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Os usos políticos locais da "integração regional"

Local political usage of regional integration

Les usages politiques locaux de l'intégration régionale

Resumos

As atitudes dos políticos entrerrianos frente à integração com o Rio Grande do Sul não são homogêneas. De fato, se os três governos justicialistas que se sucederam entre 1987 e 1999 impulsionaram tal processo, a nova administração da UCR o deixou suspenso, fechando a Casa da Província de Entre Ríos em Porto Alegre (RGS). Enquanto os governos do PJ promoviam a associação entre sua província e o Rio Grande do Sul para criar um "eixo horizontal" que se opusesse ao "eixo vertical" Buenos Aires-São Paulo, o governo atual pretende se incorporar a este. Não só isso, a diversidade de posições a respeito desses temas não se esgota no enfrentamento entre oficialismo e oposição, mas se estende ao interior de cada partido político. Nesse sentido, a "integração", que teve os processos políticos locais como fonte de seu desenvolvimento, transforma-se em um fator que incide sobre a atividade política entrerriana em todos seus âmbitos de agregação. Interessa-nos, nesse sentido, analisar as formas de utilização política das representações com respeito à "integração". Examinaremos, pois, como as representações sociais são apropriadas e utilizadas pelos especialistas da política no curso dos processos definidores de sua posição relativa no domínio político.

Representações sociais; Institucionalização; Processo de integração regional; Políticas locais


The attitudes of Entrerriano politicians towards integration with Rio Grande do Sul are not homogenous. In fact, if the three justicialist governments in power from 1987 to 1999 propelled such process, the new UCR administration has kept it void, closing the Casa da Provícia de Entre Ríos em Porto Alegre (RGS). While the Justicialist Party promoted the association between its province and Rio Grande do Sul in order to create an "horizontal axis" to oppose the Buenos Aires-São Paulo "vertical axis," the current government intends to incorporate itself to the last one. And that is not all, for the diversity of positions on the subject not only is a battle between officialism and opposition, but is also found within each political party. That way, the "integration" that had the local political processes as source for its development turns into a factor falling onto the Entreterriana political activity in all its ambits of aggregation. It is interesting to analyze ways of political utilization of representing organs with respect to "integration." The article will, then, examine how much the social representations are both appropriated and used by political specialists in the course of the definite processes of their relative position in the political domain.

Social representations; Institutionalization; Process of regional integration; Local policies


Les attitudes des politiciens de la commune de Entre Ríos face à l'intégration avec l'État du Rio Grande do Sul ne sont pas homogènes. En fait, si les trois gouvernements du parti Justicialiste qui se sont succédés entre 1987 et 1999 ont donné une impulsion à un tel processus, la nouvelle administration de l'UCR l'a laissé en suspens, en fermant la Chambre de la Province de Entre Ríos à Porto Alegre (RGS). Tandis que les gouvernements du PJ faisaient la promotion de l'association entre leur province et le Rio Grande do Sul pour créer un "axe horizontal" qui s'opposerait à "l'axe vertical" Buenos Aires-São Paulo, le gouvernement actuel prétend s'incorporer à celui-ci. Et ce n'est pas tout : la diversité des positions à propos de ces thèmes ne s'épuise pas dans l'affrontement entre la position l'officielle et celle de l'opposition, mais s'étend à l'intérieur de chaque parti politique. Dans ce sens, "l'intégration", dont les processus politiques locaux ont été la source de leur développement, se transforme en un facteur qui a des conséquences sur l'activité politique de la commune de Entre Ríos dans tous ses domaines d'agrégation. Nous nous intéressons, ainsi, à l'analyse des formes d'utilisation politique de représentation par rapport à "l'intégration ". Nous examinerons, donc, de quelle façon les représentations sociales sont appropriées et employées par les spécialistes de la politique au cours des processus qui définissent leur position par rapport au domaine politique.

Représentations sociales; Institutionnalisation; Processus d' intégration régionale; Politiques locales


Os usos políticos locais da "integração regional"

Local political usage of regional integration

Les usages politiques locaux de l'intégration régionale

Maurício Boivin

RESUMO

As atitudes dos políticos entrerrianos frente à integração com o Rio Grande do Sul não são homogêneas. De fato, se os três governos justicialistas que se sucederam entre 1987 e 1999 impulsionaram tal processo, a nova administração da UCR o deixou suspenso, fechando a Casa da Província de Entre Ríos em Porto Alegre (RGS). Enquanto os governos do PJ promoviam a associação entre sua província e o Rio Grande do Sul para criar um "eixo horizontal" que se opusesse ao "eixo vertical" Buenos Aires-São Paulo, o governo atual pretende se incorporar a este. Não só isso, a diversidade de posições a respeito desses temas não se esgota no enfrentamento entre oficialismo e oposição, mas se estende ao interior de cada partido político. Nesse sentido, a "integração", que teve os processos políticos locais como fonte de seu desenvolvimento, transforma-se em um fator que incide sobre a atividade política entrerriana em todos seus âmbitos de agregação. Interessa-nos, nesse sentido, analisar as formas de utilização política das representações com respeito à "integração". Examinaremos, pois, como as representações sociais são apropriadas e utilizadas pelos especialistas da política no curso dos processos definidores de sua posição relativa no domínio político.

Palavras-chave: Representações sociais; Institucionalização; Processo de integração regional; Políticas locais.

ABSTRACT

The attitudes of Entrerriano politicians towards integration with Rio Grande do Sul are not homogenous. In fact, if the three justicialist governments in power from 1987 to 1999 propelled such process, the new UCR administration has kept it void, closing the Casa da Provícia de Entre Ríos em Porto Alegre (RGS). While the Justicialist Party promoted the association between its province and Rio Grande do Sul in order to create an "horizontal axis" to oppose the Buenos Aires-São Paulo "vertical axis," the current government intends to incorporate itself to the last one. And that is not all, for the diversity of positions on the subject not only is a battle between officialism and opposition, but is also found within each political party. That way, the "integration" that had the local political processes as source for its development turns into a factor falling onto the Entreterriana political activity in all its ambits of aggregation. It is interesting to analyze ways of political utilization of representing organs with respect to "integration." The article will, then, examine how much the social representations are both appropriated and used by political specialists in the course of the definite processes of their relative position in the political domain.

Key words: Social representations; Institutionalization; Process of regional integration; Local policies.

RÉSUMÉ

Les attitudes des politiciens de la commune de Entre Ríos face à l'intégration avec l'État du Rio Grande do Sul ne sont pas homogènes. En fait, si les trois gouvernements du parti Justicialiste qui se sont succédés entre 1987 et 1999 ont donné une impulsion à un tel processus, la nouvelle administration de l'UCR l'a laissé en suspens, en fermant la Chambre de la Province de Entre Ríos à Porto Alegre (RGS). Tandis que les gouvernements du PJ faisaient la promotion de l'association entre leur province et le Rio Grande do Sul pour créer un "axe horizontal" qui s'opposerait à "l'axe vertical" Buenos Aires-São Paulo, le gouvernement actuel prétend s'incorporer à celui-ci. Et ce n'est pas tout : la diversité des positions à propos de ces thèmes ne s'épuise pas dans l'affrontement entre la position l'officielle et celle de l'opposition, mais s'étend à l'intérieur de chaque parti politique. Dans ce sens, "l'intégration", dont les processus politiques locaux ont été la source de leur développement, se transforme en un facteur qui a des conséquences sur l'activité politique de la commune de Entre Ríos dans tous ses domaines d'agrégation. Nous nous intéressons, ainsi, à l'analyse des formes d'utilisation politique de représentation par rapport à "l'intégration ". Nous examinerons, donc, de quelle façon les représentations sociales sont appropriées et employées par les spécialistes de la politique au cours des processus qui définissent leur position par rapport au domaine politique.

Mots-clés: Représentations sociales; Institutionnalisation; Processus d' intégration régionale; Politiques locales.

Em 1988, a província argentina de Entre Ríos (ER) e o estado brasileiro do Rio Grande do Sul (RS) iniciam um processo de construção de laços políticos, institucionais, econômicos e culturais que se estendeu sem sobressaltos até o ano de 1999, quando a nova administração entrerriana decidiu abandoná-lo para empreender uma estratégia diferente no que diz respeito às suas vinculações com o Brasil. Este processo teve como ponto de partida uma reunião realizada em março de 1988, entre os governadores de três estados do sul do Brasil (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul) e das seis províncias argentinas que formam a Comissão Regional de Comércio Exterior do Noroeste Argentino – Crecenea (Entre Ríos, Corrientes, Misiones, Santa Fe, Chaco e Formosa). A partir desse ano, realizaram-se reuniões periódicas entre as máximas autoridades dos dois estados e foram organizados os Encontros Entrerriano-rio-grandenses e as Reuniões de Municípios do Mercosul (realizados de forma simultânea e com freqüência anual), eventos nos quais participavam empresários, produtores, profissionais e funcionários, tanto dos municípios como dos estados. Paralelamente às reuniões e aos encontros, os funcionários políticos dos dois estados foram tentando criar as condições institucionais necessárias a fim de que a vinculação entre ambos se tornasse efetiva juridicamente e perdurasse no tempo. Todo esse processo foi concebido pelos diversos atores envolvidos como um "processo de integração regional", terminologia que apela a conceitos empregados habitualmente em relação à União Européia, ou ao Mercosul, ou à Nafta e outros blocos internacionais.

Neste artigo, propomo-nos analisar dois aspectos desse complexo conjunto de fatos. Examinaremos, em primeiro termo, os esforços realizados pelos funcionários estatais quanto à institucionalização dessa experiência, isto é, a elaboração de instrumentos legais e a construção de agências específicas dedicadas às tarefas tendentes a produzir a integração.1 1 Sobre as instituições como produtos de processos de burocratização e de legitimação, ver Weber (1992) e Giddens (1995). Sobre a legitimação das instituições, ver Douglas (1986) e Bourdieu (1993). Em segunda instância, analisaremos a forma pela qual os Encontros e as Reuniões, longe de se limitarem a servir como instâncias de construção de relações entre políticos, funcionários e empresários, contribuíram, em diversos momentos bastante ritualizados, para impor a noção de processo de integração regional como centro das representações dos atores.

O processo de institucionalização da vinculação ER-RS

Primeiro momento: o Protocolo 23 e os poderes executivos (sub 2)

No transcurso do período entre 1988 e 1999 é possível distinguir três momentos caracterizados pelo protagonismo de diferentes instituições e atores. Tomamos como ponto de "origem" aquele em que os atores reconhecem como tal: o Protocolo 23, denominado Protocolo de Integração Regional Fronteiriça. Esse documento foi assinado em 18 de março de 1988 pelos governadores das províncias que formam a Crecenea e dos estados que formam o Codesul/Forum Sul (Santa Catarina, Paraná e RS).2 2 Com data posterior, subscreve este protocolo o Estado de Mato Grosso do Sul. Ele marca o começo da institucionalização da integração entre ER e RS, servindo como um marco jurídico imprescindível para legalizar as relações posteriormente construídas entre ambos os estados. Efetivamente, tanto as províncias argentinas como os estados brasileiros carecem da possibilidade constitucional de empreender relações exteriores de maneira independente: os Estados nacionais monopolizam o tema e devem legalizar qualquer tipo de relação que as províncias ou estados quiserem estabelecer. Assim, o que os governadores assinaram foi, a rigor, um "projeto de protocolo regional" em nome de seus respectivos governos nacionais.3 3 O texto – redigido como se os que assinassem fossem os presidentes dos respectivos estados nacionais e não os governadores – menciona a criação de um "grupo de trabalho que se encarregará de elaborar os acordos específicos que garantam o cumprimento do presente Protocolo, os quais passaram a formar parte deste". O grupo estaria formado "pela República Argentina, o Ministério de Relações Exteriores e Culto e as Províncias integrantes da Crecenea; pela República Federativa do Brasil, o Ministério de Relações Exteriores e os Estados integrantes do Condesul". O Protocolo só deixaria de ser um projeto quando fosse assinado pelos presidentes da Argentina e do Brasil em uma reunião a ser celebrada na cidade de Brasília no dia 7 de abril desse mesmo ano.

