Acessibilidade / Reportar erro

Pioneiros de Mato Grosso e Pernambuco: novos e velhos capítulos da colonização no Brasil

Pioneers of Mato Grosso and Pernambuco: new and old chapters of colonization in Brazil

Pionniers du Mato Grosso et de Pernambouc: nouveaux et anciens chapitres de la colonisation au Brésil

Resumos

O ponto de partida deste artigo são as concepções de origem presentes nos diferentes relatos e depoimentos, orais e escritos, que pretendem descrever a história de uma localidade ou de sua fundação, entre os habitantes dos municípios do médio-norte de Mato Grosso e do sertão de Pernambuco. Embora com pesos relativos e significados distintos nas narrativas sobre o passado e o presente, os referenciais espacial (origem regional) e temporal (origem ancestral) operam complementarmente na produção relacional de identidades e oposições nos dois universos sociais aqui delimitados. Essas diferentes ênfases e relativizações serão exploradas à medida que se revelam nas elaborações nativas sobre o passado individual e coletivo, de modo a distinguir aspectos críticos presentes naquelas socialidades. Especialmente, os critérios de inclusão e exclusão coextensivos à formação das redes de pertencimento, as atuações e as concepções concernentes à política e ao Estado e os sentidos e limites implícitos nas noções de família e sociedade mobilizadas nos dois contextos sociais.

Fundação; Colonização; Memória; Família; Política


The article explores the concepts of origin that unfold in oral and written reports of the history and foundation of two settlements, one in the mid-north of Mato Grosso, the other in the interior of Pernambuco (sertão). It examines the different values and meanings such narratives give to the past and the present, and how spatial (regional origin) and temporal (ancestral origin) references operate in complementary fashion in the production of relational identities and oppositions in those social universes. In focusing on native elaborations of the past, [I] the author shows how differences of emphasis distinguish critical aspects of sociality, and how criteria for inclusion and exclusion activate networks of belonging, perceptions concerning politics and the state, and the senses and implicit limits to the notions of family and society mobilized in both social contexts.

Foundation; Colonization; Memory; Family; Politics


Le point de départ de cet article sont les conceptions d'origine présentes dans les différents rapports et témoignages, oraux ou écrits, qui ont pour but de décrire l'histoire d'un village ou de sa fondation, entre les habitants de communes de taille moyenne du Mato Grosso et de l'arrière-pays de l'État de Pernambouc. Malgré les importances relatives et les sens distincts des narrations sur le passé et le présent, les références spatiale (origine régionale) et temporelle (origine ancestrale) opèrent de façon complémentaire dans la production relationnelle d'identités et d'oppositions dans les deux univers sociaux ici délimités. Ces différents accents et relativisations seront analysés dans la mesure qu'ils se révéleront dans les élaborations natives sur le passé individuel et collectif, de façon à distinguer les aspects critiques présents dans ces socialités, particulièrement les critères de l'inclusion et de l'exclusion coextensifs à la formation des réseaux d'appartenance, les jeux d'acteur et les conceptions concernant la politique et l'État ainsi que les sens et les limites implicites des notions de famille et de société mobilisées dans les deux contextes sociaux.

Fondation; Colonisation; Mémoire; Famille; Politique


ARTIGOS

Pioneiros de Mato Grosso e Pernambuco: novos e velhos capítulos da colonização no Brasil* * Desde 2010, a Fapesp financia meus projetos de pesquisa individuais, envolvendo períodos de trabalho de campo em Mato Grosso e em Pernambuco, o levantamento de dados e a revisão de materiais obtidos em etapas anteriores de investigação, sob novo enfoque analítico. Este artigo é resultado desse trabalho recente que incide sobre material de pesquisa coletado desde 1999, em Pernambuco, e a partir de 2008, em Mato Grosso. Agradeço as sugestões propostas pelos pareceristas anônimos da RBCS, que procurei acolher na revisão deste artigo.

Pioneers of Mato Grosso and Pernambuco: new and old chapters of colonization in Brazil

Pionniers du Mato Grosso et de Pernambouc: nouveaux et anciens chapitres de la colonisation au Brésil

Ana Claudia Marques

RESUMO

O ponto de partida deste artigo são as concepções de origem presentes nos diferentes relatos e depoimentos, orais e escritos, que pretendem descrever a história de uma localidade ou de sua fundação, entre os habitantes dos municípios do médio-norte de Mato Grosso e do sertão de Pernambuco. Embora com pesos relativos e significados distintos nas narrativas sobre o passado e o presente, os referenciais espacial (origem regional) e temporal (origem ancestral) operam complementarmente na produção relacional de identidades e oposições nos dois universos sociais aqui delimitados. Essas diferentes ênfases e relativizações serão exploradas à medida que se revelam nas elaborações nativas sobre o passado individual e coletivo, de modo a distinguir aspectos críticos presentes naquelas socialidades. Especialmente, os critérios de inclusão e exclusão coextensivos à formação das redes de pertencimento, as atuações e as concepções concernentes à política e ao Estado e os sentidos e limites implícitos nas noções de família e sociedade mobilizadas nos dois contextos sociais.

Palavras-chave: Fundação; Colonização; Memória; Família; Política.

ABSTRACT

The article explores the concepts of origin that unfold in oral and written reports of the history and foundation of two settlements, one in the mid-north of Mato Grosso, the other in the interior of Pernambuco (sertão). It examines the different values and meanings such narratives give to the past and the present, and how spatial (regional origin) and temporal (ancestral origin) references operate in complementary fashion in the production of relational identities and oppositions in those social universes. In focusing on native elaborations of the past, [I] the author shows how differences of emphasis distinguish critical aspects of sociality, and how criteria for inclusion and exclusion activate networks of belonging, perceptions concerning politics and the state, and the senses and implicit limits to the notions of family and society mobilized in both social contexts.

Keywords: Foundation; Colonization; Memory; Family; Politics.

RESUMÉ

Le point de départ de cet article sont les conceptions d'origine présentes dans les différents rapports et témoignages, oraux ou écrits, qui ont pour but de décrire l'histoire d'un village ou de sa fondation, entre les habitants de communes de taille moyenne du Mato Grosso et de l'arrière-pays de l'État de Pernambouc. Malgré les importances relatives et les sens distincts des narrations sur le passé et le présent, les références spatiale (origine régionale) et temporelle (origine ancestrale) opèrent de façon complémentaire dans la production relationnelle d'identités et d'oppositions dans les deux univers sociaux ici délimités. Ces différents accents et relativisations seront analysés dans la mesure qu'ils se révéleront dans les élaborations natives sur le passé individuel et collectif, de façon à distinguer les aspects critiques présents dans ces socialités, particulièrement les critères de l'inclusion et de l'exclusion coextensifs à la formation des réseaux d'appartenance, les jeux d'acteur et les conceptions concernant la politique et l'État ainsi que les sens et les limites implicites des notions de famille et de société mobilisées dans les deux contextes sociaux.

Mots-clés: Fondation; Colonisation; Mémoire; Famille; Politique.

Apresentação

A chegada de um pioneiro a um território virgem é o marco inaugural da história de um núcleo de povoamento, de acordo com as concepções manifestas nas histórias dos municípios do norte do Mato Grosso e do sertão de Pernambuco, assim como nos relatos de narradores 'autorizados'1 1 As aspas simples referem-se a conceitos acadêmicos. As duplas assinalam termos utilizados em Mato Grosso e Pernambuco que tomei emprestado e assim distingo de maneira a sublinhar sentidos específicos que lhes são atribuídos nesses universos sociais. (Appadurai, 1981, p. 203). A formação de fazendas ou sítios e a participação pessoal ou de antepassados no desenvolvimento de um aglomerado populacional fornecem uma moldura no interior da qual histórias pessoais e coletivas são incluídas. Neste artigo, meu ponto de partida são as concepções de origem presentes nos diferentes relatos e depoimentos, orais e escritos, que pretendem descrever a história de uma localidade ou de sua fundação. Em Mato Grosso, a referência à região Sul brasileira, e ao Rio Grande do Sul em particular, proporciona o mais potente referencial de identificação coletiva de um segmento social dominante, que para certos efeitos se define ele mesmo como a "sociedade" local. No sertão pernambucano, o referencial genealógico orienta primordialmente os pertencimentos sociais.

"Aqui, quase todo mundo é sulista". Entre os habitantes de Sorriso e Lucas do Rio Verde, em Mato Grosso, essa fórmula e suas variações são o modo mais comum e preliminar de apresentar-se a si mesmo e à sua comunidade a um interlocutor forasteiro como eu ou a equipe de estudantes que me acompanhou durante parte do trabalho de campo na região.2 2 Ariana Rumstain, Cristiano Desconsi, Luciana Almeida e Cláudia Prestes compunham a equipe de estudantes de pós-graduação que realizaram trabalho de campo em Mato Grosso, entre fevereiro e maio de 2008, sob minha coordenação, no âmbito do projeto Sociedade e Economia do Agronegócio (com financiamento da Fundação Ford, CNPq e Faperj). A formulação contrasta em relação ao que de ordinário ouvimos no sertão de Pernambuco em situação similar: "aqui é tudo parente", dizem os sertanejos a respeito de uma fazenda, uma vila, eventualmente de uma cidade ou município. Em ambos os casos verifiquei que esses enunciados não descrevem com rigor a composição populacional das localidades a que se referem e tampouco esgotam as identificações coletivas ou pessoais entre os conterrâneos. Eles, no entanto, indicam modos de descrição e concepções alicerçadas em uma memória coletiva.

Embora proferidas no presente (verbal e temporal), tais formulações encapsulam um passado sobre o qual meus interlocutores prontamente se detêm de forma a fazer mais compreensível o conteúdo de enunciados tão concisos. Os relatos que me dão suporte na presente discussão correspondem, assim, a uma produção mnemônica. Mesmo quando resultante de lembranças pessoais e proferidas na primeira pessoa, as narrativas que serão referidas adiante constituem uma memória coletiva, como propôs Halbwachs ([1968] 2009, p. 70), no sentido de que os indivíduos recordam-se na qualidade de membros contemporâneos de seus grupos. Conforme escreve Vernant, as operações da memória se formam por uma sorte de "adestramento mental": cada cultura constitui ferramentas próprias "para orientar a mirada do espírito em direção do que não está ali presente" (2009, p. 141). As narrativas que recolhi entre membros dos segmentos sociais dominantes em Mato Grosso e Pernambuco (fazendeiros, comerciantes, prestadores de serviço) proporcionam a identificação de critérios que organizam a triagem dos acontecimentos e personagens memoráveis do passado, daquilo que importa ou não para a compreensão da socialidade presente.

Embora com pesos relativos e significados distintos nas narrativas sobre o passado e o presente, os referenciais espacial (origem regional) e temporal (origem ancestral) operam complementarmente na produção relacional de identidades e oposições das duas formações sociais aqui delimitadas. Essas diferentes ênfases e relativizações serão exploradas, à medida que se revelam nas elaborações nativas sobre o passado, individual e coletivo, de modo a distinguir aspectos críticos daquelas socialidades: especialmente, os critérios de inclusão e exclusão coextensivos à formação das redes de pertencimento; as atuações e as concepções concernentes à política, ao Estado e aos sentidos e limites implícitos nas noções de família mobilizadas nos dois contextos sociais. Impulsionado por um contraste marcante inicial, o objetivo desse exercício comparativo corresponde mais ao destaque de aspectos singulares dessas formações sociais do que à acentuação de suas eventuais diferenças, renunciando-se de antemão a qualquer proposição classificatória.

