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HUMANITARISMO FORENSE ENTRE EXPERTISES TRANSNACIONAIS E TECNOLOGIAS DE GOVERNO: O caso da Vala de Perus

FORENSIC HUMANITARIANISM BETWEEN TRANSNATIONAL EXPERTISES AND GOVERNMENT TECHNOLOGIES: The case of the Peru’s ditch

HUMANITARISME MÉDICO-LÉGAL ENTRE EXPERTISES TRANSNATIONALES ET TECHNOLOGIES DE GOUVERNEMENT: Le cas du Cimetiere de Perus

Resumo

A partir de reflexões produzidas no contexto de duas pesquisas etnográficas, este artigo aborda o desenvolvimento de uma tecnologia nacional para gestão dos corpos de desaparecidos políticos pela Ditadura (1964-1985) no Brasil. Mobilizando método histórico processual, exploro a construção da vala clandestina de Perus como caso forense, destacando o enredamento entre dois domínios de saber e poder sobre os mortos: o médico-legal institucionalizado na esfera policial e o humanitarismo forense transnacional. O objetivo é tratar as tensões interpostas ao desenvolvimento e ao exercício de um poder identificador humanitário como resultantes de disputas pelas autoridades que dele se desdobram, iluminando os aspectos disciplinares da identificação. Argumento que, ao constituir sujeitos a partir de atos analíticos e práticas de escrita, a identificação humanitária também os circunscrevem como geridos por saberes e fazeres que dão lugar a atos de governo.

Palavras-chave:
desaparecimento forçado; identificação; giro forense; burocracia; estado

Abstract

Based on reflections produced in the context of two ethnographic assessments, this article discusses the development of a national technology for the management of the bodies of disappeared politicians during the Dictatorship (1964-1985) in Brazil. Mobilizing the historical procedural method, I explore the construction of Peru’s clandestine ditch as a forensic case, highlighting the entanglement between two knowledge and power domains over the dead: one legalized and institutionalized in the police sphere and the other in transnational forensic humanitarianism. The aim is to treat the tensions interposed to the development and the exercise of a humanitarian identifying power as a result of disputes by the authorities that unfold it, illuminating the disciplinary aspects of identification. I argue that, by constituting subjects based on analytical acts and writing practices, humanitarian identification also circumscribes them as managed by knowledge and actions that give rise to government acts.

Keywords:
enforced disappearance; identification; forensic turn; bureaucracy; state

Resume

Cet article part des travaux de deux recherches ethnographiques pour aborder le développement d’une technologie nationale destinée à la gestion des corps de disparus politiques pendant la dictature brésilienne (1964-1985). Sur la base d’une méthode historique processuelle, il prend comme cas médico-légal la construction du cimetière clandestin de Perus et met l’accent sur l’enchevêtrement entre deux domaines de savoir et de pouvoir sur les morts: le médico-légal institutionnalisé dans la sphère policière et l’humanitarisme médico-légal transnational. L’objectif est d’envisager les tensions qui gênent le développement et l’exercice d’un pouvoir identificateur humanitaire comme des résultantes de disputes des autorités qui en découlent, en mettant en lumière les aspects disciplinaires de l’identification. Les résultats montrent qu’en constituant des sujets à partir d’actes analytiques et de pratiques d’écriture, l’identification humanitaire les circonscrit aussi comme étant gérés par des savoirs et des faires qui cèdent la place à des actes gouvernementaux.

Mots-clés:
disparition forcée; identification; tournant médico-légal; bureaucratie; etat

Introdução

Os papéis de Dimas

Na tarde do dia 19 de abril de 1971, Dimas Antônio Casemiro deu entrada no Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo, capital. Acompanhava seu corpo uma Requisição de Exame encaminhada pela Delegacia de Ordem Política e Social (Dops). Nessa guia oficial, com brasão da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, o delegado havia datilografado informações sobre o morto e sua morte. Embora tenha deixado em branco a natureza da ocorrência (se homicídio, acidente etc.), não esqueceu de informar que “o terrorista”, “vulgo Rei”, havia falecido “em tiroteio com órgãos de segurança”.

Responsável pelo recebimento do corpo, o administrador do necrotério do IML sobrescreveu essa guia à mão, incluindo o número de série da entrada de Dimas na instituição, os acrônimos Dops (para indicar a delegacia) e F.F. (fichar e fotografar), além de uma misteriosa letra T no topo do documento. No verso, preencheu algumas das informações solicitadas e assinou. A maioria dos campos, referentes ao exame, foi deixada para preenchimento posterior. Alguns chegaram a ser datilografados, embora a maior parte tenha ficado definitivamente em branco.

No mesmo dia, o corpo foi submetido à necrópsia por dois peritos designados. Eles produziram e assinaram o Laudo de Exame Necroscópico, no qual descreveram as características de “um corpo que nos foi apontado como sendo o de Dimas Antônio Casemiro, vulgo Rei”, “morto por disparos de arma de fogo”. Após as descrições médicas dos exames externo e interno realizados, identificando apenas as lesões referentes a quatro projéteis, o laudo concluiu pela morte por “hemorragia interna e externa de origem traumática provocada por instrumento perfuro contuso”; respondendo “prejudicado” ao quesito sobre a incidência de “meio cruel ou insidioso”. Assinado pelos dois médicos-legistas e registrado somente no dia seguinte, o Laudo de Exame Necroscópico foi arquivado junto aos demais documentos produzidos: algumas Fotografias e a Ficha Datiloscópica. Cópias do material foram encaminhadas ao Dops. Nesse mesmo dia, o nome de Dimas deu entrada no Livro de Registros do Cemitério Municipal Dom Bosco, no bairro de Perus, onde seu corpo foi sepultado no setor destinado aos desconhecidos, como não reclamado.

Todos esses documentos são públicos. Eles podem ser consultados no Arquivo Público do Estado de São Paulo ou nos arquivos do movimento de familiares de mortos e desaparecidos políticos. Também podem ser encontrados nos acervos de instituições criadas para reconhecer e reparar violências cometidas pela Ditadura (1964-1985), como a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), que reconheceu Dimas como um desaparecido político em 1996, e o Grupo de Trabalho Perus (GTP), que identificou seu corpo duas décadas depois.1 1 Para esse artigo, a consulta aos documentos ocorreu no âmbito da pesquisa etnográfica no Grupo de Trabalho Perus contextualizada mais adiante. O leitor pode acessá-los livremente em: Arquivo Dimas Casemiro / Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva / Disponível em: http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/mortos-desaparecidos/dimas-antonio-casemiro/ Acesso em: (27/01/2021).

Em 20 de fevereiro de 2018, o GTP, equipe forense multidisciplinar brasileira, anunciou a identificação de Dimas Antônio Casemiro, morto “por agentes de repressão política do regime militar.” O resultado genético positivo foi confirmado “pelos estudos antropológicos, odontológicos e as informações ante mortem (…) relativas à altura, idade, dentição e ao trauma por ação de projétil de arma de fogo.” No escopo dessas análises, os papéis outrora produzidos pelo IML foram tomados como fontes relevantes para operar a individualização dos remanescentes. Ao longo do trabalho, os dados bioantropológicos, odontológicos, genéticos e traumáticos de Dimas foram colhidos, de um lado, junto a sua família e seus documentos pessoais, de outro lado, ao esqueleto analisado. A comparação entre esses dados, respectivamente chamados ante mortem e post mortem, implicou em nova documentação de seu corpo. A pasta com doze fichas minuciosamente preenchidas nos inúmeros detalhes requisitados resultou em sua Ficha de Identificação. Assinada por um patologista, um geneticista, um odontólogo, uma arqueóloga e uma bioantropóloga, a Ficha permitiu a produção de nova documentação civil, dando “uma resposta concreta à sociedade e especialmente aos familiares de mortos e desaparecidos políticos, os quais, no caso da família de Dimas, poderão finalmente render-lhe honras funerárias e encerrar dignamente o seu processo de luto.”2 2 Os trechos entre aspas no parágrafo são da nota oficial: “Grupo de Trabalho Perus identifica restos mortais de militante político”. Disponível em: https://www.unifesp.br/reitoria/dcik2/boletins-anteriores-dci/item/3186-grupo-de-trabalho-perus-identifica-restos-mortais-de-militante-politico, consultado em 18/03/2020.

Quarenta e sete anos separam os dois momentos em que o corpo e a morte de Dimas foram dados ao exame e à documentação. Operada nos anos 1970 pelo IML, a documentação que identifica seu corpo e morte perante o Estado o tornou desaparecido para sua família. Realizada pelo GTP, a identificação o fez reaparecer. Em ambas as ocasiões, o manejo do corpo morto de Dimas ofereceu oportunidade ao Estado Nacional, através de seus órgãos identificadores, de performatizar soberania (Stepputat, 2014STEPPUTAT, Finn. (2014), “Introduction”. In:___. Governing the dead. Sovereignty and the politics of dead bodies. Manchester, Manchester University Press.). Entendida em termos de poder sobre a vida e a morte, em âmbito forense a soberania é o poder de operar a transição entre elas. Nas palavras de Stepputat, ela é um efeito das práticas que produzem domínios de saber-poder ao relacionar o manejo de corpos à inscrição de verdades públicas.

