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Ciência, poder, acção: as respostas à Sida

RESENHAS

As políticas da Aids em mundo globalizado: uma relação entre doença e política da ciência

Leandro Oltramari

Cristiana BASTOS. Ciência, poder, acção: as respostas à Sida. Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2002. 258 páginas.

O trabalho de Cristiana Bastos bem poderia se chamar "Os bastidores da Aids". Seu texto faz uma minuciosa radiografia da constituição da Aids como fenômeno científico, discutindo o estatuto desta patologia e centrando sua análise nas questões que envolvem a política científica e sua relação com os movimentos sociais.

A Aids tem propiciado esse tipo de discussão desde seu surgimento. A briga política científica entre Estados Unidos e França sobre o descobrimento do HIV, os testes com placebos realizados por empresas de medicamentos em países africanos e, mais recentemente, a quebra das patentes dos medicamentos – tudo isso tem tornado a Aids, além de um problema epidemiológico, um fato e um fenômeno político.

Ciência, poder, acção: as respostas à Sida propõe e realiza uma importante análise sobre esta que tem sido, para muitos, uma das mais rigorosas epidemias do século XX e que inicia o atual século com a mesma fúria. O trabalho ganha ares interdisciplinares entre antropologia e outras ciências que centram a discussão sobre o "poder social da ciência" e sua produção na sociedade contemporânea.

Além disso, ultrapassa a dimensão do local. Partindo de uma experiência etnográfica transnacional, a obra faz uma antropologia política, promovendo um importante diálogo entre o local e o global. A própria autora expõe dificuldades pelas quais passou, pois seu trabalho é por vezes fugidio à disciplina, transitando entre política científica internacional, movimentos sociais e relações de poder. Seu objetivo é perceber como têm sido produzidos os saberes sobre a Aids no contexto contemporâneo de globalização, além de revelar, a partir disso, como se tornaram complexas as redes de ações anti-Aids no mundo.

O livro é organizado em seis capítulos, cada um abordando aspectos das políticas científicas que pesquisam e intervêm no campo da Aids. No primeiro, denominado "A pesquisa médica, a Sida e as clivagens da ordem mundial", a autora ressalta como a Aids veio questionar o otimismo da ciência médica logo após a Segunda Guerra Mundial. Essa síndrome demonstrou a necessidade de uma revolução científica motivada pelas demandas geradas por novos cruzamentos entre vários campos científicos. Aqui há uma clara presença do campo de estudos interdisciplinares em saúde e ciências sociais, necessários para a intervenção com relação à Aids. E essa necessidade, segundo Bastos, vem da falta de diálogo entre os diversos atores sociais que antes não se comunicavam, mas que passaram a perceber a necessidade de dar respostas à epidemia.

O advento da Aids foi um grande retrocesso na supremacia do saber médico especializado. Essa doença desafiou a ciência e foi um empecilho aos avanços da medicina que, até então, estava concentrada na guerra contra o câncer, e que teve de se deparar com uma síndrome tão perniciosa que, ademais, possuía um agravante: era contagiosa. Além disso, a Aids revelou a falência do projeto de modernidade, que tem na ciência sua condição essencial, ao trazer à tona os problemas relativos ao embate dos "egos" e às lutas por poder no meio científico, além de explicitar o preconceito que há em nossa sociedade.

No segundo capítulo, intitulado "A política da produção do conhecimento: o activismo de Sida como novo movimento social", a autora mostra que o ineditismo da Aids está no entrelaçamento de variáveis, que contrapõe elementos médicos, de ordem social, motivações políticas, simbólicas e culturais. Esses aspectos, ainda, articulam-se com os movimentos sociais e a ação política, aspectos de transnacionalidade e saúde pública. A autora revela a importância dos movimentos de reação à epidemia, organizados principalmente pela comunidade gay norte-americana, e o impacto destes na produção científica. Faz também uma análise sobre o processo de reconhecimento do início das mortes por Aids entre os homossexuais em um Hospital de Los Angeles como o marco deflagrador da epidemia. O fato de homossexuais jovens apresentarem óbito em decorrência de uma doença incomum, como o Sarkoma de Kaposi, fez com que os médicos e a ciência ficassem em alerta. E esse estado passou a se fazer presente na medicina a partir de então.