Prólogos

Mato Grosso

Os relatos que recolhi em Mato Grosso têm como pano de fundo a formação das novas cidades, que se ergueram sob um impulso recente de ocupação e exploração agrícola de uma região considerada antes 'vazia' demográfica e economicamente de acordo com a visão do Estado brasileiro. Neste artigo privilegiarei as narrativas formuladas por ou sobre os "pioneiros" dos municípios de Sorriso, Lucas do Rio Verde e Nova Ubiratã. A juventude e o progresso das novas cidades que servem de sede aos dois primeiros estão subsumidos num evidente contraste em relação às condições encontradas na chegada e na fixação dos "pioneiros". Como se verá adiante, outros elementos característicos nesses relatos são também inseparáveis da produção de uma identidade "gaúcha" ou "sulista" atribuída ao segmento social dominante naquelas localidades.

A partir dos meados da década de 1970, as áreas de cerrado do centro-norte do atual estado do Mato Grosso começaram a ser ocupadas e destinadas ao cultivo mecanizado de grãos, de início o arroz e logo em seguida a soja. Essa atividade propulsionou forte crescimento econômico e populacional na região em que se desenvolveu, com reverberações na dinâmica econômica de todo o médio-norte mato-grossense. Além da multiplicação exponencial das áreas de cultivo e dos estabelecimentos agropecuários desde os anos de 1980 (Cintrão, s/d), em torno ou a partir da soja introduziu-se a produção de novos itens, outras etapas da cadeia produtiva de sua indústria e beneficiamento e um diversificado setor de serviços que caracterizam o agronegócio. Apesar da intervenção necessária de uma série de outros agentes na sua configuração, o atual perfil socioeconômico da região é associado aos "gaúchos" ou "sulistas" e seu empreendedorismo. Assim são identificados os "pioneiros", que deram início a um intenso fluxo migratório da região Sul para o cerrado. Essa é a origem de grande parte dos produtores, empresários, funcionários, comerciantes e prestadores de serviços que compõem hoje o extrato social dominante política e economicamente.

As novas cidades que se formaram em Mato Grosso corresponderam aos objetivos de uma política oficial de estímulo à exploração econômica da Amazônia. Até o terceiro quartel do século XX, essa região manteve-se marginal em relação à economia nacional e internacional, afora a velha exploração das drogas do sertão e descontados alguns surtos de exploração mineira e o explosivo porém curto ciclo da borracha. Apesar de sua presença na pauta política e econômica do Estado Novo, a integração econômica da Amazônia de fato esperará pela conjugação de certas condições fundamentais para sua realização durante o regime militar: a abertura das grandes rodovias (Belém-Brasília, Cuiabá-Santarém, Manaus-Porto Velho); sua reestruturação fundiária, em sintonia com a formulação do Estatuto da Terra e a criação do Incra; e a prodigalização do crédito agrícola (cf. Moreno, 2007; Palmeira, 1989; Velho, 1970). Em Mato Grosso, a alienação de terras regularizadas a preços simbólicos ao longo da BR 163, ainda em construção, e a dotação de financiamentos no âmbito dos programas Polocentro e Prodecer3 3 Programa de Desenvolvimento dos Cerrados e Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para Desenvolvimento dos Cerrados, respectivamente. para implantação agrícola permitiram que "frentes pioneiras" se consolidassem ali, em substituição às "frentes de expansão" existentes em outras manchas da área amazônica (cf. Cardoso de Oliveira, 1981; Martins, 2009; Velho, 1970). Os formuladores dessa política de integração nacional pretenderam introduzir no cerrado um modelo de exploração agrícola modernizada já estabelecido no Sul do Brasil, e com esse objetivo incentivaram o deslocamento de agricultores sulistas interessados em praticá-lo no Mato Grosso (cf. Barrozo, 2008; Bernardes, 2005; Moreno, 2007; Santos, 1993). Esse é o contexto histórico da fundação de Sorriso e Lucas do Rio Verde.

A ocupação atual do município de Nova Ubiratã teve início algumas décadas antes. Beuter (2000, pp. 44-47) registra a experiência turbulenta dos sócios pioneiros Iassutaro Matsubara e Sakúrio Guibo, a quem Getúlio Vargas consignou uma gleba de 400 mil hectares às margens do Rio Ferro para que implantassem ali um projeto de colonização, no âmbito do programa de governo "Marcha para o Oeste", sob moldes similares ao que já haviam empregado no Paraná. O projeto previa a abertura de uma estrada de acesso à gleba e o assentamento de duzentas famílias japonesas vindas de Okinawa, onde plantariam pimenta do reino e seringa. Uma epidemia de malária e um escândalo político e financeiro envolvendo a amizade entre os sócios e o presidente da República determinaram o malogro do empreendimento.

Dois casais chegaram à região do atual município de Nova Ubiratã em 1973 e 1974 e permaneceram como os únicos moradores durante alguns anos (Idem, p. 125). Paulista da região de Araçatuba, o Sr. Alberto Fabrício4 4 Entrevista concedida em agosto de 2011. veio gerenciar uma fazenda que seu patrão adquiriu como forma de seus anteriores proprietários liquidarem suas dívidas para com ele, contraídas em razão dos maus resultados da iniciativa de criação de gado com apoio da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia - Sudam. Experiência similar foi vivida por alguns outros funcionários que concordaram em viver anos em acentuado isolamento para "tomar conta" de propriedades de seus patrões ausentes, por vezes com algum gado e plantando pequenas roças de subsistência: D. Maria e seu marido Nego Otávio,5 5 Entrevista concedida em agosto de 2011. próximo ao rio Lira, Ademar Pereira da Silva e sua esposa,6 6 Beuter (2000, pp. 97, 125). no rio Ferro, e o muito mencionado Pedro Sucuri,7 7 O restaurante de Pedro Sucuri foi lembrado em diversas entrevistas com pioneiros. Ver Dias e Bortoncello (2003, p. 74). que montou um restaurante na margem esquerda do Teles Pires, onde preparava peixe para servir aos soldados do 9º BEC, durante a abertura da BR 163, e aos primeiros visitantes interessados em adquirir terras para abrir lavoura nas redondezas. As histórias desses primeiros habitantes sublinham as transformações advindas da chegada dos "gaúchos".

Pernambuco

A ocupação do sertão do Nordeste está ligada principalmente à expansão da pecuária. Deslocado da área das plantations de cana-de-açúcar, à qual deveria servir sem concorrer, ou conduzido nas expedições destinadas à ocupação de um território ainda virgem, o gado logo se faz objeto e instrumento para abrir caminho à marcha humana, que mais o segue do que o guia (Abreu, [1907] 1982; Koster, 1942). A pecuária suscita uma ocupação humana rarefeita, a boiada é muito mais numerosa do que os homens. A abundância de terras livres acentua ainda mais esse traço. Como lembra Abreu ([1907] 1982, pp. 132-133), toda a margem pernambucana do rio São Francisco pertencia à Casa da Torre, de Garcia D'Ávila, que sem recursos humanos nem rebanhos suficientes para ocupá-la arrendava sítios em geral com uma légua em quadro para interessados, desde o século XVIII. Dessa forma procurava corresponder aos desígnios de povoamento do sertão pretendidos pela Coroa com a concessão de sesmarias para aqueles que se provassem aptos a explorá-las. A expedição de títulos de arrendamento no sertão de Pernambuco só encerra definitivamente com a revogação do regime de concessão de sesmarias, através da Lei de Terras de 1850.

Aqueles que vieram a fundar e se estabelecer nas fazendas no sertão se valiam de parcelas de boas dimensões dedicadas, em regra, à criação de gado solto, sobre um terreno de fertilidade muito comprometida por um regime climático incerto sujeito a secas periódicas (Correia de Andrade, [1963] 1998). Algumas manchas mais úmidas da região, os chamados "brejos", cujas doações em sesmarias haviam sido oficialmente condicionadas ao cultivo agrícola, tenderam a um maior e mais rápido desenvolvimento demográfico, como foi o caso de Triunfo, antigamente denominada Baixa Verde. Dessa forma, apesar de ocupado, sobretudo às margens dos grandes rios, como o São Francisco e o Pajeú, as vilas nasceram e proliferaram lentamente no sertão.

Algumas das principais condições necessárias à consolidação de um núcleo de povoamento são destacadas na história de fundação de Serra Talhada, conforme relato de Luiz Lorena, membro de uma linhagem de políticos daquele município e descendente de fundadores de fazendas na região.

Localizada no centro geográfico da capitania de Pernambuco, a área que recebeu o nome de Fazenda Serra Talhada, propriedade da Casa da Torre, Bahia, detentora do morgado de Francisco Garcia D'Ávila, teve o seu território traçado por dois caminhos, que se cruzavam precisamente no local onde foi erigido o primeiro arraial. [...]

O português Agostinho Nunes de Magalhães obteve deferimento ao pedido de arrendamento à Casa da Torre para explorar quatro fazendas na região, inclusive Serra Talhada. Em abril de 1757 foram pagos os primeiros tributos por essa ocupação, tornando-se possível a reunião de feirantes a partir do dia 10 de fevereiro de 1778, segunda-feira.

Durante os anos de 1789/1790, Filadélfia Nunes de Magalhães, filha de Agostinho, utilizando-se de mão de obra escrava, providenciou a construção de uma capela sob invocação de N. Sra. da Penha de França, pertencente à freguesia de N. Sra. Da Conceição, vila de Flores. [...]

Houve doação de um sítio patrimonial em nome a Padroeira, todavia é pouco provável que se tenha legalizado com escritura (2001, pp. 56-57).

Os fatores que dinamizaram a constituição de povoados são basicamente os mesmos, todos ou em parte presentes em cada narrativa de fundação. Os caminhos abertos pelas boiadas para seu próprio escoamento para o litoral atraíram novos habitantes para suas margens, e nos seus entroncamentos um pequeno comércio eventualmente se desenvolvia. Interesses não exclusivamente econômicos parecem ter sido também determinantes para impulsionar certas aglomerações populacionais, germes de desenvolvimentos urbanos. As doações de patrimônio seguidas da construção de capelas ou os aldeamentos voltados para a catequese indígena estão na origem de inúmeros povoados que em alguns casos se tornaram vilas e depois cidades sertanejas. Algumas fazendas lograram atrair habitantes através da cessão de lugar para instalarem casas e de terras e gado para serem tratados em troca de parte de seus rendimentos.

A formação de um povoado era condição para a conquista de outras benfeitorias e serviços e para atrair atenção e recursos por parte do poder central, inclusive honraria e autoridade (cf. Faoro, 1958) por vezes disputadas violentamente entre as lideranças emergentes nessas localidades (Chandler, 1980; Costa Pinto, 1949). O acúmulo desses favorecimentos foi decisivo na definição, ao longo do tempo, da relevância local ou regional dessas aglomerações e, por conseguinte, das relações políticas, econômicas, religiosas, jurídicas entre elas (Harris, 1971).