No Brasil, a morte é um ato médico, e o fazer pericial é uma atividade policial. Atentas à intersecção entre esses dois fazeres, diversas pesquisas vêm mostrando que atividades de documentação de corpos mortos, como a identificação, transitam entre saberes sobre indivíduos e saberes sobre totalidades (Foucault, 2007aFOUCAULT, Michel. (2007a), “A governamentalidade”. In: _____. Microfísica do Poder. Tradução de R. Machado. 23a. ed. Rio de Janeiro, Edições Graal.), estabelecendo-se na complementariedade entre técnicas médicas, de nomeação e de controle social, isto é, na confluência entre as dimensões científica, burocrática e política (Carrara, 1984CARRARA, Sérgio. (1984), “A “Sciência e Doutrina da Identificação no Brasil” ou Do Controle do Eu no Templo da Técnica”. Boletim do Museu Nacional, n. 50: 1-28.; Cunha, 2002CUNHA, Olívia Maria Gomes da. (2002), Intenção e gesto: pessoa, cor e a produção cotidiana da (in)diferença no Rio de Janeiro, 1927-1942. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional.; Ferreira, 2009FERREIRA, Letícia. (2009), Dos autos da cova rosa. A identificação de corpos não identificados no Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, E-papers/LACED/Museu Nacional.; Medeiros, 2018MEDEIROS, Flávia. (2018), “O morto no lugar dos mortos: classificações, sistemas de controle e necropolítica no Rio de Janeiro”. Revista M. Rio de Janeiro, v. 3, n. 5, p. 72-91, jan./jun.; Farias, 2015FARIAS, Juliana. (2015), “Fuzil, Caneta e Carimbo: notas sobre burocracia e tecnologias de governo”. Confluências. Vol. 17, nº 3: 75-91.; Nadai, 2018NADAI, Larissa. (2018), Entre pedaços, corpos, técnicas e vestígios: o Instituto Médico Legal e suas tramas. Tese de doutorado. Instituto de Filosofia Ciências Humanas da Universidade Estadual de São Paulo, Campinas.). Em diálogo com essa bibliografia, os papéis de Dimas também sugerem que o exame pericial opera a transição entre a vida e a morte ao mesmo tempo que relaciona o morto a formas de classificação social não inerentes à realidade física de seu corpo, sejam elas “terrorista” ou “militante”. Assim como com o “desconhecido” ou o “não identificado” (Ferreira, 2009FERREIRA, Letícia. (2009), Dos autos da cova rosa. A identificação de corpos não identificados no Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, E-papers/LACED/Museu Nacional.), e tanto quanto os indivíduos enquadrados em “autos de resistência” (Farias, 2015FARIAS, Juliana. (2015), “Fuzil, Caneta e Carimbo: notas sobre burocracia e tecnologias de governo”. Confluências. Vol. 17, nº 3: 75-91.), estamos diante de situações em que o exame categoriza a realidade material dos corpos segundo processos de hierarquização da população, que diferenciam formas de governar vidas e mortes.

Neste artigo, os papéis de Dimas são o ponto de partida, e de retorno ao final, para pensar a construção de um poder identificador humanitário, até então imprevisto e considerado interdito pelo poder policial. Por meio de análise histórico processual da construção da Vala de Perus como caso forense, exploro as tensões interpostas ao exercício desse poder como resultantes das autoridades que dele se desdobram, para iluminar os aspectos disciplinares presentes na identificação humanitária. Argumento que, ao constituir sujeitos a partir de atos analíticos e práticas de escrita, ela também os circunscreve como geridos por saberes e fazeres, dando lugar a atos de governo que seguem observando as desigualdades constitutivas da sociedade brasileira.

Das transições em jogo

Todo esse processo não pode ser entendido senão no contexto de outra transição. Conforme mencionado, os primeiros papéis de Dimas eram destinados aos arquivos do IML. Parte significativa do acervo desse órgão, integrante das polícias técnico-científicas estaduais, se refere à institucionalização de mortes e à identificação civil dos mortos.3 3 Os IMLs são ligados às Secretaria de Segurança Pública ou às Polícias Civis estaduais. Eles documentam obrigatoriamente dois tipos de morte: suspeita de violência e de pessoas de identidade desconhecida. Em geral, são pessoas mortas sem documentos e/ou sem a presença de conhecidos. O IML pode lograr identificá-las pelo nome próprio ou atribuir a identificação de “não identificado”, conforme mostra Ferreira (2009). Os corpos encaminhados pelos necrotérios do IML, hospitais públicos e Serviço de Verificação de Óbito (SVO) são sepultados no setor dos cemitérios municipais destinados a órgãos públicos, distinto do reservado ao sepultamento familiar. A documentação de cadáveres ocupa suas técnicas médicas que, investidas de autoridade científica e exclusividade institucional, acumulam conhecimentos sobre os corpos físicos dos cidadãos e, consequentemente, sobre o corpo social (Carrara, 1984CARRARA, Sérgio. (1984), “A “Sciência e Doutrina da Identificação no Brasil” ou Do Controle do Eu no Templo da Técnica”. Boletim do Museu Nacional, n. 50: 1-28.; Cunha, 2002CUNHA, Olívia Maria Gomes da. (2002), Intenção e gesto: pessoa, cor e a produção cotidiana da (in)diferença no Rio de Janeiro, 1927-1942. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional.; Ferreira, 2009FERREIRA, Letícia. (2009), Dos autos da cova rosa. A identificação de corpos não identificados no Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, E-papers/LACED/Museu Nacional.).

A partir de 1979 – ano em que a Lei de Anistia marcou o início do fim da Ditadura –, os papéis policiais médico-legais atraíram a atenção dos que denunciavam o assassinato e a ocultação de corpos de opositores do regime. Fenômeno que tais atores nomearam desaparecimento político. O interesse cresceu quando os familiares das vítimas, primeiro individualmente, depois articulados como movimento social, começaram a encontrá-los sepultados em cemitérios públicos. Trazidos progressivamente à luz, tanto os corpos quanto os documentos que os encaminharam a sepultamento se converteram em provas materiais de crimes negados. Mais do que isso, os documentos mostraram ao movimento de familiares os caminhos burocráticos para o desaparecimento, tornando-se referências centrais para, caso a caso, fazê-los reaparecer.4 4 Por movimento de familiares de mortos e desaparecidos políticos, refiro-me às organizações e atores que apresentam demandas ao Estado a partir da afirmação de laços de parentesco com militantes fatalmente vitimados pela Ditadura: os mortos e desaparecidos políticos. A constituição indissociável dessas duas categorias passa pelos casos: narrativas que condensam a história da busca, articulando testemunhos e documentos em um enredo verossímil sobre a militância da vítima e a violência de Estado na origem da ausência. A produção do caso permitiu cotejar ausências das pessoas coletivamente buscadas para estruturar um padrão de entendimento a respeito do desaparecimento político como fenômeno social, associando a natureza da vítima à da violência. Assim, o fenômeno geral foi entendido como a soma dos casos particulares (re)conhecidos. Convertendo os casos em artefatos políticos, jurídicos, mnemônicos e morais que organizam, simultaneamente, a causa e o universo social desestruturado pelas ausências, e fixam, a um só tempo, os familiares e os desaparecidos como atores políticos (Azevedo, 2018). Dos arquivos policiais, esses papéis passaram a conformar um acervo sobre o desaparecimento político, fundamental para mover a luta dos familiares em direção à construção pública de uma pauta Memória, Verdade e Justiça (MVJ) para o país.5 5 O acervo, com cópias mantidas nas sedes de algumas organizações do movimento de familiares de mortos e desaparecidos políticos, é base do Dossiê Ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985), documento de referência para o processo histórico de reconhecimento do fenômeno.

No final dos anos 1970, os nomes de 28 militantes desaparecidos foram encontrados no Livro de Registros do cemitério de Perus. Entre eles, o de Dimas. Mas seu corpo não pôde ser recuperado. Embora o livro indicasse o local de seu sepultamento, registrava também uma exumação administrativa, sem apontar, contudo, o local de reinumação. Não era um caso isolado. A mesma ausência se repetia em quase dois mil outros nomes registrados no livro, seis deles buscados pelo movimento de familiares. Naquele momento foi descoberta a existência de uma sepultura comum secundária e clandestina no interior do cemitério: a Vala de Perus.

Exumados somente em 1990, os remanescentes da vala acumularam um histórico de circulações até passarem à custódia do GTP, em 2014. Ano em que essa equipe forense foi estruturada com o objetivo específico de analisá-los. Três anos depois, eu iniciava uma pesquisa etnográfica junto à equipe. Movida por questões que se desdobravam da minha pesquisa anterior, uma etnografia sobre o ativismo do movimento de familiares (Azevedo, 2018AZEVEDO, Desirée. (2018), Ausências Incorporadas. Etnografia entre familiares de mortos e desaparecidos políticos. São Paulo, Unifesp.), meu interesse era entender o processo de atribuição de identidade política e as maneiras pelas quais o manejar dos corpos pela equipe impactaria o campo social constituído em torno do desaparecimento político no país.6 6 A primeira pesquisa foi orientada por Bela Feldman-Bianco e fomentou tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Unicamp, em 2016. A segunda foi realizada, entre 2017 e 2019, durante pós-doutoramento junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unifesp, sob supervisão de Cynthia Sarti. Por se referir a um tema sensível e a processos de disputa política, importa registrar que a realização dessa segunda pesquisa foi autorizada pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo, assim como pelos comitês científico e gestor do Grupo de Trabalho Perus. Mobilizando dados e reflexões produzidos no contexto dessas duas pesquisas, proponho levar a sério a proposta de que o GTP é uma aposta no desenvolvimento de tecnologia nacional para gestão de remanescentes nos marcos da Justiça de Transição.7 7 Justiça de Transição é o ramo no campo internacional dos Direitos Humanos dedicado à elaboração de soluções globais para processos de transição política ou pacificação. Altamente normatizado, define como obrigações do Estado: 1) investigar, processar e punir; 2) revelar a verdade; 3) oferecer medidas de reparação; 4) reforma das instituições. Projeção que colocou a equipe diante de padrões forenses humanitários globalizados ao mesmo tempo que a apoiou sobre um complexo arranjo institucional.

