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História do pensamento econômico e a contribuição de Ricardo Tolipan

História do pensamento econômico e a contribuição de Ricardo Tolipan* * Agradeço a Maria Cristina Terra, Gilberto Tadeu Lima e a Samuel Pessôa, que, com a generosidade habitual, comentaram uma versão preliminar. Este artigo faz parte das homenagens prestadas a Ricardo Tolipan quando de sua aposentadoria como professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FEA/UFRJ). Essas homenagens incluíram a realização de um seminário em história do pensamento econômico na FEA/UFRJ, cujos trabalhos de macroeconomia são publicados neste número da Revista Brasileira de Economia. A realização desse seminário só foi possível em função do apoio generoso, incondicional e decisivo do diretor da FEA/UFRJ, João Carlos Ferraz, a quem, em nome dos demais organizadores do seminário, expresso a mais profunda gratidão. O seminário contou ainda com a colaboração da Anpec e da EPGE/FGV, às quais estendo os agradecimentos.

Marcos de Barros Lisboa

Escola de Pós-Graduação em Economia, Fundação Getulio Vargas

O pensamento econômico no Brasil caracterizou-se durante muitos anos por uma profunda reverência ao passado da própria ciência. Sobretudo a partir do começo dos anos setenta, houve um esforço acadêmico, principalmente na tradição que buscava opções distintas da teoria neoclássica, de relacionar o debate teórico aos autores identificados como precursores do próprio pensamento econômico. Entre os diversos exemplos desse esforço encontra-se o resgate de autores clássicos, Marx, Schumpter, Keynes e Kalecki nos trabalhos de Tavares (1978), Belluzzo (1980), Amadeo Swaelen (1982), Possas (1983), Jobim (1984) e Pires (1984), entre outros.

A recuperação dos fundadores do pensamento econômico, ou pelo menos de abordagens distintas daquela identificada como teoria neoclássica, era parte integrante da pesquisa que buscava construir um pensamento alternativo ao convencional. Teoria e história do pensamento econômico apresentavam-se quase como indissociáveis no pensamento heterodoxo. Subjacente a essa identificação, havia talvez uma compreensão da construção teórica como definida a partir de hipóteses fundamentais, de visões de mundo que se manifestam na escolha de alguns conceitos ou abordagens que, uma vez adotadas, definem inexoravelmente os resultados obtidos. Não caberia, nesse caso, uma preocupação exclusiva com os autores mais recentes, que em geral apenas estariam desenvolvendo temas e argumentos já definidos na própria fundação do pensamento econômico.

Essa integração de crítica à tradição neoclássica, proposição de abordagens alternativas e resgate de autores fundadores do próprio pensamento econômico parece-me caracterizar a tradição heterodoxa no Brasil nas décadas de setenta e oitenta, refletindo-se inclusive na organização dos cursos de graduação e mestrado de diversas escolas. A formação do economista passava, nessa tradição, pela leitura cuidadosa dos autores originais, procurando mapear os principais trabalhos, os debates considerados centrais e seus desdobramentos teóricos. A apresentação da teoria se confundia com a história do pensamento econômico.

Há algo de surpreendente nessa abordagem que se propõe alternativa e inovadora, mas simultaneamente sugere a quase impossibilidade de superação do passado. A contribuição neoclássica recente, segundo a interpretação dessa abordagem, parece que deve necessariamente refletir aspectos fundamentais já sistematizados pelos primeiros autores da tradição. De forma similar, a contribuição heterodoxa parece que deve resgatar a ruptura já anunciada anteriormente, porém devidamente esquecida pelo pensamento convencional. A história do pensamento econômico, indissociável da teoria, seria também a forma adequada de construir a própria crítica da visão convencional.

Ricardo Tolipan contribuiu de forma decisiva para o desenvolvimento dessa tradição, sobretudo no resgate dos autores clássicos e da interpretação destes proposta por Sraffa (1951, 1960), o que exemplifica a inter-relação estreita entre teoria econômica e história do pensamento econômico na tradição heterodoxa. O debate à época sobre o conceito de capital utilizado em diversos modelos neoclássicos, usualmente denominado controvérsia do capital, é imediatamente referido aos autores fundadores do próprio pensamento econômico, incluindo Ricardo, Walras e Wicksell, entre outros.1 1 Ver, por exemplo, a tese de doutorado de Garegnani (1982), que contou com a colaboração de Sraffa e contemporânea à publicação de Produção de mercadorias por meio de mercadorias. Além disso, propõe-se que a resolução da controvérsia passa pelo resgate de uma teoria alternativa dos preços relativos e da distribuição de renda esboçada por David Ricardo, porém abandonada pelo pensamento convencional. A própria contribuição de Sraffa inclui a edição das obras completas de David Ricardo, em cuja introdução já estão discutidos alguns aspectos depois retomados durante a controvérsia do capital, e a publicação de Produção de mercadorias por meio de mercadorias, que tem como subtítulo ''prelúdio para uma crítica de teoria econômica" e cuja introdução enfatiza a continuidade com os autores clássicos. Teoria, crítica do pensamento dominante e história do pensamento econômico parecem quase indissociáveis nessa tradição.

