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Modernismo no Rio de Janeiro: Turunas e quixotes

Modernismo e modernismos: as controvérsias de quixotes

Mônica Pimenta VELLOSO. Modernismo no Rio de Janeiro. Turunas e quixotes. Rio de Janeiro, Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1996. 235 páginas.

Maria Arminda do Nascimento Arruda

O livro de Mônica Pimenta Velloso — Modernismo no Rio de Janeiro. Turunas e quixotes — localiza-se na vertente dos trabalhos que têm revisitado o movimento modernista brasileiro. Privilegiando na análise os intelectuais humoristas e boêmios do Rio — turunas e quixotes — na passagem do século XIX para o XX, a autora constrói a sua problemática de investigação a partir do contraste entre a realização paulista do modernismo e aquela que vicejou na capital da República, na "tentativa de buscar outro caminho para compreender o modernismo fora do paradigma paulista em que forçosamente acabou se convertendo o movimento de 1922" (p. 17). Explicita-se, assim, um estudo construído não apenas a partir da idéia do contraponto, mas, sobretudo, na esteira das diferenças que acabaram por conformar matrizes culturais exclusivas.

Segundo a interpretação da autora, a modernidade carioca revisitada sob o prisma do humor, representada pela revista D.Quixote, que congregou destacados intelectuais da cidade, opunha-se ao caráter sisudo, tipificador da maior parte dos modernistas em São Paulo. Enquanto os paulistas pensavam o Brasil na dimensão da seriedade, os cariocas carnavalizavam o país. Se a construção do planalto enveredava pelas sendas da institucionalização, a do litoral era dispersa, fragmentária, mas nem por isso menos importante, como se pode depreender no andamento da reflexão. Possivelmente nesse aspecto resida o argumento subjacente que guia o estudo de Velloso, nem sempre completamente desvelado, pois deixa-se perceber mais nas entrelinhas. É como se a historiadora buscasse recuperar para o Rio a legitimidade de haver gestado a modernidade cultural entre nós. Quem sabe por isso o verbo resgatar seja manejado recorrentemente, utilizado em inúmeras passagens do livro. Quer dizer, busca-se resgatar — empregado no sentido de recuperar, reconstruir, retornar, talvez salvar — um história que ficou esquecida, emudecida pela tradição paulista que se consagrou. Trata-se, pois, de reviver um movimento intelectual desterrado das correntes legitimadas e que ficou encoberto pela poeira do tempo, relegado à condição de experiência menor: "[...] se os intelectuais boêmios cariocas conseguem consagrar a irreverência como tradição cultural, esta não é reconhecida enquanto expressão dotada de valor artístico e literário. Seu papel restringe-se à mera distração e ao deleite social. Essa perspectiva de análise reforça a necessidade de resgatarmos a história do cotidiano carioca, através da qual poderemos recuperar a trajetória dos boêmios em sua sintonia com o moderno." (p. 32).

Nesse procedimento, a autora parte de uma questão que acaba por lhe render frutos no andamento da análise sobre esse grupo de intelectuais, qual seja, a de investigar os componentes da revista D.Quixote a partir da própria imagem por eles difundida e daquelas disseminadas entre os modernistas paulistas, principalmente os verde-amarelos. Diz ela: "Era visível o confronto que se procurava estabelecer entre duas matrizes imaginárias da nacionalidade: uma voltada para o ethos empreendedor, a outra valorizando elementos de uma 'cultura marginal'. No entanto, essas imagens acabavam se complementando, já que a cidade de São Paulo vinha freqüentemente associada à figura de Apolo, enquanto o Rio remetia à imagem dionisíaca. Assim, a cidade apolínea teria o dom da ordem, sendo capaz de unificar as mais diversas etnias culturais.[...] Em contraponto, a cidade do Rio de Janeiro caracterizar-se-ia pelo princípio do excesso e da desordem social, mobilizando-se apenas para a festa." (pp. 14-15). Enfim, a análise do imaginário dos boêmios é tecida conjuntamente à imagem que grassava no período sobre a intelectualidade da capital, sintonizando interpretação e objeto de estudo, harmonizando a proposta analítica ao próprio fenômeno.

De outro lado, a referência ao caráter de construção do discurso, vista como uma das possibilidades, ao lado de outras igualmente possíveis, pode levar ao enfraquecimento do argumento, debilitado pela afirmativa exposta nas páginas finais do texto: "Quero deixar claro que outros eixos poderiam ser tão relevantes quanto estes, mas a proposta é tentar explorar determinados atalhos, na perspectiva de alcançar um horizonte reflexivo mais amplo sobre a problemática de nossa modernidade." (p. 205). Com essa afirmação, excessivamente relativizada — uma vez que, se o conhecimento é sempre construído, nem todas as possibilidades de compreensão possuem a mesma relevância —, a autora deixa entrever o processo de manufatura do seu trabalho. Ou seja, ao organizar de modo particular a sua interpretação, ela também parte de uma concepção sobre o movimento modernista em São Paulo, na qual acentua certas dimensões já superadas pela bibliografia referente ao assunto e que dizem respeito à datação da cultura moderna no país a partir da Semana de 1922. Na sua proposta de escandir o modernismo, a historiadora termina por lidar com visões já revistas, as quais, en passant, não se encontram nomeadas no texto. Se esse procedimento — o de levar ao paroxismo determinadas posições — pode ser legítimo como modalidade de constituição do veio interpretativo, parece-me necessário nuançá-lo no transcurso da exposição.