A situação de preeminência dos Estados nacionais quanto à política exterior era interpretada por parte dos governadores e seus funcionários como um sinal de subordinação dos poderes executivos estatais/provinciais, situação ante a qual reafirmavam um reclamo de autonomia – atitude compartilhada sem exceções por todos os governadores a despeito de suas afiliações político-partidárias.4 4 Mais particularmente, existia certo temor entre esses atores a respeito da possibilidade de que as chancelarias de ambos os países impedissem a assinatura do Protocolo 23. Pelo lado argentino, o temor conduziu à decisão de que um dos governadores viajaria a Buenos Aires na mesma tarde da assinatura do projeto para se reunir com o presidente Raúl Alfonsín e entregar-lhe uma cópia. Anos mais tarde, um funcionário administrativo da Secretaria de Comércio Exterior (ER), que participou ativamente da organização dessa reunião, disse-nos que o Protocolo foi uma "vitória" dos governos provinciais/estatais com respeito às "chancelarias". Definitivamente, para os governadores e para os funcionários dos poderes executivos provinciais e estatais, o Protocolo 23 constituiu um passo inicial para fazer frente à possibilidade de que suas províncias/estados ficassem à margem da nascente integração entre Brasil e Argentina, repetindo em um novo plano sua subordinação histórica com respeito aos centros de poder de cada um dos países. Nos discursos e na entrevista coletiva que os governadores deram, esses centros de poder ficaram claramente marcados: na Argentina, Buenos Aires e, no Brasil, Brasília – do ponto de vista político – e São Paulo – do ponto de vista econômico. Esse jogo de enfrentamento/negociação entre os poderes executivos provinciais/estatais e os executivos nacionais seria uma das características do processo de integração até 1999, e os discursos dos governadores e de outras autoridades locais fincaram-se reiteradamente na necessidade de consolidar um eixo leste-oeste (ER-RS) com o objetivo de enfrentar a hegemonia do eixo norte-sul (São Paulo/Brasília-Buenos Aires).5 5 Nesta disputa, os atores de ER e do RS reconheciam que o marco jurídico e legal necessário para construir a integração só podia ser proporcionado por esses poderes centrais. Assim, em seu discurso de boas-vindas ao encontro de Paraná-Santa Fe, o governador de ER afirmou que o texto "que subscreveremos para elevar às Chancelarias, representa avançar no desenvolvimento político institucional desse projeto enunciado [ ...] porque nele se cria o marco legal para que possamos ir celebrando acordos particulares". Entretanto, esses atores defendiam seu direito legítimo de se tomar conta das relações entre ambos os estados. Nesse sentido, os discursos analisados e as entrevistas por nós realizadas exibem dois elementos recorrentes: a apelação por parte dos governadores como princípio de legitimidade de seu caráter de representantes democraticamente eleitos por seu povo; e o argumento de que, diante da complexa burocracia dos governos centrais, as instituições locais podiam garantir uma maior eficácia no processo de integração.

Além dos governadores e dos executivos nacionais, por trás da assinatura do Protocolo 23 se encontram outros atores: os funcionários políticos e administrativos6 6 Tanto em ER como no RS é possível distinguir três tipos de funcionários de acordo com o modo pelo qual chegam a seus cargos: "funcionários eleitos", como governadores, prefeitos, legisladores etc.; "funcionários políticos", como ministros, secretários e diretores, que são nomeados prudencialmente pelos funcionários eleitos; e, por último, os "funcionários administrativos", conhecidos como de carreira e que freqüentemente se mantêm em seus postos de gestão em gestão. que formam parte dos executivos provinciais/estatais. Aqueles que mais sobressaíram nessas atividades foram os membros da Direção de Comércio Exterior (ER) e da Secretaria Especial para Assuntos Internacionais (RS). Os objetivos da ação desses funcionários7 7 Do ponto de vista desses atores (segundo se depreende de nossas entrevistas), os primeiros passos da integração foram dados com base nas relações pessoais mais do que nos vínculos de caráter institucional: a familiaridade no trato, o conhecimento pessoal e direto entre as autoridades e os funcionários de cada estado e entre os estados são vistos como fatores essenciais que facilitaram a assinatura do Protocolo e toda a posterior relação com o vizinho estado/província. Contudo, os objetivos desses sujeitos foram de caráter puramente institucional. centraram-se na promoção do comércio exterior de seus respectivos estados/províncias e na consolidação dos instrumentos institucionais necessários para afiançar as relações com sua contraparte estrangeira.8 8 A Direção de Comércio Exterior de ER foi criada em 1974, mas por longo tempo suas atividades estiveram muito delimitadas pelo fato de que a maior parte da produção entrerriana estava orientada ao mercado interno. Somente a partir de 1984, o objetivo da direção passou a ser a abertura de novos mercados. Nesse marco, a integração com o RS forma parte de uma estratégia para ampliar o comércio exterior. Cabe consignar que, se antes de 1987 as exportações de ER aos países que hoje formam o Mercosul eram da ordem de 10% do total provincial, em 1996 representaram 50%. Pelo lado do RS, a Secretaria Especial para Assuntos Internacionais foi criada em 1987 para – segundo um de seus funcionários – "acompanhar esse processo de integração que na época estava começando entre o Brasil e a Argentina". Estando o RS submetido às mesmas restrições que ER, a assinatura do Protocolo 23 havia de permitir à Secretaria negociar diretamente com as províncias argentinas.

O fato de que a metade das "decisões" adotadas no Protocolo 23 tenha sido de ordem econômica-comercial9 9 As decisões em questão foram as seguintes: 3) Promover um maior intercâmbio comercial das produções regionais; 5) Estabelecer projetos integrados de cooperação técnica, econômica e financeira, destinados à produção, ao armazenamento, à comercialização, ao desenvolvimento tecnológico e ao transporte de produtos da região; 6) Propiciar a modernização das atividades econômicas de área e da região da fronteira (particularmente aquelas que permitam a produção em conjunto de bens); 7) Possibilitar ações conjuntas dos bancos de fomento da região a fim de impulsionar o desenvolvimento econômico-social; e 8) Incentivar a aproximação do empresariado privado por meio de suas entidades representativas, a fim de que os agentes econômicos da região também ajam dentro do espírito de integração expresso neste Protocolo. é cabal mostra do peso que os funcionários de comércio exterior de ambas as partes tiveram no processo. Da mesma forma, é revelador do rumo assumido pela integração nesse primeiro momento. A ênfase inicial nas relações comerciais teve duas conseqüências: em primeiro lugar, ficou exposta a assimetria entre ER e RS quanto ao potencial econômico, manifestada nas "desilusões" mútuas dos empresários;10 10 Por exemplo, um funcionário entrerriano que acompanhava empresários em suas viagens ao RS nos disse que tinha advertido que estes se "intimidavam" quando chegavam a Porto Alegre porque "havia uma falta de escala na relação das coisas". em segundo lugar, e em relação com o anterior, alguns funcionários de ambas as partes começaram a expressar seu "medo" de que a integração se restringisse ao âmbito comercial. Como resultado da percepção desse rumo comercial e dos contrastes existentes entre ambos os estados/províncias, a direção da integração começou a ser modificada com a incorporação de novos atores e novas instituições.

Segundo momento: os encontros e as legislaturas

Em 1990, para RS, e 1991, para ER, deu-se a mudança de autoridades. Os novos governadores continuaram com o projeto de integração regional, mas centrando-se quase exclusivamente na relação com o outro estado/província, enquanto o marco mais amplo formado pelo acordo entre os membros do Codesul e da Crecenea foi perdendo sua dinâmica. Apesar de que nessa etapa o protagonismo dos governadores e dos funcionários dos poderes executivos tenha sido mantido, passam a compartilhá-lo com legisladores de ambos os estados/províncias. Neste ponto, as legislaturas começam a participar organicamente do processo de integração com a formação de comissões legislativas.11 11 No caso de ER, a partir da iniciativa de um deputado provincial do PJ – que a presidiria até 1999 – se constitui em 1991 a Comissão de Mercosul da Honorável Câmara de Senadores e Deputados da Província de Entre Ríos. No caso do RS, a Comissão foi criada em 1990 com o nome de Comissão de Mercosul da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Com a participação ativa dos legisladores de ambas as partes, ampliam-se as viagens (segundo nossos informantes, de 1991 a 1995 foram realizadas "mais de 60") e se produzem dois acontecimentos que depois serão considerados os "marcos" da integração: a realização em ER do Primeiro Encontro Entrerriano-rio-grandense, e a participação institucional de ER na Expointer94:

• O Primeiro Encontro Entrerriano-rio-grandense consistiu em uma reunião de dois dias de produtores e funcionários de ambos os estados/províncias e foi realizado em agosto de 1994. A iniciativa foi dos legisladores entrerrianos – particularmente do presidente da comissão legislativa –, que já haviam realizado várias viagens ao RS. O Encontro reuniu aproximadamente duzentas pessoas, em sua maioria empresários. Apenas cerca de cinqüenta assistentes provinham do Brasil (também se fizeram presentes cerca de quinze uruguaios), mas o Encontro foi considerado por seus organizadores um "êxito" porque contou com a participação efetiva das instituições interessadas na integração. Assim, fizeram-se presentes as autoridades máximas dos dois estados/ províncias, prefeitos e vereadores de pequenas cidades, legisladores e representantes das chancelarias de ambos os países. Um fato que posteriormente assumiria uma importância-chave foi a assinatura, durante o Encontro, de cartas de intenções entre municípios de ER, RS e a República Oriental do Uruguai, centradas nas áreas de turismo, educação, cultura e cooperação técnica, científica e tecnológica. A partir desse primeiro Encontro, as assinaturas de convênios desse tipo multiplicaram-se, não só entre municípios, mas também entre outras instituições (universidades, escolas, colégios profissionais etc.).

• Até esse momento, ER nunca tinha participado organicamente na Expointer; os empresários entrerrianos que assistiam o faziam por conta própria, contando, no máximo, com o assessoramento do consulado argentino em Porto Alegre. Em 1994, o governador de ER toma a decisão de que a província participe organicamente e instale seu próprio stand na Expointer94. Além disso, participaram o próprio governador, o titular da área de Economia, Obras e Serviços Públicos, os funcionários da Direção de Comércio Exterior e os legisladores da Comissão do Mercosul. A agenda do governador – preparada pelos funcionários da Secretaria de Assuntos Internacionais do RS e pelos legisladores entrerrianos – incluiu uma reunião com o governador do estado anfitrião e outra com os membros do Codesul.

Nesses dois acontecimentos, sobressai um elemento novo: a colaboração entre os poderes executivos e legislativos de ambos os estados/províncias. No caso entrerriano, do ponto de vista do poder executivo, os legisladores aparecem como vínculos necessários com os prefeitos e com os atores locais interessados na integração, representando nesse sentido um elemento importante para levá-la a cabo como canalizadores de um apoio político para as atividades desenvolvidas pelos funcionários provinciais.12 12 Tal como sucedia com os funcionários de comércio exterior, estes funcionários eleitos percebem as relações pessoais como fatores essenciais de sua ação em prol da integração. Nesse sentido, nas entrevistas que realizamos com funcionários do executivo provincial e legisladores, estes ressaltam permanentemente as relações pessoais que os uniam, contando inclusive suas afiliações partidárias. Em sua visão, o trabalho desenvolvido nesse momento foi uma tarefa mancomunada entre pessoas vinculadas entre si por laços de amizade que, omitindo seus signos políticos, se concentraram no objetivo da integração regional.

Pode-se dizer que neste segundo momento foi a província de ER a que manteve a iniciativa e levou o peso do processo de integração, atitude que havia de culminar na criação, em novembro de 1994, da Casa de Entre Ríos, em Porto Alegre (RS).13 13 Para os funcionários entrerrianos, a criação da Casa significou outro "marco", talvez o mais significativo, no processo de integração. Um dos funcionários do poder executivo comentou a respeito: "é um acontecimento histórico porque é a primeira Casa de uma província em um estado do Brasil, em um estado do sul do Brasil. E fez muito pela integração não só em relação ao econômico e ao intercâmbio comercial, mas também à integração cultural, institucional, em organizar conferências, palestras, intercâmbio estudantil". Com isso, não obstante, o estado do RS passou a ter mais iniciativa a partir da aquisição de um maior protagonismo por parte dos municípios de seu território.14 14 Todas as novas atividades desenvolvidas nesse período foram legitimadas com base no Protocolo 23, já incorporado ao marco mais amplo dos Tratados do Mercosul, assinados pelos governos nacionais.

Terceiro momento: a Casa de Entre Ríos e os municípios

A Casa de Entre Ríos em Porto Alegre é criada pelo executivo provincial por proposta do poder legislativo, e seu financiamento é dividido por ambos os poderes.15 15 Segundo o decreto de criação da Casa, entre seus objetivos básicos se encontravam os de promover e desenvolver os valores artísticos, intelectuais e esportivos do povo entrerriano; e de colaborar com os distintos organismos do estado provincial e com as diversas organizações não governamentais, desenvolvendo os contactos necessários com as instituições do governo estadual do RS. O principal incentivador do projeto da Casa foi o presidente da Comissão do Mercosul, e foram seus funcionários (assessores, secretários e empregados) que desenvolveram o trabalho de sua criação. Como diretor da Casa nomeou-se, ad-honorem, um "velho" participante ativo no processo de integração, que desde o ano de 1988 era "o representante oficial de Entre Ríos em Porto Alegre".

