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Crítica à razão dualista/O ornitorrinco

RESENHAS

Dois clássicos em um

Leonardo Mello e Silva

Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo, Boitempo, 2003. 150 páginas.

A "Crítica à razão dualista" é um ensaio de 1972,1 1 A economia brasileira: crítica à razão dualista, Petrópolis, Vozes/Cebrap, 1981. Publicado originalmente em Estudos Cebrap (2), 1972. que reaparece em 2003 em livro, juntamente com outro ensaio, chamado "O ornitorrinco". O primeiro é um clássico da ciência social brasileira; o segundo, embora menos espichado no tamanho, caminha para o mesmo destino. A junção desses dois trabalhos deu ensejo a uma nova publicação, a cargo da editora Boitempo, permitindo ao leitor uma espécie de balanço de trinta anos transcorridos entre o diagnóstico dos impasses do desenvolvimento brasileiro e a deriva dessa trajetória truncada, desembocando em um cenário de barbárie e opulência que está muito bem representado na capa do livro, com a foto da avenida Luis Carlos Berrini, em São Paulo, ícone da modernidade capitalista do país e espécie de "nova Avenida Paulista", vista pela lente da favela que lhe está justo em frente, separados – favela e avenida – pelo nauseabundo rio Pinheiros. Essa imagem traduz bem o alcance dos dois ensaios aqui reunidos porque, no fundo, eles são uma reflexão sobre as desigualdades de base que atravessam a sociedade brasileira desde pelo menos o pós-1930, passando pela consolidação da estrutura industrial, que fecharia o ciclo da modernização capitalista do século XX, no período conhecido como milagre econômico (1968-1974) – última onda de crescimento duradouro da economia brasileira antes das chamadas "décadas perdidas" dos anos de 1980 e 1990 –, e que mostram os seus efeitos por meio da estagnação, do desmanche de instituições regulatórias, da desintegração do tecido social e da violência. O conjunto formado por esses dois trabalhos é, assim, maior do que a pretensão de origem – especialmente no que tange à "Crítica à razão dualista", que se propunha um balanço da produção intelectual sobre o subdesenvolvimento (o que incluía a literatura econômica, mas não só; a sociologia, a ciência política e a filosofia também foram convocadas), levando o autor a um confronto crítico com a tradição estruturalista do pensamento da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), assim como com as correntes da "dependência" que então circulavam no meio acadêmico. Desse modo, ao fincar a análise do presente de então (início dos anos de 1970) a uma consideração do passado, Francisco de Oliveira terminou por acertar o passo de nossa dialética da entrada na modernidade capitalista, cuja marca, explicitada já no primeiro capítulo do ensaio, pode ser descrita como sendo o "uso" que o setor moderno da economia faz do setor "atrasado", cravando uma unidade contraditória, mas funcionalmente operante, contra a interpretação dominante que via antagonismo e incompatibilidade entre os dois setores ou "pólos". Na fórmula que a partir de então ganhava uma feição sistemática e demonstrada, o pólo dinâmico servia-se do pólo atrasado para desenvolver-se, e tal achado vai se incorporar como uma aquisição intelectual que semeará as outras disciplinas e áreas das ciências sociais no Brasil – incluindo aí os estudos culturais e a literatura.2 2 Não à toa, a atual edição suprimiu do título a expressão "a economia brasileira", presente na primeira edição. Reconhecimento do caráter nem tanto assim especializado e mais interdisciplinar da obra. Pesquisas sobre o empresariado nacional e as raízes de um pensamento liberal (ou a ausência dele) na formação da modernidade brasileira; as contradições de uma modernização social e econômica levada a cabo por um Estado Corporativo, assim como a oscilação dos sentimentos de desfaçatez e mal-estar entre as elites oligárquicas diante da realidade da escravidão, levando às famosas "idéias fora do lugar",3 3 Roberto Schwarz, Ao vencedor as batatas, São Paulo, Duas Cidades, 1977. tudo isso são desdobramentos da temática do lugar do moderno e do atraso, esboçada com precisão no ensaio da "Crítica".