Com a relação decretada pela ciência entre morte e sexualidade, a autora discute os preconceitos contra todos aqueles que não estivessem incluídos em uma "sexualidade normatizada". Assim, foram condenados e categorizados os famosos "grupos de risco". Qualquer sujeito que possuísse ou não a Aids era identificado anteriormente pelos seus comportamentos sexuais ou mesmo sociais, e adjetivos como "perverso, culpado, castigado, moribundo" (p. 42) passaram a fazer parte do universo do próprio sujeito.

Cristina Bastos ressalta que a categorização "homossexual" é recente e, no caso da Aids, é usada quase sempre como uma forma de discriminação. Essa categorização, que relaciona homossexualidade e Aids, fez com que as campanhas e as políticas preventivas tenham se tornado falhas. Assim, a Aids passaria a manifestar na discriminação de grupos e sujeitos sua forma mais intensa e cruel.

No terceiro capítulo, "Patrocinando a acção global o papel da OMS", a autora analisa como se constituiu o combate à Aids em âmbito internacional, descrevendo de maneira brilhante a relação entre ciência médica e globalização. Bastos afirma que, com o aumento da epidemia nas demais partes do mundo, além dos Estados Unidos e da África, constatou-se, pouco a pouco, que a Aids não era apenas um problema dos homossexuais. No ano 2000, a doença demonstrava sua força de propagação sobretudo em países de terceiro mundo, como África, América Latina e Ásia. Esse capítulo aponta que o debate centro-periferia teve um importante papel no novo direcionamento da epidemia. Ou seja, ela passou a ser um problema do mundo globalizado e não apenas de países ricos e de setores identificados como grupo de risco, incluindo nações pobres e pessoas heterossexuais.

No Brasil, o trabalho de crítica aos modelos epidemiológicos tradicionais norte-americanos foi realizado pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), importante organização de pesquisa e combate à Aids. Os estudos dessa instituição revelaram uma cultura sexual específica no Brasil, que faz com que as pessoas muitas vezes subvertam categorias estanques de sexualidade. A Abia contribuiu sobremaneira para que o país pudesse superar as epidemiologias importadas, as quais consideravam ainda os grupos de risco como categorias importantes para a prevenção.

O capítulo quatro, denominado "Acção local: respostas à Sida no Brasil", faz uma importante leitura sobre o caso brasileiro em relação ao assunto. A autora afirma que o fim da ditadura e os movimentos sociais marcaram as respostas sociais à Aids no Brasil. As ONGs, estratégias montadas pelas agências internacionais para combater a doença, foram escolhidas devido à sua maior agilidade em tratar das questões envolvidas em torno da epidemia. Bastos também indica como os meios de comunicação deram mais atenção à Aids por se tratar de uma doença de países ricos, ou seja, isso, de alguma forma, ligava o Brasil ao primeiro mundo. Aqui, a Aids estava atrelada a pessoas ricas e famosas, com características cosmopolitas, pois o primeiro caso registrado foi o de um designer de moda, homossexual, morto em 1983, que viajava com freqüência aos Estados Unidos.

A autora faz uma retrospectiva de algumas das campanhas de prevenção da Aids no início da epidemia, as quais criavam muita tensão entre as ONGs e o governo. Primeiro, pelo mau gosto e ineficiência das campanhas, segundo, porque algumas delas contrariavam justamente aquilo que os movimentos de direitos humanos e de combate à Aids mais haviam lutado: a dignidade. Isso fez com que, junto com problemas sociais e econômicos de todas as ordens e o pouco envolvimento do Estado, a Aids, no Brasil, tivesse sido, como afirma a autora, "a pior Aids no mundo", devido principalmente às exigências das ONGs e à ineficiência do governo.