A partir de sua inauguração, a Casa inclinou-se a concentrar todos os contatos que as instituições e as pessoas comuns de ER mantinham com atores do RS. As idéias de seu diretor a respeito da necessidade de trabalhar em função da constituição de um "Mercosul do povo"16 16 Em entrevista, o diretor explicou sua concepção pessoal do processo de integração: "[ ...] a verdade é que há três Mercosul. Há um 'Mercosul econômico', o Mercosul [ ...] onde a participação basicamente é dos grandes capitais [ ...] . Há outro Mercosul que – digamos – é o 'Mercosul político', ou o 'Mercosul dos Estados', ou o Mercosul – digamos – dos que governam, que tem a ver com todos os aspectos de ir estruturando toda uma organização formal e necessária para que isto se constitua, que passe de um projeto para uma realidade. O terceiro Mercosul – e isto me parece que é o que nós estamos apostando – é o 'Mercosul do povo', é o 'Mercosul dos municípios', o 'Mercosul da fronteira', o 'Mercosul dos povos', o Mercosul das pessoas que querem fazer Mercosul, e que não sabem como são as vias de acesso nem como se chega nem como se pratica [ ...] . Este Mercosul é o Mercosul que Entre Ríos tem de praticar, porque Entre Ríos é uma província que tem [ ...] em sua estrutura econômica e cultural uma relação de pequenas e médias empresas, é uma sociedade agrícola – grande parte – é uma sociedade que precisa dos serviços e dos pequenos serviços. Bem, é por isso que esta Casa, digamos, de alguma maneira, trabalha nesse terceiro Mercosul". foram um dos fatores que contribuíram para que neste terceiro momento viesse a se reforçar a tendência – já insinuada a partir do Primeiro Encontro – à constituição de laços entre municípios e entre instituições de ordem local. Com esta idéia de "Mercosul do povo" é que, quando em 1995 começa a se organizar o Segundo Encontro Entrerriano-rio-grandense, convocam-se também os municípios para a realização da Primeira Reunião de Municípios do Mercosul. Na organização desse evento participam os mesmos atores e instituições que organizaram anteriormente o Primeiro Encontro, mas se somam papéis centrais da Casa de Entre Ríos e da Federação das Associações do Rio Grande do Sul (Famurs), a qual lidera a maioria dos municípios do estado.17 17 Esses municípios estão associados por região e as associações formam, por sua vez, a Federação. O total de municípios associados em 1999 era de 467, reunidos em 23 associações. Cada município paga uma módica parcela mensal fixa, a fim de sustentar a estrutura de funcionários que a Federação possui. A Famurs foi criada em maio de 1976, mas seu status como "entidade de representação dos municípios" só foi estabelecido legalmente em março de 1994.

A partir de 1995, as autoridades da Famurs começam a participar ativamente na integração, partindo precisamente de seu papel na organização da Primeira Reunião.18 18 A influência da Famurs sobre a organização das Reuniões de Municípios foi sumamente marcada. Como reflexo dela, cabe assinalar que as comissões de trabalho em que se dividem os participantes das Reuniões tomaram paulatinamente os nomes das unidades técnicas existentes no organograma da estrutura técnico-administrativa da Federação, a saber: Educação e Cultura, Saúde e Meio Ambiente, Assistência Social e Cidadania, Agricultura e Pecuária, Assessoria Jurídica. Essa participação, somada ao novo canal de comunicação representado pela Casa de Entre Ríos em Porto Alegre, deram aos atores e às instituições do RS um maior protagonismo no processo de integração. Desde então, o processo efetivo de construção de laços entre atores e instituições de ambas as partes se acelera, destacando a esse respeito os acordos entre municípios e organizações de caráter local. Esse real incremento da densidade do conjunto de relações entre atores e instituições de ER e RS ver-se-ia, finalmente, refletido no âmbito da institucionalização da integração.

Efetivamente, pelo lado entrerriano, a Direção de Comércio Exterior foi promovida à categoria de subsecretaria, transformando-se na Subsecretaria de Comércio e Relações Econômicas Internacionais. Significativamente, o subsecretário designado – que permaneceu em seu posto até a mudança de administração em 1999 – foi um dos legisladores da Comissão do Mercosul. Por outra parte, a Secretaria Especial para Assuntos Internacionais do RS se manteve, mas, em 1999, foi criada uma nova Secretaria do Mercosul, a cargo de um dos legisladores do estado que havia participado do processo de integração.

A situação atual: o eixo abandonado

A mudança de signo político, gerada pela derrota do "justicialismo" nas eleições para governador de Entre Ríos nas mãos do radical Sergio Montiel, supôs uma interrupção da promoção ativa da integração entrerriano-rio-grandense por parte do governo provincial. As máximas autoridades do novo governo mostraram seu interesse em posicionar ER no plano do eixo Brasília/São Paulo-Buenos Aires, em desmedrança do eixo alternativo entre sua província e o RS. Dessa forma, o futuro do processo de integração é duvidoso, apesar de restarem numerosos laços entre atores e instituições de ambos os estados/províncias que foram traçados especialmente desde que a preocupação pelos problemas de escala e pelo rumo exclusivamente comercial dos primeiros passos da integração levou seus promotores a abrirem o jogo para a participação dos municípios e dos atores locais.

A integração como representação social: a ritualização dos encontros/reuniões

Estamos tratando com um processo cujo objetivo explícito é a construção de laços políticos, econômicos e culturais entre dois estados/províncias. Como já foi dito, os atores envolvidos usam para se referir a esse processo a mesma expressão, processo de integração regional, mas isso não significa que suas concepções a respeito do significado, o desejo relativo e o dever ser do processo sejam homogêneos. Pelo contrário, variam muito, dado que a relação com o RS – e, mais em geral, com o Brasil – afeta de maneiras díspares os diferentes atores.19 19 Ver, por exemplo, as análises dos efeitos opostos que teve o desaparecimento das barreiras tarifárias no comércio com o Brasil sobre a produção avícola e pesqueira entrerrianas, em Boivin, Rosato e Balbi (1996, 1997). Em relação aos políticos, a integração também gerou tomadas de posição complexas e freqüentemente ambíguas. Como já vimos, os governos justicialistas que se sucederam entre 1987 e 1999 promoveram a relação com o RS como forma de contrapeso para o eixo norte-sul que aparecia como dominante na formação do Mercosul. Além dessa posição orgânica, alguns políticos peronistas fizeram da integração entrerriano-rio-grandense um elemento privilegiado na construção de suas carreiras políticas pessoais: tal o caso, marcadamente, do legislador que promoveu a criação da Comissão do Mercosul, a presidiu e fomentou desde então o estabelecimento da Casa de Entre Ríos no RS. Quanto a UCR, seu posicionamento tornou-se bastante ambíguo: por um lado tendeu a se opor organicamente à integração no que diz respeito à política do governo justicialista; mas, por outro lado, numerosos prefeitos e legisladores radicais tiveram de responder às pressões de empresários e outros atores locais preocupados em não se verem excluídos do processo (já vimos, nesse sentido, que os funcionários envolvidos na integração destacavam a importância dos laços pessoais entre políticos de diversos partidos para a canalização da participação dos atores locais no processo). De fato, as variações são tais que o sentido mesmo da palavra "integração" é diverso conforme quem a empregue.20 20 Por exemplo, os políticos e funcionários entrerrianos promotores do processo, de um lado, e os numerosos empresários e produtores que participavam do mesmo, de outro, tinham diferentes concepções a respeito da integração. Isso era marcado nas formas pelas quais concebiam a relação entre a integração e a globalização. Muitos empresários identificavam a integração como a versão regional da globalização, entendendo-a fundamentalmente como um aumento da concorrência interempresarial por efeito do estreitamento dos vínculos entre as economias dos dois estados/províncias. Por sua vez, os funcionários entendiam a integração como um atenuante dos efeitos negativos da globalização, supondo que a associação entre ER e RS permitiria aos empresários da região incrementar sua competitividade com a economia globalizada. Também cabe destacar que – como o mostra o rumo seguido pelo processo de institucionalização já examinado – a concepção que os funcionários tinham da integração excedia o plano meramente econômico.

Tratamos, então, com uma multiplicidade de versões da integração, que têm certa correspondência com as diversas categorias de atores e instituições que participam do processo. Isso significa que quando expõem suas concepções a respeito do que a integração é e/ou deveria ser, os atores o fazem a partir de pontos de vista interessados e, ao mesmo tempo, assumem de antemão uma posição. Nesse sentido, as diversas concepções do processo de integração constituem formas de "exposição simbólica" (Leach, 1976, p. 36) do processo efetivo de construção de laços entre ER e RS.

Dessa forma, gostaríamos de destacar que, apesar de os atores manterem posições diversas ou freqüentemente convergentes, a forma de expressão simbólica do processo de vinculação entrerriano-rio-grandense é a mesma para todos eles: em torno de expressões tais como "processo de integração regional", "terceiro Mercosul", "Mercosul do povo" etc. construiu-se uma "linguagem de signos" (Idem, pp. 299-300) capaz de servir como meio de expressão para as tão diversas perspectivas de atores socialmente situados. De fato, é no curso dos processos – freqüentemente conflitantes – de tomada de posição dos diferentes atores que as representações são elaboradas e contrastadas, com o resultado de que a noção de processo de integração regional se impõe como núcleo das mesmas.21 21 Referindo-se à "globalização", Velho (1997, pp. 149-150) sugeriu que ela deveria ser considerada uma forma de representação social análoga aos mitos tradicionalmente estudados pelos antropólogos, indicando que isso não supõe ignorar os conflitos que se dão em torno dela, posto que são precisamente esses conflitos os que tornam o mito pragmaticamente real.

Não nos é possível explicar no âmbito restrito deste artigo este complexo panorama, mas gostaríamos de nos deter sobre um fator-chave para a compreensão tanto do curso das disputas sobre o sentido da integração como da imposição desse vocábulo como termo de uso comum por parte de todos os atores. Referimo-nos aos Encontros Entrerriano-rio-grandenses e às Reuniões de Municípios do Mercosul, eventos de grande escala, organizados anualmente e que se tornaram uma instância fundamental na qual os múltiplos interesses contrapostos encontram uma possibilidade de se expressar. Por um lado, esses eventos congregam os diversos atores (funcionários, empresários da indústria e do comércio, produtores agropecuários, profissionais, artistas, docentes, estudantes etc.) e lhes proporcionam a oportunidade de se fazerem ouvir em um foro público e de intercambiar idéias. Tais foram, com efeito, os objetivos que presidiram sua organização desde o primeiro momento. Por outro lado, os Encontros/ Reuniões incluem uma série de instâncias altamente formalizadas que – à maneira dos rituais – expressam, objetivando-as, as concepções de seus organizadores a respeito da integração, e que contribuem decisivamente, em última instância, para impor a linguagem de signos centrada nessa noção.

Objetivos dos encontros e das reuniões

Como já foi dito, o Primeiro Encontro Entrerriano-rio-grandense foi organizado em 1994 a pedido da Comissão de Mercosul da legislatura entrerriana. Realizou-se na cidade de Victoria, onde o presidente dessa comissão tem sua base política, fato revelador do ponto até o qual este homem foi o verdadeiro promotor da idéia. Em 1995, realiza-se o Segundo Encontro na cidade de Paraná, junto com a Primeira Reunião de Municípios do Mercosul, agregado que – como já dissemos – obedeceu à intenção de evitar que a integração se restringisse a temas econômicos. A partir desse ano, ambos os eventos continuaram se realizando alternadamente em cada um dos estados/províncias: Encantado (RS) em 1996, Colón (ER) em 1997, Santa Cruz do Sul (RS) em 1998 e, por último, Gualeguaychú (ER) em 1999. Os eventos mistos que se sucedem a partir de 1995 foram verdadeiramente abrangentes, chegando a reunir em torno de 1.500 pessoas na edição realizada em Santa Cruz do Sul.

A partir de 1995, quando se iniciam as Reuniões de Municípios, estes eventos se fundem com os Encontros a ponto de ficarem quase indistinguíveis. Efetivamente, ambos os eventos ocorreram simultaneamente e em um mesmo espaço, seus atos de abertura e encerramento foram unificados (o mesmo se deu com a organização da comprovação dos participantes) e a comissão executiva que se encarregou da organização de ambos foi também a mesma. Somente a lista de comissões em que se dividiram os assistentes revela a existência de dois eventos diferenciados: assim, às duas comissões dedicadas a temáticas empresariais que tinham existido no Primeiro Encontro, somam-se, em 1995, outras duas, denominadas Comissão de Municipalismo e Legislação e Comissão de Meio Ambiente, as quais vieram a constituir, segundo os organizadores, o "coração" da Primeira Reunião de Municípios.22 22 Como veremos mais adiante, o número e a denominação das comissões variam de um evento a outro em função da avaliação que os organizadores fazem das demandas dos assistentes.

