ao longo do século: do intelectual individualista de Durkheim ao intelectual coletivo de Bourdieu. Revista Internacional Educação Superior. Campinas, v. 4, n. 1, p. 95-111, 2018. https://doi.org/10.22348/riesup.v4i1.8650711
    » https://doi.org/https://doi.org/10.22348/riesup.v4i1.8650711
  • 1
    Nanos gigantum humeris insidentes. Aforismo que também teria sido empregado por Jean de Salisbury (1115-1180) em sua obra Metalogicon (de 1159).
  • 2
    Esse denso estudo foi publicado na obra Les règles de l’art. Genèse et structure du champ littéraire (1992BOURDIEU, Pierre. Les règles de l’art: Genèse et structure du champ littéraire. Paris: Éditions du Seuil, 1992.).
  • 3
    Esses cursos foram reunidos por colaboradores seus e estão disponíveis (Bourdieu, 2013BOURDIEU, Pierre. Manet. Une révolution symbolique. Paris: Raisons d’Agir/Seuil, 2013.).
  • 4
    Bourdieu promove, em diferentes textos, uma reflexão sobre a noção de intelectual; é a esta reflexão que recorro aqui. Além dos próprios textos do autor, ver, a título de aprofundamento, Valle (2018VALLE, Ione Ribeiro. Um conceito reinterpretado ao longo do século: do intelectual individualista de Durkheim ao intelectual coletivo de Bourdieu. Revista Internacional Educação Superior. Campinas, v. 4, n. 1, p. 95-111, 2018. https://doi.org/10.22348/riesup.v4i1.8650711
    https://doi.org/https://doi.org/10.22348...
    ).
  • 5
    O compromisso político do escritor foi explicitado no Discurso de posse junto à Academia Brasileira de Letras (1961AMADO, Jorge. Discurso de posse. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1961. Disponível em: Disponível em: https://www.academia.org.br/academicos/jorge-amado/discurso-de-posse . Acesso em: 25 set. 2019.
    https://www.academia.org.br/academicos/j...
    ).
  • 6
    Este romance tem sido apresentado como referência literária, sendo estudado no Ensino Médio e indicado em vestibulares de diversas instituições universitárias brasileiras.
  • 7
    Esta nota aparece na contracapa da 110ª edição, publicada no Rio de Janeiro pela Editora Record, em 2003.
  • 8
    Como assinala Miceli (2005MICELI, Sérgio. Introdução. A emoção raciocinada. In: BOURDIEU, Pierre. Esboço de auto-análise. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 7-20., p. 15-16), “Na medida em que o testemunho do autor insta o leitor a rememorar o passado, logo se percebe não haver outra saída senão transformar em busca de si próprio a pulsão alheia”.
  • 9
    Segundo Bourdieu (1982BOURDIEU, Pierre. Ce que parler veux dire: L’économie des échanges linguistiques. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1982., p. 141), a fórmula “[...] ‘eu vos autorizo a partir’ somente é eo ipso uma autorização se aquele que a pronuncia está autorizado a autorizar, tem autoridade para autorizar”.
  • 10
    As citações entre aspas, sem a indicação das respectivas páginas, foram retiradas da narrativa (Amado, 2003AMADO, Jorge. Capitães da Areia. Rio de Janeiro: Record, 110. ed., 2003.). A intenção é aproximar o leitor do tom empregado pelo autor. Serão mencionadas apenas as páginas que situam as diferentes partes do texto.
  • 11
    Bourdieu (1998aBOURDIEU, Pierre. Contre-feux: Propos pour servir à la résistance contre l’invasion neo-libérale. Paris: Raisons d’Agir, 1998a.) desenvolve esta noção ao analisar a força da ideologia neoliberal, assinalando que ela repousa sobre a ideia de que o triunfo compete aos “melhores e aos mais brilhantes”.
  • 12
    Toda a obra de Bourdieu é atravessada pela noção de poder simbólico. Como não será possível desenvolver aqui esta noção, sugiro ver, especialmente, Bourdieu (2001BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.).