Quando o diagnóstico transita para o campo sociológico, é a estrutura social que se desvela no arranjo entre coronéis e empresários, ofuscando uma suposta clareza que oporia burguesia nacional e setores agrário-exportadores, ou, mais contemporaneamente, capital financeiro e capital produtivo. Do lado do trabalho, essa mesma estrutura social vai encontrar o setor "informal" alimentando a superexploração da parcela assalariada da força de trabalho, catapultando a acumulação que não se faz (apenas) pelas vias "clássicas" do conflito entre as classes do capital e do trabalho. No texto, fica aberta ademais a hipótese de que essa não seja uma característica somente "nacional", sendo o amarramento particular entre "moderno" e "arcaico" um traço talvez estrutural do capitalismo realmente existente e mesmo de outros modos de produção. Dessa forma, o mergulho fundo na análise de uma situação concreta – a formação do modo de produção de mercadorias num país periférico –, tendo por baliza a desconstrução da noção de "dualidade" (onde o atrasado é o "pré-industrial" e o moderno, o "industrial"), não deixa de ter, indiretamente, um olhar voltado para a comparação com outros casos, em outros contextos, o que dá um sentido inadvertidamente pouco provinciano ao ensaio: da mesma forma que, em analogia talvez ousada demais, possa se falar da universalidade do romance machadiano ao resolver literariamente, mediante uma forma artística ímpar, o paradoxo contido na convivência entre discurso universal da burguesia esclarecida e dependência econômica associada com manutenção de estruturas sociais eticamente condenáveis na figura extremada do trabalho servil (o "ponto nevrálgico por onde passa e se revela a história mundial", nos dizeres de R. Schwarz4 4 Idem, pp. 23-24. ), quem sabe possa se entrever aqui, na recapitulação crítica do pensamento econômico latino-americano (a formulação cepalina) um lampejo de atualização do desenvolvimento desigual e combinado de uma maneira geral. Como se vê, as implicações vão muito além da economia ou da sociologia strictu senso e inserem-se no campo mais vasto do que se poderia designar, à falta de um termo melhor, como "estudos sobre a modernidade brasileira".

"Crítica à razão dualista" está dividido em seis capítulos: no primeiro, "Uma breve colocação do problema", é apresentada a questão do desenvolvimento e os quadros gerais de sua insuficiência teórica, segundo o autor. No segundo, "O desenvolvimento capitalista pós-anos 1930 e o processo de acumulação", o período que se estende até os meados dos anos de 1950 com o Plano de Metas de JK é caracterizado como o de "destruição" das antigas bases da acumulação que se assentavam na extroversão, simultaneamente à "criação" das condições para um desenvolvimento endógeno, entre as quais está a força de trabalho assalariada industrial, forjada sob o predomínio do populismo, o que permitiu dessa forma a estabilização de um dos fatores essenciais para pôr em marcha o processo de expansão urbano-capitalista. O juízo sobre o papel da legislação trabalhista nesse processo tornou-se determinante pela forma com a qual repôs a problemática da reprodução da força de trabalho e do exército industrial de reserva como uma das modalidades de "fundo público" da acumulação. As outras modalidades (mais reconhecíveis) são: a arbitragem de subsídios e de isenções fiscais entre setores, além do próprio investimento em infra-estrutura. Aparece aqui também o papel da agricultura como financiadora do excedente para inversão de bens de capital e intermediários, por meio do trabalhador do campo – ou camponês –, que acaba por fornecer as condições para uma verdadeira acumulação originária, mediante a redução do custo de reprodução da força de trabalho nas cidades. Nessa altura, que é um dos pontos altos do ensaio, o autor chama a atenção para a unidade de processos sociais que pareciam se desenvolver de maneira estanque, tais como a diminuição dos preços dos gêneros alimentícios vegetais da lavoura e o aumento da taxa de lucro na indústria. A prescindibilidade do setor agrícola ou rural em relação ao setor moderno no âmbito do consumo ganha um outro feitio, oposto, quando se analisa do ponto de vista da produção: nesse caso, o moderno aumenta mais ainda a sua taxa de lucro, o que explica a tendência à concentração da renda. Os limites da explicação da industrialização pelo processo de substituição de importações são também abordados, conduzindo a questão para as variáveis internas (mais-valia absoluta e relativa). Ainda nesse capítulo vamos encontrar a discussão sobre o terciário "inchado" e a indicação de que informalidade e acumulação formam um conjunto coerente: os serviços, em aparência improdutivos (por exemplo, serviços pessoais, os quais chamaríamos hoje de "atividades por conta própria"), na verdade encontram seu dinamismo nos períodos de maior expansão da economia, capitaneado pelo setor secundário (industrial) – à época, os debates acerca da associação entre urbanização e marginalidade raramente apresentavam o problema dessa maneira.

O terceiro capítulo, sobre a revolução burguesa no Brasil, marca a consolidação de um padrão econômico que, depois dos anos de 1930, passa a ter como característica central o fato de que o sistema se repõe a partir dele mesmo, sem o impulso necessário de "fora"; em outras palavras, trata-se da famosa endogenização das condições de acumulação. O quarto capítulo, cobrindo o período desenvolvimentista e da abertura ao capital estrangeiro com incorporação de tecnologia, vai trazer à compreensão do arranque industrializante e da formação de um mercado interno os dados que deslocam da economia para a política as razões do sucesso da empreitada: as famosas querelas entre cientistas políticos sobre o caráter da Revolução de 30 são recolocadas magistralmente em poucas linhas, quando fica nítido que os constrangimentos externos são processados pelas relações internas de classe, e o atamento desse interesse com o interesse da "nação", em uma verdadeira operação de hegemonia. Os índices mais determinantes a partir de então para se entender o sucesso do modelo passam a ser internos, como o valor do salário mínimo e a relação entre salário real e produtividade, assim como entre salário real e custo de reprodução da força de trabalho urbana (p. 78), ambos os indicadores fornecendo o parâmetro para a taxa de exploração do trabalho, variável decisiva do período. O capítulo cinco analisa a vaga pós-1964, decifrando o papel jogado pela concentração de renda na totalidade coerente da economia brasileira. Finalmente, o capítulo seis retoma as considerações anteriores e demonstra a não-incompatibilidade entre a junção particular e específica do velho e do novo na formação brasileira, por um lado, e, por outro, a "fuga para a frente", representada pela continuidade do processo de acumulação. Estava anunciado o bicho.