A organização dos eventos (cerca de três dias) teve, desde o princípio, objetivos sumamente pragmáticos, entre os quais se encontram o de proporcionar oportunidades para a construção de contatos entre funcionários, políticos, empresários, profissionais etc. de ambos os estados/províncias e o de permitir o intercâmbio de idéias entre atores de diversas esferas de atividade. Por meio da promoção do intercâmbio de idéias e do estabelecimento de relações concretas, esperava-se que os eventos contribuíssem para produzir a integração entrerriano-rio-grandense. Do mesmo modo, os eventos haveriam de produzir um efeito integrador com a promoção de um conhecimento pessoal entre os atores de ambos os estados/províncias. Intercâmbio de idéias, estabelecimento de contatos, conhecimento pessoal – esses resultados pretendidos pelos organizadores revelam certa concepção a respeito da integração, um diagnóstico a respeito da situação da vinculação entre os estados/províncias e da forma de modificá-la.

A integração segundo os organizadores dos encontros/reuniões

Na organização dos Encontros/Reuniões participaram nominalmente várias instituições de ambos os estados/províncias.23 23 Pelo lado de ER, a Direção de Comércio Exterior, a Comissão de Mercosul e a Casa da província em Porto Alegre; pelo lado do RS, a Comissão Legislativa, a Secretaria Especial para Assuntos Internacionais e a Famurs; finalmente, participam os municípios designados como sede de cada evento. O peso efetivo da organização, entretanto, recaiu sobre os membros da comissão entrerriana e da Casa – principais promotores dos eventos desde o primeiro momento –, a quem se somaram, em cada caso, os funcionários do município sede; quanto à parte rio-grandense, o protagonismo dos funcionários de diversas instituições foi variável, registrando-se uma participação cada vez maior do pessoal da Famurs. De qualquer maneira, o papel central do presidente da Comissão entrerriana foi excludente e, de fato, a organização de cada um dos eventos teve como ponto de partida a realização por sua parte de uma viagem ao RS para manter contatos e reuniões com os funcionários envolvidos.24 24 Também o diretor da Casa de Entre Ríos teve em cada ocasião uma participação destacada, uma vez que era ele quem preparava a agenda de Reuniões, seguida pelo presidente da Comissão em suas viagens. Levando em consideração o que tinha sido discutido com os funcionários rio-grandenses e entrerrianos, o presidente da Comissão escolhia a sede do evento25 25 Sempre houve mais de uma cidade para ser sede. Alguns membros da Comissão legislativa entrerriana (incluindo sempre seu presidente) e o diretor da Casa visitam essas cidades para avaliar se elas cumprem com os requisitos mínimos quanto à infra-estrutura: um espaço adequado para o trabalho das comissões e hotéis que permitam alojar todos os participantes do Encontro. A escolha, entretanto, se dá por outras vias, sendo essencial a afinidade partidária com os funcionários políticos do estado/província-sede envolvidos na organização. e designava a Comissão executiva,26 26 A Comissão executiva é formada por dois segmentos, constituídos separadamente. De um lado, uma Comissão encarregada dos aspectos "administrativos-econômicos" do evento – contratar os ônibus para a viagem dos assistentes e os hotéis para sua hospedagem, administrar os fundos provenientes de subsídios e das parcelas que pagam os assistentes etc. –, formada por pessoas recrutadas entre os assessores da Comissão legislativa entrerriana e os funcionários da Casa de Entre Ríos. De outro, encontra-se o grupo dos futuros coordenadores das comissões de trabalho em que se dividirá o evento – geralmente funcionários de ambos os estados/províncias a quem o presidente da Comissão entrerriana convida pessoalmente, levando em conta suas especialidades para lhes atribuir temas de acordo com elas. O nexo entre esses segmentos é o presidente da Comissão legislativa, seguido pelo diretor da Casa. à qual caberia a organização formal dos eventos.27 27 No curso dessas viagens, inicia-se a difusão do futuro evento com seu pré-lançamento nos meios de comunicação. A notícia da viagem do presidente da Comissão legislativa ao RS é publicada em jornais locais uma ou duas semanas antes de sua chegada e, uma vez tomadas as primeiras decisões sobre a organização do evento, realiza-se uma entrevista coletiva na qual os funcionários informam quais são os objetivos da reunião e expõem seus pontos de vista sobre a integração. Mais tarde realizam-se novas entrevistas coletivas com a presença de todos os futuros coordenadores das comissões de trabalho do evento.

Ao longo dos anos transcorridos desde 1988, foi se desenvolvendo uma série de pontos de vista compartilhados por este pequeno grupo de funcionários envolvidos na integração, desenvolvimento possibilitado pelo fato de que sua composição se manteve relativamente constante. As tão numerosas viagens realizadas por funcionários de cada estado/província ao outro (especialmente pelos entrerrianos ao RS) como parte da organização dos Encontros/Reuniões foram essenciais para o desenvolvimento dessas representações compartilhadas, uma vez que propiciaram um contato pessoal estreito e prolongado entre os atores (mesmo que, como veremos, houvesse um correlato direto em sua visão do problema). A fim de não exceder o espaço disponível deste artigo, limitaremo-nos a sintetizar os elementos comuns em suas representações da integração, os quais incluem um diagnóstico a respeito dos fatos que a tornaram necessária e de uma proposta acerca dos meios mais propícios para produzi-la:

• Diagnóstico – Segundo os funcionários, as causas do desencontro dos dois estados/províncias são: a inexistência de uma fronteira comum entre ambos, a política exterior dos dois países na época das ditaduras militares e, na atualidade, a suposta concorrência econômica entre setores produtivos que se dedicam à mesma atividade em cada um dos estados/províncias. A idéia é que as pessoas de cada estado/província desconhecem totalmente o outro, devido à falta do contato direto que uma fronteira comum tivesse promovido ou então – o que seria ainda mais grave – têm um conhecimento negativo ou uma imagem distorcida, produto das políticas exteriores levadas a cabo pelas ditaduras militares. Nessa época, ambos os Estados adotaram "hipóteses de conflito bélico" recíprocas, impondo uma imagem do outro como um inimigo do qual se temia um ataque.28 28 Um funcionário rio-grandense afirmou a esse respeito que: "[ ...] nós sofremos a partir [ ...] do final da década de 60, inícios da década de 70 [ ...] as ditaduras militares [ ...] que procuram de uma certa forma se fechar se fechar dentro de seu próprio território, escondido atrás da segurança nacional, não? [ ...] [ O Rio Grande do Sul] foi o estado onde as Forças Armadas colocaram um maior contingente de soldados, parece que ao redor de 40% da força armada brasileira. Estava aqui no Rio Grande do Sul, porque existia... aquela possibilidade da guerra entre o Brasil e a Argentina [ ...] então isso estava muito dentro de nós, embutido na própria mentalidade do Rio Grande do Sul, essa... pelea, essa briga, esse possível conflito armado entre a Argentina e o Brasil, e fundamentalmente entre o Rio Grande do Sul e a Argentina, porque era o que estava mais próximo, que tinha fronteiras tem 700 km.... 700 km. de fronteiras, não?". O terceiro motivo de desencontro, a concorrência econômica, haveria surgido ao entrar em vigência o tratado de livre-comércio do Mercosul; então, os produtores e empresários de cada estado/província teriam passado a ser competidores potenciais, capazes de inundar o mercado local com produtos a preço baixo. Para os organizadores dos Encontros/Reuniões esta nova forma de separação foi imposta desde a esfera dos Estados nacionais e gerou imediatamente uma sensação de inimizade entre os povos.

• Proposta – O desconhecimento e a imagem parcial e distorcida do outro só podem ser solucionados, segundo os organizadores, por meio do conhecimento pessoal do outro. Isso, além de permitir superar a desconfiança mútua que resulta dos fatores históricos já mencionados, permitiria às pessoas apreciar as afinidades culturais, ou os costumes similares entre gauchos e gaúchos, resultantes das origens comuns de seus portadores. Essa perspectiva foi sintetizada por um dos funcionários rio-grandenses ao nos dizer que "[ ...] não se ama o que não se conhece, não se participa do que não se conhece". O funcionário exemplificou essa constatação com sua própria experiência, revelando até que ponto essa idéia não se plasmou da noite para o dia, mas sim que foi se forjando sobre o molde das relações estabelecidas pelos funcionários de ambos os estados/províncias ao longo de seu trabalho em prol da integração.29 29 Esse funcionário afirmou: "Eu me apaixonei pelo projeto quando o conheci, porque se não... se eu não o tivesse conhecido... e dificilmente quem participa esquece, vai só uma vez: ele tende a participar". Por sua parte, ao lhe perguntarem sobre o porquê do notável esforço que supunham suas viagens ao RS, o presidente da Comissão legislativa entrerriana nos respondeu que: "[ ...] se eu não vou, não acontece nada. As pessoas querem ver você. Aos Encontros você não pode convidar as pessoas com uma carta, por mais que você a assine. Tem de ir e convidá-las pessoalmente. Eles têm de sentir que você os conhece. Já sei que podem parecer desnecessárias as viagens... que se já foi um ano, você pode evitar ir no outro... mas o que você quer que eu te diga... as coisas são assim. Se você não vai, as pessoas não vêm...". Com a promoção do conhecimento pessoal seria possível superar tanto os fatores históricos e políticos da separação entre os dois estados/províncias como os novos fatores econômicos que tendem a enfrentar os setores produtivos e empresariais de ambas as partes. Trata-se, então, de produzir dois tipos de integração, que poderíamos chamar – a fim de distingui-las claramente – "interestatal" e "setorial": uma integração dos estados/províncias por meio da construção de relações pessoais entre seus funcionários e uma integração dos setores econômicos homólogos de ambas as partes por meio da construção de relações entre seus atores.

Os Encontros/Reuniões seriam, para esses funcionários, instâncias particularmente adequadas no sentido de promover essa construção de relações que supõem decisiva para atingir ambas as formas de integração. Funcionários, empresários de diversas atividades e outros atores de ambos os estados/províncias poderiam interagir tanto com seus pares como com os representantes de outras categorias (empresários com funcionários, profissionais com empresários etc.), ocupando-se de assuntos concretos no curso do trabalho em Comissões e confraternizando em jantares, shows e festas. Nesse sentido, os eventos foram pensados e organizados não apenas como espaço de interação que permitiria o conhecimento mútuo, pessoal e direto entre os participantes, mas também como um espaço de expressão de interesses individuais e setoriais. Ou seja, um espaço oposto ao do mercado, onde as pessoas com interesses similares, mas pertencentes a estados/províncias diferentes, poderiam se expressar, se conhecer, cooperar e inclusive se associar.30 30 Secundariamente, os Encontros/Reuniões serviriam como meios para a difusão do processo de integração.

Os encontros/reuniões e o sentido da integração

Na medida em que os Encontros/Reuniões foram concebidos, precisamente, para permitir aos atores da integração o intercâmbio de idéias a respeito da mesma, esses eventos se tornaram instâncias cruciais do desenvolvimento das disputas em torno do sentido da integração, momentos particularmente propícios para que se expressassem e dirimissem as disputas referidas ao conteúdo das representações sociais acerca do processo de construção de laços entre ER e RS.