As histórias de municípios como Floresta, Serra Talhada, Flores ou Triunfo foram marcadas por lutas, às vezes sangrentas, em que ideais e interesses pessoais se misturaram intimamente aos objetivos de promoção política de uma localidade. A narrativa de Lorena sobre Serra Talhada serve de exemplo a esse respeito. Ainda durante o Império, os fazendeiros das imediações, liderados pelo comendador Manoel Pereira da Silva, ergueram residências e formaram uma praça no local da feira semanal, com o propósito de consolidar um arraial e elevar politicamente o lugar. Essa decisão explicita-se como uma estratégia política deliberada no relato de Lorena. Em seu livro, o autor faz suceder a este relato (Lorena, 2001, pp. 21-22) a transcrição do debate parlamentar transcorrido na Assembleia Provincial em torno da disputa sobre a transferência da sede da comarca de Flores para a Baixa Verde ou Serra Talhada. A fertilidade do brejo teria sido preterida em favor da maior amplitude e o número crescente de casas na segunda, ante a estagnação de Flores (Idem, p. 34). Em maio de 1851, Serra Talhada passa a ser chamada de Vila Bela, elevando-se à sede de município e de comarca. Esse panorama de disputas será retomado mais adiante, sob outro enfoque.

Flashback - entre o Sul e o cerrado

Era interessante a nossa vida. Não tinha nada, aí a gente começou a criar uma comunidadezinha em S. Cristóvão. A gente começou ali em 78, 79, fizemos um barraco lá para a gente se reunir, para jogar bola, rezar. Os vizinhos lá, os posseiros... Vizinho a gente fala, a 20 Km. A gente se reunia, porque o ser humano tem necessidade de ser reunir. No final do ano a gente não tinha dinheiro para ir para o Sul, tinha as lavouras, a gente se reunia numa das fazendas, matava um boi, levava colchão, a cerveja a gente gelava na ureia. A ureia é nitrogênio 45%. Quando você adiciona água ela derrete e gela. [...] Era só nossa comunidade, aquele setor nosso (Antônio Isaac, "pioneiro" de Lucas do Rio Verde. Entrevista concedida em março de 2008).

O panorama humano no cerrado mato-grossense só se alterou significativamente depois que os sulistas chegaram. Primeiro isoladamente, como Antônio Isaac, em Lucas do Rio Verde, Ivo Raiser e seu cunhado Nelson Frâncio, em Sorriso. Com muito maior impulso, quando os projetos de colonização se iniciaram. A partir daí, apesar da distância física entre as fazendas, núcleos comunitários se formaram e persistiram. Seus integrantes são contabilizados pelos nomes dos chefes de grupos domésticos, e a origem comum no Sul confere-lhes identidade, como podemos apreender do relato de Antônio Isaac.

Seu depoimento difere nos detalhes, mas é absolutamente consistente com dezenas de outros relatos dos "pioneiros" sulistas que vivem hoje nos municípios do agronegócio no Mato Grosso. A longa viagem desde o Sul; os familiares que vieram e os que ficaram para trás; o depósito da mudança no meio do cerrado; o barraco coberto de lona e a primeira casa de madeira; o isolamento; a "luta" do desmatamento, da abertura de picadas, da marcação dos limites, da implantação das primeiras lavouras; a precariedade dos recursos, improvisados ou obtidos à custa de viagem aos centros urbanos por centenas de quilômetros percorridos em estradas poeirentas na estiagem e interrompidas pelos atoleiros no tempo da chuva; o enfrentamento dos animais da mata e os terríveis insetos; mas também a alegria dos momentos reservados aos encontros com os vizinhos, a solidariedade e a disposição comum de construir um lugar, uma comunidade, uma cidade. Tudo isso diante da constatação orgulhosa da extraordinária transformação da paisagem, do desenvolvimento e progresso; numa palavra constante de seu vocabulário, do "crescimento" que introduziram e continuam realizando na região.

Guardadas as especificidades do cerrado, a "luta", as "dificuldades", a precariedade, a escassez de recursos não assegurados pelo Estado nem por um circuito de mercado previamente estabelecido, assim como a participação voluntária na conquista do bem comum, todas essas experiências foram vividas em gerações anteriores à dos "pioneiros", ainda na região Sul. Embora esse passado não seja explicitado nas narrativas dos novos núcleos de povoamento em Mato Grosso, a referência à origem o engloba na omissão dos elementos que o compõem e que se reproduzem a cada etapa da trajetória de expansão migratória dessa população.

Os migrantes que partiram para Mato Grosso durante as décadas de 1970 e 1980 tinham raízes nas colônias do Sul, principalmente formadas por descendentes de italianos e alemães que chegaram ao Rio Grande do Sul no século XIX para iniciarem uma exploração agrícola familiar em pequenos lotes. Dada a insipiência dos recursos disponibilizados pela administração colonial, a eles coube a construção e a organização dos serviços na vila, pequeno centro aglutinador de uma comunidade dispersa pelas colônias, instaladas ao longo das picadas (Seyferth, 1974). O 'trabalho acessório' periódico dos pais e filhos mais velhos, como forma de agregar dinheiro aos rendimentos familiares obtidos nas roças de subsistência, passou a realizar-se em regime mais permanente nas gerações seguintes (cf. Santos, 1982; Seyferth, 1984). Da mesma forma, a estratégia de exclusão de filhos da herança da terra com vistas a evitar a fragmentação do patrimônio fundiário familiar, comum a outros campesinatos brasileiros (por exemplo Moura, 1978; Seyferth, 1985; Woortmann, 1995), deslocou muitos membros dessas famílias de colonos para outras atividades produtivas no comércio, mais tarde na indústria.

Também a busca da "terra nova" encontra motivação na insuficiência dos lotes coloniais para o sustento das sucessivas gerações ou realiza um projeto familiar de acumulação patrimonial. Em regra, os pais e avós dos "pioneiros" do Mato Grosso já haviam se estabelecido em terras que não eram as de seus genitores, ainda no Rio Grande, em outro estado da região Sul ou, em menor número, já no Centro-Oeste (Woortmann 1995). Assim como em outras regiões do território brasileiro, a localização das terras livres (Velho, 1970), sobretudo associada à presença das vias de comunicação (Mombeig, 1984), vieram a definir os eixos dos fluxos de deslocamento migratório em que essa população emergente das colônias do Sul tomou parte. O filho de um "pioneiro" e fundador de Sorriso descreve um roteiro seguido pelos gaúchos até o oeste de Santa Catarina, onde nasceu seu pai.

Mas se concentrando naquela leva alemã e italiana que foi decisiva nesse processo cultural que a gente está discutindo, a italiana subiu. Ela ocupou a Serra Gaúcha, e daí sim, dessa distribuição da Serra Gaúcha pelo Planalto Gaúcho, ela se alastrou e veio para Passo Fundo... praticamente toda a região agrícola e do agronegócio do Rio Grande também tem no italiano uma predominância. [...] Em 1930, alguma coisa por aí, foi criada a ferrovia ligando o Sul a São Paulo. Essa ferrovia que possibilitou a ocupação.8 8 Nei Frâncio se refere à Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande (EFSPRG), cuja empresa concessionária promoveu a colonização das terras às margens da ferrovia. A partir de 1917, com o fim da guerra do Contestado, o processo de colonização iniciado em 1910 através de uma subsidiária da Cia EFSPRG prossegue com a concessão de terras para empresas colonizadoras privadas (cf. Valentini e Radin, 2011). Então uma das primeiras regiões que teve essa característica [da agricultura mecanizada] a nível de interior de oeste de Santa Catarina é essa região do Vale do Rio do Peixe. Ela sobe dentro do Vale, com montanhas dos dois lados. Ela corta Santa Catarina. O Rio do Peixe é afluente do Rio Uruguai, que faz a divisa de Santa Catarina com o Rio Grande, e ela atravessa e entra, sai aqui em cima, pra chegar em Curitiba, na divisa do estado aqui. Essa ocupação que trouxe essa leva de imigrantes do Rio Grande. Meu avô veio nessa situação, provavelmente, eu imagino - meu pai nasceu em 1936... - entre 1920-1925... e já pela data a ferrovia, então, foi construída antes... porque nasceu todo mundo em Santa Catarina, e a minha tia mais velha é de 1925, a irmã mais velha da família é de 1925. Então provavelmente isso aconteceu entre 1920-1925 (Nei Frâncio, entrevista em agosto de 2011, em Sorriso).

Dados censitários proporcionam uma visão panorâmica dos fluxos migratórios para a atual região do agronegócio mato-grossense. Entre os 213 habitantes de Lucas do Rio Verde que declararam ao Censo 2000 morar ali desde a década de 1970, 181 eram oriundos de estados da região Sul. Em Sorriso, a proporção eleva-se a 93% de 219 declarantes. Os dados de 1990 apontam 100% dentre os 136 e 90,8% dos 851 habitantes na mesma situação, respectivamente, nos dois municípios.9 9 Dados coligidos no IBGE e sistematizados por Rosângela Cintrão no âmbito do projeto "Sociedade e economia do agronegócio", financiado pela Fundação Ford e com apoio do CNPq e Faperj. A diferença no número total nas duas contagens deve ser atribuída aos deslocamentos sucessivos dessa população, que não se radica definitivamente no município de Mato Grosso aonde primeiro chegou, tal como sucedia no Sul e continua acontecendo atualmente.

Em seu trabalho de história municipal de Nova Ubiratã, Ivo Beuter (2000, pp. 134-142; 162-163; 191-198) elabora extensas listagens dos primeiros moradores de três distritos e faz constar em cada uma das entradas a data da imigração, o nome do titular da "família"10 10 Ivo Beuter (2000) nomeia cada "família" através do seu chefe. A identidade dos sobrenomes, em vários casos, permite concluir que a contagem se realizou por grupos domésticos. Sobre a identificação, talvez inconsciente, entre família e grupo doméstico nas análises antropológicas em contexto rural, ver Almeida (1986, p. 68). (cabeça do grupo doméstico), a sua naturalidade ("origem") e o local da residência anterior à chegada a Mato Grosso ("procedência"). Esse procedimento oferece, portanto, indicações importantes a respeito da própria acepção de "família" presente nessa formação social, que veio a ser reforçada pela generalidade das narrativas sobre os "pioneiros". Enquanto mais de uma família nuclear (casais legitimamente reconhecidos, com ou sem prole) ocupa a mesma casa, o conjunto de seus moradores conta como uma família só e apenas um homem é reconhecido como seu representante. Esses dados também reiteram a percepção da origem comum e revelam os critérios de classificação privilegiados pelo autor, também procedente da área colonial sulista. As "famílias" de naturalidade "gaúcha" somam 42 em um universo de 80 residentes na sede do antigo distrito. Trinta e cinco delas moraram em outro estado antes de chegar a Nova Ubiratã, em Mato Grosso. Outras vinte e quatro famílias eram catarinenses ou paranaenses, das quais a metade já tivera outra residência antes da chegada. Embora não constem dados a este respeito, muito plausivelmente parte delas teve ancestrais no Rio Grande do Sul uma ou duas gerações antes, como os Frâncio de Sorriso. Dessa forma se compreende o uso intercambiável dos termos "sulista" e gaúcho" pelos habitantes desta região do Mato Grosso.