Os padrões globais nasceram da conexão, hoje estabelecida no campo humanitário, entre a categoria desaparecimento forçado e as ciências/técnicas forenses, que resultou na crescente relevância das tarefas de localizar, exumar e identificar remanescentes humanos, dentre as medidas prescritas para processos classificados como transicionais (Dziuban, 2017DZIUBAN, Zuzanna (2017), Mapping the “Forensic Turn”. Engagements with Materialities of Mass Death in Holocaust Studies and Beyond. Vienna: New Academic Press.; Gatti, 2017GATTI, Gabriel. (2017), “Prolegómeno. Para un concepto científico de desaparición”. In: GATTI, Gabriel. Desapariciones. Usos locales, circulaciones globales. Bogotá: Siglo del Hombre Editores.; Ferrándiz e Robben, 2015FERRÁNDIZ F. & ROBBEN, A. (2015), “Introduction: The Ethnography of Exhumations”.In: Necropolitics Mass Graves and Exhumations in the Age of Human Rights. Philadelphia, University of Pennsylvania Press.; Anstett e Dreyfus, 2015ANSTETT, Élisabeth & DREYFUS, Jean-Marc. (2015), “Introduction: why exhume? Why identify?” In: _____. Human Remains and identification. Mass violence, genocide, and the “forensic turn”. Manchester, Manchester University Press.; Rosenblatt, 2015ROSENBLATT, Adam. (2015), Digging for the Disappeared. Forensic Science after Atrocity. Stanford: Stanford University Press.). A denominação desse movimento como giro forense assinala os impactos do desenvolvimento de um ramo científico no interior do campo e da razão humanitária (Fassin, 2012FASSIN, Didier. (2012), Humanitarian Reason. A Moral History of the Present. California, University of California press.), caracterizando-o como uma mudança de paradigma em relação às formas testemunhais, até então hegemônicas, de (re)conhecimento de violações. Nos termos da literatura antropológica e sociológica atenta ao tema, o circuito estabelecido em torno à elaboração de saberes forenses como ferramentas humanitárias, o humanitarismo forense (Moon, 2014MOON, Claire. (2014), “Human rights, human remains: forensic humanitarianism and the human rights of the dead”. International Social Science Journal. Vol 65: 49-63.), vem produzindo técnicas, práticas e formas de transferência de conhecimentos cada vez mais normatizadas. Ao atravessar fronteiras, movendo e sendo movidos por equipes especializadas de projeção internacional para locais cada vez mais variados do mundo, o desaparecimento forçado e as ciências forenses, assim conectados, deram lugar a padrões globalizados de compreensão e de intervenção em contextos nos quais ausências coletivas são associadas a violações humanitárias.

Ficará claro, no decorrer deste texto, que a tomada da Vala de Perus como espaço privilegiado para gerir crimes do passado resulta da percepção de inadequação brasileira a esse cenário mundial. Ocorrida no momento histórico de institucionalização dos discursos sobre o aspecto inacabado da transição política brasileira, a criação do Grupo de Trabalho Perus associa a essa questão o problema da inconclusa transição entre vida e morte posta pelo desaparecimento (Catela, 2001CATELA, Ludmila. (2001), Situação-limite e memória: a reconstrução do mundo dos familiares de desaparecidos da Argentina. São Paulo, Hucitec/ANPOCS.). Daí que seus trabalhos de identificação fossem relacionados ao desenvolvimento de técnicas e linguagens que, além de individualizar e reconfigurar a forma como certos corpos e mortes foram classificados pelo Estado, servissem ao desenvolvimento de uma ciência capaz de inscrever um modo de gestão humanitário (Rosenblatt, 2015ROSENBLATT, Adam. (2015), Digging for the Disappeared. Forensic Science after Atrocity. Stanford: Stanford University Press.). Essa projeção entre o local e o global fez do GTP um lugar estratégico na interface entre saber, poder e verdade, na qual múltiplas relações de força se encontram (Foucault, 2007bFOUCAULT, Michel. (2007b), “Verdade e Poder”. In: _____. Microfísica do Poder. Tradução de R. Machado. 23a. ed. Rio de Janeiro, Edições Graal.). Oferece, assim, chão empírico para refletir sobre as tensões produtivas estabelecidas entre dois domínios institucionalizados na produção da verdade sobre os mortos, o médico-legal nacional e o humanitarismo forense transnacional.

Na tentativa de compreender esse processo, a próxima seção retoma o histórico de constituição da Vala de Perus como caso forense, apontando sua importância central no reconhecimento do desaparecimento político e enfatizando as disputas pela manutenção de sua análise sob os domínios da perícia oficial. Em seguida, contextualizo a formação do GTP em face do ativismo humanitário forense desenvolvido no continente e a transnacionalização da abordagem latino-americana. Nas duas últimas seções, trato da formação do GTP e de como o encontro entre modos de gestão, saber e poder sobre os mortos, forjados nos contextos local e transnacional, disputam domínios enquanto confluem para produzir uma tecnologia de governo.

A Vala de Perus como caso forense

Em 04 de setembro de 1990, no cemitério de Perus, reuniram-se autoridades estaduais e municipais, dentre as quais: Luiza Erundina e Dom Paulo Evaristo Arns, respectivamente, prefeita e arcebispo de São Paulo; burocratas da segurança pública (estadual) e do sistema funerário (municipal) e seus respectivos funcionários: médicos-legistas e coveiros; imprensa nacional e estrangeira; moradores do bairro; vítimas da Ditadura; além dos antropólogos forenses Clyde Snow e Luis Fondebrider.8 8 O norte-americano Clyde Snow chegou à Argentina em 1984, chefiando delegação da Associação Americana para o Progresso da Ciência, para trabalhar na exumação e identificação de remanescentes ósseos de desaparecidos. Junto a uma equipe multidisciplinar de profissionais locais, entre os quais o antropólogo forense Luis Fondebrider, começou a desenvolver a abordagem para casos de violação humanitária que, em seguida, levou à fundação da Equipo Argentina de Antropología Forense (EAAF). Ao pé da vala clandestina em exumação, eles participavam de um acontecimento central para o rompimento dos múltiplos silêncios que envolviam as violências da Ditadura, ainda que elas não fossem propriamente desconhecidas da sociedade brasileira.

Cinco anos haviam passado desde a eleição do primeiro presidente civil, após 21 anos de militares no poder, e o tema das violações de direitos humanos não encontrava espaço público. A Lei de Anistia era mobilizada para excluir não somente a punição de perpetradores, mas qualquer possibilidade de investigação e, portanto, de (re)conhecimento social das violências de Estado.9 9 A Lei N° 6683/79, ao perdoar genericamente “crimes políticos e conexos”, foi aplicada preventivamente aos agentes do regime, enquanto beneficiava parcela dos perseguidos políticos, já que não se aplicaria aos “condenados por crimes de sangue”. Para além dos efeitos jurídicos prescritos, ela foi mobilizada para pregar o esquecimento, com base na ideia de equivalência entre as “partes em conflito” e os atos por elas cometidos. Seu caráter sistemático só viria a ser reconhecido oficialmente com a Comissão Nacional da Verdade (CNV, 2011-2015), cuja criação foi proporcionada por uma nova conjuntura nacional e internacional, na qual cresceram as pressões sobre a postura considerada hesitante do Brasil em assumir integralmente responsabilidades atribuídas pelo direito humanitário. Tais pressões aumentaram progressivamente no correr do século XXI em face tanto da normalização internacional da Justiça de Transição quanto do crescente investimento dos governos brasileiros em aprimorar a posição do país como global player (Azevedo, 2018AZEVEDO, Desirée. (2018), Ausências Incorporadas. Etnografia entre familiares de mortos e desaparecidos políticos. São Paulo, Unifesp.).10 10 A mais importante dessas pressões foi a condenação do país na Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia), em 2010.

Na cronologia desse processo, a Vala de Perus teve papel inaugural. Sua exumação foi o primeiro ato tomado pela administração pública no país para assumir responsabilidades relativas a violências passadas. Respondendo às exigências dos familiares, a prefeita Luiza Erundina realizou a exumação, ato que levou ao envolvimento de outras instituições do Estado, a despeito de seus representantes negarem, minimizarem ou desqualificarem os fatos como não passíveis de punição. O desenterro dos corpos provocou a abertura de um inquérito policial e uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara de Vereadores. Se a investigação policial foi encerrada sem denúncia, alegado o perdão da anistia, a CPI realizou a primeira investigação oficial do país sobre o desaparecimento político, procurando compreender a cooperação do IML e do Serviço Funerário Municipal com os órgãos repressivos na estruturação de uma política de Estado (Câmara Municipal de São Paulo, 1990CAMÂRA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. (1990), Onde estão? Relatório da CPI Perus – Desaparecidos Políticos. São Paulo.; Almeida et al, 2009ALMEIDA, Criméia et al. (2009). Dossiê Ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985). São Paulo, Imprensa oficial.). Complementarmente, a Prefeitura Municipal de São Paulo negociava com o Governo do Estado de São Paulo a identificação dos remanescentes.

