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Entre a cruz e a encruzilhada: Formação do campo umbandista em São Paulo

Umbanda:

rituais, cosmologia e ética

Lísias Nogueira NEGRÃO. Entre a cruz e a encruzilhada. Formação do campo umbandista em São Paulo. São Paulo, EDUSP, 1996. 377 páginas.

Regina Reyes Novaes

O livro de Lísias Nogueira Negrão só ganhou com a decisão do autor de se desinteressar pelas já conhecidas controvérsias em torno do local de nascimento da umbanda, as quais, quase sempre, desembocam em discussões acerca do (suposto ou real) berço carioca da umbanda paulista.

Deixando de lado as questões de origens, o autor produziu um bom e bonito livro sobre a umbanda em São Paulo. Porém, oferecendo ao leitor uma visão histórica da umbanda em um dos estados brasileiros, o livro ultrapassa a concretude do estudo etnográfico de um caso. Ao mesmo tempo, felizmente, não cai em generalizações apressadas sobre a "umbanda no Brasil". Circunscrita a abrangência, o autor se propõe a fazer um estudo de "médio alcance".

Esta qualidade do livro talvez não seja imediatamente valorizada pelos leitores que não têm muita familiaridade com o tema. Afinal, não é todo mundo que sabe, mas estudar a umbanda é se deparar com um objeto rebelde que sempre surpreende o observador com sua "complexa diversidade, suas rupturas e contradições", para usar as palavras com as quais o próprio autor qualifica seu objeto de estudo.

Cada terreiro tem suas idiossincrasias e, de certa forma, é um produto único, pois é atingido diferencialmente por um conjunto de influências religiosas. Ainda assim, entretanto, há um universo simbólico comum a desvendar. E isto justifica o estudo em questão. Seu foco está na constituição do campo umbandista. Por um lado, trata-se de desvendar as relações internas que se estabelecem entre terreiros e federações e entre o pai de santo, o médium e o cliente. Mas, como as relações externas são também essenciais para a constituição do campo religioso umbandista, a pesquisa inclui ainda as relações com outras alternativas religiosas, outros grupos e instituições da sociedade brasileira. É por este último ponto que o livro começa.

Dois longos capítulos são dedicados à gênese, consolidação e declínio da umbanda paulista. Para dar conta cronologicamente deste ciclo são apresentados 12 curtos períodos. Mesmo correndo o risco de não fazer juz à qualidade e à quantidade das evidências empíricas apresentadas para caracterizar cada pequeno período, acho que vale a pena dar alguns exemplos de correlações que ali são feitas.

Como o livro nos faz ver — sobretudo a partir de notícias e artigos sobre a umbanda publicados em jornais de grande circulação —, até os anos 50 alternaram-se perseguições movidas tanto por aparelhos repressivos governamentais, durante e após o Estado Novo, quanto por instituições religiosas, incentivadas pela intolerância do catolicismo dominante. Já o início dos anos 60 foi marcado por intensa atividade organizativa. Federações, congressos, publicações floresceram em São Paulo, onde a presença de militares — então no poder e em posição proeminente dentro do movimento federativo umbandista — fez crescer a "confiabilidade" da umbanda junto aos governadores do estado, particularmente Ademar de Barros e Laudo Natel. Aliás, data de 1964 a inclusão da umbanda no Anuário Estatístico do IBGE, indicando seu reconhecimento oficial. No que diz respeito à Igreja Católica, o autor lembra que foi por esta época que começaram a soprar os "ventos ecumênicos" do Concílio Vaticano II, que incluíram a umbanda como "religião dos humildes", digna de ser estudada e portadora de valores reais, estéticos e religiosos.