Sucessivas mudanças de residência no interior da mesma região ou entre o Sul e o Centro-Oeste marcam as trajetórias ao longo de duas ou três gerações das famílias que se encontram hoje nos municípios aqui enfocados.11 11 Desconsi (2011) registrou múltiplas mudanças de município de residência na sua descrição das trajetórias de deslocamento entre o Sul e o Mato Grosso entre 20 das 25 famílias de pequenos proprietários ou assentados que entrevistou em Sorriso, Lucas do Rio Verde, Ipiranga do Norte, Nova Ubiratã e Tabaporã. Elas são os atores de um processo amplo e prolongado de exploração das fronteiras agrícolas na região Sul, que se foram abrindo ao mesmo tempo em que se esgotavam as terras devolutas nas áreas de ocupação anterior (Gregory, 2008). Esse movimento correspondeu não menos às necessidades de reprodução social dos agricultores sulistas do que aos ensejos do Estado brasileiro, que através de políticas de estímulo a projetos colonizadores públicos e privados pretendeu atrair para regiões economicamente marginais migrantes dotados de um determinado perfil socioeconômico e cultural, a que se ajustavam perfeitamente os membros egressos das colônias do Sul, pressionados pela escassez de terras livres. Renk (2000, p. 90) e Gregory (2008, p. 121) explicitam a presença dessa seletividade por parte dos mentores desses projetos nas regiões do oeste de Santa Catarina e do Paraná, que prevalecerá também no Mato Grosso (Santos, 1993, p. 72).

Desconsi (2011, pp. 121-122) destacou a reprodução, em Mato Grosso, de uma metodologia de ocupação colonizadora, estimulada por programas e políticas de Estado, mas empreendidas por atores privados, cujo modelo se construiu no oeste do Paraná. Para o recrutamento dos agentes humanos desejáveis, recorreu-se a meios de divulgação dirigidos que priorizavam as famílias de antigos colonos que haviam alcançado maior êxito, capazes elas mesmas de acionarem suas redes de conhecimento para atrair novos interessados ao novo empreendimento em Mato Grosso. Assumia-se, com razão, que a decisão de migrar seria favorecida pela presença de conterrâneos, conhecidos ou pessoas de origem semelhante. A existência de alguma infraestrutura também era encarada como atrativo aos novos migrantes, e os projetos de colonização paranaenses caracterizaram-se por certo planejamento urbano, com recortes regulares de lotes e vias públicas, um cinturão de chácaras destinado à produção de itens de consumo local, além do loteamento da área rural.

Uma empresa colonizadora iniciou seus projetos antes mesmo da abertura da estrada Cuiabá-Santarém. A cidade de Vera foi fundada no eixo que a via fora planejada. Quando um novo traçado foi definido, o colonizador Ênio Pepino criou mais um núcleo urbano à beira da futura BR 163, a que chamou Sinop, o mesmo nome de sua empresa com sede no Paraná desde os anos de 1950.

Sinop é um caso típico. [...] Sete ou oito cidades no norte do Paraná foram empreendimentos da colonizadora de Sinop. Então era assim, Sinop foi, por exemplo, vamos dizer assim, uma vinda estrategicamente política. Já existia, vamos dizer, através do governo, uma informação de que aquela determinada empresa praticava [projetos de colonização]: "ó, vocês precisam ir lá no Mato Grosso que lá vocês vão fazer cidades. Nós temos que ocupar então vamos lá fazer cidades." Já vieram com essa missão... (Nei Frâncio. Entrevista concedida em agosto de 2011).

De acordo com Nei Frâncio, os fundadores de Sorriso não tinham experiência como colonizadores, mas serviram-se do modelo que observavam nas novas cidades planejadas do Sul. Seu pai, Claudino, iniciou-se nesse empreendimento "meio por acaso", quando procurava uma saída para crise de sua empresa familiar, do ramo têxtil. No desempenho de sua atividade comercial, ele constituíra uma clientela no seio da qual encontrou os primeiros compradores dos lotes que demarcou quando adquiriu uma gleba em pleno cerrado, a baixíssimo preço, através de um corretor que conhecera durante uma viagem a Cuiabá. Em sua iniciativa visava antecipadamente a vários desses clientes que já lhe haviam revelado o desejo de comprar terras no Norte, sabidamente baratas, movidos pelo êxito econômico da agricultura mecanizada que testemunhavam na região em que viviam, no Paraná. Tal como a família Frâncio,12 12 A família de Claudino Frâncio era até então radicada em Videira (SC), embora sua clientela se concentrasse no oeste do Paraná. a maioria desses compradores era originária das colônias gaúchas, para as quais o comércio se constituía em alternativa à atividade agrícola que, mesmo quando não praticada, permanecia no rol das possibilidades dos investimentos produtivos futuros.

A história da fundação de Sorriso e de Lucas do Rio Verde guarda especificidades em relação ao que aconteceu em outras áreas de Mato Grosso, onde já nos anos de 1950 e 1960 grandes empresários adquiriram terras como reserva de capital, apenas introduzindo nelas uma boiada e as deixando aos cuidados de algum funcionário. Aqui, a vegetação mais rarefeita do cerrado (o "cerradinho") facilitou a preparação dos terrenos para as primeiras lavouras, mas não permitia a extração de madeira que capitalizou tantos sulistas na sua diáspora rural (Simon, 2009). Os compradores, por vezes nas pessoas de seus filhos ou genros, não tardaram a se transferir para a "terra nova" e iniciar a abertura das primeiras plantações e outros empreendimentos comerciais e de serviços concomitantes. Esses "pioneiros", mesmo aqueles que contaram com o financiamento do Polocentro, investiram capital próprio e contribuíram pessoalmente no processo de construção das cidades. Em Sorriso, alguns dos compradores de Claudino se juntaram a ele em sociedade e a colonizadora assim formada capitaneou a fundação e o desenvolvimento do lugar até a emancipação do município. Esse envolvimento atendia às necessidades de recurso dos habitantes, ao mesmo tempo em que alimentava os negócios imobiliários da empresa, ao tornar o novo núcleo urbano cada vez mais atraente a novos investidores e moradores. Em Lucas, malogrado um primeiro projeto de colonização pública (Zarth, 1998), esse envolvimento se repete mesmo na ausência de objetivos de lucro imobiliário, inicialmente coordenado pela Cooperlucas - uma cooperativa formada por assentados em cumprimento a uma exigência do Incra, cujas finalidades eram a prestação de assistência técnica, a administração de financiamentos e o desenvolvimento de infraestruturas. De uma forma ou de outra, os projetos de exploração agrícola e de edificação das cidades mobilizaram a diminuta população de recém-chegados diretamente interessada na sua boa execução. No geral, as narrativas sobre a fundação das cidades pretendem salientar o caráter experimental e amador desse empreendimento, que sublinha a ousadia e o voluntarismo dos "pioneiros", ao mesmo tempo em que relativiza, se não descarta, a intervenção de outros agentes no processo, especialmente o Estado.

Enredo de famílias

O pessoal de Nazaré costuma dizer que Manoel de Souza Ferraz é um tronco da família Ferraz. Quando eu comecei a estudar genealogia, eu tava na loja e chegou um cidadão lá da Ema, de Nazaré, e conversando com meu pai, disse: "os Ferraz vieram da Ema". Aí eu virei para ele e disse: "seu Tonho, o senhor está errado. A Ema é que veio dos Ferraz do Navio". Ele disse: "não senhor, Manoel de Souza Ferraz é o Tronco da família". Eu disse: "não. Aqui no Navio já existia pai e avô dele. Então ele foi para lá mas já existia os Ferraz aqui. Ou o senhor não sabe que ele era neto de Jerônimo de Souza Ferraz, o verdadeiro primeiro Ferraz a se radicar em Floresta? Foi um dos colonizadores de Floresta" (Entrevista concedida por Mário Gominho, em dezembro de 1999).

Atualmente, a maioria dos Ferraz sabe que a família descende do pioneiro Jerônimo, graças à divulgação em Floresta e arredores de uma série de publicações concernentes à história do município (Ferraz, [1957] 2003; Gominho, 1996; Souza Ferraz, 1999). Quase sempre sem formação acadêmica em história, os autores desses trabalhos e de outros relacionados à memória das pessoas e dos eventos de sua terra (por exemplo Ferraz, 1978; Gominho, 1993; Lira, 1990; Sá, 1998) compartilham com seu público uma apreensão de seu mundo permeada pelo parentesco. Aqui, a ideia de origem é correlata àquela de descendência, por intermédio da qual se formula o pertencimento a um lugar. Um referencial genealógico guia o mapeamento mental das distâncias relativas, físicas e sociais, entre as pessoas.

Ao longo do primeiro século de colonização do sertão, parte dos descendentes dos primeiros arrendatários fundaram suas próprias fazendas, de extensos limites, mais tarde subdivididas em parcelas deixadas em herança ou eventualmente alienadas a compradores estranhos à família. A partir dessas fazendas formaram-se pequenos núcleos de povoamento e aglomerados populacionais identificados às famílias de seus fundadores. Os Ferraz de Floresta, os Pereiras de Serra Talhada, a exemplo de muitas outras grandes famílias sertanejas, espalharam-se por uma vasta região. "Linhagens" dessas famílias subdividiram-se e passaram a ser identificadas pelos locais que lhes serviram de berço. Ema, Nazaré, Navio, esses topônimos mencionados por Mário Gominho exprimem tanto uma localização geográfica quanto um recorte social correspondente a um segmento ou ramos familiares, a um "povo", a que são atribuídas qualidades singulares, baseadas na reputação de seus habitantes e nos eventos memoráveis em que tomaram parte (Marques, 2011b). Essa correlação entre família e lugar permite que os habitantes se situem perante outros e expressem essas distâncias relativas em seus enunciados na ausência de laços pessoais e, sobretudo, quando não conhecem em detalhes os vínculos que devem mediar a relação entre os interlocutores. No sertão, a referência espacial proporciona uma moldura no interior da qual os pertencimentos específicos (às casas, aos ramos familiares etc.) cedem, sem que desapareçam, ao reconhecimento de uma comunidade maior, mais abrangente, aparentemente homogênea. A vizinhança produz totalidade, por assim dizer. Porém, as localidades elas mesmas encerram-se em séries de pertencimentos mais amplas, menos mediados pela cidadania do que por vínculos pessoais e de parentesco, por vezes implícitos nos sobrenomes e na noção de "tronco" comum. Se os Ferraz da Ema e de Nazaré descendem do Navio ou o contrário, importa que ao reconhecerem uma mesma origem, que aqui é um ancestral e não uma localidade, algum sentido de comunalidade entre eles se estabelece, mesmo na ausência de formas mais concretas de solidariedade entre elas.

Entre os sertanejos, contar a história de sua terra sempre conduz à distinção de personagens e eventos memoráveis. Bons narradores da história de um lugar ou uma coletividade são aqueles reconhecidamente capazes de "destrinchar" o parentesco entre os personagens das narrativas. Mais ainda, eles são capazes de relacionar os personagens a figuras que não tomam parte nas histórias. O próprio narrador costuma posicionar-se, mesmo que remotamente, em relação à teia de parentes sob escrutínio, ainda que ele mesmo e o parente através de quem ele estabelece seu pertencimento não desempenhem qualquer papel nos eventos narrados.

Quando foi em 1928, era prefeito nosso Manoel Serafim de Souza Ferraz, irmão de Tonho Boiadeiro, primo de Antônio Ferraz, irmão da minha avó, cunhado de Nequinho, que já tinha sido prefeito...