  • 13
    A inspiração que levou à construção desses perfis, ainda que tenha como base uma metodologia distinta, vem da obra La misère du monde de Bourdieu (1993aBOURDIEU, Pierre. Effets de lieu. In: BOURDIEU, Pierre (org.). La misère du monde. Paris: Éditions du Seuil, 1993a. p. 249-262.).
  • 14
    “Os condicionamentos associados a uma classe particular de condições de existência produzem habitus, sistemas de disposições duráveis e transmissíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípios geradores e organizadores de práticas e de representações […]” (Bourdieu, 1980BOURDIEU, Pierre. Le sens pratique. Paris: Éditions de Minuit, 1980., p. 88-89).
  • 15
    Para Bourdieu (1979BOURDIEU, Pierre. La distinction: Critique sociale du jugement. Paris: Éditions de Minuit, 1979., p. 100), a hexis corporal integra a conformação propriamente física do corpo, a maneira de se apresentar (a pronúncia, o modo de se vestir, se cuidar, se maquiar, a escolha de um tipo de esporte etc.) e exprime o “ser profundo”, a verdadeira natureza da pessoa, segundo o postulado da correspondência entre o físico e o moral.
  • 16
    Uma alusão ao filme de Ettore Scola, Brutti, Sporchi e Cattivi, de 1976.
  • 17
    Pierre Bourdieu e Abdelmalek Sayad (1964BOURDIEU, Pierre; SAYAD, Abdelmalek. Le déracinement: La crise de l’agriculture traditionnelle en Algérie. Paris: Éditions de Minuit, 1964.) desenvolvem um estudo aprofundado sobre a crise da agricultura tradicional na Argélia. Eles mostram as nefastas consequências da lógica colonizadora sobre as populações rurais forçadas a se deslocar para a cidade.
  • 18
    A Constituição Federal de 1934, art. 149, estabeleceu o direito à educação como responsabilidade da família e dos poderes públicos, assim como o “acesso a todos os graus do ensino”. Todavia, parâmetros restritivos à escolarização foram instituídos pelo mesmo dispositivo legal, como mostra Valle e Ruschel (2009VALLE, Ione Ribeiro; RUSCHEL, Elizete. A meritocracia na política educacional brasileira (1930-2000). Revista Portuguesa de Educação, Porto/Portugal, v. 22, n. 1, p. 179-206, 2009. https://doi.org/10.21814/rpe.13957
    https://doi.org/https://doi.org/10.21814...
    ).
  • 19
    Bourdieu (1998bBOURDIEU, Pierre. La domination masculine. Paris: Éditions du Seuil, 1998b.) explora a noção de virilidade na obra A dominação masculina, referindo-se ao seu aspecto ético, à quididade do virtus, da honra, o que implica um dever-ser que se impõe sobre o mundo sem discussão, não sendo exagero tratá-la como um dos sinais de nobreza (masculina).
  • 20
    Para Bourdieu (1992BOURDIEU, Pierre. Les règles de l’art: Genèse et structure du champ littéraire. Paris: Éditions du Seuil, 1992., p. 14), “[...] a análise científica, quando é capaz de apresentar o que torna a obra de arte necessária, isto é, a fórmula informante, o princípio gerador, a razão de ser, fornece à experiência artística, e ao prazer que a acompanha, sua melhor justificativa, seu mais rico alimento”.
  • 21
    Bourdieu (1982BOURDIEU, Pierre. Ce que parler veux dire: L’économie des échanges linguistiques. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1982.) desenvolve esta noção no quadro de uma reflexão sobre o que chama de “ritos de instituição”.
  • Como citar este artigo:

    VALLE, Ione Ribeiro. Capitães da Areia de Jorge Amado e o “discurso herético” de Pierre Bourdieu. Revista Brasileira de Educação, v. 29, e290028, 2024. https://doi.org/10.1590/S1413-24782024290028
  • Financiamento:

    O estudo não recebeu financiamento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Jul 2022
  • Revisado
    09 Jan 2023
  • Aceito
    07 Mar 2023
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