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Resenha de Desenvolvimento e regime de trabalho: a trajetória do Nordeste do Brasil

Review of Development and the labor regime: the trajectory of Northeast Brazil

OLIVEIRA, Roberto Véras; RODGERS, Gerry. 2021. Desenvolvimento e regime de trabalho: a trajetória do Nordeste do Brasil. São Paulo: Anablume

O livro organizado por Roberto Véras de Oliveira e Gerry Rodgers está destinado a se tornar referência no debate brasileiro e internacional sobre a Região Nordeste (NE)1 1 Uma versão sintética, de caráter autoral e escrita em inglês é Rodgers et al. (2022). . Trabalho de fôlego, cobre uma enormidade de temas e problemas relacionados, se pudermos resumir em uma frase, com os dilemas do desenvolvimento na região, vistos pela ótica do trabalho.

Muito do que eu poderia escrever sobre os desafios que os autores e autoras se propuseram, e a perspectiva que decidiram tomar para enfrentá-los, tanto teórica quanto empiricamente, está lapidarmente expresso em um trecho da introdução que, embora longo, merece ser citado:

Alguns dos problemas do Nordeste residem em si próprio, na persistência de uma estrutura social injusta, uma base produtiva defasada, infraestrutura precária, falta de qualificação da força de trabalho, instituições econômicas inadequadas e fraca organização coletiva dos trabalhadores. Mas essas deficiências não são um acidente. As raízes do problema estão em boa medida nas desigualdades estruturais do sistema produtivo nacional e até internacional, no qual o Nordeste desempenha um papel dependente e subordinado. Essa desigualdade foi construída durante um longo período, está profundamente enraizada, e muitos dos fatores e forças históricas responsáveis permanecem influentes até hoje. (...)

Este livro parte da premissa de que no coração desses processos está o regime de trabalho, que inclui o padrão das relações de trabalho, as condições de trabalho e emprego e as instituições econômicas e sociais correspondentes. O regime de trabalho está intimamente ligado à organização da produção e ao modelo de acumulação de capital, dos quais depende e os quais influencia. Afeta diretamente os níveis de desigualdade, por meio de sua relação com a distribuição do valor econômico entre capital e trabalho e entre diferentes categorias da força de trabalho. (Oliveira e Rodgers, 2021, pOLIVEIRA, Roberto Véras; RODGERS, Gerry. (orgs.) (2021), Desenvolvimento e regime de trabalho: a trajetória do Nordeste do Brasil. São Paulo, Anablume, 2021. . 22)

O termo “regime de trabalho” vem aqui substituir o conceito de “relação salarial” no corpo conceitual da Escola Francesa da Regulação, perspectiva adotada pelos organizadores do livro e pela maioria dos autores em seus respectivos capítulos. Na verdade, dando sequência a trabalhos anteriores de Alexandre Barbosa, a abordagem teórica mescla o estruturalismo histórico da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) e de Celso Furtado com o institucionalismo dinâmico da Escola da Regulação, para propor uma leitura original sobre o que os autores denominam regimes de crescimento e regimes de desenvolvimento na periferia do sistema capitalista mundial, no caso do Brasil, e na periferia do capitalismo brasileiro, no caso do Nordeste.

A empreitada é ambiciosa, de fôlego como afirmei, e, penso eu, muito bem-sucedida. A segunda parte do livro merece ser lida com atenção, pois oferece um panorama sintético e preciso do conhecimento longamente acumulado sobre os limites e oportunidades de desenvolvimento do Nordeste, sempre do ponto de vista do trabalho. Procura-se situar o NE no longo curso da história econômica brasileira, para delimitar as especificidades regionais, construindo um argumento em três níveis de análise: o Brasil como pano de fundo, o próprio Nordeste como região e, nele, os estados de Pernambuco e Paraíba.

Chama a atenção a relevância permanente do problema das desigualdades (sociais, econômicas, de renda, regionais e tantas outras) que são construídas e reconstruídas ao longo da história, consolidando estruturas produtoras do que Charles Tilly (1998)TILLY, Charles. (1998), Durable Inequality. California, University of California Press. denominou desigualdades duráveis, ancoradas em processos sociais de longo curso e alcance, difíceis de se reverter, mesmo quando o próprio Estado constitui instituições voltadas especificamente para combatê-las, como foi o caso da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), concebida e dirigida por Celso Furtado no final da década de 1950.