Esse estilo narrativo tão comum entre os sertanejos, em seus relatos orais e escritos, permite que a memória de eventos e personagens singulares do passado se converta em história coletiva, porque através dos laços de parentesco o objeto da narrativa diz respeito também ao seu narrador e público, ainda que seja enunciada em terceira pessoa. Mário Gominho, em seus longos relatos, e muitos outros interlocutores durante minha pesquisa em Pernambuco, incluíam seus ouvintes nos enunciados, ao mesmo tempo em que me guiavam no cenário que descreviam através da enunciação do vínculo de parentesco de seus personagens em relação a alguém que sabiam ser do meu conhecimento. Por meio desse recurso, eles me ensinavam que a identidade das pessoas ultrapassava sua individualidade.

Certamente essas histórias sempre concernem mais àqueles que são nomeados e todos cuja proximidade pessoal ou parental com eles seja reconhecida. Uma vez que as principais famílias de um município, grandes em número e prestígio, se misturaram por meio do matrimônio ao longo de gerações, seus membros sempre estão mais ou menos contemplados no conjunto das narrativas que compõem a história de sua terra. Por outro lado, esse procedimento exclui toda uma população que se fixa ou transita por esses municípios sertanejos, mas que não é considerada como parte de sua história. A camada mais empobrecida de famílias que vivem na condição de "moradores" das fazendas ou que residem nas periferias das cidades assim como as populações indígenas que habitam territórios marginais aos principais núcleos de povoamento participam de circuitos sociais próprios e parcialmente partilhados com a camada dominante. Mas essas pessoas não são nomeadas nas histórias municipais, raramente constam nos relatos de memória e basicamente estão excluídas das genealogias. Quando eventualmente mencionadas, sua descrição é mediada por aqueles a quem são subordinadas e, mais amiúde, figuram como uma sorte de folclore local, em virtude da extravagância de seu comportamento de loucos, mendigos ou fora da lei.13 13 Lopes (2003, pp. 348-364) dedica uma parte de seu livro a esses personagens em Triunfo. As entrevistas que conduzi em uma fazenda em Floresta permitiram constatar o reconhecimento muito menos profundo das suas genealogias, apesar de repetir-se entre eles uma sobreposição entre parentesco e vizinhança. Uma correlação que em parte decorre dos vínculos mantidos com os patrões e donos da terra, por duas ou três gerações, que se prolongam mesmo quando membros dessas famílias se tornaram proprietários de casas e terrenos, por vezes doados em gratidão a tantos anos de serviço prestado e em função do apreço mutuamente declarado entre empregadores e empregados.14 14 De fato em inúmeras outras ocasiões testemunhei expressões de consideração de parte a parte entre moradores e fazendeiros, patrões e empregados, que poderiam ser descritos sob o conceito de patronagem, cuja crítica não cabe no escopo deste artigo (cf. Marques, 2011b; Villela, 2004). Assim, a linguagem do parentesco é capaz de revelar tanto os processos de identificação quanto as linhas de exclusão vigentes nesta formação social.

Autobiografia

Ali nós éramos umas 6 ou 7 famílias. A nossa contava uma só, porque nós morávamos juntos, trabalhava junto. No início, sim, só depois que a gente foi dividindo. Mais umas seis famílias além dessa. Mora todo mundo aí ainda. Tem a família dos Lembrusco, dos Piccolo, do Tomanoti, do Benjamin... Os Otoboni já foram embora. Todos mais ou menos que nem nós. Sempre vinha família, mais pessoas da família. Foi chegando devagar, em 80 veio mais gente. Em 76 era só eu (Antônio Isaac, pioneiro de Lucas do Rio Verde, entrevistado em março de 2008).

Antônio Isaac é conhecido em Lucas do Rio Verde como um dos primeiros "gaúchos" que ali chegaram para "abrir lavoura", ainda antes da implantação do primeiro projeto de colonização do Incra. Com apenas 18 anos, ele convenceu seu pai a vender um terreno no Sul e adquirir terras planas em Mato Grosso: "nunca me conformei com aquela vida de colono. Sempre sonhei com lavoura mecanizada". Nas colônias, o relevo acidentado e a dimensão reduzida dos lotes inviabilizavam a utilização de maquinário agrícola e todo trabalho de cultivo era manual, executado por seus titulares, os pais junto a seus filhos (Santos, 1982; Seyferth, 1974). Antônio e muitos outros jovens sulistas foram seduzidos pela oferta a baixo preço de áreas bem maiores e planas do que as que seus pais já possuíam.

Esse sonho não concernia somente a Antônio. O pai comprou a terra e obteve financiamento do Polocentro. A convite do filho, dois cunhados juntaram-se ao empreendimento e, com suas esposas, partiram para o Mato Grosso com a mudança. Para trás ficaram a mãe e três outras irmãs ainda solteiras, para cuidar das roças que a família preservou. Os trabalhos começaram de imediato, a montagem do acampamento e a derrubada da mata. Por três meses moraram sob lonas, com os dois marceneiros que haviam contratado no caminho, em Cuiabá, para a construção da casa. Ao fim do primeiro ano, nada conseguiram colher do arroz que plantaram. Por isso, o pai decidiu voltar para casa, no Sul, e emancipar seu único filho, que se orgulha em dizer que aos 19 anos já era empresário agrícola. A colheita seguinte já proporcionou algum rendimento e, daí por diante, a trajetória econômica da família foi ascendente.

O emprego da primeira pessoa é uma característica comum às narrativas dos "pioneiros" de Mato Grosso, bem como daqueles que os sucederam em trajetórias similares, que obscurece parcialmente uma série de processos coletivos envolvidos no deslocamento, no estabelecimento e na fundação de lugares. Antônio Isaac nunca esteve sozinho, como tampouco nenhum dos "vizinhos" que pouco a pouco chegavam à região, a quem encontrava casualmente pela estrada ou em Diamantino, aonde iam em busca de víveres ou outros recursos. O jovem assume-se como representante de uma unidade doméstica e familiar, que conta como uma. Ele não pretende sugerir que esteve absolutamente só, pois explicita em diversos momentos a presença de suas irmãs e cunhados. Sua narrativa também permite compreender que apesar da separação física, um nível ainda mais abrangente de unidade familiar persiste translocalmente, representada na figura do pai, apesar do deslocamento de parte de seus membros e mesmo da emancipação do único filho homem.

Em regra, ao longo de sua vida produtiva - que nas colônias se iniciava já na infância (Santos, 1982, p. 27) - espera-se que um homem conquiste graus progressivos de autonomia econômica ou ocupe posições ascendentes no interior de uma empresa familiar. Seu casamento deve coincidir, de preferência, com um avanço significativo nessa trajetória. Nesse contexto se insere a forte correlação entre os primeiros residentes (a correlação ainda hoje válida, embora mais atenuada), entre a data de instalação em Mato Grosso e a época do matrimônio - se abrangemos nesse período a aproximação da idade adulta nos solteiros e o início da fase de expansão do grupo doméstico, entre casados (cf. Desconsi, 2011, p. 110). No caso de Antônio Isaac, sua emancipação formal ocorreu antes de seu próprio casamento, mas esta foi a condição para que os maridos de suas irmãs, através delas - o trabalho feminino, como o infantil, subordinava-se ao do chefe de família, concebido como "ajuda", a exemplo do que acontece em diferentes contextos camponeses (por exemplo, Brandão, 1982; Garcia e Heredia, 1971; Heredia, 1979; Meyer, 1979) - , viessem a adquirir meios próprios de sustento, à medida que os rendimentos obtidos na "terra nova" permitissem o desdobramento de outras unidades produtivas a partir da primeira área adquirida em Mato Grosso pelo sogro.

Muitas famílias que iniciaram a exploração de seus primeiros lotes como um único grupo adquiriram outras áreas, contíguas ou distantes, ou subdividiram uma mesma unidade fundiária em parcelas atribuídas a seus vários membros. Em qualquer caso, não há coincidência necessária entre unidade produtiva e patrimonial. Um pai, seus filhos e genros podem investir seu trabalho conjuntamente em uma mesma fazenda, com ou sem subdivisão de lotes, e definindo fórmulas de distribuição de rendimentos; um grupo similar pode subdividir-se no controle sobre distintas propriedades, que conformam uma mesma empresa familiar; ou assumirem completa autonomia sobre a produção e rendimentos delas, mesmo que sua partilha não tenha sido ainda formalizada. Algumas variáveis costumam incidir sobre essas formas de organização produtiva, tais como a dimensão e a distribuição contígua ou descontínua do patrimônio fundiário, o acesso individual ao crédito, as vantagens fiscais, o porte do maquinário possuído e, não menos importante, as fases do ciclo de vida dos grupos domésticos e familiares (Fortes, 1974). Como se pode perceber, todas essas definições concernem às famílias, que se organizam, ainda hoje, como grupos produtores e empresariais, mas se rearranjam de acordo com uma série de constrangimentos, estímulos, tensões que as ultrapassam. Assim, o "convite" de Antônio a seus cunhados, a persuasão de seu pai, o desejo da "terra nova" e da agricultura mecanizada, a busca em Mato Grosso resultam menos de suas deliberações contingentes, livres e individuais do que de uma pluralidade de agências atuantes sobre seus atos, hábitos, gostos, escolhas (cf. Latour, 2005, p. 44).

Outros sentidos do emprego da primeira pessoa se ligam intrinsecamente ao processo de fundação de cidades em Mato Grosso. Os relatos sobre o período pioneiro sempre distinguem as pessoas a quem se devem as primeiras escolas, a construção de capelas, a implantação de comércio e oferta de serviços essenciais, os esforços para obtenção e distribuição de água, a compra de geradores, de aparelhos telefônicos etc. Esse envolvimento pessoal em favor da coletividade culmina na mobilização política para emancipação do município, que presume, além do cumprimento das exigências da legislação, alianças fora do plano local, no governo do estado, entre os deputados estaduais e com o prefeito a que estão subordinados. Os primeiros prefeitos e vereadores dos municípios recentemente emancipados emergem sempre do corpo mais ativo dos "pioneiros". Seus mandatos estendem e intensificam atribuições e responsabilidades que de certa maneira já assumiam perante uma comunidade, em prol dos interesses nela comungados. Em outras palavras, a atuação pública é concebida como uma continuidade em relação aos papéis antes desempenhados por chefes de família dispostos a colaborar entre si.