Em uma série de artigos publicados no começo dos anos oitenta, Tolipan apresenta o modelo de Sraffa, o resgate dos autores clássicos, e discute o papel a ser desempenhado pela história do pensamento econômico.2 2 As principais contribuições de Tolipan sobre Sraffa e história do pensamento econômico foram posteriormente sistematizadas em Tolipan (1990). ''Ocorre que o pensamento científico é, em geral, um discurso com vocação de verdade, tomada com sentido finalista, isto é, a cada instante já finalizada. É Nietzsche quem adverte que a ciência é um ramo da explicação teológica do mundo (...), um discurso com a forte tendência a se exprimir como resultado e não como processo" (Tolipan, 1990:8).

Essa tendência se realiza, segundo Tolipan, com base numa manobra em que o passado da ciência é tratado como uma série de equívocos que se contrapõem à correta compreensão dos temas pertinentes, que seria o pensamento científico existente. Os autores que precedem ao discurso dominante teriam falhado em encontrar a solução adequada ou então fazem parte do seleto grupo de gênios que teriam contribuído para a sua construção. O eixo central, portanto, da história do pensamento segundo a visão convencional não seriam as opções discutidas pelos autores do passado, e sim o discurso que se tornou hegemônico. Tratar os autores do passado que divergem do pensamento dominante como equívocos, e os que o constroem como gênios, eis os dois princípios que, na visão de Tolipan, procuram conferir ao discurso científico o atributo de verdade.

''A história do pensamento econômico deve ser o lugar de combate – a meu ver irônico – contra esses dois princípios reativos do discurso científico. A nível de conteúdo, desenvolvendo uma crítica do modo específico de construção de uma ciência particular. Deve se propor, como método, a arqueologia de um saber particular, insinuando o caráter mistificador da pretensão à verdade. A nível do estilo, abordando com ceticismo irônico a sintaxe do discurso científico particular de que trata, insinuando o caráter plural e conflituoso do processo de conhecimento" (Tolipan, 1990:13).

A originalidade da contribuição de Tolipan está precisamente em enfatizar a ironia e o conflito como elementos fundamentais para o próprio pensamento econômico. À construção de verdades devem sempre se opor o ceticismo do discurso, a ênfase nas limitações e a fragilidade dos seus argumentos. Sobretudo, devem-se rejeitar as falsas tentativas de resolução de conflitos, que tratam o discurso proposto como se este resolvesse as dificuldades, imperfeições ou visões de mundo equivocadas dos discursos precedentes. Cabe à história do pensamento econômico, precisamente, enfatizar a diferença, os distintos caminhos propostos, os projetos de pesquisa que foram abandonados.

A ironia, na definição de Tolipan, aparece quando essa abordagem da história do pensamento econômico termina por concluir pela impossibilidade do próprio discurso que se propõe resgatar. Seguir fielmente a abordagem proposta por algum autor ou corrente e terminar concluindo pela existência de contradições internas ao próprio discurso ou então pela impossibilidade de tratar o objeto de análise por ela mesma escolhido.

Seria precisamente a ironia, segundo Tolipan, o aspecto peculiar da contribuição de Sraffa. A discussão sobre retornos decrescentes (Sraffa, 1926) foi a primeira formulação consistente da curva de custo tradicional dos livros-textos e, simultaneamente, aponta a existência de contradições internas que a inviabilizam. O resgate da contribuição de Ricardo passa pela interpretação de uma carta sua que foi perdida e cujo conteúdo pode ser apenas sugerido pela resposta de Malthus (Sraffa, 1951). Por fim, Produção de mercadorias por meio de mercadorias resgata a teoria dos preços proposta por Ricardo e termina por revelar a impossibilidade, dessa teoria, de tratar os temas que o próprio Ricardo teria elegido como centrais do pensamento econômico.3 3 A interpretação da contribuição de Sraffa como irônica encontra-se em Tolipan (1990), sobretudo na seção III.2.

