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A PRESENÇA DE CLAUDE LÉVI-STRAUSS

LOYER, Emmanuelle. Lévi-Strauss. 2015. Flammarion, Paris: 910

Lévi-Strauss de Emmanuelle Loyer fascina. Fascina por ser justo, elegante na forma e rigoroso no conteúdo; denso na análise, mas respeitoso nos detalhes; copioso no estilo e comportado no método. Qualidades decisivas que faz dele a mais importante e imponente biografia de Claude Lévi-Strauss (1908-2009).

Disposto em 21 capítulos organizados em quatro partes somadas a uma introdução, uma seção de notas e dois cadernos de fotos, o volume ultrapassa as novecentas páginas, mas de tão agradável, sua leitura quase que não admite interrupção. Primeiro, pela curiosidade irresistível diante da vida do grande pensador francês; segundo, pela formidável performance narrativa de Loyer.

O ponto de partida da empreitada de Loyer foi a pesquisa que resultou em Paris à New York: intellectuels et artistes français en exil (1940-1947) (Paris, Grasset, 2005), em que esta experiente historiadora francesa notou a proeminência do autor de Tristes tropiques já nos anos de 1940. Quando se permitiu o acesso às 261 caixas do acervo pessoal do antropólogo depositadas na Bibliothèque Nationale de France pela família Lévi-Strauss, Loyer teria em mãos a argamassa de seu trabalho que ainda envolveria consulta a arquivos e pessoas nos quatro cantos do mundo.

“Les arrière-monde (1929-1935)”, “Les nouveaux mondes (1935-1947)”, “L’ancien monde (1947-1971)” e “Le monde (1971-2009)” são as quatro partes do livro. Na primeira, Lévi-Strauss é apresentado desde seus ancestrais até o verdadeiro turning point de sua vida: sua vinda para o Brasil em 1935. A segunda retraça sua estadia brasileira, seu retorno à França em 1939 e seu exílio nos Estados Unidos de 1941 a 1947. A terceira enfatiza seu retorno à França e sua afirmação como antropólogo. A última expõe seu momento de consagração.

No início ele atendia por Claude, vivia em Bruxelas, era judeu praticante e queria ser artista e filósofo. Movido à França e à Paris, ele passa a juventude e entra na Faculdade de Filosofia e Direito sem abdicar das letras e das artes. Na virada da década de 1920, ele se torna militante socialista e, com o diploma universitário em mãos, começa a dar aula de filosofia no interior da França. Nessa época, conhece Dina Dreyfus, que viria a ser sua primeira esposa. Em 1934, em meio aos desdobramentos da crise de 1929 e à ascensão de Hitler na Alemanha, o jovem professor é convidado para compor, juntamente com Fernand Braudel, Pierre Monbeig, Jean Maugüe e Pierre Hourcade, a missão universitária francesa que viria ao Brasil consolidar a nascente Universidade de São Paulo.

Malgrado tenha sido contratado para a cadeira de sociologia, Lévi-Strauss rejeita os domínios tout court dos saberes de Auguste Comte e avança pela etnografia aos moldes de Émile Durkheim, Marcel Mauss e Bronislaw Malinowski. Essa sua postura gerou profundo desacordo pessoal e profissional com Paul Arbousse-Bastide, o que significou a não renovação de seu contrato em 1938.

Mas os três anos de estadia no Brasil foram fecundos para Lévi-Strauss. Sua mulher, também acadêmica de talento, conquistou a simpatia da oligarquia paulistana e tornou-se grande amiga do então secretário de cultura de São Paulo, ninguém menos que Mário de Andrade. E por suas mãos, os Lévi-Strauss conheceriam todos os atores, todos os debates e todos os lugares da cultura brasileira, o que criou condições para alavancar as expedições do casal pelo interior do país. Foi nesse contexto que o jovem francês, que beirava 30 anos de idade, travaria contato com os Bororo e os Nambiquara.

Não podendo permanecer no Brasil, Lévi-Strauss teve que retornar ao Velho Mundo em 1939. Contudo, seu retorno coincidiu com a eclosão da guerra, o que impôs ao menos dois complicadores: primeiro, a França cairia sob o mando alemão em 1940; segundo, Lévi-Strauss era judeu. Nessas circunstâncias, sua saída foi novamente partir. Inicialmente ele tentou sem sucesso voltar ao Brasil, mas só conseguiu aceitação da New York for Social Research nos Estados Unidos, para onde emigrou em 1941.

Em Nova York, Lévi-Strauss teria outro turning point em sua vida e carreira. Aos poucos ele foi se profissionalizando etnólogo-antropólogo. O contato com os escritos anglo-saxônicos de sua área ampliou significativamente seu campo de visão, como atesta o encontro com o linguista Roman Jakobson em 1942, que modificaria sua percepção da ciência antropológica, fornecendo-lhe as bases do que viria a ser o estruturalismo francês.

Terminada a guerra, Lévi-Strauss, ao contrário da maioria de seus colegas e amigos exilados franceses, entre os quais o surrealista André Bretton, opta por continuar nos Estados Unidos. A France libre do general De Gaulle lhe havia confiado a condição de conselheiro cultural da França em Manhattan, função exercida entre 1945 e 1947.