No quinto capítulo, "Sida, clínica e ciência no hospital universitário", Bastos faz uma breve discussão da razão pela qual escolheu o Brasil para sua pesquisa, realizada em um hospital geral. A situação de intensa desigualdade social no país oferecia à analise a possibilidade de estudar numa mesma realidade as duas faces que envolviam as questões em torno da doença: de um lado, há tratamentos com as mais avançadas formas de tecnologia; de outro, uma grande parte da população não tem acesso à saúde básica e preventiva, o que, em se tratando de uma epidemia como esta, é muito agravante. A autora observa ainda algumas características peculiares dos hospitais no Brasil. De um modo geral, os hospitais são os únicos a se responsabilizarem por fazer pesquisa científica na clínica médica, e isto aconteceu também em relação à Aids, um acontecimento que surpreendeu tanto os trabalhadores da saúde e como os pesquisadores. Essa epidemia foi promotora de renovação dos saberes sobre ela própria, a partir da prática clínica dos profissionais dentro do hospital. Ademais, Bastos revela o quanto a epidemia foi decisiva para a constituição de grupos de trabalhos interdisciplinares nos hospitais pesquisados.

Sua pesquisa demonstra o papel importante que teve a Abia na crítica à importação de modelos teóricos e metodológicos dos organismos internacionais, uma vez que eles não podiam dar conta da realidade brasileira. A importação de modelos revelava não apenas a dependência dos médicos brasileiros em relação às publicações dominantes no meio, mas também o quanto se sentiam pouco a vontade para fazer pesquisas e publicar seus trabalhos nas revistas especializadas. Por diversas razões – entre outras, falta de tempo, longas jornadas de trabalho e mesmo um sentimento de despreparo em relação a se tornarem autores dessas publicações –, os cientistas da área médica demoraram em perceber a importância da produção de conhecimento local. A Abia, nesse sentido, tornou-se um canal de comunicação, produção e publicação essencial para esses profissionais no Brasil.

"Metáforas de guerra em bacteriologia e imunologia: em busca de um novo paradigma", último capítulo da obra. Aqui, Bastos afirma que pretendeu, durante o processo de trabalho, não utilizar metáforas de guerra, tão comuns quando se trata do combate a epidemias. A autora cita o autor MacFarlane Burnett, o qual diz enfaticamente que a metáfora bélica nesse caso, apesar de ser muito utilizada, não faz sentido. Entretanto, ela não logrou esta exigência, pelo contrário, acabou supervalorizando essa perspectiva, quando, por exemplo, em diversas passagens se refere ao combate à Aids como uma batalha e ou uma guerra. Ao fim da obra, Bastos afirma não ter percebido nenhuma mudança conceitual digna de nota nas pesquisas sobre a Aids.

Pode-se perceber, por meio do trabalho denso de pesquisa presente nesta obra, assim como nas suas mais diversas fontes, o vasto campo de conhecimento sobre Aids. O caminho percorrido pela autora é de dar inveja a qualquer pesquisador experiente, ou mesmo apavorar os iniciantes. Trata-se de um trabalho de revisão exaustivo.

Restam algumas questões ao final da leitura. Seria a Aids não mais que um evento político que se produziu pelo viés da saúde, que tem no vírus um bode expiatório poderoso? As questões políticas em relação à Aids se fazem presentes de maneira tão intensa porque os primeiros a se mobilizarem foram militantes de movimentos sociais, sobretudo os homossexuais norte-americanos e, posteriormente, brasileiros? As políticas de produção de conhecimento em relação à epidemia seriam diferentes se os organismos internacionais, como a Organização Mundial de Saúde (OMS), não tivessem sido pressionados por esses movimentos sociais? Será possível pensar na prevenção e no tratamento da doença sem usar metáforas de guerra, uma vez que vivemos em um período tão marcado por confrontos armados?

Embora este trabalho não responda a essas questões, a grandeza de sua revisão certamente nos abre caminho para uma discussão mais profícua sobre elas.

LEANDRO OLTRAMARI é pesquisador do Instituto de Planejamento, Pesquisa Social e Estudos Avançados, professor da Universidade do Vale do Itajaí – Univali e da Universidade do Sul de Santa Catarina – Unisul e doutorando em ciências sociais na UFSC.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2007
  • Data do Fascículo
    Fev 2004
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