A interpretação dos trabalhos de Sraffa como essencialmente irônicos talvez seja das mais originais contribuições à história do pensamento econômico no Brasil. A construção saborosa do argumento surpreende por ser inesperada e seduz por aliar o domínio da palavra ao do tema. Talvez estas sejam precisamente as principais características da contribuição de Tolipan: o tema surpreendente e o cuidado tanto com a estética quanto com a erudição ao desenvolvê-lo.

Tolipan elege como referência para a análise da retórica em economia o ceticismo de Nietzsche e sua visão crítica do discurso científico que se afirma como verdade; e, a meu ver surpreendentemente, ignora a de Popper, a qual, embora semelhante à de Nietzsche nesses aspectos, enfatiza a possibilidade do debate a partir das implicações empíricas do discurso científico. Também em Popper a crença no discurso existente como verdade é mistificadora, afinal seria impossível verificar a veracidade das proposições empíricas universais, e o estado de qualquer ciência caracteriza-se pela existência de proposições conflituosas, inevitavelmente a espera de serem falsificadas.

A construção de argumentos falseáveis e a tentativa de corroboração empírica dos discursos são aspectos, segundo Popper, que diferenciam a ciência das demais explicações. Mesmo que esses aspectos específicos não permitam a resolução positiva do discurso científico em direção à verdade, ao menos estabelecem critérios de corroboração, e conferem ao discurso científico um aspecto pragmático. Rejeita-se a possibilidade de compreensão racional do real e, portanto, a viabilidade do debate sobre o realismo do discurso científico. Rejeita-se, inclusive, a possibilidade de construção de critérios de verificação dos argumentos que independam dos próprios discursos e da linguagem utilizada. Por outro lado, enfatiza-se a necessidade do discurso propor critérios para sua rejeição, delimitando as condições do seu próprio fracasso, de forma a estabelecer um confronto com alguma evidência cuja realização não seja determinada pelo próprio discurso. Esse ceticismo pragmático não significa o resgate da possibilidade de construção positiva do discurso científico, mas apenas delimita alguns dos seus critérios específicos de retórica.4 4 Sendo um pouco provocador com Tolipan: não seria Nietzsche mais uma crítica ao racionalismo alemão do que ao discurso científico? Afinal, a construção do pensamento científico, sobretudo anglo-saxão, não foi simultânea ao desenvolvimento de uma visão cética sobre a possibilidade de compreensão racional do real, presente, por exemplo, em David Hume, John Start Mill e William James, entre outros? Visão cética essa, porém, que não rejeita a especificidade empírica do pensamento científico, que, portanto, deve necessariamente ser pragmático? Não seria, por fim, Popper o encontro da filosofia da ciência alemã com a anglo-saxã, cético sobre à possibilidade de acesso à verdade, porém pragmaticamente otimista?

Cerca de dois anos atrás, Ricardo Tolipan aposentou-se da Faculdade de Economia e Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Durante muitos anos, Tolipan participou de diversos debates naquela casa, com bom humor, elegância e erudição, sem nunca, porém, abrir mão da ironia. Sua contribuição decisiva no debate sobre o papel da história do pensamento econômico na formação do economista e na teoria econômica, o resgate dos autores clássicos e a apresentação elegante dos trabalhos de Sraffa marcaram uma geração de alunos e professores daquela casa. Tolipan ajudou a manter vivo o debate, criticando qualquer tentativa de construção de um discurso hegemônico, sempre cultivando a diferença e o argumento inesperado como atributos essenciais do trabalho acadêmico. Além disso, instruiu, divertiu e orientou muitos alunos de teoria econômica. Sua abertura ao debate se refletiu na orientação de teses de mestrado com caminhos, métodos e resultados bastante díspares, indo do neo-ricardianismo a leituras heterodoxas de Keynes, terminando em teses com sabor neoclássico. Essa abertura inegociável ao debate, à crítica e à pluralidade, sem perder o bom humor, a elegância e a gentileza, talvez tenha sido sua caraterística mais marcante durante seus anos como professor da UFRJ.

Para celebrar esse rito de passagem que é a aposentadoria, João Bosco Machado, Ricardo Henriques, Samuel Pessôa e eu organizamos um seminário sobre história do pensamento econômico na UFRJ, expressando nossa gratidão e a dos participantes pelas várias contribuições de Tolipan. Este número da Revista Brasileira de Economia reúne alguns dos trabalhos apresentados nesse seminário. Permanecendo fiel à provocação, neste número estão escolhidos os trabalhos numa área que nunca foi muito discutida por Tolipan, a macroeconomia. Pela mesma razão, não resisti à provocação de perguntar nesta breve introdução: por que não enfatizar o papel da análise empírica na retórica da economia? Afinal, se ela não elimina a natureza apriorística do discurso, talvez ao menos defina regras específicas para o debate que me parecem particularmente relevantes na análise do desenvolvimento do pensamento neoclássico nas últimas décadas.