Ao buscar novos rumos para a discussão do tema, a autora pretende "questionar o marco de 1922 como referencial exclusivo da instauração da modernidade brasileira. Trata-se de relativizar o papel de São Paulo no movimento e atentar para outras modalidades e dinâmicas, enfim, outros sinais de modernidade no conjunto da sociedade brasileira." (p. 33). Com essa idéia explicita-se a intenção subjacente do reexame do modernismo no Brasil no âmbito da multiplicidade de linguagens, tentando captar as diferenças encontradiças nas expressões do moderno. Não por casualidade, o modelo cognitivo indiciário de Ginsburg é apropriado: "É a decifração de pistas que está em questão. Elas estão presentes no nosso cotidiano, ou seja, nos pormenores, nos traços considerados triviais; enfim, no saber conjetural. É portanto através desses elementos que se pode atingir determinados aspectos da dinâmica social que são geralmente silenciados." (p. 88). O silêncio, no caso, refere-se à importância da cultura carioca na gestação do moderno, redimensionando o lugar da chamada hegemonia paulista, o que explica o apelo recorrente ao vocábulo resgate e ao conjunto de significados aos quais ele remete.

Ao tomar o humor como pista para perscrutar a modernidade que se forjava na capital, pretende-se requalificar o riso, pensando-o no registro de traço constitutivo da nacionalidade. E aqui a oposição com São Paulo se explicita ainda mais, uma vez que a idéia da tristeza como componente identitário dos brasileiros brotou da pena do paulista Paulo Prado, um dos fiadores do movimento modernista. Nas palavras da autora: "De modo geral, a tristeza é resgatada nessas reflexões como uma espécie de fatalidade, já que resulta da nossa diversidade étnico-cultural. Daí a idéia do banzo africano e do saudosismo português. Toda a nossa cultura, segundo a perspectiva da D. Quixote, refletiria essa imagem errônea do caráter nacional." (p. 17). Mediante o enfrentamento das duas perspectivas, busca-se contrapor vertentes diversas de modernismo — a carioca e a paulista — sem, no entanto, caracterizar os matizes que, no Rio e São Paulo, conformaram as duas experiências. Nesse registro, teria sido importante aprofundar comparações que permitissem qualificar melhor o modernismo paulista, rompendo a visão unitária em larga medida presente no texto.

Um intelectual como Oswald de Andrade, por exemplo, caberia perfeitamente na categoria dos boêmios; a acidez do seu humor não se distanciava significativamente de seus êmulos congregados em torno da revista D. Quixote. A antropofagia oswaldiana expressava a mesma carnavalização do país da qual a decantada frase "tupi or not tupi" é paradigmática. A visão satírico-humorística serve, em um e outro caso, para tematizar as nossas tradições culturais. Então, a questão proposta seria outra e envolveria mostrar as aproximações e perquirir as diferenças que, por certo, existem. Se a caricatura praticada pelos intelectuais da D. Quixote pôde configurar uma linguagem experimental no âmbito da imagem, o mesmo estava ocorrendo em São Paulo no prisma da literatura e das artes plásticas. Nesse plano, as diferenças se esfumam; as distinções correm por conta das diversidades entre os gêneros. Como afirma a autora: "os intelectuais cariocas se mostram rebeldes à idéia do moderno enquanto movimento literário. Refutam a existência de uma literatura moderna em oposição marcada às correntes literárias anteriores. Quando convidado a participar do movimento paulista de 1922, Manuel Bandeira argumenta que não poderia fazê-lo porque era simbolista e, para ele, o simbolismo era moderno. Assim, no Rio, não houve propriamente um movimento de vanguarda organizado em torno da idéia do moderno. O moderno é construído na rede informal do cotidiano [...] se os intelectuais boêmios cariocas conseguem consagrar a irreverência como tradição cultural, esta não é reconhecida enquanto expressão dotada de valor artístico e literário." (p. 22).

A postura irreverente foi igualmente marca registrada de Oswald de Andrade, comportamento que lhe rendeu incontáveis dissabores e o relegou à posição de marginalidade em relação às instituições. No fim da sua vida, Oswald revelava a consciência agônica do seu distanciamento diante das instâncias de consagração cultural e de inserção institucional, o que o tornava um verdadeiro outsider na vida intelectual paulista. Diferentemente, vários membros do grupo carioca possuíam empregos públicos, entretinham colaboração permanente em jornais e revistas, criavam anúncios para o nascente mercado publicitário, cultivavam relações próximas com políticos, altos funcionários e empresários, que lhes rendiam financiamentos para a publicação das suas obras. Emílio de Menezes conseguiu até mesmo ser admitido na Academia Brasileira de Letras. Por isso, é desejável redimensionar a possível marginalidade desses intelectuais cariocas e, talvez, interrogar sobre a construção das auto-imagens que proliferam entre os produtores culturais, sequiosos em se destacarem do conjunto dominante.