Para entender os termos em que o debate foi feito, é útil o recurso aos jornais da época. Um dia após a exumação, a Folha de São Paulo passou a cobrir o caso com matérias sob o título “cemitério da repressão”. É de forma corriqueira que a primeira delas noticia a possibilidade de “presos políticos desaparecidos” estarem em uma vala que seria “para mendigos sem família”.11 11 “Prefeitura de São Paulo investiga vala que teria ossadas de presos políticos”. (1990), Folha de São Paulo, 05 set. (caderno Cidades), Disponível em: acervo Folha, consultado em 11/04/2019. No correr dos dias, à medida que a cobertura apresenta os personagens e as disputas, os leitores vão sendo informados de que os diretores do IML e do serviço funerário e seus funcionários sabiam que “subversivos” eram enterrados junto aos “indigentes”. Termo pejorativo mobilizado para designar a categoria oficial “desconhecidos”, conjunto classificatório formado por corpos que os órgãos públicos devem sepultar: os identificados pelo IML como não-identificados e os não reclamados (Ferreira, 2009FERREIRA, Letícia. (2009), Dos autos da cova rosa. A identificação de corpos não identificados no Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, E-papers/LACED/Museu Nacional.).

Entrevistados pelo jornal, os funcionários variaram entre manifestações de desconforto e a admissão de participação no sepultamento indigente de opositores políticos. O interessante, contudo, é que nenhum deles falava sobre crimes de Estado, mas sobre a forma corriqueira pela qual geriam corpos classificados como desconhecidos, exumando-os segundo prazos legais e enviando seus remanescentes para ossários coletivos – ainda que alguns deles tenham hesitado quanto à legalidade desses procedimentos.12 12 TOGNOLLI, Cláudio. (1990), “Perus recebia subversivos mortos, diz Shibata”. Folha de São Paulo, 06 set. (caderno Política), Disponível em: acervo Folha, consultado em 11/04/2019. No município, a exumação administrativa ocorre com 3 anos, sendo obrigatória para desconhecidos (Município de São Paulo, Ato Nº 326, de 21 de março de 1932). Contudo, a vala de Perus não possuía registro como ossário, nem foram registrados os corpos nela reinumados. Ao contrário, estima-se que ali estivessem os corpos sem registro de reinumação. O administrador de Perus assumiu, no inquérito policial, tê-la criado, alegando conformidade com a lei e prática dos cemitérios públicos da cidade: “Administrador nega enterros”. (1990), Folha de São Paulo, 26 set. (caderno Política), Disponível em: acervo Folha, consultado em 11/04/2019. Mesmo discorrendo sobre questões como a não punibilidade dos envolvidos e isentando autoridades,13 13 “Maluf nega estar envolvido no caso”. (1990), Folha de São Paulo, 06 set. (caderno Política), Disponível em: acervo Folha, consultado em 11/04/2019; “Anistia prescreveu crime” (1990), Folha de São Paulo, 06 set. (caderno Política), Disponível em: acervo Folha, consultado em 11/04/2019. Paulo Maluf era prefeito nomeado de São Paulo, em 1971, quando o cemitério de Perus foi criado. Na data da reportagem, era candidato a governador nas eleições que ocorreriam em dois meses. as matérias retrataram a abertura de um debate inédito sobre responsabilidades,14 14 “Famílias podem processar União”. (1990), Folha de São Paulo, 07 set. (caderno Política), Disponível em: acervo Folha, consultado em 11/04/2019. enquanto o Governo Federal mantinha-se alheio ao tema.15 15 “Governo espera ação para intervir”. (1990), Folha de São Paulo, 07 set. (caderno Política), Disponível em: acervo Folha, consultado em 11/04/2019; “Exército não vai investigar o caso”. (1990), Folha de São Paulo, 08 set. (caderno Política), Disponível em: acervo Folha, consultado em 11/04/2019.

Esse debate sobre responsabilidades evitou o envio dos remanescentes exumados para identificação no IML da capital, cuja prerrogativa legal esbarrou na denúncia de sua participação no crime. Enquanto os familiares demandavam peritos internacionais independentes e com experiência em casos semelhantes,16 16 “Grupos querem afastar IML”. (1990), Folha de São Paulo, 07 set. (caderno Política), Disponível em: acervo Folha, consultado em 11/04/2019; “Quércia afasta diretor do IML da investigação sobre tortura”. (1990), Folha de São Paulo, 11 set. (caderno Política), Disponível em: acervo Folha, consultado em 11/04/2019. o Governo do Estado prometeu essa participação internacional, mas propôs o envio dos remanescentes para o Departamento de Medicina Legal e Ética (DMLE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), cujo diretor comandava também o IML de Campinas. Esse duplo vínculo foi a fórmula encontrada pelo governador para atender parte das demandas familiares sem ferir a exclusividade dos peritos oficiais, abrindo mão de sua condução do processo.17 17 “Entidades irão fiscalizar o IML, diz governo”. (1990), Folha de São Paulo, 08 set. (caderno Política), Disponível em: acervo Folha, consultado em 11/04/2019.

A ida dos remanescentes para a Unicamp abre uma dinâmica longa demais para ser reconstruída nos limites deste artigo.18 18 Para mais detalhes, Hattori, 2019; Calazans et al, 2019, Teles & Lisboa, 2012. Em linhas gerais, importa dizer que a equipe realizou duas identificações até 1996, ano em que interrompeu o trabalho. Os legistas são criticados pelo abandono dos corpos em condições física e moralmente degradantes e por terem, ainda no início do processo, vetado o prometido acompanhamento das análises por familiares e peritos internacionais.

Essa não seria a primeira vez que peritos oficiais e governantes manifestariam esse tipo de resistência. O antropólogo forense Clyde Snow, um dos barrados no DMLE, esteve entre os forenses estrangeiros que desconfortaram legistas brasileiros cinco anos antes, em outro caso de repercussão internacional, a identificação do nazista Josef Mengele, da qual também participou o diretor do DMLE da Unicamp.19 19 Em 1985, foi exumado em São Paulo corpo atribuído a Josef Mengele, criminoso de guerra nazista que vivia clandestino no Brasil, onde se escondia de investigações coordenadas pelos governos americano, alemão ocidental e israelense para levá-lo a juízo internacional. Iniciada pelo IML de São Paulo, a identificação de seus remanescentes acabou reunindo especialistas estrangeiros, conformando-se em um marco importante do processo de incorporação da antropologia forense no tratamento internacional dos crimes de guerra e violações humanitárias (Keenan e Weizman, 2015). O trabalho de Nadai (2018) mostra as inúmeras controvérsias que o caso gerou no âmbito da perícia oficial brasileira e suas relações com o caso dos remanescentes de Perus. Segundo Nadai (2018)NADAI, Larissa. (2018), Entre pedaços, corpos, técnicas e vestígios: o Instituto Médico Legal e suas tramas. Tese de doutorado. Instituto de Filosofia Ciências Humanas da Universidade Estadual de São Paulo, Campinas., a relação entre os dois episódios marcou o início de uma dramática disputa política, institucional e acadêmica entre legistas da Unicamp/IML Campinas e legistas do IML da capital, impulsionada pela transferência do caso Perus para Campinas. Ambos os fatos projetaram os profissionais do interior em relação aos da capital na disputa por destaque no cenário médico-legal do país (Nadai, 2018NADAI, Larissa. (2018), Entre pedaços, corpos, técnicas e vestígios: o Instituto Médico Legal e suas tramas. Tese de doutorado. Instituto de Filosofia Ciências Humanas da Universidade Estadual de São Paulo, Campinas.).

Tal desconforto parece resultar não apenas do receio de sofrer avaliações a partir de padrões distintos e da insegurança quanto a seus impactos nas disputas existentes. Mais do que isso, a presença estrangeira parece perturbar um cenário profissional historicamente reservado. Data do século XIX, com a independência do país, a institucionalização da Medicina Legal, a um só tempo, como campo do saber e prática vinculada à atividade policial e ao processo penal. Essa vinculação de um corpo de saberes e práticas a um grupo de profissionais específicos serviu à produção e ao arquivamento de informações exaustivas sobre os cidadãos, estruturando o fazer pericial como parte da formação do Estado nacional brasileiro (Ferreira, 2009FERREIRA, Letícia. (2009), Dos autos da cova rosa. A identificação de corpos não identificados no Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, E-papers/LACED/Museu Nacional.; Carrara, 1984CARRARA, Sérgio. (1984), “A “Sciência e Doutrina da Identificação no Brasil” ou Do Controle do Eu no Templo da Técnica”. Boletim do Museu Nacional, n. 50: 1-28.; Cunha, 2002CUNHA, Olívia Maria Gomes da. (2002), Intenção e gesto: pessoa, cor e a produção cotidiana da (in)diferença no Rio de Janeiro, 1927-1942. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional.). Tão específica confluência entre um campo científico e o campo burocrático produziu carreiras indissociavelmente institucionais e acadêmicas, além de profissionais com exclusivo poder de exercer trabalho de instituição (Bourdieu, 2011BOURDIEU, Pierre. (2011), “Espíritos de Estado: gênese e estrutura do campo burocrático”. In: ___. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, Papirus.) sobre as mortes. O que colocava sua palavra e os corpos circunscritos por seus saberes fora do alcance crítico externo.20 20 No processo penal, o fazer pericial é de exclusividade policial na fase de inquérito (Medeiros, 2018). Ele engloba outras especialidades científicas no caso das análises de laboratório e de campo. Contudo a análise de corpos está pautada pela exclusividade médica de autopsiar e de atestar morte, fazendo dos IMLs (e demais necrotérios policiais) espaços exclusivos dos médicos-legistas e, em menor medida, dos odontólogos.