"O ornitorrinco" é já de uma fornada mais recente. Nesse texto, o foco originário da "Crítica" radicalizou-se no sentido de aprofundar o impasse civilizatório do "moderno", conduzindo o leitor até o cenário do século XXI, em que impera o desmanche e o fracasso daquele projeto, que é o projeto do desenvolvimento da periferia. Desse modo, "O ornitorrinco" é também a narrativa de uma ruptura. Ruptura com as esperanças do desenvolvimento, entendido como processo de integração ou de estabilização de uma trajetória de acumulação de expectativas. Em outros termos, a destruição de lugares sociais a partir dos quais se teciam projetos de mobilidade e transformação de posições de grupos e classes. Se a crítica da dualidade já mostrava a sobreposição do moderno e do arcaico, um dos pólos (o campo ou a cidade, por exemplo) ao menos fornecia uma espécie de porto-seguro para as estratégias sociais de "aposta": o migrante que se estabelecia no Sudeste usava a base do capitalismo industrial mais avançado para uma acumulação primitiva para si e para o resto da família que ficou no Nordeste, enquanto essa última contava com a longa duração da desigualdade econômica e do poder absoluto dos proprietários de terras para ir construindo também a sua própria referência e suas escolhas, a saber, acompanhar os que partiram ou ficar e rebecer os que fracassaram "em São Paulo", mesmo à custa das opressões de sempre. Quando as transformações do neoliberalismo de hoje arrasam as relações de interdependência conhecidas entre o moderno e o arcaio, conduzindo-as a um novo patamar, destróem os portos-seguro de antanho, sem apontar para a construção de novos, devido ao terreno de enorme indeterminação no qual está assentado. Assim, a pequena propriedade ou o pouco da terra que sustentava uma família é expulsa pelo agro-negócio; o desemprego e a reestruturação produtiva minam o sonho de um destino baseado na relação salarial de tipo fordista, e as privatizações e as reformas no serviço público eliminam uma fonte importante de absorção e sedimentação estamental para as classes médias. De todos os lados de onde se vê, o "desenvolvimento" é hoje um pálido simulacro do projeto que constava da agenda da literatura sociológica brasileira e latino-americana dos anos de 1960 e 1970, mesmo na dissecação que já lhe havia dedicado a "Crítica" de 1972.

Isso é expresso na atualidade, entre outras coisas, tanto pelo drama da violência social "privatizada" (pobres em guerra contra pobres), como por uma espécie de demissão das burguesias com qualquer plataforma nacional – o que fica patente com a fase atual de financeirização e globalização econômica. Essa situação seria o resultado de dois processos negativos que se sobrepõem: primeiro, a não resolução – nos termos da antiga teoria do desenvolvimento – dos impasses estruturais da modernização em um país latino-americano; e, segundo, a vinculação imediata, pelo lado das empresas, com o ciclo da terceira revolução tecnológica de base microeletrônica, que leva à economia de postos de trabalho e a escalas de investimento (inclusive em conhecimento) impensáveis para os países periféricos. O ornitorrinco, que é uma metáfora de um ser malformado, a meio caminho da evolução, não vê mais saída – do tipo daquela que era anunciada, à guisa de programa, nas palavras finais da "Crítica" de 1972: "apartheid ou revolução social". O apartheid virou condição naturalizada de um estado de exceção (convivendo, aliás, perfeitamente com as instituições democráticas) que se vai reproduzindo como regra e fagocitando as promessas de mudança. Nesse mau agouro para os cidadãos e cidadãs do Brasil, um desafio para as ciências sociais.

Notas

LEONARDO MELLO E SILVA é professor do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP.

  • 1
    A economia brasileira: crítica à razão dualista, Petrópolis, Vozes/Cebrap, 1981. Publicado originalmente em
    Estudos Cebrap (2), 1972.
  • 2
    Não à toa, a atual edição suprimiu do título a expressão "a economia brasileira", presente na primeira edição. Reconhecimento do caráter nem tanto assim especializado e mais interdisciplinar da obra.
  • 3
    Roberto Schwarz,
    Ao vencedor as batatas, São Paulo, Duas Cidades, 1977.
  • 4
    Idem, pp. 23-24.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Abr 2007
    • Data do Fascículo
      Fev 2005
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