Assim, a capacidade relativa de cada participante para impor sua visão da integração nos Encontros/Reuniões era muito desigual. O eixo que explica a desigualdade central reside na distinção – existente de fato e reconhecida pelos atores – entre os organizadores dos eventos e os meros participantes. Pela própria virtude pragmática de sua posição, os organizadores têm um duplo papel no processo de definição do sentido da integração. Por um lado, são eles que, no curso das Reuniões de organização de cada evento, definem o número e a temática das Comissões de trabalho, decisões que são tomadas levando em consideração o que tinha sido sugerido nas conclusões das Comissões do ano anterior. Do ponto de vista dos organizadores, isso supõe uma forma de participação dos assistentes na organização dos eventos, ao mesmo tempo em que permite introduzir certa continuidade entre um evento e outro. Os organizadores definem de fato quais aspectos dos pontos de vista expressos pelos participantes hão de ser efetivamente incorporados à dinâmica dos Encontros/Reuniões.31 31 Em todos os eventos, a maioria das Comissões modificou suas agendas de trabalho e incorporou as modificações às conclusões que seriam lidas no ato de encerramento, indicando, às vezes, novos temas, metodologias de trabalho, sugestões de nomes de dissertadores etc. Esses materiais eram discutidos e utilizados nas Reuniões organizativas para os eventos subseqüentes, dando lugar à introdução de modificações quanto ao número e ao objetivo das comissões. Indubitavelmente, isso constitui uma forma de participação dos assistentes na futura organização, segundo os organizadores, mas de nenhum modo as modificações introduzidas nos eventos sucessivos refletiam a magnitude dos conflitos produzidos no interior das comissões. Com efeito, os participantes enfrentavam-se às vezes de modo virulento por diversos motivos (entre outros, porque o tema não tinha sido abordado de uma certa perspectiva, porque alguns participantes aproveitavam a oportunidade para submeter os funcionários presentes a reclamações, porque o tempo dedicado a um tema não era o mesmo que o concedido a outro etc.). Cabe assinalar que na maioria das vezes os enfrentamentos se registravam entre atores de um mesmo estado/província – ou inclusive do mesmo município –, enquanto os atores do outro estado/província permaneciam como meros espectadores das discussões ou, ocasionalmente, tentavam mediá-las. É inegável, entretanto, que os organizadores levaram em conta, em grande medida, os interesses dos participantes. Comissões como as dedicadas à cultura, aos esportes, ao turismo, aos meios de comunicação, à juventude e à mulher foram se somando nos diversos eventos com o objetivo de responder às inquietudes dos assistentes. Ao mesmo tempo, as comissões dedicadas a temáticas institucionais foram modificadas em resposta à experiência de cada ano. Assim, a Comissão de Municipalismo e Legislação de 1995 dividiu-se nas de Administração Pública Municipal e de Assuntos Legislativos e Jurídicos no evento de 1996. Quanto ao número, se no Encontro de 1994 houve duas comissões, em 1998 funcionaram dez comissões, dividas em dezoito subcomissões. Segundo os organizadores, essa diversificação demonstrava "a ampla gama de interesses setoriais" que os Encontros/Reuniões podiam expressar, permitindo, ao mesmo tempo, "não deixar reduzido o processo de integração regional a um mero acordo comercial".

Por outro lado, como são eles que decidem a forma geral de cada Encontro/Reunião em sua totalidade, é mais fácil objetivarem nela sua própria concepção da integração. Isto é, a forma assumida pelos eventos reflete tanto a visão da integração como o processo que deve se produzir entre estados/províncias e entre setores homólogos de ambas as partes no que diz respeito à idéia de que o conhecimento pessoal dos atores envolvidos é crucial para que ela chegue a um bom termo; reflete também a forma em que os organizadores concebem as relações entre ambas as formas de integração. Isso acontece fundamentalmente porque os organizadores desenham os eventos em função do objetivo explícito de contribuir para a integração tal como eles a concebem. Nesse sentido, não se trata da tentativa dos funcionários a cargo dos eventos de se valer dessa posição para expressar suas representações – ainda que essa possibilidade não deva ser esquecida – mas de que ao organizá-los pragmaticamente em função de tais representações, os eventos as refletem em tudo o que têm de instâncias formais atravessadas por comportamentos fortemente padronizados.

Essa dimensão "simbólica" ou "expressiva" dos Encontros/Reuniões convida analisá-los a partir do conceito de "ritual". Tal opção, entretanto, acarretaria certos problemas tanto do ponto de vista estritamente conceitual como no que faz à adequação do conceito aos fatos. Realmente, por um lado, a relativa conveniência do emprego do conceito de "ritual" para a análise de formas de interação recorrentes, formalizadas e separadas do cotidiano, mas desprovidas de um caráter religioso, foi objeto de um debate na antropologia que se estendeu por décadas e ainda não foi saldado.32 32 Já em 1951, S. F. Nadel havia proposto falar de "dramatizações" para fazer referência à "exposição de modos desejados de ação no curso de representações" que podiam ser tanto rituais como seculares (1978, p. 154), mas sua proposta não foi totalmente aceita, presumivelmente em vista do êxito do uso da noção de "drama social", elaborado por Turner (1968). Por sua parte, em 1954, Edmund Leach criticou a dicotomia durkheimniana do sagrado e o profano, propondo considerar o ritual um aspecto de quase qualquer tipo de ação, uma exposição simbólica da posição social e dos interesses dos indivíduos que participam da ação (1976, pp. 34-35). No início da década de 1960, Max Gluckman (1962, pp. 20ss) sintetizou as principais posturas do momento, reapresentadas pelas opiniões de Monica Wilson e Jack Goody. Para Wilson, o "ritual" era primariamente religioso e estava incluído na categoria mais ampla do cerimonial, que remetia em geral às formas elaboradas para a expressão de sentimentos de caráter convencional. Goody, em contrapartida, definia o ritual como uma categoria de comportamento padronizado – isto é, como costume – na qual a relação entre meios e fins não é "intrínseca" (no sentido de que é irracional), e propunha usar o qualificativo de "religioso" para especificar aqueles rituais onde intervinham crenças em poderes místicos. Gluckman, por sua vez, considerava cerimonial todo o comportamento convencional, estilizado e expressivo de relações sociais, distinguindo dentro desse campo o comportamento cerimonioso ( ceremonious) e o ritual, caracterizado pela referência a noções místicas. As opções multiplicam-se e estendem-se até nossos dias. Assim, Marc Abélès sugeriu que seria conveniente falar de political ritual, pois "the analysis of contemporary society would seem partially to invalidate the notion of total secularization of political life" (1988, pp. 391-392). Esta proposta – que, diga-se de passagem, evoca o conceito de ritual para dar conta do elemento religioso que crê distinguir o autor na política francesa – foi objeto de comentários que oscilam entre o acordo total de Maurice Bloch, Julian Pitt-Rivers e Ralph Grillo e o desacordo absoluto de James Lett, o qual sugere que os eventos políticos analisados por Abélès são ritualistic mas não rituais já que não são religiosos ( apud Abélès, 1988, p. 400), e de Georges Augustins, que os considera ceremonials porque Abélès não demonstrou que eles supunham o compromisso emotivo próprio do ritual ( apud Abélès, 1988, p. 399). Por outro, lidamos com eventos cujos objetivos primários – aqueles que explicam sua própria ocorrência e que regem fundamentalmente sua organização – não são "expressivos" (como poderia ser o ato de cortar a fita de um hospital para inaugurá-lo formalmente), mas meramente prosaicos, girando em torno da idéia de reunir sob um mesmo teto atores pertencentes a determinadas categorias a fim de que se estabeleçam entre eles relações específicas.

Mais que falar de "ritual", acreditamos, caberia dizer, que os Encontros/Reuniões em geral, e particularmente algumas de suas instâncias, constituem situações marcadamente "ritualizadas". Não é preciso chegar aos extremos de um autor como Leach (1976, p. 35), que considera que o ritual não é mais que um aspecto de qualquer tipo de ação, para admitir que não existe uma separação absoluta entre o comportamento ritual e outras formas de comportamento cotidiano. Assim, na medida em que todo o comportamento cotidiano está padronizado em algum grau, existe em todo caso certa formalização que reveste esse caráter "expressivo" próprio do ritual. Os Encontros/Reuniões, como eventos públicos sumamente formalizados e distantes do cotidiano dos atores, são particularmente passíveis de serem analisados deste ponto de vista.

A ritualização dos encontros/reuniões

Os eventos têm uma duração de dois dias. As atividades desenvolvidas dividem-se claramente nas seguintes instâncias: comprovação, abertura (ambas na manhã do primeiro dia), trabalho em Comissões (durante a tarde do primeiro dia e na manhã do segundo), encerramento (na tarde do segundo dia), e jantares, shows ou festas denominados de integração, confraternização ou fraternização (em ambas noites).33 33 Do ponto de vista temporal-espacial, o Encontro/Reunião começa com a viagem dos participantes estrangeiros até o lugar do evento. Trata-se de um momento distintivo tanto para o viajante – que o considera o início real do evento, o momento em que se afasta temporariamente de sua vida cotidiana – como para os organizadores – já que a quantidade de ônibus que chega ao evento proveniente do outro estado/província é um indicador decisivo de seu êxito ou fracasso. Não dispomos aqui do espaço necessário para analisar a totalidade dos eventos, por isso teremos de nos limitar a examinar muito sucintamente três de suas instâncias (abertura, jantares, shows ou festas e encerramento) e a fazer uma breve referência final à sua estrutura geral.

a) Abertura

O ato de abertura do evento é a instância que mais se aproxima ao tipo de acontecimento que merece ser qualificado como "ritual", posto que carece de outro objeto que o declarar oficialmente inauguradas as atividades; exibe também a segregação espacial (o salão em que acontece não volta a ser utilizado até o encerramento) e temporal (ao terminar, suspendem-se as atividades até depois da hora do almoço) própria dos rituais. Começaremos a descrevê-lo brevemente:

• Trata-se de um ato solene que contrasta abertamente com a confusão e o nervosismo que, em geral, caracterizam o momento da comprovação. O palco do recinto está enfeitado com o que os organizadores consideram um dos símbolos da integração: as bandeiras dos quatro países membros do Mercosul. Nele se posicionam as autoridades e os organizadores que abrirão o evento, enquanto que as primeiras três ou quatro filas da platéia são reservadas para as demais autoridades, organizadores e acompanhantes. Quanto ao restante dos participantes, posto que os provenientes do exterior se agrupam conforme os ônibus em que viajaram, a distribuição geral reflete claramente a distinção entre ambos os estados/províncias. A abertura inicia-se com a apresentação das autoridades por parte de um locutor que indica o cargo que possui cada uma delas. Após as palavras de apresentação e boas-vindas ao encontro e a leitura dos telegramas ou cartas daqueles que não puderam estar presentes, o locutor anuncia a entonação dos hinos de cada país.34 34 Nos primeiros eventos apenas os hinos da Argentina e do Brasil foram interpretados, enquanto no último cantaram-se os quatro hinos. A ordem varia, mas sempre se entoa primeiro o hino do país anfitrião. Ao terminar os hinos, começam os discursos, que sempre seguem a mesma ordem. Começa o prefeito da cidade organizadora, que dá as boas-vindas às autoridades presentes e aos participantes e faz uma narração da organização planejada, do esforço empreendido e das expectativas acerca do evento. Em seguida, discursam o presidente da Comissão legislativa de ER, os representantes dos governos provinciais/estatais, o representante da Famurs e o diretor da Casa de Entre Ríos. Ao fim dos discursos, o locutor dá como oficialmente inaugurado o evento.

• Substancialmente, os temas centrais dos discursos não variaram nas sucessivas edições. Reiteradamente fazem referência a que os Encontros promovem uma integração leste/oeste para romper ou quebrar a hegemonia do eixo norte-sul que promove o Mercosul. Em relação a isso, os discursos costumam delinear a idéia de que existe uma semelhança entre as posições que ambos os estados/províncias têm dentro de seus respectivos países: seriam subalternos aos pólos de poder do âmbito nacional.

• As diferenças que aparecem entre um e outro discurso têm a ver com a posição de quem fala em relação ao evento. Os que falam no ato em si, são representantes dos organismos e das instituições que organizam formalmente os Encontros/Reuniões, mas entre eles se encontram o presidente da Comissão entrerriana e o diretor da Casa de Entre Ríos, que, de fato, são os personagens centrais de sua organização efetiva. Assim, por um lado, os discursos das autoridades são generalizadores, apelam a um passado comum representado pela história dos libertadores e pela similitude dos costumes gauchos/gaúchos cultivados por ambos os povos. Enquanto isso, os discursos do presidente e do diretor recuperam a história recente da integração: os eventos anteriores, a criação da Casa de Entre Ríos, as histórias das viagens realizadas para assistir ao evento; ambos assinalam, além disso, que se reencontram com amigos, apontando tanto o público como as autoridades.35 35 Para exemplificar, citamos apenas alguns trechos do discurso pronunciado em 1999 pelo presidente da Comissão legislativa entrerriana: "[ ...] em um dia como hoje, no mês de junho há seis anos atrás, também era um dia muito frio e começávamos esta tarefa de integração... nesse momento duas províncias, dois estados, tratam de fazer com que o Mercosul não seja somente uma identidade cultural de capitais, das grandes empresas, mas que o Mercosul também pode ser um projeto de nossos povos e de nossa gente. [ ...] me lembro que no primeiro encontro ainda não tinham aprendido o hino do Uruguai, o hino do Brasil, assim como só pudemos entoar com a banda o hino argentino. Hoje como um processo de integração, nossos jovens músicos também estudaram e aprenderam os hinos dos países que integram o Mercosul. Eu acredito que isto também é um sinal. [ ...] Porque, casualmente, qual é o objetivo final que se persegue com todos esses Encontros de municípios? É varrer a fronteira, é aproximar as pessoas, é fazer com que tenham amigos e que se conheçam, é estabelecer relações, estabelecer relações agora, mas para poder projetá-las ao futuro. Por isso quis tratar nestas comissões... por isso queremos que isto nos dias que vamos conviver e que vamos compartilhar sirvam para o futuro, para nosso futuro e para o futuro de nossos povos. Vamos ter de evitar dificuldades, como as evitamos em cada um destes Encontros e isso é parte também deste processo de integração no qual parece evitar obstáculos [ ...] ". Todos esses discursos são bem acolhidos pelo público, que aplaude cada um dos oradores.