A política introduz ou reforça, também, certas linhas de clivagem interna. Uma "comissão pró-emancipação" foi formada em Sorriso com vistas a se informar das condições necessárias ao seu desmembramento15 15 Renda, arrecadação de impostos para o estado, população, eleitorado e número de casas na sede eram condições presentes em Sorriso, mas era preciso resguardar esses requisitos remanescentes em Nobres, município a que antes pertencia (Dias e Bortoncello, 2003, pp. 196-198). em relação a Nobres, Paranatinga e Sinop (Dias e Bortoncello, 2003, pp. 297-298). Não menos importante era a reafirmação e a ampliação das articulações políticas com prefeitos da região, deputados estaduais e governador iniciadas por relações pessoais durante o processo de elevação a distrito. Essas alianças externas, no entanto, resultaram na divisão entre os fomentadores desse projeto, no apoio a duas candidaturas, de Inácio Schevinski, pelo PDS, partido do governador, e Alcino Manfrói, pelo PMDB. Os dois candidatos eram amigos pessoais e sem experiência prévia na vida política, mas os vizinhos e políticos que os apoiavam não chegaram a acordo em torno de uma chapa única formada por ambos. Os dois grupos de interesse político antagônicos que então se formaram correspondiam aos alinhamentos partidários externos e não a distintos segmentos sociais. Mas as vicissitudes da política terão logo refletido no convívio social entre aqueles dois grupos, segundo recordam algum de seus membros, em uma comunidade até então unida e indivisa

Uma clara distinção de classes só veio a acontecer após os anos de 1990, em Sorriso e Lucas do Rio Verde, com a afluência de novas levas de imigrantes, que se fixaram nos bairros periféricos dessas cidades. Em sua maioria, esse segmento é formado por trabalhadores "braçais", funcionários e empregados menos qualificados das lavouras, indústrias e construção civil. Uma parte desta população deslocou-se para a região em virtude da falência do garimpo de Peixoto de Azevedo, município próximo à divisa do estado com o Pará, atraída pelas oportunidades oferecidas com a abertura de novas áreas de plantio e a expansão das indústrias de beneficiamento implantadas nos anos de 1990 e 2000. Atualmente identificada aos "nordestinos" ou "maranhenses" - os "cuiabanos" ocuparam o papel de alteridade até então, mas em número pouco expressivo - dessa periferia socioeconômica também fazem parte muitos migrantes de outras origens, inclusive da região Sul do Brasil. Hoje em dia também é mais heterogênea a composição da elite, elidida sob os epítetos "gaúcho", "gauchada" e "sulista". O uso dessas designações é muito expressivo da divisão e das tensões sociais ali vigentes, que são traduzidas localmente segundo concepções de "cultura", por sua vez associada à origem regional.

A culinária e as aptidões para o trabalho, a preferência musical e a dança são traços diacríticos da "cultura", na acepção que o termo encontra entre os "gaúchos". A esse respeito é assinalável o papel desempenhado pelos CTGs em todas as zonas atingidas pela ocupação gaúcha (Simon, 2009) e digno de nota que os conteúdos culturais ali veiculados se refiram muito mais às tradições pastoris dos pampas do que à policultura das colônias rio-grandenses (Oliven, 1991, p. 45). De qualquer forma, eles permitem estabelecer ou reformular um plano dicotômico de oposições, no qual se reforçam identificações a partir de relações contrastivas, de modo similar ao que já se verificara no Sul, em diferentes etapas de colonização (Desconsi, 2011, p. 147). Essa produção identitária evoca Barth (1969), mas convém sublinhar que as designações étnicas e de naturalidade não permaneceram as mesmas ao longo do tempo. A oposição entre "gaúchos"/"sulistas" e "cuiabanos" e, mais recentemente, dos primeiros aos "nordestinos"/"maranhenses" parece uma transmutação de outras que a antecederam: (alemães/italianos) versus (caboclos/brasileiros); brasileiros versus paraguaios. Essa população emergente das colônias se arranja em diferentes linhas de oposição que não são coincidentes, nem sempre correspondem a descrições objetivas de pertencimento e tampouco remetem a conteúdos culturais fixos.16 16 A ausência de conteúdos culturais fixos e prevalências de estereótipos e dicotomias em face de variações objetivas de comportamentos, valores e símbolos diacríticos são previstas por Barth (1969, pp. 14, 27-30) a respeito dos grupos étnicos. Aqui, no entanto, a própria apreensão em relação à etnia faz-se discutível a partir dos recortes identitários variáveis no tempo. Esses alinhamentos parecem subordinados a critérios de classificação de atitudes, hábitos e desempenhos independentemente da origem de quem os manifesta.

Em Mato Grosso, como em outros polos de concentração de migração desde o Sul, a avaliação e a distinção de si mesmos ("gaúchos" ou "sulistas") em relação aos outros ("cuiabanos", "nordestinos", "maranhenses") repousam especialmente em valores que organizam o comportamento doméstico e público (Haesbaerth, 1997): os papéis masculinos e femininos na produção e na esfera do consumo, do cuidado do lar e dos membros da família; a participação em associações e comissões de caráter político, empresarial e filantrópico. Na aplicação desses critérios valorativos, muitos migrantes procedentes do Sul não são a priori classificados como "sulistas" até mesmo por seus pares, uma vez que não correspondem ao modelo "cultural" adequado. No plano da intimidade cultural (Herzfeld, 2005), o autorreconhecimento como "gaúcho" ou "sulista" é concomitante ao recurso a padrões de valores partilhados, sobretudo morais, para operar tanto diferenciações quanto identificações internas. Um bom pai é por excelência um provedor, mas não deve subordinar o bem-estar da família às suas ambições; uma boa mãe deve zelar pela união da família, sendo que sua participação na vida social e produtiva jamais deve exceder essa incumbência (Marques, 2011a). O bom desempenho desses papéis serve tanto para distinguir os "gaúchos" e "sulistas", quanto para classificá-los entre si.

Epopeia

Em Pernambuco, o estilo empregado nas narrativas do passado de certa maneira estende a uma multiplicidade de atores, até mesmo do presente, a pertinência à história dos lugares, em virtude do papel que nelas desempenha a nomeação dos mais notórios personagens, a descrição de seus feitos e a explicitação de redes de parentesco em que estão inseridos. Esse estilo narrativo é capaz de produzir pertencimentos, mas também de operar exclusões. Os processos históricos que os englobam frequentemente também permanecem encobertos, mas por vezes se desvelam através do trabalho cuidadoso de alguns pesquisadores locais.

As disputas e lutas políticas, em todos os níveis e em boa parte das províncias, continuavam acirradas, no final dos anos quarenta do século XIX, entre os partidos liberal e conservador. Quando o Imperador formava um ministério com gente de um daqueles dois partidos, dispensando, por consequência, a colaboração do outro, aquele que subia tratava de desmontar, no País inteiro e por completo, a máquina político-administrativa que fora estruturada pelo adversário (Souza Neto, 2004, p. 203).

As disputas partidárias do Império interessaram alguns historiadores dos municípios da região do Pajeú, que encontraram nelas um contexto mais amplo de sua elevação e queda política e menos restrito às deliberações dos atores locais. Álvaro Ferraz ([1957] 2003, p. 180) primeiro assinalou os ecos da revolução praieira - que opôs simpatizantes dos dois partidos do Império no litoral - na grande comarca sertaneja de Flores. No interior, as reverberações da política da capital da província faziam-se sentir no ponto de equilíbrio instável entre os grupos capazes de ditar o destino de sua terra e de seu povo por meio de sua própria força, mas também do indispensável apoio dos correligionários do governo. Coube a Francisco Barbosa Nogueira Paz, como deputado provincial pelo Partido Liberal, a apresentação na Assembleia Legislativa Provincial de Pernambuco do projeto que, aprovado, erigiu à Vila de Floresta, o antigo povoado de Fazenda Grande, em 1846.17 17 Souza Neto (2004, p. 200) observa que em 1843 uma proposta semelhante havia sido apresentada pelo deputado provincial conservador Bernardino dos Reis e Silva, que foi no entanto arquivado com a queda de seu partido em Recife. Sua iniciativa é creditada à profunda "afetividade ou ligação política" daquele deputado com os habitantes de Floresta (Idem, p. 142) e, mais especificamente, à amizade "muito forte" que o unia ao tenente-coronel Serafim de Souza Ferraz e a José Rodrigues de Moraes (Gominho, 1993, p. 50). O caráter pessoal e político dessa relação apreende-se dos diversos episódios que marcaram a vida pública dessas personagens.

Em fins de setembro de 1848, o conservador Herculano Ferreira Pena foi nomeado governador da província de Pernambuco em substituição a seu antecessor, em virtude da dissolução do ministério liberal pelo Imperador. No sertão, as turbulências políticas da corte se fizeram sentir especialmente em torno das demissões de opositores de postos da polícia e da Guarda Nacional.18 18 No Recife e arredores, a oposição entre liberais e conservadores se sobrepõe ao velho antagonismo em relação aos portugueses, que dominavam o comércio varejista, e arregimenta intelectuais, donos de engenhos e a população urbana empobrecida. As forças do governo reprimem definitivamente os rebeldes em fevereiro de 1849. A nomeação do conservador Manoel Pereira da Silva, chefe político de Serra Talhada, como delegado da comarca de Flores resultou em luta armada. Nogueira Paz, seu opositor partidário, tomou como insulto a sua chegada à Câmara de vereadores de Flores, onde este era então presidente e controlava a maioria no legislativo municipal, na companhia de numeroso grupo armado, com vistas a tomar posse da delegacia. Malogradas as tentativas de acordo e em meio à tensão provocada pela presença de homens armados que acorreram em suporte e defesa de seus líderes, uma provocação deflagrou uma troca de tiros. Refugiado em sua casa, Nogueira Paz combateu seus inimigos até o último cartucho, ao lado de sua esposa, filhos e um punhado de fiéis correligionários, entre eles os dois amigos de Floresta, Serafim Ferraz e José de Moraes. Todos eles se renderam juntos, ao fim de dois dias de intenso combate, quando chegou o capitão Simplício Pereira da Silva com duzentos homens, em reforço a seu irmão. Presos, não tardaram a serem liberados. Especula-se que um acordo previu a "retirada" de Nogueira Paz para o vizinho estado da Paraíba e que amizades pessoais que o liberal mantinha com alguns dos Pereira transcendiam as afiliações políticas (Gominho, 1993, p. 70; Souza Neto, 2004, p. 209).

Mas a trégua durou pouco. No ano seguinte, os três amigos foram acusados de mando do assassinato de um padre conservador no dia das primeiras eleições primárias sob o controle deste partido. Indignados perante a acusação, decidiram resistir às ordens de prisão expedidas contra eles. Dessa vez, os combates que se sucederam ao longo de meses tiveram lugar nas matas da Serra Negra e nas caatingas do Navio, em Floresta, zona de influência de Serafim e José, onde eles haviam se refugiado e recrutado o apoio de parentes e "homens de confiança". Os correligionários liberais enfrentaram destacamentos policiais enviados pelo presidente da província em reforço às tropas privadas e à Guarda Nacional, organizada por Manoel Pereira da Silva. Nogueira Paz desapareceu durante uma luta e seu corpo só foi encontrado muitos anos mais tarde. Os dois outros amigos resistiram por mais alguns meses, mas as forças eram por demais desiguais. José se refugiou e Serafim foi preso, mas não tardou a ser anistiado ainda em 1850. Seu argumento de defesa era que eles não haviam lutado contra o governo, mas contra seus perseguidores políticos (Souza Neto, 2004, p. 240). Passada a turbulenta onda de perseguição pessoal, policial e política, ambos retornaram à vida pública. Serafim foi agraciado com o título de Oficial da Ordem da Rosa, conferido pelo Imperador D. Pedro II (Gominho, 1993, p. 124).