Nos anos 80, o livro evidencia, entre outras coisas, a ligação de organizações umbandistas com campanhas políticas de Paulo Maluf. No entanto, é também nesta época que se inicia a estagnação do crescimento visível e organizativo da umbanda paulista, o que vem acompanhado pela redução de sua presença no noticiário jornalístico. Na realidade, aquele foi um tempo de início de abertura "lenta e gradual", e por vários motivos de ordem micropolítica os umbandistas resolveram lançar "candidatos próprios". Não elegeram seus candidatos. Por outro lado, a ascensão do PMDB de Franco Montoro, notória e convictamente católico, não facilitou nenhuma reaproximação com o governo do estado. Porém, segundo dados apresentados no livro, uma retomada deste crescimento se insinua na segunda metade da década. De acordo com o autor, essa "retomada do crescimento do número de terreiros está ligada, entre outros fatores possíveis, à recomposição da Umbanda com o governo peemedebista, articulada pelo governador Orestes Quércia, eleito em 1986." (p. 136).

Mas, se é verdade que os líderes umbandistas fizeram "relações públicas" para a legitimação externa de sua opção religiosa, fizeram também o trabalho religioso internamente a este campo. Ainda que as tendas de umbanda não se configurem institucionalmente como igrejas, nem seus pais-de-santo componham uma corporação de sacerdotes especializados e manipuladores das coisas sagradas, estes líderes se empenham também — segundo demonstra Lísias Negrão — em um fazer teológico. Submetem ritos e mitos espontaneamente gerados nos terreiros a um crivo que — mesmo não tendo como resultado uma unidade inquestionável — produz um tipo de identidade com conseqüências para a existência e as perspectivas da umbanda. Tal identidade se faz entre dois eixos de tensões. Em um eixo, o trabalho destes funcionários faz abrir caminhos tanto para a umbanda afirmar-se como culto específico quanto para homogeneizar-se diante das demandas de legitimação. Em outro eixo, coloca-se tanto a possibilidade de reafirmar sua diferença, através do cultivo das raízes, como a virtualidade de a umbanda tornar-se símbolo e lugar de integração da ideologia nacionalista.

Explicitadas as tensões constitutivas da identidade umbandista, agora para buscar elementos que melhor descrevam este universo simbólico, o autor nos conduz aos terreiros. A caracterização da composição social dos terreiros se faz mediante informações estatísticas, relatos, reconstruções de trajetórias de vida, transcrições de opiniões. Na umbanda, entre os "chefes de terreiros", o predomínio é feminino. E são as descrições de terreiros, dos rituais, as giras, a apresentação dos guias, um a um, que vão dando colorido ao livro, tão bem ilustrado com boas fotos em preto-e-branco. Através da descrição dos terreiros pode-se perceber não só as diferenças, mas também a partilha das crenças nas quais se ancoram as animosidades, rivalidades, as acusações de simulação de transe, enfim, os conflitos inerentes a este mundo mítico.

Ainda em busca do universo simbólico comum aos umbandistas, o autor identifica, através da análise do transe de possessão, dois padrões entre pais-de-santos e guias. Para Lísias Nogueira Negrão, a relação mais pessoal em que os guias "tomam" os pais-de-santo aproxima a umbanda do candomblé, ao passo que a relação mais impessoal, limitada ao momento da incorporação, com o pai-de-santo exercendo controle sobre ela, estaria mais próxima do kardecismo. De fato, para o autor, "há um efetivo intercâmbio entre a umbanda, o kardecismo e o camdomblé que ultrapassa o limite da mera coexistência para atingir o nível da real interpenetração de mitos, ritos e significados." (p. 298). E o catolicismo, terceiro pólo conformador da umbanda, como ficaria?

Setenta por cento dos entrevistados tiveram formação católica, e outros tantos que, na vida pública, se declaram católicos, na vida privada são umbandistas. Mas Lísias se questiona sobre o modelo já consagrado na literatura a respeito da convivência entre catolicismo e umbanda. Afirmando que haveria necessidade de outros estudos para aprofundar a questão, apresenta diversas formas e motivos para a chamada "dupla pertença" ao catolicismo e à umbanda. É verdade que já é lugar-comum na literatura especializada evidenciar a influência do catolicismo na umbanda, através de processos sincréticos, identificando-se aos pares os santos e orixás. Mas os depoimentos recolhidos pelo autor indicam certa dinâmica ininterrupta em que a negociação entre as expectativas (de soluções para os males do corpo e da alma) e as crenças abre espaço para a produção de sentido no presente, a despeito de seus campos de origens.