A força dessa exclusividade manteve os remanescentes sob os domínios da perícia oficial, mesmo após seu abandono pelo DMLE da Unicamp. Em 1999, quando o Ministério Público Federal (MPF) moveu uma Ação Civil Pública pela retomada das identificações, os remanescentes foram devolvidos à custódia da Prefeitura e à jurisdição do IML da capital. Ao longo de 15 anos, a pressão do MPF por iniciativas seguiu mobilizando em âmbito técnico o próprio IML e/ou o setor técnico científico da Polícia Federal (PF), com colaborações pontuais e eventuais de universidades e laboratórios privados dentro e fora do país. O resultado foi uma única identificação. A despeito dos protestos familiares, a estruturação de um novo projeto de análise integral e sistemática dos remanescentes exigiria outro contexto histórico.

Antes de seguir para ele, importa ressaltar que, em contrapartida, essa (re)apreciação dos remanescentes pela perícia significou sua admissão como caso forense, o que parece ter sido determinante para a alteração de status do desaparecimento político. Como espaço de denúncia do assassinato de atores considerados relevantes para a história recente do país – os militantes organizados para resistir à Ditadura –, a Vala de Perus deixou a condição de abrigo da irrelevância de vidas e mortes “indigentes”, abertamente chamadas sem valor, para fortalecer a demanda MVJ. É importante destacar os processos de hierarquização por marcadores de raça e classe, presentes na base dessa distinção que nomeia como política o tipo de violência exercida majoritariamente contra setores médios e urbanos, em detrimento daquelas que, embora tenham sido exercidas contra um largo conjunto da população, são normalizadas como estruturais (Azevedo, 2019AZEVEDO, Desirée. (2019). “Os Mortos Não Pesam Todos o Mesmo. Uma reflexão sobre atribuição de identidade política às ossadas da Vala de Perus”. Papeles del CEIC. International Journal on Collective Identity Research, vol.2, papel 218: 1-20.). Como resultado, o debate alcança outro patamar, no qual o desaparecimento político recebe status jurídico com a Lei N° 9.140 de 1995. À luz da categoria forjada pelo movimento de familiares, ela reconhece como mortos os militantes presos por agentes de estado entre 1961 e 1988 e, desde então, desaparecidos. A restrição a um período histórico e a atores sociais específicos, além da equiparação entre desaparecidos e mortos, são três pontos que distinguem o desaparecimento político da categoria desaparecimento forçado, tipificada pela Organização dos Estados Americanos.21 21 As normativas internacionais são: Declaração sobre a proteção de todas as pessoas contra o desaparecimento forçado (1992); Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas (1994); Convenção Internacional para a Proteção de todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado (2010). O Brasil as promulgou apenas em 2016. Para uma discussão sobre a diferença entre a categoria brasileira e a internacional, ver: Azevedo, 2018. A lei ainda criou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) como órgão federal responsável por reconhecer os casos e, a partir deles, gerir o desaparecimento político.

O circuito MVJ e o paradigma forense na América Latina

Os peritos internacionais reivindicados pelos familiares na abertura da Vala de Perus pertenciam a Equipo Argentino de Antropología Forense (EAAF). À época, o contato com os profissionais veio da participação de brasileiros nas redes humanitárias que começam a ser estruturadas no continente latino-americano para resistir às ditaduras de segurança nacional. Refiro-me, em especial, à articulação do movimento de familiares com organizações congêneres dedicadas à problematização global do desaparecimento forçado (Sanjurjo, 2017SANJURJO, Liliana. (2017), “Our dead can speak: social displacements, affects and political action in comparative perspective”. Vibrant, v. 14: 1-19.) e às conexões acadêmicas de atores que despontariam, pouco tempo depois, no cenário político brasileiro, como articuladores dos Direitos Humanos como razão científica e de Estado (Marques, 2018MARQUES, Adalton. (2018), Humanizar e expandir: Uma genealogia da segurança pública em São Paulo. São Paulo, IBCCrim.).22 22 Familiares brasileiros estavam integrados à Federación Latinoamericana de Asociaciones de Familiares de Detenidos-Desaparecidos (FEDEFAM) e também receberam apoio do Núcleo de Estudos da Violência da USP para contatar a EAAF (Teles & Lisboa, 2012). Poucos anos depois, o NEV seria alçado ao centro da elaboração dos Programas Nacionais de Direitos Humanos (Marques, 2018).

Na década de 1980, quando inexistiam padrões (globais ou locais) de lida com problemas sociais deixados às democracias pelos regimes autoritários, essas redes foram sendo forjadas por sobreviventes, familiares, juristas, psicólogos, historiadores, cientistas sociais, forenses, militantes, políticos e atores institucionais empenhados no desenvolvimento de saberes e práticas de enfrentamento, fazendo movimentos que atravessaram não somente fronteiras, mas também as esferas militante, jurídica, científica e institucional. Diante das dificuldades comuns à maioria dos países – como desinteresse acadêmico, negligência estatal, falta de informações sobre os crimes, anistias e a não reforma das instituições –, a circulação desses atores pela região foi fundamental para a produção de pautas, práticas e repertórios MVJ, que conferiram sentidos comuns às diferentes experiências de violência vividas na América Latina (Vecchioli, 2019VECCHIOLI, Virginia. (2019), “Uma história social da expertise em direitos humanos: trajetórias transnacionais dos profissionais do direito na Argentina”. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 45, n. 1: 17-28.; Sanjurjo, 2017SANJURJO, Liliana. (2017), “Our dead can speak: social displacements, affects and political action in comparative perspective”. Vibrant, v. 14: 1-19.).

Os processos transcorridos no continente teriam impacto internacional em seguida, culminando nas convenções sobre desaparecimento forçado, com a posterior migração criativa dessa categoria para novos contextos (Gatti, 2017GATTI, Gabriel. (2017), “Prolegómeno. Para un concepto científico de desaparición”. In: GATTI, Gabriel. Desapariciones. Usos locales, circulaciones globales. Bogotá: Siglo del Hombre Editores.), e na valorização global do fazer forense. A categoria e as práticas forenses se globalizaram em estreito vínculo a partir dos resultados obtidos na Argentina, onde a Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas (CONADEP) apontou o desaparecimento forçado como questão-chave da transição política. Entendendo-o como um aniquilamento radical (Calveiro, 2013CALVEIRO, Pilar. (2013), Poder e Desaparecimento. São Paulo, Boitempo.), forjado por uma série de supressões materiais (vestígios, rastros, provas, corpos, sepulturas) e simbólicas (história, memória, laços sociais, identidade), os argentinos ofereceram lugar central às estratégias de fazer reaparecer (Catela, 2001CATELA, Ludmila. (2001), Situação-limite e memória: a reconstrução do mundo dos familiares de desaparecidos da Argentina. São Paulo, Hucitec/ANPOCS.).

Entre as iniciativas germinadas no país, esteve o treinamento de profissionais variados, para compor uma equipe forense independente, que desenvolveu maneiras de adequar já conhecidas técnicas de escavação, exumação, análise e identificação às condições de intervenção excepcionais que enfrentavam. A sistematização dessas técnicas em protocolos e desse modo de fazer em uma abordagem originou a metodologia que a EAAF levou para outros contextos latino-americanos, nos quais (re)elaborou seus saberes e práticas, trocando conhecimentos e formando novas equipes locais (Moon, 2014MOON, Claire. (2014), “Human rights, human remains: forensic humanitarianism and the human rights of the dead”. International Social Science Journal. Vol 65: 49-63.). Daí que, em 1990, sua participação no caso Perus tenha sido reivindicada pela importância da vala “também para outros países”.23 23 “Entidades irão fiscalizar o IML, diz governo”. (1990), Folha de São Paulo, 08 set. (caderno Política), Disponível em: acervo Folha, consultado em 11/04/2019.