No "fogo de Flores" e na "rebelião da Serra Negra", os historiadores sertanejos encontram as razões da transferência para Tacaratu da sede do Termo de Floresta, em 1849, e, em 1851, da emancipação de Vila Bela (antiga Serra Talhada), promovida à nova sede do município e comarca de Flores que, por sua vez, é rebaixada à condição de povoado e freguesia (Ferraz, [1957] 2003, pp. 149, 235, 250-251). Na sua perspectiva e de seus conterrâneos, o destino político dos núcleos de povoamento definiu-se junto com o de seus líderes.19 19 As relações entre poderes locais e centrais são assunto de uma vasta literatura historiográfica, política e sociológica, clássica no Brasil (por exemplo Duarte [1939] 1966; Holanda, 1936; Oliveira Vianna, 1949; Leal, 1948; Faoro, 1958). Eles parecem assumir que nessa definição as atitudes e as predisposições individuais importam tanto quanto a intervenção de forças e agentes distantes, do "governo" em particular.

Os chefes locais são aqueles que constroem e planejam a edificação das casas e capelas, organizam feiras, promovem festas e solenidades, arregimentam combatentes em socorro aos amigos e resistência aos inimigos, prodigalizam favores. Mas investidos de autoridade política, seu desempenho ganha nova dimensão. Pontuadas de transcrições de troca de correspondência entre presidentes de câmaras ou prefeitos e presidentes da província e de debates parlamentares, as histórias municipais documentam uma postura, por parte dos chefes locais, de intercedência junto aos governos para alcançarem promoções, benefícios e recursos em nome da manutenção da ordem e da promoção do desenvolvimento público. Além de suas atribuições ordinárias (nomeações, recrutamentos, prisões, solicitação de verbas para as despesas públicas), eles apoiavam projetos de emancipação, acusavam os desmandos de seus adversários, pediam socorro em tempos de seca e reforços em homens, armas e munição para a defesa da paz (Villela, 2004, 2008). Em sua postura, eles demonstravam assumir que as boas relações na assembleia provincial e com as autoridades públicas faziam pender em seu favor o instável equilíbrio de forças que disputavam localmente com outros chefes e seus grupos de apoiantes. A afiliação partidária era um requisito necessário, embora não suficiente, à conversão de liderança em autoridade reconhecida pelo governo e serviu ao duplo propósito de estabelecer o caminho para angariar apoio externo às reivindicações e de alinhar os grupos que se formavam em torno de líderes locais em facções. Dessa forma, as disputas internas recobriam-se de caráter político, absolutamente sujeitas a influências externas, que por sua vez se pretendia cooptar em proveito das posições particulares nas disputas internas.

Epílogo

A controvérsia persistente entre a atuação do Estado e as iniciativas privadas e o momento crítico da emancipação política; a eleição dos atores a que se deve atribuir o destino coletivo; os limites e as exclusões das memórias e do memorável; a família como ator coletivo e os papéis que desempenha no conjunto das relações sociais dentro e fora das comunidades locais; todas essas questões são elementos que distingui na análise do conjunto dos relatos que reuni em alguns municípios do Mato Grosso e de Pernambuco, concernentes à sua fundação e história, apesar da distância no tempo e no espaço dos processos que lhes deram ensejo. Não obstante, esses pontos comuns emergem a partir de diferenças significativas de conteúdos e estilos narrativos próprios às duas formações sociais. As diferentes concepções de origem que nelas prevalecem abriram caminho à sua apreensão.

Com efeito, a referência permanente às cidades localizadas na região Sul, assim como a mínima relevância concedida à nomeação dos avós ou qualquer parente de segundo ou terceiro grau entre os sulistas de Mato Grosso contrasta acentuadamente com a multiplicidade de nomes de ancestrais, colaterais e afins que os sertanejos invocam para contar suas histórias pessoais e dos lugares a que pertencem. Mapas políticos e diagramas de parentesco foram duas ferramentas a que sistemática e respectivamente recorri para me situar perante os dados coletados nas duas regiões.

As narrativas sobre o pioneirismo em Mato Grosso basicamente enunciadas em primeira pessoa põem em evidência as realizações do próprio narrador ou de um limitado grupo ao qual ele se identifica, por vezes quase indistinguível pelo uso do singular. Com esse recurso estilístico, fronteiras de comunidade são implicitamente colocadas, ora muito estreitas em torno de um ego ou de seu grupo familiar mais próximo, ora estendidas a um grupo de amigos e colaboradores ou à "sociedade" identificada aos "sulistas". Para além delas, em oposição, senão em adversidade, em relação a esses "nós", encontram-se o Estado e outros concidadãos. Malgrado todas as evidências da concorrência destes atores no destino socioeconômico-político dos municípios do médio-norte de Mato Grosso, eles tendem a ser excluídos dos créditos da sua história, tal como a narram aqueles que se assumem como seus únicos protagonistas.

A prerrogativa de pertencimento e melhor posicionamento a respeito do que esses "gaúchos" entendem por "sociedade" depende muito menos de seus vínculos de parentesco do que de sua arrogada participação na fundação de um lugar, no seu crescimento econômico e desenvolvimento humano; assim como do fato de compartilharem gostos, comportamentos, atitudes e valores que devem reger a vida privada e que se manifestam publicamente. Embora a referência ao Sul evoque um tempo e um espaço anteriores, esses atores querem sempre voltar-se para frente e para o futuro e reencenar mais adiante, com as novas gerações, o mesmo roteiro de conquistas em sua ininterrupta trajetória.

O dispêndio privado em prol da causa pública marca também as narrativas sertanejas sobre a fundação e o desenvolvimento dos municípios e povoados sertanejos. As relações concretas, de aliança política e pessoais estabelecidas com agentes do "governo" e da sua oposição parecem traduzir o ponto de vista que ali prevalece a respeito do Estado, como fonte de regulamentos e de recursos, de que é preciso valer-se e tanto quanto possível evitar contrapor-se, em nome de interesses próprios e daqueles sob sua liderança. Nessas condições, essas relações importam também como ingrediente decisivo na correlação de forças locais. O prestígio pessoal, de um grupo ou uma facção é produto do reconhecimento das suas realizações e relações tecidas individual e coletivamente, do passado e do presente, dentro e fora dos municípios.

Em seu estilo episódico e fundamentalmente enunciadas em terceira pessoa, às narrativas sertanejas sobre o passado somam-se informações genealógicas e sobre relacionamentos pessoais específicos que permitem situar personagens e público, uns perante os outros, em redes de relações que ultrapassam os eventos e atores descritos, estendem-se no tempo e no espaço, expressam um jogo de exclusões e inclusões e orientam hierarquizações sociopolítico-morais. Os sertanejos contam essas histórias como forma de enunciar quem são através de outros, com quem se identificam. Nesse mesmo intuito, eles se servem do conhecimento de alguns guardiães da memória coletiva e das genealogias locais que permite posicioná-los em redes de parentesco que ultrapassam em muito os grupos domésticos em que tomam parte ao longo da vida. Assim situados, eles estabelecem fronteiras mais e menos abrangentes de pertencimento. No tempo, os ancestrais colonizadores traçam os limites mais remotos de inclusão, mas são as relações atualizadas no presente, não somente parentais nem apenas locais, que explicitam as distâncias e posições relativas. Nesse processo de identificação mediado por terceiros, atitudes, comportamentos, valores e escolhas individuais padecem de certas predeterminações coletivas que intervêm no destino de cada um. O futuro não é somente por isso antecipável, mas os sertanejos parecem entender que nele intervêm mais do que esforços, objetivos e escolhas conscientes e individuais. O sertão pernambucano é uma região secularmente ocupada por uma população que se define por seu pertencimento a ela. Também conhecidos pela sua diáspora, os sertanejos cultivam ao seu modo um sentido de identificação a seu lugar de origem, mesmo à distância. Eles, contudo, não fazem de seus deslocamentos uma sorte de conquista territorial ou cultural. Aqueles que permanecem ou desejam retornar definitiva ou temporariamente à sua terra natal olham para o passado, não só o individual, mas também o coletivo, em busca de coautores de seu devir.