Encontramo-nos, pois, ante um ato formal dominado pelos símbolos e as instituições próprias do plano da integração interestatal. A presença das bandeiras dos países do Mercosul e a interpretação de seus hinos36 36 Não está claro por que se empregam os símbolos nacionais em lugar das bandeiras, escudos e hinos dos estados/províncias. Este fato parece obedecer ao que o evento concebe como Reuniões de Municípios do Mercosul, que ultrapassam formalmente a província de ER e o estado do RS, apesar de que isso não deveria impedir que seus símbolos se somem aos nacionais. Outro fator a ser considerado é o impedimento constitucional vigente na Argentina e no Brasil para o desenvolvimento de relações exteriores por parte de seus estados/províncias. A questão merece, contudo, uma análise mais profunda. (que sempre é o momento de maior solenidade) expressam claramente qual é a diferença que se quer integrar, o mesmo ocorre com a formação da lista de oradores sobre uma base institucional-estatal. Os discursos das autoridades, por sua vez, inserem o evento em um plano político ao apresentar o problema dos centros de poder no Mercosul. Os temas da concorrência econômica, a integração entre as pessoas e as afinidades culturais aparecem de maneira secundária. Por outra parte, os discursos dos dois organizadores – os quais, acima de tudo, falam formalmente como representantes de instituições – realçam as relações pessoais vivenciadas entre os assistentes aos sucessivos eventos e os momentos compartilhados por eles: dessa forma, consideram o privilégio concedido pelos funcionários ao conhecimento pessoal um fator de integração.

b) Jantares, shows e festas

Cada jornada de trabalho é sucedida por um jantar/show ou uma festa, sendo que a festa representa de fato o final do evento. Do ponto de vista dos organizadores, essas instâncias têm dois objetivos que vão além da evidente tentativa de proporcionar aos assistentes um momento recreativo. Em primeiro lugar, pretendem produzir uma integração cultural com a exibição de números artísticos de ambos os estados/províncias. Ao mesmo tempo, pretendem que dêem uma continuidade à agregação setorial que se produz no trabalho em comissões. O grau de cumprimento desses objetivos é sumamente desigual, como o revelará uma breve descrição dos jantares, shows e festas:

• Ao longo dos anos, os organizadores foram implementando diversas variantes dessas atividades "recreativas": jantares acompanhados por espetáculos folclóricos (ou, certa vez, por um desfile de modas), bailes precedidos por jantares e espetáculos de música e dança de ambos os estados/províncias,37 37 No Primeiro Encontro, realizado na cidade de Victoria (ER) em 1994, o jantar ocorrido no primeiro dia não recebeu nenhuma denominação especial, reunindo os participantes no mesmo espaço onde se realizou o encontro, em torno do que os organizadores consideravam expressões culturais tradicionais entrerrianas (o churrasco com couro e alguns conjuntos musicais gauchos). No ano seguinte, no evento realizado no Paraná, os organizadores previram um jantar de integração para o último dia, sucedido a um desfile de modas. Somente no terceiro evento, em Encantado (RS), em 1996, realizaram-se pela primeira vez dois jantares sucedidos por shows: o Jantar de Integração Cultural e Artística, que incluiu a apresentação de conjuntos musicais e de danças tradicionais, e o Jantar de Confraternização, que terminou com um grande baile até o dia seguinte. Isto se repetiu no evento de Santa Cruz, em 1998. No caso dos eventos em Colón e Gualeguaychu não ocorreram jantares, mas shows de confraternização. com a participação da maioria dos participantes. Tanto em jantares como em shows, as pessoas tendem a se sentar junto de seus conhecidos, tal como sucede na abertura (os estrangeiros conforme os ônibus em que viajaram, os locais de acordo com suas cidades)38 38 No caso dos shows, observa-se, ademais, que as pessoas que se sentaram juntas durante seu transcurso se retiram conjuntamente para jantar ou para beber alguma coisa. . Embora isso não signifique uma falta de interação entre as pessoas (o que é especialmente visível nas festas, em que os assistentes estão mais limitados em seus movimentos), a verdade é que não se produz a esperada continuidade da agregação gerada pelo trabalho em comissões. Os organizadores entrerrianos e rio-grandenses, em compensação, não só jantam e/ou desfrutam juntos do espetáculo, como também vão beber ou jantar juntos conforme o caso.

• Quanto aos espetáculos artísticos, em certas ocasiões são divididos em dois grupos segundo sua origem estatal/provincial; em outras, há uma alternação. Os números selecionados representam diversas variantes folclóricas, incluindo espetáculos gauchos/gaúchos e outros supostamente representativos das diferentes comunidades de origem imigratória existentes em ambos os estados/províncias. Cada número é apresentado e, a julgar pelos comentários dos assistentes, é considerado uma mostra clara da afinidade cultural dos povos.

Estamos, neste caso, ante atividades dirigidas intencionalmente a fomentar a integração tanto em sua variante interestatal como na setorial. Do ponto de vista da tentativa de promover a interação dos participantes entrerrianos e rio-grandenses – claramente expressa nos rótulos de "fraternização" ou de "confraternização" aplicados a essas atividades nos programas –, pode-se dizer que não há êxito nesse aspecto, talvez precisamente por obra de seu próprio perfil recreativo, que leva os participantes a se reunir com as pessoas mais conhecidas e com quem se sentem mais à vontade e livres da barreira do idioma. Do ponto de vista "expressivo", isto tem como correlato uma relativa ausência do tema da integração setorial. Em contrapartida, a integração interestatal está muito presente, observável tanto na assistência conjunta dos organizadores de ambas as partes como na sucessão de números artísticos percebidos como similares.39 39 A sucessão de espetáculos de características similares tem o efeito de mostrar que ambos os estados têm elementos culturais semelhantes. Cada número artístico proveniente de ER é uma demonstração de que sua cultura é gaucha, mescla de espanhol e crioulo, e de que foi receptora de imigrantes de diversas origens (espanhóis, italianos, alemães, russos) etc. Pelo lado do RS, exibe-se sua cultura gaúcha, mescla de portugueses e crioulos, e receptora de influências imigratórias das mesmas origens. Ao exibir as afinidades culturais, os espetáculos sugerem implicitamente a possibilidade de superar os antigos desencontros. Nesse sentido, jantares, shows e festas têm o efeito de objetivar o diagnóstico dos organizadores a respeito da necessidade de integrar os estados/províncias e sua concepção das afinidades culturais como fatores de integração.

c) Encerramento

Diferente da abertura, o encerramento dos eventos é protagonizado exclusivamente pelos participantes e organizadores. Os acontecimentos se sucedem da seguinte maneira:

• Reunidos os assistentes em um plenário no mesmo salão em que se realizou a abertura, o ato acontece em três momentos, marcados por atividades diferentes. Em primeiro lugar, faz-se a leitura das conclusões de cada comissão ou subcomissão.40 40 A leitura das conclusões incorporou-se ao evento ocorrido em Paraná, em 1995. Depois se lê a Carta da Integração Entrerriano-rio-grandense, redigida pelos organizadores com base nas conclusões das diferentes comissões de trabalho.41 41 Foi somente no evento realizado em Encantado (1996), que se efetivou a redação e a leitura da Carta da Integração Entrerriano-rio-grandense. Posteriormente ela foi enviada aos poderes legislativos de ambos os estados/províncias para sua ratificação oficial. Por último, dá-se por encerrado o evento com um discurso pronunciado pelo presidente da Comissão legislativa entrerriana.

• O momento do encerramento é muito menos solene que o da abertura. As bandeiras foram retiradas, não são cantados os hinos e os organizadores se vestem de maneira informal. Os participantes agrupam-se mais ou menos de acordo com as comissões de que fizeram parte. O evento é encerrado formalmente (lembre-se que ainda resta um jantar ou outro evento recreativo) por um breve, mas emotivo discurso do homem que encabeçou sua organização efetiva. O presidente ressalta o objetivo do encontro – dizendo, por exemplo que "estes Encontros facilitam a integração e permitem que nossos povos se conheçam. Demonstram que a fronteira não é limite para a integração" – e conclui com um simples: "Declaro encerrado o [ número] Encontro Entrerriano-rio-grandense e a [ número] Reunião de Municípios do Mercosul".

Neste caso, encontramo-nos ante um ato que tende a coroar o trabalho desenvolvido nas comissões, reunindo as pessoas que anteriormente foram separadas pelos segundo seus grupos de interesse. Os participantes têm a palavra de forma direta no início e, posteriormente, de maneira indireta por meio da suposta recensão que os organizadores fazem de suas conclusões para ser elevada às legislaturas de ER e do RS. Finalmente, o evento é finalizado por seu organizador principal com uma mínima formalidade. Do ponto de vista que aqui nos interessa, o encerramento está dominado pelas relações registradas nas comissões de trabalho que agrupam as pessoas segundo o setor ao qual pertencem. Isso produz uma imagem de integração setorial, tanto por intermédio da leitura de suas conclusões (que aparecem como produtos coletivos de pessoas de ambos os estados/províncias que têm interesses homólogos) como da maneira pela qual se agrupa o público (dando continuidade ao trabalho imediatamente anterior) e da formulação de um único texto – a Carta – das conclusões parciais (que cria a imagem de um resultado efetivo dos esforços setoriais). Deixados de lado seus símbolos, os Estados nacionais e a idéia de integração interestatal estão praticamente ausentes do ato.

d) Da abertura ao encerramento

Vale a pena ressaltar o contraste existente entre os atos de abertura e de encerramento, o qual parece também guardar certa relação com as representações dos organizadores a respeito do processo de integração. A abertura caracteriza-se por ser um ato formal dominado pela presença dos representantes das instituições dos estados-províncias e pela simbologia dos Estados nacionais. O ato, em conseqüência, expressa simbolicamente o plano da integração interestatal. Por sua parte, o encerramento aparece como um evento mais informal dominado pelo centralidade excludente dos protagonistas e pela exposição pública dos frutos de trabalho das comissões. Dessa forma, o ato oferece uma imagem de integração setorial efetiva e, significativamente, elude praticamente qualquer exposição pública do problema da integração interestatal.

Assim, o plano interestatal domina o primeiro episódio dos Encontros/Reuniões e, depois de se manifestar também nas diversas atividades recreativas, desaparece de forma ostensiva para ceder o protagonismo do episódio final ao plano setorial (que se manifestara anteriormente no trabalho das comissões). Esta transição, da exposição simbólica da integração interestatal à da integração setorial, corresponde-se com a concepção que os organizadores têm do rol do Estado – e o seu próprio – no processo de integração. Com efeito, para esses atores, o plano-chave da integração é o estabelecimento de relações entre as pessoas comuns de ambos os estados/províncias, o chamado "Mercosul do povo"; e é tarefa das instituições estatais gerar esse tipo de integração, oferecendo aos atores as oportunidades e as condições necessárias para se relacionarem. Assim, o Estado abre simbolicamente os Encontros/Reuniões para depois ceder aos participantes, também de maneira simbólica, o protagonismo que segundo os organizadores lhes corresponde.

NOTAS

BIBLIOGRAFIA

Artigo recebido em outubro/2002

Aprovado em outubro/2003

Mauricio Boivin é professor titular de Antropologia Social na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires (UBA) e no Mestrado em Antropologia Social (Ides-Idaes). Desenvolve pesquisas sobre cultura e política no âmbito da "integração regional" no Brasil e na Argentina. É autor de Constructores de Otredad: una introduccion a la antropologia social y cultural (Buenos Aires, Eudeba, 1999). Foi presidente do Colegio de Graduados en Antropologia e editor da revista Publicar, en Ciencias Sociales. E-mail: mboivin@fibertel.com.ar.