A postura irreverente e o cultivo da marginalidade podem significar, então, a estilização de um comportamento que busca a diferenciação e, através dela, a conquista de espaços e a descoberta de nichos ainda não ocupados. O mercado publicitário em formação e as revistas foram, com certeza, exemplos de constituição de novos lugares para o exercício da atividade intelectual no cenário da cidade do Rio de Janeiro no período. O caráter quixotesco, típico do outsider, parece residir mais no aproveitamento das possibilidades, na atitude de inovação, do que, propriamente, numa posição verdadeiramente à margem, visto que esses intelectuais participavam ativamente da cena cultural carioca, cujos conflitos desencadeados na disputa entre os diferentes grupos eram apenas sintomáticos.

Essa questão basilar, se considerada inicialmente, orientaria diversamente a análise, e provavelmente levaria a autora a partir do questionamento da imagem construída pelo grupo, o que lhe permitiria reconstruir a vida cultural carioca no prisma das identidades intelectuais, que estariam apontando para a emergência de um tecido crescentemente diversificado. Contrariamente, o problema só é levantado nas últimas frases do livro: "Mas cabe indagar até que ponto, efetivamente, esses intelectuais não se identificariam como outsiders, vislumbrando nessa condição outra modalidade participativa." (p. 214). Por certo, esses intelectuais, ao delimitarem o seu universo específico de inserção, via humor e crítica social, estavam concomitantemente positivando uma nova maneira de construir a atividade, quiçá uma atitude vanguardista. Em outros termos, a modernidade do grupo lastreava-se nessas posições assumidas, que lhes permitiam ressemantizar a linguagem cultural. Nesse sentido, o que haveria de fundamental a perseguir é menos o contraste com São Paulo, ou a refutação da pretensa hegemonia dos paulistas. Seria, isso sim, a configuração de um novo modo de ser-se intelectual, compassado com comportamentos singulares, típicos das vanguardas modernas.

A própria discussão empreendida oferece elementos nessa direção, principalmente quando, no capítulo quarto, a autora revela como uma corrente do nosso modernismo se apropria da cultura moderna espanhola e hispano-americana do fim do século, corrente esta que se apossara, por sua vez, das personagens de Cervantes no momento crucial de construção das novas linguagens. Essa parte, aliás, configura-se em contribuição efetiva, sendo, na minha opinião, o ponto alto do livro e que deverá se transformar em referência obrigatória para os estudos voltados ao tratamento dos diálogos e empréstimos intelectuais, ou do entendimento de como as trocas intelectuais são redefinidas no bojo de contextos diversos e assimiladas por grupos diferentes, imprimindo-lhes uma marca identitária. A mescla entre a tradição ilustrada da literatura de Espanha e a cultura popular do Rio de Janeiro configurou, como mostra a autora, um grupo vanguardista que exercitou a crítica como princípio e o riso como maneira de atingi-la. Nesse contexto, é difícil falar do modernismo no Rio de Janeiro em bloco, como é discutível a imagem unitária do movimento paulista.

Questão de outra natureza seria tentar entender o porquê da expressão paulista ter sido a depositária da idéia de gênese do moderno, a partir da qual se periodizou a nossa entrada no novo universo cultural em gestação. O fato de a experimentação ter ocorrido, em São Paulo, predominantemente na literatura e nas artes desempenhou papel significativo no processo. Esses gêneros, por serem reconhecidos como formas superiores de expressão, possuem o condão de demarcar etapas, por se inserirem na seara da produção intelectual considerada mais legítima. De outro lado, a despeito das nuanças, o movimento paulista não se caracterizou pela extrema fragmentação, característica do modernismo carioca, o que o tornou mais apto na construção do seu legado e mais habilitado a desenvolver os seus frutos.

O livro de Mônica Pimenta Velloso consegue reconstruir um momento importante da vida cultural na cidade através da consideração de um grupo intelectual particular, mas que sinalizou na direção da inovação expressiva, configuradora de uma modalidade da linguagem moderna. Daí, se é necessário relativizar a noção de um modernismo no Rio de Janeiro, uma vez que o foco incide sobre um conjunto de produtores, é preciso reconhecer que essa obra lança luzes para a compreensão desse momento crucial de formação da nossa modernidade no plano da cultura. Nesse compasso, as discussões construídas em torno de primazias e de correntes hegemônicas são desnecessárias e podem até aludir a posições revalidadoras de disputas ingênuas. Não se duvida da importância cultural da capital da República, como também não se questiona o significado do movimento paulista. Todos aqueles que se dedicam a estudar os fenômenos da cultura sabem, de antemão, que nenhuma verdadeira transformação germina sem um terreno adrede preparado. As inovações, similarmente, não são exclusivas, pois brotam de sensibilidades novas em formação. Nessa ordem de considerações, enfraquecem-se as controvérsias.

MARIA ARMINDA DO NASCIMENTO ARRUDA

é professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Fev 1999
  • Data do Fascículo
    Fev 1998
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