A EAAF havia posto em curso a costura transnacional, responsável por abrir a prática forense no continente para outros profissionais. Em toda a região, cientistas – como arqueólogos, bioantropólogos e antropólogos físicos – eram pouco convocados para um círculo profissional no qual predominavam as especialidades médicas e de exercício restrito a órgãos de perícia oficial do Estado (Moon, 2014MOON, Claire. (2014), “Human rights, human remains: forensic humanitarianism and the human rights of the dead”. International Social Science Journal. Vol 65: 49-63.).24 24 Mesma restrição existia na Argentina, onde esses registros periciais oficiais puderam se converter não somente em base para os trabalhos da EAAF, mas também em arquivos MVJ, que serviram às lutas políticas e jurídicas pela reinscrição da verdade sobre os mortos, conforme mostra Sarrabayrouse (2011) sobre os papéis periciais do necrotério de Buenos Aires. Produzir uma prática humanitária também significava reunir profissionais desvinculados de órgãos comprometidos com os crimes na origem. Assim, o diferencial do processo latino-americano em relação à Europa e aos Estados Unidos – onde a prática forense não passava pelas mesmas restrições profissionais e, por esse mesmo motivo, era mais ramificada academicamente – seria justamente a origem alternativa à institucionalidade, fosse ela acadêmica ou estatal. Tal processo foi impulsionado por equipes forenses atentas aos contextos sociais específicos em que atuavam, apesar de sua vocação internacional, que se posicionavam ao lado das vítimas, a quem entendiam como sujeitos do sofrimento e de conhecimentos necessários à compreensão dos contextos. Tal postura se desdobrava, inclusive, em assumir a condição de profissionais afetados, mesmo que indiretamente, pela violência de Estado (Fondebrider, 2015FONDEBRIDER, Luis. (2015), “Forensic Anthropology and the investigation of the political violence: lessons learned from Latin America and the Balkans”. In: FERRÁNDIZ F. & ROBBEN, A. (orgs). Necropolitics Mass Graves and Exhumations in the Age of Human Rights. Philadelphia, University of Pennsylvania Press.).

Circulando e fazendo circularem suas premissas, a EAAF deixou a condição periférica para alcançar, segundo Moon (2014)MOON, Claire. (2014), “Human rights, human remains: forensic humanitarianism and the human rights of the dead”. International Social Science Journal. Vol 65: 49-63., o status de prototípica equipe do humanitarismo forense, consolidando a chamada Antropologia Forense Latino-americana como uma “escola” de referência global. Para a autora, sua atuação altamente especializada e prescritiva se expandiu pelo mundo, sendo responsável por levar a atividade forense no campo humanitário de uma fase de profissionalização para outra de proliferação. Momento a partir do qual passou não somente a espelhar outras equipes, mas também a indicar modelos para o redesenho de práticas de Estado, quando sua projeção transnacional se associa à normalização de padrões éticos e científicos de investigação em protocolos internacionais para contextos de violência política.25 25 O principal deles é conhecido como Protocolo de Minnesota (1991). A comissão internacional de especialistas que o atualizou, em 2016, incluía Fondebrider, da EAAF, e representantes de mais duas organizações citadas adiante: a International Commission on Missing Persons e o Comitê Internacional da Cruz Vermelha.

O Grupo de Trabalho Perus

O leitor familiarizado com os debates sobre a lida com o passado ditatorial no Brasil conhece a centralidade das comparações com outros países, especialmente a Argentina, para os exercícios de distribuição de nossas responsabilidades pendentes. Seguindo caminho distinto do país vizinho, o Brasil optou principalmente pelas reparações, formulando-as nos marcos do direito civil, conforme exemplifica a própria Lei de Mortos e Desaparecidos Políticos, deixando clara uma disposição de acomodar o reconhecimento de (alguns) direitos (para certos sujeitos) à validade de uma Lei de Anistia que não reconhece a noção de violência de Estado. É também essa a lógica que orientou a manutenção da investigação dos remanescentes de Perus em circuito acadêmico nada apartado da esfera institucional, sem receber tratamento nem como caso humanitário nem como caso criminal comum, submergindo no não lugar forense posto por essa excepcionalidade.

Tal conjuntura sofreria alterações em 2010, quando a pauta MVJ recebe uma agenda unificada, ao ser incorporada no Plano Nacional de Direitos Humanos. Marcando a passagem do tema à rubrica humanitária e a introdução do discurso transicional na esfera institucional, o plano estimulou uma capilarização social e institucional do campo MVJ, postulando o abandono das soluções caseiras em respeito às prescritas pelas normatizações globais (Azevedo, 2018AZEVEDO, Desirée. (2018), Ausências Incorporadas. Etnografia entre familiares de mortos e desaparecidos políticos. São Paulo, Unifesp.).26 26 Refiro-me a campo no sentido de Bourdieu (2011), como um sistema relacional formado entre agentes e instituições, que se voltam para um debate segundo interesses específicos e posições relativas. Entendo que, a partir das mobilizações para inserir o eixo memória e verdade no PNDH-3 até o golpe de 2016, o tema do passado ditatorial viu aumentar as arenas e atores a ele dedicados, entre acadêmicos, movimentos sociais, autoridades e especialistas de diversas áreas, aumentando também as conexões entre eles, com o objetivo de movimentar uma agenda comum rumo à consolidação, em políticas públicas, de um novo padrão de sensibilidade e de produção da verdade sobre o passado. O momento era de intensa mobilização articulada entre instituições e movimentos sociais dedicados ao tema, especialmente em torno às investigações realizadas pelas inúmeras comissões da verdade, tornando o clima propício às comparações com as respostas concebidas por nossos vizinhos. Foi quando o movimento de familiares, a partir do recebimento de doação financeira em 2013 e com a mediação de um MPF que movia-se ativamente na Ação Civil Pública sobre os remanescentes, contratou da EAAF um diagnóstico da situação dos remanescentes de Perus e das análises realizadas até então. Extremamente crítico, esse diagnóstico indicou debilidades múltiplas, creditando-as à inexperiência dos peritos com contextos de violência política, assim como às más condições de acondicionamento dos remanescentes. Isso alertou os setores MVJ para a necessidade de conformar internamente uma experiência forense capaz de acompanhar os desenvolvimentos globais na área. Apesar do momento propício, tal como nos anos 1990, efetivar a ideia exigiu negociações, que levaram mais de um ano.

Ocorre que o debate iniciado entre atores dedicados à pauta MVJ na cidade de São Paulo e na esfera federal assimilou as instituições periciais como partícipes oficiais no tema. Cabe pontuar que tal diálogo não destoava dos arranjos que vinham sendo estabelecidos no país para a busca de desaparecidos políticos. Desde 2009, enquanto o MPF lidava em São Paulo com a perícia oficial em torno aos remanescentes de Perus, órgãos federais MVJ, como a CEMDP e a então Secretaria de Direitos Humanos, participavam de buscas na região do Araguaia. Estas já guardavam a especificidade de absorver profissionais externos à polícia técnico-científica. O mesmo se passou nas buscas e perícias feitas pela CNV. Apesar da falta de planejamento propriamente dito, tratava-se de um processo de atração gradual de acadêmicos – professores e estudantes de diferentes áreas – para se somar aos peritos oficiais na formação de um setor forense junto ao circuito institucional envolvido na gestão do desaparecimento político. Um circuito nada homogêneo, conforme retomarei adiante. Por ora, importa destacar que essa experiência legou peritos de “ambos os tipos” ao Grupo de Trabalho Perus.27 27 O Exército brasileiro é condenado por desaparecimentos forçados perpetrados entre 1972 e 1974 na região do rio Araguaia, sudeste do Pará. Em 2009, com a chegada do caso à Corte Interamericana, foi criado o Grupo de Trabalho Tocantins (GTT) junto ao Ministério da Defesa, com buscas coordenadas pelo Comando do Exército. Com a condenação, o GTT é reformulado como Grupo de Trabalho Araguaia (GTA), somando órgãos MVJ à coordenação. Em termos técnicos, a perícia passou a incluir peritos oficiais ligados à segurança pública e peritos acadêmicos. Em 2013, em torno aos debates sobre Perus, foi criado o Grupo de Antropologia e Arqueologia Forense (GAAF), cuja assessoria técnica trazia peritos, de ambos os grupos, que trabalharam para o GTA e a CNV. Em 2014, o GAAF deu lugar ao GTP, para onde migraram vários desses profissionais. Além do corpo técnico e da estruturação institucional, todos esses grupos periciais tiveram em comum coordenações compostas por representação institucional. Isto é, não pelos profissionais executores dos trabalhos, mas por aqueles com poder de representar as instituições admitidas na gestão do desaparecimento político. Suas composições podem ser conferidas em: Portaria n° 1.267 SDH, de 06 de novembro de 2013; Portaria Interministerial nº 01 MD/MJ/SDH-PR, de 05 de maio de 2011; Portaria n° 567 MD, de 29 de abril de 2009; Portaria nº 620 SDH, de 9 de outubro 2014.

Contudo, entre os dois momentos em questão, houve o diagnóstico da EAAF e, com ele, um novo elemento introduzido no jogo: o entendimento, agora predominante, quanto à necessidade de incorporar assessoria internacional. Tal participação foi defendida pelos peritos acadêmicos como “condição mínima de trabalho” (Grupo de Trabalho Perus, 2017GRUPO DE TRABALHO PERUS. (2017), Relatório da Pesquisa Preliminar e Ante Mortem. Produto 6 do Edital 002/2015 (Documento técnico contendo análise final sobre o trabalho ante mortem realizado). São Paulo.) nos debates transcorridos entre 2013 e 2014, que levaram à constituição do projeto.