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  • WEBER, M. (1992), Economía y sociedad Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica.
  • 1
    Sobre as instituições como produtos de processos de burocratização e de legitimação, ver Weber (1992) e Giddens (1995). Sobre a legitimação das instituições, ver Douglas (1986) e Bourdieu (1993).
  • 2
    Com data posterior, subscreve este protocolo o Estado de Mato Grosso do Sul.
  • 3
    O texto – redigido como se os que assinassem fossem os presidentes dos respectivos estados nacionais e não os governadores – menciona a criação de um "grupo de trabalho que se encarregará de elaborar os acordos específicos que garantam o cumprimento do presente Protocolo, os quais passaram a formar parte deste". O grupo estaria formado "pela República Argentina, o Ministério de Relações Exteriores e Culto e as Províncias integrantes da Crecenea; pela República Federativa do Brasil, o Ministério de Relações Exteriores e os Estados integrantes do Condesul".
  • 4
    Mais particularmente, existia certo temor entre esses atores a respeito da possibilidade de que as chancelarias de ambos os países impedissem a assinatura do Protocolo 23. Pelo lado argentino, o temor conduziu à decisão de que um dos governadores viajaria a Buenos Aires na mesma tarde da assinatura do projeto para se reunir com o presidente Raúl Alfonsín e entregar-lhe uma cópia. Anos mais tarde, um funcionário administrativo da Secretaria de Comércio Exterior (ER), que participou ativamente da organização dessa reunião, disse-nos que o Protocolo foi uma "vitória" dos governos provinciais/estatais com respeito às "chancelarias".
  • 5
    Nesta disputa, os atores de ER e do RS reconheciam que o marco jurídico e legal necessário para construir a
    integração só podia ser proporcionado por esses poderes centrais. Assim, em seu discurso de boas-vindas ao encontro de Paraná-Santa Fe, o governador de ER afirmou que o texto "que subscreveremos para elevar às Chancelarias, representa avançar no desenvolvimento político institucional desse projeto enunciado [ ...] porque nele se cria o marco legal para que possamos ir celebrando acordos particulares". Entretanto, esses atores defendiam seu direito legítimo de se tomar conta das relações entre ambos os estados. Nesse sentido, os discursos analisados e as entrevistas por nós realizadas exibem dois elementos recorrentes: a apelação por parte dos governadores como princípio de legitimidade de seu caráter de representantes democraticamente eleitos por seu povo; e o argumento de que, diante da complexa burocracia dos governos centrais, as instituições locais podiam garantir uma maior eficácia no
    processo de integração.
  • 6
    Tanto em ER como no RS é possível distinguir três tipos de funcionários de acordo com o modo pelo qual chegam a seus cargos: "funcionários eleitos", como governadores, prefeitos, legisladores etc.; "funcionários políticos", como ministros, secretários e diretores, que são nomeados prudencialmente pelos funcionários eleitos; e, por último, os "funcionários administrativos", conhecidos como
    de carreira e que freqüentemente se mantêm em seus postos de gestão em gestão.
  • 7
    Do ponto de vista desses atores (segundo se depreende de nossas entrevistas), os primeiros passos da
    integração foram dados com base nas relações pessoais mais do que nos vínculos de caráter institucional: a familiaridade no trato, o conhecimento pessoal e direto entre as autoridades e os funcionários de cada estado e entre os estados são vistos como fatores essenciais que facilitaram a assinatura do Protocolo e toda a posterior relação com o vizinho estado/província. Contudo, os objetivos desses sujeitos foram de caráter puramente institucional.
  • 8
    A Direção de Comércio Exterior de ER foi criada em 1974, mas por longo tempo suas atividades estiveram muito delimitadas pelo fato de que a maior parte da produção entrerriana estava orientada ao mercado interno. Somente a partir de 1984, o objetivo da direção passou a ser a abertura de novos mercados. Nesse marco, a
    integração com o RS forma parte de uma estratégia para ampliar o comércio exterior. Cabe consignar que, se antes de 1987 as exportações de ER aos países que hoje formam o Mercosul eram da ordem de 10% do total provincial, em 1996 representaram 50%. Pelo lado do RS, a Secretaria Especial para Assuntos Internacionais foi criada em 1987 para – segundo um de seus funcionários – "acompanhar esse processo de integração que na época estava começando entre o Brasil e a Argentina". Estando o RS submetido às mesmas restrições que ER, a assinatura do Protocolo 23 havia de permitir à Secretaria negociar diretamente com as províncias argentinas.
  • 9
    As decisões em questão foram as seguintes: 3) Promover um maior intercâmbio comercial das produções regionais; 5) Estabelecer projetos integrados de cooperação técnica, econômica e financeira, destinados à produção, ao armazenamento, à comercialização, ao desenvolvimento tecnológico e ao transporte de produtos da região; 6) Propiciar a modernização das atividades econômicas de área e da região da fronteira (particularmente aquelas que permitam a produção em conjunto de bens); 7) Possibilitar ações conjuntas dos bancos de fomento da região a fim de impulsionar o desenvolvimento econômico-social; e 8) Incentivar a aproximação do empresariado privado por meio de suas entidades representativas, a fim de que os agentes econômicos da região também ajam dentro do espírito de integração expresso neste Protocolo.
  • 10
    Por exemplo, um funcionário entrerriano que acompanhava empresários em suas viagens ao RS nos disse que tinha advertido que estes se "intimidavam" quando chegavam a Porto Alegre porque "havia uma falta de escala na relação das coisas".
  • 11
    No caso de ER, a partir da iniciativa de um deputado provincial do
    PJ – que a presidiria até 1999 – se constitui em 1991 a Comissão de Mercosul da Honorável Câmara de Senadores e Deputados da Província de Entre Ríos. No caso do RS, a Comissão foi criada em 1990 com o nome de Comissão de Mercosul da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul.
  • 12
    Tal como sucedia com os funcionários de comércio exterior, estes funcionários eleitos percebem as relações pessoais como fatores essenciais de sua ação em prol da
    integração. Nesse sentido, nas entrevistas que realizamos com funcionários do executivo provincial e legisladores, estes ressaltam permanentemente as relações pessoais que os uniam, contando inclusive suas afiliações partidárias. Em sua visão, o trabalho desenvolvido nesse momento foi uma tarefa mancomunada entre pessoas vinculadas entre si por laços de amizade que, omitindo seus signos políticos, se concentraram no objetivo da
    integração regional.
  • 13
    Para os funcionários entrerrianos, a criação da Casa significou outro "marco", talvez o mais significativo, no
    processo de integração. Um dos funcionários do poder executivo comentou a respeito: "é um acontecimento histórico porque é a primeira Casa de uma província em um estado do Brasil, em um estado do sul do Brasil. E fez muito pela integração não só em relação ao econômico e ao intercâmbio comercial, mas também à integração cultural, institucional, em organizar conferências, palestras, intercâmbio estudantil".
  • 14
    Todas as novas atividades desenvolvidas nesse período foram legitimadas com base no Protocolo 23, já incorporado ao marco mais amplo dos Tratados do Mercosul, assinados pelos governos nacionais.
  • 15
    Segundo o decreto de criação da Casa, entre seus objetivos básicos se encontravam os de promover e desenvolver os valores artísticos, intelectuais e esportivos do povo entrerriano; e de colaborar com os distintos organismos do estado provincial e com as diversas organizações não governamentais, desenvolvendo os contactos necessários com as instituições do governo estadual do RS.
  • 16
    Em entrevista, o diretor explicou sua concepção pessoal do
    processo de integração: "[ ...] a verdade é que há três Mercosul. Há um 'Mercosul econômico', o Mercosul [ ...] onde a participação basicamente é dos grandes capitais [ ...] . Há outro Mercosul que – digamos – é o 'Mercosul político', ou o 'Mercosul dos Estados', ou o Mercosul – digamos – dos que governam, que tem a ver com todos os aspectos de ir estruturando toda uma organização formal e necessária para que isto se constitua, que passe de um projeto para uma realidade. O terceiro Mercosul – e isto me parece que é o que nós estamos apostando – é o 'Mercosul do povo', é o 'Mercosul dos municípios', o 'Mercosul da fronteira', o 'Mercosul dos povos', o Mercosul das pessoas que querem fazer Mercosul, e que não sabem como são as vias de acesso nem como se chega nem como se pratica [ ...] . Este Mercosul é o Mercosul que Entre Ríos tem de praticar, porque Entre Ríos é uma província que tem [ ...] em sua estrutura econômica e cultural uma relação de pequenas e médias empresas, é uma sociedade agrícola – grande parte – é uma sociedade que precisa dos serviços e dos pequenos serviços. Bem, é por isso que esta Casa, digamos, de alguma maneira, trabalha nesse terceiro Mercosul".
  • 17
    Esses municípios estão associados por região e as associações formam, por sua vez, a Federação. O total de municípios associados em 1999 era de 467, reunidos em 23 associações. Cada município paga uma módica parcela mensal fixa, a fim de sustentar a estrutura de funcionários que a Federação possui. A Famurs foi criada em maio de 1976, mas seu
    status como "entidade de representação dos municípios" só foi estabelecido legalmente em março de 1994.
  • 18
    A influência da Famurs sobre a organização das Reuniões de Municípios foi sumamente marcada. Como reflexo dela, cabe assinalar que as comissões de trabalho em que se dividem os participantes das Reuniões tomaram paulatinamente os nomes das unidades técnicas existentes no organograma da estrutura técnico-administrativa da Federação, a saber: Educação e Cultura, Saúde e Meio Ambiente, Assistência Social e Cidadania, Agricultura e Pecuária, Assessoria Jurídica.
  • 19
    Ver, por exemplo, as análises dos efeitos opostos que teve o desaparecimento das barreiras tarifárias no comércio com o Brasil sobre a produção avícola e pesqueira entrerrianas, em Boivin, Rosato e Balbi (1996, 1997). Em relação aos políticos, a
    integração também gerou tomadas de posição complexas e freqüentemente ambíguas. Como já vimos, os governos justicialistas que se sucederam entre 1987 e 1999 promoveram a relação com o RS como forma de contrapeso para o eixo norte-sul que aparecia como dominante na formação do Mercosul. Além dessa posição orgânica, alguns políticos peronistas fizeram da
    integração entrerriano-rio-grandense um elemento privilegiado na construção de suas carreiras políticas pessoais: tal o caso, marcadamente, do legislador que promoveu a criação da Comissão do Mercosul, a presidiu e fomentou desde então o estabelecimento da Casa de Entre Ríos no RS. Quanto a UCR, seu posicionamento tornou-se bastante ambíguo: por um lado tendeu a se opor organicamente à
    integração no que diz respeito à política do governo justicialista; mas, por outro lado, numerosos prefeitos e legisladores radicais tiveram de responder às pressões de empresários e outros atores locais preocupados em não se verem excluídos do processo (já vimos, nesse sentido, que os funcionários envolvidos na
    integração destacavam a importância dos laços pessoais entre políticos de diversos partidos para a canalização da participação dos atores locais no processo).
  • 20
    Por exemplo, os políticos e funcionários entrerrianos promotores do processo, de um lado, e os numerosos empresários e produtores que participavam do mesmo, de outro, tinham diferentes concepções a respeito da
    integração. Isso era marcado nas formas pelas quais concebiam a relação entre a
    integração e a
    globalização. Muitos empresários identificavam a integração como a versão regional da globalização, entendendo-a fundamentalmente como um aumento da concorrência interempresarial por efeito do estreitamento dos vínculos entre as economias dos dois estados/províncias. Por sua vez, os funcionários entendiam a
    integração como um atenuante dos efeitos negativos da globalização, supondo que a associação entre ER e RS permitiria aos empresários da região incrementar sua competitividade com a economia globalizada. Também cabe destacar que – como o mostra o rumo seguido pelo processo de institucionalização já examinado – a concepção que os funcionários tinham da
    integração excedia o plano meramente econômico.
  • 21
    Referindo-se à "globalização", Velho (1997, pp. 149-150) sugeriu que ela deveria ser considerada uma forma de representação social análoga aos mitos tradicionalmente estudados pelos antropólogos, indicando que isso não supõe ignorar os conflitos que se dão em torno dela, posto que são precisamente esses conflitos os que tornam o mito pragmaticamente real.
  • 22
    Como veremos mais adiante, o número e a denominação das comissões variam de um evento a outro em função da avaliação que os organizadores fazem das demandas dos assistentes.
  • 23
    Pelo lado de ER, a Direção de Comércio Exterior, a Comissão de Mercosul e a Casa da província em Porto Alegre; pelo lado do RS, a Comissão Legislativa, a Secretaria Especial para Assuntos Internacionais e a Famurs; finalmente, participam os municípios designados como sede de cada evento.
  • 24
    Também o diretor da Casa de Entre Ríos teve em cada ocasião uma participação destacada, uma vez que era ele quem preparava a agenda de Reuniões, seguida pelo presidente da Comissão em suas viagens.
  • 25