Ainda com a mesma intenção de contextualizar a umbanda em suas relações com outras religiões, o autor incorpora à análise a alternativa evangélica — sobretudo em sua vertente pentecostal. Em capítulo anterior, Lísias já classificara como "perseguição religiosa" as ações e acusações da Igreja Universal do Reino de Deus contra os umbandistas. Citando informações jornalísticas, informa que umbandistas são mantidos em "cárcere privado para se converterem a Cristo" e que terreiros foram "invadidos por pentecostais" (p. 141). Todos sabemos, é verdade, da freqüência das acusações que ligam os umbandistas ao demônio em programas radiofônicos da Igreja Universal do Reino de Deus. No entanto, do meu ponto de vista, este é um dos únicos momentos do livro em que se relativiza pouco. Lísias se inspira no conceito de "campo religioso" de Pierre Bourdieu e, por este caminho, considera que os pentecostais fazem parte do conjunto das alianças e contraposições que hoje definem os umbandistas. Através do mesmo recurso teórico, isto é, considerando o campo como sistema de posições e oposições, talvez fosse necessário pensar também esta "perseguição religiosa" com outros parâmetros relacionais, não de todo comparáveis com o que ocorreu no âmbito do catolicismo oficial e dominante. Estou sugerindo que, de certa forma, foram apresentadas as evidentes descontinuidades entre umbandistas e pentecostais, quando existem também continuidades entre estes universos simbólicos que, aliás, já têm sido exploradas em algumas pesquisas recentes. Mesmo porque, o competitivo crescimento pentecostal nas camadas populares transformou algumas sedimentadas relações históricas no campo religioso, acirrando também certos preconceitos ou sensacionalismo dos meios de comunicação contra os pentecostais. Enfim, a referência aos pentecostais talvez tenha ficado mais rápida do que seria necessário para os dias de hoje.

Por fim, vale a pena voltar a atenção para a tese que atravessa os três últimos capítulos do livro. Reunidos sob o título Cosmogonia e ética, eles foram assim denominados: "Encantamento e desencantamento"; "Questão moral I: esquerda e direita"; "Questão moral II: caridade, cobrança e demanda". O autor não economiza interlocução e reflexão teórica. Impossível resumi-los aqui. Mas, creio que, para além da contribuição evidente ao estudo da umbanda, nestes capítulos podemos encontrar instigantes pistas tanto para pensar o modus operandi da cultura brasileira, quanto para estabelecer o lugar da religião na produção de valores e de redes e espaços da sociabilidade no mundo contemporâneo.

Ao afirmar que entre os adeptos da umbanda se apresenta uma "ética pragmática" e uma "moralidade de aspiração", o autor nos obriga a indagar se o processo de racionalização das crenças religiosas deve ser pensado de maneira acumulativa linear, com "um lugar de chegada". Em outras palavras, seria bom perguntar até que ponto o paradigma da secularização, historicamente construído, ajuda a caracterizar melhor a cultura brasileira e compreender os processos sociais em curso. Ou se, para além dos contemporâneos marcos da modernidade e da existência de outras (concorrentes ou complementares) fontes doadoras de sentido à vida, as religiões não ultrapassarão sempre as fronteiras do "foro íntimo" para produzir parâmetros éticos e morais com conseqüências imediatas para a sociabilidade e constituição do espaço público. Na umbanda, a partir de códigos ancestrais e das necessidades concretas — no tempo e no espaço —, fazem-se e refazem-se as dicotomias entre o bem e o mal. Entre cruzes e encruzilhadas, a umbanda está hoje entre as experiências religiosas dispostas a surpreender, por seu ritmo e riqueza simbólica, um mundo que se quer ver racional e desencantado.

REGINA REYES NOVAES

é antropóloga, professora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Fev 1999
  • Data do Fascículo
    Out 1998
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