Tenho por Ricardo Tolipan gratidão e afeto. Ele foi meu orientador de mestrado em uma tese que se propunha neo-ricardiana e terminou por apontar na direção neoclássica. Ricardo acompanhou e orientou todo o processo com disponibilidade, erudição e, acredito, certo prazer em um trabalho que se revelou o oposto do que pretendia ser. A aposentadoria talvez não incomode quem sempre cultivou o prazer e a reflexão aconchegada como atributos da elegância. Afinal, em Ricardo, o começo, antes da ironia, é a estética. Que a expressão da nossa gratidão e algumas pequenas provocações o façam logo retornar ao debate com o ceticismo, a independência, a criatividade e o bom humor que sempre se destacaram nas suas contribuições. Felicidades, meu amigo.

  • Amadeo Swaelen, E. Desemprego, salários e preços: um estudo comparativo de Keynes e do pensamento macroeconômico da década de 1970 Rio de Janeiro, BNDES, 1982. (VI Prêmio BNDES de Economia.
  • Belluzzo, L. G. de M. Valor e capitalismo: um ensaio sobre a economia política São Paulo, Brasiliense, 1980.
  • Garegnani, P. El capital en la teoria de la distribucion Espańa, Oikortan, 1982.
  • Jobim, A. J. G. A macrodinâmica de Michal Kalecki Rio de Janeiro, Graal, 1984.
  • Pires, E. Ensaios econômicos Rio de Janeiro, Achiamé, 1984.
  • Possas, M. L. Dinâmica e ciclo econômico em oligopólios Campinas, Unicamp, 1983.
  • Sraffa, P. The laws of returns under competitive conditions. Economic Journal, 36, 1926.
  • __________ . Introduction. In: Ricardo, D. Complete works Cambridge, Cambridge University Press, 1951. v. 1.
  • __________ . Production of commodities by means of commodities – prelude to a critique of economic theory Cambridge, Cambridge University Press, 1960.
  • Tavares, M. C. Ciclo e crise o movimento recente da industrialização brasileira Rio de Janeiro, UFRJ, 1978. (Tese de Titular pela Faculdade de Economia e Administração da UFRJ.
  • Tolipan, R. de M. L. A ironia na história do pensamento econômico Rio de Janeiro, Inpes/Ipea, 1990. (Série PNPE 23.
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    Agradeço a Maria Cristina Terra, Gilberto Tadeu Lima e a Samuel Pessôa, que, com a generosidade habitual, comentaram uma versão preliminar. Este artigo faz parte das homenagens prestadas a Ricardo Tolipan quando de sua aposentadoria como professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FEA/UFRJ). Essas homenagens incluíram a realização de um seminário em história do pensamento econômico na FEA/UFRJ, cujos trabalhos de macroeconomia são publicados neste número da Revista Brasileira de Economia. A realização desse seminário só foi possível em função do apoio generoso, incondicional e decisivo do diretor da FEA/UFRJ, João Carlos Ferraz, a quem, em nome dos demais organizadores do seminário, expresso a mais profunda gratidão. O seminário contou ainda com a colaboração da Anpec e da EPGE/FGV, às quais estendo os agradecimentos.
  • 1
    Ver, por exemplo, a tese de doutorado de Garegnani (1982), que contou com a colaboração de Sraffa e contemporânea à publicação de Produção de mercadorias por meio de mercadorias.
  • 2
    As principais contribuições de Tolipan sobre Sraffa e história do pensamento econômico foram posteriormente sistematizadas em Tolipan (1990).
  • 3
    A interpretação da contribuição de Sraffa como irônica encontra-se em Tolipan (1990), sobretudo na seção III.2.
  • 4
    Sendo um pouco provocador com Tolipan: não seria Nietzsche mais uma crítica ao racionalismo alemão do que ao discurso científico? Afinal, a construção do pensamento científico, sobretudo anglo-saxão, não foi simultânea ao desenvolvimento de uma visão cética sobre a possibilidade de compreensão racional do real, presente, por exemplo, em David Hume, John Start Mill e William James, entre outros? Visão cética essa, porém, que não rejeita a especificidade empírica do pensamento científico, que, portanto, deve necessariamente ser pragmático? Não seria, por fim, Popper o encontro da filosofia da ciência alemã com a anglo-saxã, cético sobre à possibilidade de acesso à verdade, porém pragmaticamente otimista?
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Set 2000
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