Após sete anos de exílio norte-americano, ele regressa novamente à França, agora casado com Rose-Marie Ullmo. Mas da liberação em 1944 ao ano de1947 muitas águas lavaram as ladeiras de Montmartre. O general De Gaulle havia se retirado da vida pública. A Quarta República francesa vivia sua desolação. O ambiente de frustração era onipresente. A integração daqueles que voltavam do exílio foi complicada por conta dos ressentimentos daqueles que decidiram permanecer na França e vivenciaram o horror da guerra. Lévi-Strauss era um outsider em sua própria Europa. Seus principais mestres haviam sido dizimados física ou intelectualmente pela guerra: Marc Bloch fora assassinado, Marcel Mauss perdera a lucidez, Paul Rivert não tinha mais prestígio e Lucien Febvre se isolara.

Mas era preciso seguir em frente, e em 1948 Lévi-Strauss apresentaria as 750 páginas, 80 figuras e 1.200 notas de Les structures élémentaires de la parenté como tese de doutorado na Sorbonne. Somente após esse ritual que autor de La pensée sauvage se sentiria amadurecido como etnógrafo-antropólogo, mas ainda marginal, pois as portas do mundo universitário continuavam fechadas a ele – parecia que todos os postos estavam completos. Sua comiseração foi imensa depois de ter sido por duas vezes, em 1949 e 1950, preterido para o ingresso no Collège de France. Malgrado suas frustrações, ele possuía livre acesso aos projetos da Unesco e, a partir de 1949, passou a liderar a discussão sobre cultura e racismo no mundo do pós-1945, o que resultou na publicação, em 1952, do importante Race et histoire, considerado verdadeiro tratado antirracismo.

Lévi-Strauss, segundo Loyer, jamais tivera temperamento para querelas, embora fosse dado a provocações. Contudo, as polêmicas encabeçadas especialmente pelo sociólogo Roger Caillois em Illusions à rebours promoveram eloquente reação no antropólogo. Sua resposta viria primeiro em forma de artigo com “Diogène couché” e terminaria com seu monumento Tristes tropiques, certamente um divisor de águas na trajetória intelectual de Claude Lévi-Strauss.

No final da década de 1930, essa obra começou a ser pensada como um romance sobre sua estadia no Brasil, mas se transformou em uma espécie de autoanálise etnográfica. Escrito freneticamente em menos de quatro meses no primeiro semestre de 1955 e publicado no semestre seguinte, Tristes tropiques conquistou imediatamente o gosto do público e da crítica francesa e mundial, tendo sido reimpresso em poucas semanas e logo traduzido para outros idiomas. A notoriedade advinda desse sucesso inusitado lhe deu ânimo para concorrer novamente a uma vaga no Collège de France, onde, finalmente, entraria em 1959. Uma vez lá, e agora com 50 anos, casado pela terceira vez, com Monique Roman, sua trajetória sofreria nova reviravolta com a criação do Laboratório de Antropologia Social, onde ele pôs em pratica as premissas de seu manifesto estruturalista contido em Anthropologie structurale de 1958 e desdobrado depois de quatro anos em Le totémisme aujourd’hui e La pensée sauvage e na tetralogia Mythologiques (1. O cru e o cozido; 2. Do mel às cinzas; 3. A origem das maneiras à mesa e 4. O homem nu) de 1964 a 1971.

A consequência desse trabalho hercúleo, mas acessível e elegante, foi sua nomeação à imortalidade na Académie Française em 1973. Nesse momento, todos os eventuais combates acadêmicos e burocráticos do passado de Lévi-Strauss perderam relevância, ainda que as críticas à sua antropologia e ao seu estruturalismo tenham sempre suscitado divergências muitas vezes sanguinárias.

Com o adentrar dos anos de 1980, a maior parte dos grandes intelectuais franceses do século XX foi desaparecendo: Jean-Paul Sartre e Roland Barthes morreram em 1980; Jacques Lacan, em 1981; Raymond Aron, em 1983; Michel Foucault, em 1984; Fernand Braudel, em 1985. Essa situação tornou Lévi-Strauss a derradeira autoridade intelectual francesa à moda antiga, uma vez que não se pode incluir nessa categoria intelectuais mais jovens, como Pierre Bourdieu, Jacques Le Goff, Jean-Pierre Vernant e até mesmo François Furet. Tal proeminência conduziu o então presidente François Mitterrand a inserir Lévi-Strauss em várias delegações presidenciais como representante do génie francês. Uma dessas ocasiões foi justamente a visita do presidente francês ao Brasil em 1985, quando Lévi-Strauss retorna aos trópicos depois de tantos anos.

Nesse período, ele passou mais e mais a ser assediado pela imprensa. Sua aparição em emissões de rádio e televisão foi se multiplicando especialmente após a sua aposentadoria do Collège de France em 1982. De lá até sua morte em fins de 2009, ele ainda responderia pela criação do imponente Musée du Quai Branly, idealizado pelo presidente Jacques Chirac, e pela coordenação da exposição do Brasil no Musée de l’Homme por ocasião do ano do Brasil na França, em 2005.

Essas e outras impressões sobre os cem anos da impressionante vida de Claude Lévi-Strauss são, assim, apresentadas de maneira sublime nessa magistral obra de Emmanuelle Loyer, que meses depois de sua publicação foi congratulada com o prêmio Femina Essai 2015. Essa bela biografia merece, antes de tudo, nossos aplausos e aguardamos ansiosos por sua versão em língua portuguesa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016
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