Notas

BIBLIOGRAFIA

Artigo recebido em 25/05/2012

Aprovado em 28/11/2012

  • ABREU, J. C. de. ([1907] 1982), Caminhos antigos e povoamentos do Brasil & capítulos de história colonial. Brasília, Editora da Universidade de Brasília.
  • ALMEIDA, M. W. B. de. (1986), "Redescobrindo a família rural brasileira". Revista Brasileira de Ciências Sociais, 1 (1): 66-83.
  • APPADURAI, A. (1981), "The past as a scarce resource man". The Journal of the Royal Anthropological Institute, 16: 201-219.
  • BARROZO, J. C. (2008), "Políticas de colonização: as políticas públicas para a Amazônia e o Centro-Oeste", in J. C. B. (org.), Mato Grosso: do sonho à utopia da terra, Cuiabá, EdUFMT/Carlini & Caniato Editorial.
  • BARTH, F. (1969), Ethnic groups and boundaries: the social organization of culture difference Londres, Allen & Unwin.
  • BERNARDES, J. A. (2005), "Circuitos espaciais da produção na fronteira agrícola moderna: BR-163 matogrossense", in Júlia Adão Bernardes e O. d. L. F. Filho (eds.), Geografias da soja. BR-163: fronteiras em mutação Rio de Janeiro, Arquimedes Edições.
  • BEUTER, I. (2000), Nova Ubiratã: "município-berço do início da colonização do norte do Estado do Mato Grosso" Cuiabá, Futura.
  • BRANDÃO, C. R. (1982), "Parentes e parceiros, relações de produção e relações de parentesco entre camponeses de Goiás", in Antonio Augusto Arantes et al (eds.), Colcha de retalhos, São Paulo, Brasiliense.
  • CARDOSO DE OLIVEIRA, L. R. (1981), Colonização e diferenciação: os colonos de Canarana Rio de Janeiro, Museu Nacional/UFRJ.
  • CHANDLER, B. J. (1980), Os Feitosas e o sertão dos Inhamuns Fortaleza/Rio de Janeiro, UFC/Civilização Brasileira.
  • CINTRÃO, R. P. (s/d.), "Evolução da malha municipal na área do atual estado do Mato Grosso - 1940-2006" (mimeo.
  • CORREIA DE ANDRADE, M. ([1963] 1998), A terra e o homem no Nordeste Recife, Editora Universitária UFPE.
  • COSTA PINTO, L. A. (1949), Lutas de famílias no Brasil São Paulo, Companhia Editora Nacional.
  • DESCONSI, C. (2011), A marcha dos pequenos proprietários rurais:trajetórias de migrantes do Sul do Brasil para o Mato Grosso Rio de Janeiro, E-papers.
  • DIAS, E. A., & BORTONCELLO, O. (2003), Resgate histórico do município de Sorriso: "Portal da Agricultura no Cerrado Mato-grossense" Cuiabá, Edição das autoras.
  • DUARTE, N. ([1939] 1966), A ordem privada e a organização política nacional São Paulo: Companhia Editora Nacional.
  • FAORO, R. (1958), Os donos do poder Porto Alegre, Globo.
  • FERRAZ, A. ([1957] 2003), Floresta: memórias duma cidade sertaneja no seu cinquentenário Floresta, Secretaria de Educação e Cultura.
  • FERRAZ, M. (1978), O canto do acauã Belém, PA, s/e.
  • FORTES, M. (1974), O ciclo do desenvolvimento do grupo doméstico Brasília, Editora Universidade de Brasília (Cadernos de Antropologia 6).
  • GARCIA, A. & HEREDIA, B. (1971), "Trabalho familiar e campesinato". América Latina, 14 (1-2).
  • GOMINHO, L. F. (1993), A rebelião da Serra Negra: a praieira no Sertão Floresta, PE, Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Floresta.
  • ______. (1996), Floresta: uma terra, um povo Floresta, Fiam/Centro de Estudos de História Municipal/Prefeitura de Floresta.
  • GREGORY, V. (2008), Os eurobrasileiros e o espaço colonial: migrações no oeste do Paraná (1930-1970) 2 ed. Cascavel, PR, Eduoeste.
  • HAESBAERTH, R. (1997), Dês-territorialização e identidade: a rede gaúcha no Nordeste Niterói, Editora da UFF.
  • HALBWACHS, M. ([1968] 2009), A memória coletiva Porto Alegre, Centauro.
  • HARRIS, M. (1971), Town and country in Brazil Nova York, The Norton Library.
  • HEREDIA, B. M. A. de. (1979), A morada da vida: trabalho familiar de pequenos produtores do Nordeste do Brasil Rio de Janeiro, Paz e Terra.
  • HERZFELD, M. (2005), Cultural intimacy: social poetics in the Nation-state 2 ed. Nova York, Routledge.
  • HOLLANDA, S. B. (1936), Raízes do Brasil Rio de Janeiro, José Olympio.
  • KOSTER, H. (1942), Viagens ao Nordeste do Brasil São Paulo, Cia. Editora Nacional.
  • LATOUR, B. (2005), Reassembling the social: an introduction to actor-network-theory Oxford/Nova York, Oxford University Press.
  • LEAL, V. N. (1948), Coronelismo, enxada e voto São Paulo, Forense.
  • LIRA, J. G. de. (1990), Lampião: memórias de um soldado de volante Recife, Companhia Editora de Pernambuco.
  • LOPES, D. R. (2003), Triunfo: a corte do sertão Santa Cruz da Baixa Verde, Gráfica Folha do Interior.
  • LORENA, L. (2001), Serra Talhada: 250 anos de história, 150 anos de emancipação política Serra Talhada, Sertagráfica.
  • MARQUES, A. C. (2011a), "Considerações sobre construção de uma moralidade econômica como modo de governo da riqueza e dos homens". Actas del X Congreso Argentino de Antropologia Social
  • MARQUES, A. C. (2011b), "Intrigas and questões: blood revenge and social network in Pernambuco, Brazil", in E. A. H. Bernadette Descharmes, Caroline Kruger, Thomas Loy (eds.), Varieties of friendship: interdisciplinary perspectives on social relationships, Göttingen, V&R Unipress, pp. 337-354.
  • MARTINS, J. S. (2009), Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano. 2 ed. rev. e atualizada. São Paulo, Contexto.
  • MEYER, D. R. (1979), A terra do santo e o mundo dos engenhos: estudo de uma comunidade rural nordestina Rio de Janeiro, Paz e Terra.
  • MOMBEIG, P. (1984), Pioneiros e fazendeiros de São Paulo São Paulo, Hucitec/Polis.
  • MORENO, G. (2007), Terra e poder em Mato Grosso: política e mecanismos de burla - 1892 a 1992 Cuiabá: Entrelinhas/UFMT.
  • MOURA, M. M. (1978), Os herdeiros da terra: parentesco e herança numa área rural São Paulo, Hucitec.
  • OLIVEIRA VIANNA, F. J. de. (1949), Instituições políticas brasileiras Rio de Janeiro, José Olympio.
  • OLIVEN, R. G. (1991), "Em busca do tempo perdido: o movimento tradicionalista gaúcho". Revista Brasileira de Ciências Sociais, 15: 40-51.
  • PALMEIRA, M. (1989), "Modernização, Estado e questão agrária". Estudos Avançados, 3 (7): 87-108.
  • RENK, A. (2000), Sociodisséia às avessas Santa Catarina, Grifos.
  • SÁ, N. F. N. de. (1998), Genealogia do casal Pedro Joaquim da Silva e Gertrudes Maria de Sá Floresta, TDA Gráfica e Editora.
  • SANTOS, J. V. T. dos. (1982), Colonos do vinho: estudo sobre a subordinação do trabalho camponês ao capital São Paulo, Hucitec.
  • ______. (1993), Matuchos: exclusão e luta. Do Sul para a Amazônia Petrópolis, Vozes.
  • SEYFERTH, G. (1974), A colonização alemã no Vale do Itajaí-Mirim Porto Alegre, Movimento.
  • ______. (1984), "Camponeses ou operários: o significado da categoria colono numa situação em mudança". Revista do Museu Paulista, 29: 73-96.
  • ______. (1985), "Herança e estrutura familiar camponesa". Boletim do Museu Nacional, Nova Série, 52.
  • SIMON, P. (2009), A diáspora do povo gaúcho Brasília, Senado Federal.
  • SOUZA FERRAZ, C. A. (1999), História municipal de Floresta: os vales, o povo, a evolução sociocultural e econômica Floresta, Fidem/Prefeitura Municipal de Floresta.
  • SOUZA NETO, B. de. (2004), Flores do Pajeú: história e tradições Recife, Printer Gráfica e Editora.
  • VALENTINI, D. J. & RADIN, J. C. (2011), "Camponeses no sertão catarinense". Anais do XXVI Simpósio Nacional de História - ANPUH, São Paulo.
  • VELHO, O. (1970), Frente de expansão e estrutura agrária Rio de Janeiro, Zahar.
  • VERNANT, J. P. (2009), A travessia das fronteiras São Paulo, Edusp.
  • VILLELA, J. L. M. (2004), O povo em armas: violência e política no sertão de Pernambuco Rio de Janeiro, Relume Dumará
  • ______. (2008), Política e eleições em Pernambuco: o povo em armas Campinas, Pontes.
  • WOORTMANN, E. (1995), Herdeiros, parentes e compadres São Paulo/Brasília, Hucitec/Editora da UnB.
  • ZARTH, L. L. (1998), Desencanto da nova terra: assentamento no município de Lucas do Rio Verde - MT na década de 80 Santa Catarina, UFSC.
  • 1
    As aspas simples referem-se a conceitos acadêmicos. As duplas assinalam termos utilizados em Mato Grosso e Pernambuco que tomei emprestado e assim distingo de maneira a sublinhar sentidos específicos que lhes são atribuídos nesses universos sociais.
  • 2
    Ariana Rumstain, Cristiano Desconsi, Luciana Almeida e Cláudia Prestes compunham a equipe de estudantes de pós-graduação que realizaram trabalho de campo em Mato Grosso, entre fevereiro e maio de 2008, sob minha coordenação, no âmbito do projeto Sociedade e Economia do Agronegócio (com financiamento da Fundação Ford, CNPq e Faperj).
  • 3
    Programa de Desenvolvimento dos Cerrados e Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para Desenvolvimento dos Cerrados, respectivamente.
  • 4
    Entrevista concedida em agosto de 2011.
  • 5
    Entrevista concedida em agosto de 2011.
  • 6
    Beuter (2000, pp. 97, 125).
  • 7
    O restaurante de Pedro Sucuri foi lembrado em diversas entrevistas com pioneiros. Ver Dias e Bortoncello (2003, p. 74).
  • 8
    Nei Frâncio se refere à Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande (EFSPRG), cuja empresa concessionária promoveu a colonização das terras às margens da ferrovia. A partir de 1917, com o fim da guerra do Contestado, o processo de colonização iniciado em 1910 através de uma subsidiária da Cia EFSPRG prossegue com a concessão de terras para empresas colonizadoras privadas (cf. Valentini e Radin, 2011).
  • 9
    Dados coligidos no IBGE e sistematizados por Rosângela Cintrão no âmbito do projeto "Sociedade e economia do agronegócio", financiado pela Fundação Ford e com apoio do CNPq e Faperj.
  • 10
    Ivo Beuter (2000) nomeia cada "família" através do seu chefe. A identidade dos sobrenomes, em vários casos, permite concluir que a contagem se realizou por grupos domésticos. Sobre a identificação, talvez inconsciente, entre família e grupo doméstico nas análises antropológicas em contexto rural, ver Almeida (1986, p. 68).
  • 11
    Desconsi (2011) registrou múltiplas mudanças de município de residência na sua descrição das trajetórias de deslocamento entre o Sul e o Mato Grosso entre 20 das 25 famílias de pequenos proprietários ou assentados que entrevistou em Sorriso, Lucas do Rio Verde, Ipiranga do Norte, Nova Ubiratã e Tabaporã.
  • 12
    A família de Claudino Frâncio era até então radicada em Videira (SC), embora sua clientela se concentrasse no oeste do Paraná.
  • 13
    Lopes (2003, pp. 348-364) dedica uma parte de seu livro a esses personagens em Triunfo.
  • 14
    De fato em inúmeras outras ocasiões testemunhei expressões de consideração de parte a parte entre moradores e fazendeiros, patrões e empregados, que poderiam ser descritos sob o conceito de patronagem, cuja crítica não cabe no escopo deste artigo (cf. Marques, 2011b; Villela, 2004).
  • 15
    Renda, arrecadação de impostos para o estado, população, eleitorado e número de casas na sede eram condições presentes em Sorriso, mas era preciso resguardar esses requisitos remanescentes em Nobres, município a que antes pertencia (Dias e Bortoncello, 2003, pp. 196-198).
  • 16
    A ausência de conteúdos culturais fixos e prevalências de estereótipos e dicotomias em face de variações objetivas de comportamentos, valores e símbolos diacríticos são previstas por Barth (1969, pp. 14, 27-30) a respeito dos grupos étnicos. Aqui, no entanto, a própria apreensão em relação à etnia faz-se discutível a partir dos recortes identitários variáveis no tempo.
  • 17
    Souza Neto (2004, p. 200) observa que em 1843 uma proposta semelhante havia sido apresentada pelo deputado provincial conservador Bernardino dos Reis e Silva, que foi no entanto arquivado com a queda de seu partido em Recife.
  • 18
    No Recife e arredores, a oposição entre liberais e conservadores se sobrepõe ao velho antagonismo em relação aos portugueses, que dominavam o comércio varejista, e arregimenta intelectuais, donos de engenhos e a população urbana empobrecida. As forças do governo reprimem definitivamente os rebeldes em fevereiro de 1849.
  • 19
    As relações entre poderes locais e centrais são assunto de uma vasta literatura historiográfica, política e sociológica, clássica no Brasil (por exemplo Duarte [1939] 1966; Holanda, 1936; Oliveira Vianna, 1949; Leal, 1948; Faoro, 1958).
  • *
    Desde 2010, a Fapesp financia meus projetos de pesquisa individuais, envolvendo períodos de trabalho de campo em Mato Grosso e em Pernambuco, o levantamento de dados e a revisão de materiais obtidos em etapas anteriores de investigação, sob novo enfoque analítico. Este artigo é resultado desse trabalho recente que incide sobre material de pesquisa coletado desde 1999, em Pernambuco, e a partir de 2008, em Mato Grosso. Agradeço as sugestões propostas pelos pareceristas anônimos da
    RBCS, que procurei acolher na revisão deste artigo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Fev 2014
    • Data do Fascículo
      Out 2013

    Histórico

    • Recebido
      25 Maio 2012
    • Aceito
      28 Nov 2012
    Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 - sala 116, 05508-900 São Paulo SP Brazil, Tel.: +55 11 3091-4664, Fax: +55 11 3091-5043 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: anpocs@anpocs.org.br