O GTP foi viabilizado pela parceria entre duas instituições envolvidas historicamente no caso, a CEMDP/Ministério dos Direitos Humanos e a Prefeitura Municipal de São Paulo, mais a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Às três instituições, integrantes do comitê gestor, outras se somariam. De um lado, a EAAF e a Equipo Peruana de Antropología Forense (EPAF) emprestaram sua expertise à constituição dos marcos técnico-científicos; esta última chegando a integrar o comitê científico.28 28 A EAAF não permaneceu no projeto, apenas participou das articulações iniciais. Já a EPAF deixou o GTP por ocasião da identificação de Dimas. Além delas, a International Commission on Missing Persons (ICMP) foi contratada em 2017 para as análises de DNA, enquanto o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) atuou desde o início como observador externo junto ao movimento de familiares.29 29 O ICMP surgiu no contexto do Tribunal Penal Internacional para a Iugoslávia, enquanto a Equipo Peruana de Antropología Forense (EPAF) teve seu núcleo científico formado também por Snow nos anos 1990. O Comitê Internacional da Cruz Vermelha passou a atuar na área forense nos anos 1990. De outro lado, havia a perícia oficial. Ela recebeu três vagas no comitê científico do grupo, com representantes indicados pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), a Polícia Federal (PF) e a Associação Brasileira de Antropologia Forense (ABRAF).

As equipes latinas assumiram a elaboração do plano e do cronograma de trabalho, definindo fases do processo conforme sua abordagem e assessorando, junto com o CICV, a produção dos protocolos iniciais “em padrões internacionais”. Os peritos acadêmicos brasileiros eram, em maioria, arqueólogos e bioantropólogos, enquanto os peritos oficiais eram odontólogos e médicos-legistas vinculados às mencionadas instituições de segurança pública, além de alguns IMLs. Com o início dos trabalhos, esse conjunto de profissionais comporia a equipe, uns contratados por editais, outros cedidos por suas instituições de origem. É assim que, das instâncias decisórias ao chão do laboratório, o GTP se apoiou em um complexo arranjo institucional ao tempo que seguia padrões forenses globalizados. Celebrava-se, nesse arranjo, a oportunidade de o país desenvolver um poder identificador humanitário.

Paradigma humanitário, tecnologia de governo

Se é forense toda ciência aplicada em contexto legal, falamos de um campo de atuação formado pela interação entre saberes distintos. Porém – está claro nessa altura –, quando se trata de examinar corpos, não é essa a situação no Brasil. Como tecnologia de gestão de remanescentes de desaparecidos políticos nos marcos MVJ, o GTP diverge desse cenário se abrindo para profissionais de variadas formações e inclusive nacionalidades. Vinculados a instituições acadêmicas e burocráticas, humanitárias e de controle social, transnacionais e governamentais, eles conformaram uma zona heterogênea (Rabinow, 1999RABINOW, Paul. (1999), French DNA. Trouble in purgatory. Chicago: The University of Chicago Press.), onde forças diversas, com suas intenções e racionalidades, se encontraram como se constituíssem dois distintos domínios de saber-poder sobre os mortos.

Para entender como se dava esse processo, é preciso dizer que, dia após dia, durante cinco anos, esses peritos percorreram o laboratório com suas pranchetas e fichas submetendo a exame os remanescentes ósseos de Perus. Em oportunidade anterior, eu adentrei esse universo laboratorial decompondo as etapas, procedimentos, práticas e documentos que conformam o processo de atribuição de identidade política para (certos) remanescentes. Digo certos, porque o GTP busca 41 pessoas dentre os ossos contidos nas 1.047 caixas recebidas pela equipe (Azevedo, 2019AZEVEDO, Desirée. (2019). “Os Mortos Não Pesam Todos o Mesmo. Uma reflexão sobre atribuição de identidade política às ossadas da Vala de Perus”. Papeles del CEIC. International Journal on Collective Identity Research, vol.2, papel 218: 1-20.).

Desse processo, eu gostaria de retomar aqui apenas a ideia de que identificar é preencher papéis. As práticas escritas mobilizadas pelos peritos, e que conformam hoje um extenso arquivo do projeto, não são a materialização de análises que se passam em outra esfera. Elas são o ato mesmo em que o corpo é, simultaneamente, tomado como objeto de descrição, posto sob controle do saber que o descreve e tornado legível. Isto é, é traduzido na forma dos já mencionados dados ante e post mortem, que servem para comparar, classificar, individualizar e institucionalizar os corpos. O chamado exame é um composto indissociável de ato analítico e prática escrita, que dá visibilidade aos corpos a ele submetidos para assim inscrevê-los (nesse caso, reinscrevê-los) no universo jurídico burocrático, daí a convergência entre seu caráter disciplinar e governamental (Foucault, 2006FOUCAULT, Michel. (2006), Vigiar e Punir: O Nascimento da Prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes.; 2007aFOUCAULT, Michel. (2007a), “A governamentalidade”. In: _____. Microfísica do Poder. Tradução de R. Machado. 23a. ed. Rio de Janeiro, Edições Graal.). Os papéis de Dimas deixam entrever essa complementariedade entre técnicas científicas e burocráticas, que fazem da identificação não apenas uma comparação entre dados, mas também um ato de reconhecimento institucionalizado, caminhando do laboratório ao cartório para chegar à família e aos antigos companheiros de militância, que tiveram que lutar para fazer de Dimas uma pessoa digna de luto.

Por ocasião da produção do último de seus papéis, a Ficha de Identificação, eu acompanhava o GTP há pouco mais de um ano. Ao todo, foram três anos de pesquisa, dos quais seis meses consecutivos passados intensamente no laboratório. Tal convivência me permitiu tomar contato com visões muito distintas acerca do fazer forense e também acompanhar as questões trazidas à tona pelo encontro entre tais visões. Mas também é verdade que, em um cotidiano pautado pelo ato comum de examinar e por sua terminologia padronizada pelos protocolos e pelo linguajar neutro da técnica, essas divergências perdiam em clareza. Não é incomum que a confluência semântica leve as disputas da política para o campo flutuante dos significados, nublando as fronteiras entre atores e seus objetivos (Dagnino, 2004DAGNINO, Evelina. (2004), “Sociedade civil, participação e cidadania: de que estamos falando?” In: MATO, Daniel (coord.), Políticas de ciudadanía y sociedad civil en tiempos de globalización. Caracas, FACES, Universidad Central de Venezuela.). Mas, antes do que suavizar diferenças, o que a polissemia fazia era embaralhar o entendimento. E não apenas o meu.

Por dizer respeito ao fazer comum, antropologia forense era o termo que mais me confundia até se mostrar estratégico para desvelar o que estava em jogo. Em definição estreita, antropologia forense se refere às práticas que conformam o exame sobre remanescentes ósseos quando aplicadas em casos de interesse jurídico. Porém, tais práticas conformam não apenas técnicas e metodologias, como também tornam visíveis saberes desenvolvidos em diferentes campos disciplinares (nas ciências biológicas, da saúde e humanas), nos quais servem à configuração de subáreas. Quando esses diferentes campos/subáreas se reúnem no GTP, os sentidos atribuídos ao termo antropologia forense variam segundo o referencial de institucionalização acionado.30 30 No Brasil, os chamados quatro campos da Antropologia passaram por demarcações teóricas e institucionais que os definiram como campos do saber distintos: a social/cultural se institucionaliza junto às Ciências Sociais, a Linguística nas Letras, a antropologia física na Medicina Legal, mas também na Biologia e Arqueologia. Ao traçar a trajetória de Nina Rodrigues, Mariza Corrêa (2013) nos remete ao período anterior ao estabelecimento dessas fronteiras, quando o médico e seus discípulos mobilizavam as teorias do racismo científico e da criminologia para articular os problemas do controle social e da formação nacional. Em torno a questões como a identificação civil (Carrara, 1984), eles pautaram a institucionalização da Medicina Legal entre a universidade e os aparelhos burocráticos. Daí que a figura do antropólogo forense, comum na Europa e, especialmente, nos Estados Unidos, onde antropólogos físicos se voltam à atividade forense, por aqui seja substituída pela figura do médico-legista. Em contraste, pela experiência das equipes forenses no contexto de transições democráticas latino-americanas, a figura do antropólogo forense no continente está fortemente relacionada ao desaparecimento forçado e ao humanitarismo. Não tenho dúvidas de que essa variação era suporte para disputas surgidas no encontro entre diferentes domínios.

Na gramática médico-legal, o termo se refere a uma especialidade da disciplina, mas também ao setor do IML (e demais necrotérios policiais) dedicado aos remanescentes. Tal sobreposição remete a seu assentamento como linguagem, razão e prática por meio da qual o Estado mantém seu permanente fazer-se (Souza Lima e Castro, 2008SOUZA LIMA, Antônio Carlos & CASTRO, João Paulo. (2008), “Política(s) Pública(s)”. In: PINHO, Osmundo & SANSONE, Livio (Org.). Raça: Perspectivas Antropológicas. Salvador, ABA/EDUFBA, pp. 141-193.). Enquanto isso, para arqueólogos e biólogos, antropologia forense só remete a uma circunscrição interna na intenção ou de estimular uma produção acadêmica considerada incipiente, ou de destacar o potencial dos saberes produzidos na bioarqueologia e na bioantropologia para conferir maior rigor e especialização à prática forense no Brasil. As argumentações de Plens & Diogo (2019)PLENS, Cláudia e DIOGO, Camila. (2019), “Arqueologia Forense: Um balanço crítico da disciplina, suas abordagens e contribuições”. In: Amadeo, Javier. Violência de Estado na América Latina. São Paulo, Editora Unifesp. e Souza (2014)SOUZA, Rafael de Abreu e. (2014), “Arqueologia e a Guerrilha do Araguaia ou a materialidade contra a não narrativa”. Revista de Arqueologia Pública. Nº 10, pp 213-230, dezembro., nesse sentido, são exemplares. Diante da reserva do mercado forense, essa intenção de estímulo ganha concretude nos corpos que foram objeto de violência do Estado. Tomar esses corpos para exame e tornar visível a violência impressa sobre eles, oportunidade dada pelo GTP como nunca antes, é também o que dá visibilidade para suas competências e metodologias específicas – como as necessárias para escavar ou pesquisar em arquivo apropriadamente –, iluminando também suas autoridades disciplinares. Elas são tanto o que justifica a presença desses campos do saber no exame de corpos violados quanto o que ilumina a inscrição desses profissionais na racionalidade governamental.