    Sempre houve mais de uma cidade para ser sede. Alguns membros da Comissão legislativa entrerriana (incluindo sempre seu presidente) e o diretor da Casa visitam essas cidades para avaliar se elas cumprem com os requisitos mínimos quanto à infra-estrutura: um espaço adequado para o trabalho das comissões e hotéis que permitam alojar todos os participantes do Encontro. A escolha, entretanto, se dá por outras vias, sendo essencial a afinidade partidária com os funcionários políticos do estado/província-sede envolvidos na organização.
  • 26
    A Comissão executiva é formada por dois segmentos, constituídos separadamente. De um lado, uma Comissão encarregada dos aspectos "administrativos-econômicos" do evento – contratar os ônibus para a viagem dos assistentes e os hotéis para sua hospedagem, administrar os fundos provenientes de subsídios e das parcelas que pagam os assistentes etc. –, formada por pessoas recrutadas entre os assessores da Comissão legislativa entrerriana e os funcionários da Casa de Entre Ríos. De outro, encontra-se o grupo dos futuros coordenadores das comissões de trabalho em que se dividirá o evento – geralmente funcionários de ambos os estados/províncias a quem o presidente da Comissão entrerriana convida pessoalmente, levando em conta suas especialidades para lhes atribuir temas de acordo com elas. O nexo entre esses segmentos é o presidente da Comissão legislativa, seguido pelo diretor da Casa.
  • 27
    No curso dessas viagens, inicia-se a difusão do futuro evento com seu pré-lançamento nos meios de comunicação. A notícia da viagem do presidente da Comissão legislativa ao RS é publicada em jornais locais uma ou duas semanas antes de sua chegada e, uma vez tomadas as primeiras decisões sobre a organização do evento, realiza-se uma entrevista coletiva na qual os funcionários informam quais são os objetivos da reunião e expõem seus pontos de vista sobre a
    integração. Mais tarde realizam-se novas entrevistas coletivas com a presença de todos os futuros coordenadores das comissões de trabalho do evento.
  • 28
    Um funcionário rio-grandense afirmou a esse respeito que: "[ ...] nós sofremos a partir [ ...] do final da década de 60, inícios da década de 70 [ ...] as ditaduras militares [ ...] que procuram de uma certa forma se fechar se fechar dentro de seu próprio território, escondido atrás da segurança nacional, não? [ ...] [ O Rio Grande do Sul] foi o estado onde as Forças Armadas colocaram um maior contingente de soldados, parece que ao redor de 40% da força armada brasileira. Estava aqui no Rio Grande do Sul, porque existia... aquela possibilidade da guerra entre o Brasil e a Argentina [ ...] então isso estava muito dentro de nós, embutido na própria mentalidade do Rio Grande do Sul, essa... pelea, essa briga, esse possível conflito armado entre a Argentina e o Brasil, e fundamentalmente entre o Rio Grande do Sul e a Argentina, porque era o que estava mais próximo, que tinha fronteiras tem 700 km.... 700 km. de fronteiras, não?".
  • 29
    Esse funcionário afirmou: "Eu me apaixonei pelo projeto quando o conheci, porque se não... se eu não o tivesse conhecido... e dificilmente quem participa esquece, vai só uma vez: ele tende a participar". Por sua parte, ao lhe perguntarem sobre o porquê do notável esforço que supunham suas viagens ao RS, o presidente da Comissão legislativa entrerriana nos respondeu que: "[ ...] se eu não vou, não acontece nada. As pessoas querem ver você. Aos Encontros você não pode convidar as pessoas com uma carta, por mais que você a assine. Tem de ir e convidá-las pessoalmente. Eles têm de sentir que você os conhece. Já sei que podem parecer desnecessárias as viagens... que se já foi um ano, você pode evitar ir no outro... mas o que você quer que eu te diga... as coisas são assim. Se você não vai, as pessoas não vêm...".
  • 30
    Secundariamente, os Encontros/Reuniões serviriam como meios para a difusão do
    processo de integração.
  • 31
    Em todos os eventos, a maioria das Comissões modificou suas agendas de trabalho e incorporou as modificações às conclusões que seriam lidas no ato de encerramento, indicando, às vezes, novos temas, metodologias de trabalho, sugestões de nomes de dissertadores etc. Esses materiais eram discutidos e utilizados nas Reuniões organizativas para os eventos subseqüentes, dando lugar à introdução de modificações quanto ao número e ao objetivo das comissões. Indubitavelmente, isso constitui uma forma de participação dos assistentes na futura organização, segundo os organizadores, mas de nenhum modo as modificações introduzidas nos eventos sucessivos refletiam a magnitude dos conflitos produzidos no interior das comissões. Com efeito, os participantes enfrentavam-se às vezes de modo virulento por diversos motivos (entre outros, porque o tema não tinha sido abordado de uma certa perspectiva, porque alguns participantes aproveitavam a oportunidade para submeter os funcionários presentes a reclamações, porque o tempo dedicado a um tema não era o mesmo que o concedido a outro etc.). Cabe assinalar que na maioria das vezes os enfrentamentos se registravam entre atores de um mesmo estado/província – ou inclusive do mesmo município –, enquanto os atores do outro estado/província permaneciam como meros espectadores das discussões ou, ocasionalmente, tentavam mediá-las. É inegável, entretanto, que os organizadores levaram em conta, em grande medida, os interesses dos participantes. Comissões como as dedicadas à cultura, aos esportes, ao turismo, aos meios de comunicação, à juventude e à mulher foram se somando nos diversos eventos com o objetivo de responder às inquietudes dos assistentes. Ao mesmo tempo, as comissões dedicadas a temáticas institucionais foram modificadas em resposta à experiência de cada ano. Assim, a Comissão de Municipalismo e Legislação de 1995 dividiu-se nas de Administração Pública Municipal e de Assuntos Legislativos e Jurídicos no evento de 1996. Quanto ao número, se no Encontro de 1994 houve duas comissões, em 1998 funcionaram dez comissões, dividas em dezoito subcomissões. Segundo os organizadores, essa diversificação demonstrava "a ampla gama de interesses setoriais" que os Encontros/Reuniões podiam expressar, permitindo, ao mesmo tempo, "não deixar reduzido o
    processo de integração regional a um mero acordo comercial".
  • 32
    Já em 1951, S. F. Nadel havia proposto falar de "dramatizações" para fazer referência à "exposição de modos desejados de ação no curso de representações" que podiam ser tanto rituais como seculares (1978, p. 154), mas sua proposta não foi totalmente aceita, presumivelmente em vista do êxito do uso da noção de "drama social", elaborado por Turner (1968). Por sua parte, em 1954, Edmund Leach criticou a dicotomia durkheimniana do sagrado e o profano, propondo considerar o ritual um aspecto de quase qualquer tipo de ação, uma exposição simbólica da posição social e dos interesses dos indivíduos que participam da ação (1976, pp. 34-35). No início da década de 1960, Max Gluckman (1962, pp. 20ss) sintetizou as principais posturas do momento, reapresentadas pelas opiniões de Monica Wilson e Jack Goody. Para Wilson, o "ritual" era primariamente religioso e estava incluído na categoria mais ampla do cerimonial, que remetia em geral às formas elaboradas para a expressão de sentimentos de caráter convencional. Goody, em contrapartida, definia o ritual como uma categoria de comportamento padronizado – isto é, como costume – na qual a relação entre meios e fins não é "intrínseca" (no sentido de que é irracional), e propunha usar o qualificativo de "religioso" para especificar aqueles rituais onde intervinham crenças em poderes místicos. Gluckman, por sua vez, considerava cerimonial todo o comportamento convencional, estilizado e expressivo de relações sociais, distinguindo dentro desse campo o comportamento cerimonioso (
    ceremonious) e o ritual, caracterizado pela referência a noções místicas. As opções multiplicam-se e estendem-se até nossos dias. Assim, Marc Abélès sugeriu que seria conveniente falar de
    political ritual, pois "the analysis of contemporary society would seem partially to invalidate the notion of total secularization of political life" (1988, pp. 391-392). Esta proposta – que, diga-se de passagem, evoca o conceito de ritual para dar conta do elemento religioso que crê distinguir o autor na política francesa – foi objeto de comentários que oscilam entre o acordo total de Maurice Bloch, Julian Pitt-Rivers e Ralph Grillo e o desacordo absoluto de James Lett, o qual sugere que os eventos políticos analisados por Abélès são
    ritualistic mas não rituais já que não são religiosos (
    apud Abélès, 1988, p. 400), e de Georges Augustins, que os considera
    ceremonials porque Abélès não demonstrou que eles supunham o compromisso emotivo próprio do ritual (
    apud Abélès, 1988, p. 399).
  • 33
    Do ponto de vista temporal-espacial, o Encontro/Reunião começa com a viagem dos participantes estrangeiros até o lugar do evento. Trata-se de um momento distintivo tanto para o viajante – que o considera o início real do evento, o momento em que se afasta temporariamente de sua vida cotidiana – como para os organizadores – já que a quantidade de ônibus que chega ao evento proveniente do outro estado/província é um indicador decisivo de seu êxito ou fracasso.
  • 34
    Nos primeiros eventos apenas os hinos da Argentina e do Brasil foram interpretados, enquanto no último cantaram-se os quatro hinos. A ordem varia, mas sempre se entoa primeiro o hino do país anfitrião.
  • 35
    Para exemplificar, citamos apenas alguns trechos do discurso pronunciado em 1999 pelo presidente da Comissão legislativa entrerriana: "[ ...] em um dia como hoje, no mês de junho há seis anos atrás, também era um dia muito frio e começávamos esta tarefa de integração... nesse momento duas províncias, dois estados, tratam de fazer com que o Mercosul não seja somente uma identidade cultural de capitais, das grandes empresas, mas que o Mercosul também pode ser um projeto de nossos povos e de nossa gente. [ ...] me lembro que no primeiro encontro ainda não tinham aprendido o hino do Uruguai, o hino do Brasil, assim como só pudemos entoar com a banda o hino argentino. Hoje como um processo de integração, nossos jovens músicos também estudaram e aprenderam os hinos dos países que integram o Mercosul. Eu acredito que isto também é um sinal. [ ...] Porque, casualmente, qual é o objetivo final que se persegue com todos esses Encontros de municípios? É varrer a fronteira, é aproximar as pessoas, é fazer com que tenham amigos e que se conheçam, é estabelecer relações, estabelecer relações agora, mas para poder projetá-las ao futuro. Por isso quis tratar nestas comissões... por isso queremos que isto nos dias que vamos conviver e que vamos compartilhar sirvam para o futuro, para nosso futuro e para o futuro de nossos povos. Vamos ter de evitar dificuldades, como as evitamos em cada um destes Encontros e isso é parte também deste processo de integração no qual parece evitar obstáculos [ ...] ".
  • 36
    Não está claro por que se empregam os símbolos nacionais em lugar das bandeiras, escudos e hinos dos estados/províncias. Este fato parece obedecer ao que o evento concebe como Reuniões de Municípios do Mercosul, que ultrapassam formalmente a província de ER e o estado do RS, apesar de que isso não deveria impedir que seus símbolos se somem aos nacionais. Outro fator a ser considerado é o impedimento constitucional vigente na Argentina e no Brasil para o desenvolvimento de relações exteriores por parte de seus estados/províncias. A questão merece, contudo, uma análise mais profunda.
  • 37
    No Primeiro Encontro, realizado na cidade de Victoria (ER) em 1994, o jantar ocorrido no primeiro dia não recebeu nenhuma denominação especial, reunindo os participantes no mesmo espaço onde se realizou o encontro, em torno do que os organizadores consideravam expressões culturais tradicionais entrerrianas (o churrasco com couro e alguns conjuntos musicais gauchos). No ano seguinte, no evento realizado no Paraná, os organizadores previram um jantar de integração para o último dia, sucedido a um desfile de modas. Somente no terceiro evento, em Encantado (RS), em 1996, realizaram-se pela primeira vez dois jantares sucedidos por shows: o Jantar de Integração Cultural e Artística, que incluiu a apresentação de conjuntos musicais e de danças tradicionais, e o Jantar de Confraternização, que terminou com um grande baile até o dia seguinte. Isto se repetiu no evento de Santa Cruz, em 1998. No caso dos eventos em Colón e Gualeguaychu não ocorreram jantares, mas shows de confraternização.
  • 38
    No caso dos shows, observa-se, ademais, que as pessoas que se sentaram juntas durante seu transcurso se retiram conjuntamente para jantar ou para beber alguma coisa.
  • 39
    A sucessão de espetáculos de características similares tem o efeito de mostrar que ambos os estados têm elementos culturais semelhantes. Cada número artístico proveniente de ER é uma demonstração de que sua cultura é
    gaucha, mescla de
    espanhol e
    crioulo, e de que foi receptora de
    imigrantes de diversas origens (espanhóis, italianos, alemães, russos) etc. Pelo lado do RS, exibe-se sua
    cultura gaúcha, mescla de
    portugueses e
    crioulos, e receptora de influências imigratórias das mesmas origens.
  • 40
    A leitura das conclusões incorporou-se ao evento ocorrido em Paraná, em 1995.
  • 41
    Foi somente no evento realizado em Encantado (1996), que se efetivou a redação e a leitura da Carta da Integração Entrerriano-rio-grandense. Posteriormente ela foi enviada aos poderes legislativos de ambos os estados/províncias para sua ratificação oficial.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Maio 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2004

    Histórico

    • Recebido
      Out 2002
    • Aceito
      Out 2003
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