Estão aqui a dualidade e a segmentação dos mercados de trabalho, com estrutural prevalência da informalidade e da precariedade das condições de obtenção de trabalho e renda. Está aqui o desenvolvimento subordinado e dependente do NE vis-à-vis o centro-sul do país, que a SUDENE tentou em vão superar e que se aprofundaria nos anos de aceleração da industrialização sob os militares, muito centrada no Sudeste, em particular em São Paulo. Estão aqui os impactos da globalização neoliberal sobre as economias nacional e local, geradora de mais concentração de renda e mais desigualdade inter e intrarregional. Ainda, estão aqui as vicissitudes da organização sindical em um ambiente onde se combinaram, historicamente, a grande heterogeneidade das estruturas produtivas e dos mercados de trabalho, um pequeno contingente relativo de assalariados formais, grande heterogeneidade e dispersão geográfica da força de trabalho organizável por sindicatos, a resistência tenaz do patronato, a fragilidade histórica do sindicalismo que está ausente dos locais de trabalho etc.

A terceira parte também é de grande interesse. Agrupa estudos de caso em empresas de diferentes setores em quatro estados nordestinos, com prevalência de Pernambuco e Paraíba, mas com incursões na Bahia e no Rio Grande do Norte. Chama a atenção um tema permanente: as formas sociais de reprodução e reconfiguração do trabalho informal e precário. Os vários estudos de caso trazem elementos para sustentar a hipótese de que as relações de trabalho no Nordeste se reproduzem em bases segmentadas e predominantemente precárias, havendo, claro, exceções (como é o caso do complexo automotivo de Goiana, em Pernambuco) que, no geral, confirmam essa regra.

Vale a pena realçar o trabalho da equipe dos dois laboratórios responsáveis pela execução dos estudos de caso. Aqui eu gostaria de saudar o trabalho de coordenação de Roberto Véras que, ao longo de uma série de oficinas de trabalho, conseguiu estabelecer uma unidade de olhares e metodologias, permitindo que estudos em setores tão díspares como o da indústria automotiva de Goiana em Pernambuco e o do aglomerado de call centers de João Pessoa e Campina Grande, na Paraíba, ou o da agroindústria canavieira desses dois estados da federação, empregassem a mesma matriz analítica coletivamente construída, adaptada das cinco dimensões analíticas proposta pela Escola da Regulação. A empreitada foi, sem dúvida, extremamente bem-sucedida e os estudos de caso são de grande relevância.

Dentre as muitas dimensões analisadas, chamo a atenção para o esforço da coleta e sistematização de uma infinidade de dados sobre estrutura econômica e mercado de trabalho de regiões, mesorregiões, microrregiões e cidades onde se localizam os empreendimentos econômicos analisados. A riqueza da apresentação e análise dos dados é um marco e será referência obrigatória nos estudos sobre o NE, em particular sobre Pernambuco e Paraíba.

Destaco também o esforço feito pelos vários trabalhos de propor análises historicamente situadas, o que permite colocar em perspectiva adequada os desdobramentos recentes (anos “desenvolvimentistas” na primeira década e meia do século, e sua crise pós-2015), já que a região foi e segue marcada por conjunturas feitas de surtos menos ou mais sustentados de crescimento e crises cíclicas. Como o NE foi a região mais positivamente afetada pelas políticas de redistribuição de renda e de redirecionamento do investimento produtivo (não apenas industrial) dos governos liderados pelo PT, o surto de crescimento econômico e melhoria das condições dos mercados de trabalho regionais parece não ter precedentes na história.

Cabe chamar a atenção para o tratamento sistemático dos mecanismos de obtenção de meios de vida por parte dos trabalhadores dos diversos setores estudados, de suas condições de trabalho, e das formas de organização e resistência coletiva, em sua relação com os padrões de desenvolvimento setorial e regional. O/a leitor/a achará particularmente interessante, por fim, as conclusões contidas no capítulo XXIII, especialmente o item 3, no qual são sintetizados os sistemas de produção e trabalho observados nas diversas pesquisas.

Como se vê, o livro é de leitura obrigatória.

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    Uma versão sintética, de caráter autoral e escrita em inglês é Rodgers et al. (2022)RODGERS, Gerry; OLIVEIRA, Roberto Véras; RODGERS, Janine. (2022), Unequal Development and Labour in Brazil. London, Routledge..

Bibliografia

  • OLIVEIRA, Roberto Véras; RODGERS, Gerry. (orgs.) (2021), Desenvolvimento e regime de trabalho: a trajetória do Nordeste do Brasil São Paulo, Anablume, 2021.
  • RODGERS, Gerry; OLIVEIRA, Roberto Véras; RODGERS, Janine. (2022), Unequal Development and Labour in Brazil London, Routledge.
  • TILLY, Charles. (1998), Durable Inequality. California, University of California Press.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    07 Mar 2023
  • Aceito
    03 Maio 2023
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