Nesse ponto está enredada uma terceira dimensão de referências em torno ao termo, para a qual me chamou atenção uma perita durante conversa corriqueira. De fato, ela me surpreendeu ao dizer que, no seu entender, a Medicina Legal é que era um ramo da Antropologia Forense. Ao que ela se referia, embora sem postular claramente, era à fixação dada ao termo pelas equipes latinas como metonímia de sua própria abordagem. Extensivamente, ela é referida pelos termos compostos: Antropologia e Arqueologia Forense ou Antropologia Forense Latino-americana. Isso acontece porque, no contexto humanitário do continente, ambos os termos compostos, assim como a parte pelo todo, aludem não a uma técnica, uma disciplina ou uma etapa do processo de identificação de remanescentes ósseos, mas ao conjunto da investigação multidisciplinar voltado ao desaparecimento forçado, que inclui as etapas de: recuperação arqueológica, investigação preliminar documental e ante mortem junto às famílias, análise antropológica e análise genética (Salado e Fondebrider, 2019SALADO, Mercedes & FONDEBRIDER, Luis. (2019), “O desenvolvimento da antropologia forense na argentina”. In: Amadeo, Javier. Violência de Estado na América Latina. São Paulo, Editora Unifesp.).

É certo que o paradigma latino não é o único validado internacionalmente, conforme analisou Fondebrider (2015)FONDEBRIDER, Luis. (2015), “Forensic Anthropology and the investigation of the political violence: lessons learned from Latin America and the Balkans”. In: FERRÁNDIZ F. & ROBBEN, A. (orgs). Necropolitics Mass Graves and Exhumations in the Age of Human Rights. Philadelphia, University of Pennsylvania Press. ao destacar os Bálcãs – onde surge o ICMP – como outro grande contexto impulsionador de importante tradição forense humanitária.31 31 Cabe destacar como complexificador do processo político o fato de o ICMP, que possui importante renome na área genética, possuir relação prévia com a Polícia Civil do Distrito Federal, por meio da qual chegou ao processo. Ao refletir sobre o campo, o antropólogo argentino relaciona a variedade de abordagens a questões como os diferentes contextos em que foram concebidas e distintos backgrounds nacional/profissional/político dos forenses envolvidos. Apesar disso, e da competitividade que o antropólogo deixa transparecer, fica claro que todas essas equipes transnacionais vem corroborando para a fixação da multidisciplinaridade e para a padronização de modos de gestão em casos de desaparecimento forçado como processos que levam ao adensamento dos debates forenses em campos/subáreas acadêmicas, levando o giro forense do campo prático para um amplo conjunto de ciências, quer elas se voltem à compreensão do humanitarismo, quer busquem lhe fornecer instrumentos de intervenção. Assim, o GTP ecoa tal processo internamente, estimulando circuitos forenses alternativos e o (re)desenho dos jogos de força em torno à atividade. Para tanto, faz elogios combinados, de um lado, à profissionalização e à especialização e, de outro, às sensibilidades e moralidades associadas ao paradigma humanitário. Essas questões surgem na voz de vários peritos que estiveram no GTP, como Hattori (2019)HATTORI, Márcia. (2019), “Enquadramentos de uma antropologia forense brasileira na busca de desaparecidos políticos”. In: Amadeo, Javier. Violência de Estado na América Latina. São Paulo, Editora Unifesp., Calazans et al (2019)CALAZANS, Marília et al. (2019), “A Vala de Perus e as universidades públicas na trajetória por Memória, verdade e Justiça (1990-2019)”. Hydra, Volume 4, Número 7:8-49, Dezembro., Plens & Diogo (2019)PLENS, Cláudia e DIOGO, Camila. (2019), “Arqueologia Forense: Um balanço crítico da disciplina, suas abordagens e contribuições”. In: Amadeo, Javier. Violência de Estado na América Latina. São Paulo, Editora Unifesp. e Souza (2014)SOUZA, Rafael de Abreu e. (2014), “Arqueologia e a Guerrilha do Araguaia ou a materialidade contra a não narrativa”. Revista de Arqueologia Pública. Nº 10, pp 213-230, dezembro., entre outros.

Esse é o contexto produtor de uma cena, por mim presenciada, em que um perito oficial se queixava dos efeitos de regulamentação e de poder, postos quando um padrão (que não é único) é nomeado como “standard internacional”. Como nos anos 1990, seu desconcerto com o encontro, dessa vez não evitado, entre o que sabe serem dois modos de gestão distintos sugere uma indissociabilidade entre a construção de domínios de verdades e as disputas pela autoridade de anunciá-las, entre saber e poder. No GTP era essa a disputa mais evidente e, ao mesmo tempo, a mais oculta sob outros nomes. No incômodo do perito, chamou-me atenção o claro entendimento de que a normatização das experiências e técnicas das equipes internacionais, apesar de impactar as relações entre os campos legal e científico, estabelecendo globalmente um “regime de verdade e representação” (Ferrandiz & Robben, 2015,FERRÁNDIZ F. & ROBBEN, A. (2015), “Introduction: The Ethnography of Exhumations”.In: Necropolitics Mass Graves and Exhumations in the Age of Human Rights. Philadelphia, University of Pennsylvania Press. 8), não impede sua validação local pelo caráter alternativo às instituições do Estado que, como a dele, são alvos de enormes desconfianças.32 32 Apesar de esse ser fator determinante para reduzir críticas ao humanitarismo forense, diversos autores vêm problematizando o debate por fora dos termos transicionais para mostrar, por exemplo, seus efeitos coloniais sobre epistemologias, moralidades e formas não ocidentais de se relacionar com a verdade, a morte e os mortos (Rojas-Perez, 2015; Robledo, 2019) ou sua capacidade de confluir com disputas políticas, nacionalismos e mecanismos de distribuição desigual da cidadania (Rousseau, 2015; Azevedo, 2019).

Ao analisar as buscas no Araguaia (Azevedo, 2018AZEVEDO, Desirée. (2018), Ausências Incorporadas. Etnografia entre familiares de mortos e desaparecidos políticos. São Paulo, Unifesp.), chamei atenção para a relação entre essas desconfianças e a significativa presença de Estado na questão do desaparecimento político. Embora referido como tema ignorado pelo poder público, há nele excesso de atores estatais, conforme não deixam dúvida as tantas siglas mencionadas nesse artigo para contar a história da Vala de Perus. O que ocorre é que, ao colocar lado a lado instituições acusadas de atuar pelo silenciamento e instituições MVJ, os arranjos produzidos para negociar esses domínios embaralham as dimensões empírica e simbólica do que chamamos de Estado. Apesar disso, a perspectiva da responsabilização não levará em conta que políticas são construídas por diferentes instituições sincronicamente (e por distintos governos na diacronia), buscando pela unicidade que tal noção jurídica confere. É por consagrar a mesma oficialidade às variadas instituições que partilham um mesmo encargo, a despeito de como elas se posicionam, que o Estado brasileiro surge como entidade incoerente e, portanto, não confiável, que, ademais, opera manipulando essa heterogeneidade entre suas instituições, tanto quanto as inúmeras assimetrias de poder na interação com os cidadãos.

Em suma, a cacofonia não surge no laboratório do GTP, mas ecoa um modo de gestão do desaparecimento político feito com base não apenas nas normas que fixam o fenômeno como um problema social, mas também nas maneiras como elas são concretizadas no cotidiano em meio às relações de força. Com a entrada do paradigma humanitário e de novos profissionais no universo forense, o que chama atenção não são as disposições contrárias no interior do Estado nem os arranjos que as fazem negociar conduções de questões sensíveis e a garantia de direitos, ignorando completamente o que quer que diga Weber sobre a administração burocrática, mas a possibilidade de expressar a disputa em termos de ineficiência e despreparo – como se o problema da perícia oficial fosse uma questão de legibilidade dos documentos que produz –, recompondo, desde uma discursividade científica e governamental, o lugar da racionalidade.33 33 Peço paciência ao leitor com a referência jocosa às formulações de Weber (1963) sobre o tipo ideal de burocracia moderna como modo de governo racional e delimitado pela norma. Mais do que tentar contrapor o modelo a realidades operadas por atores interessados e posicionados, reforçando, assim, certo senso comum sobre a obra do autor, a intenção é destacar o quanto a racionalidade, a objetividade e o formalismo, de fato, impõem-se nos espaços burocráticos, seja como recurso retórico de poder, seja como valor compartilhado socialmente pelos que estão dentro e fora do Estado. Tais pressupostos fundamentam tanto o poder e os domínios burocráticos quanto as críticas feitas a eles, conforme vemos no caso específico da perícia.

Desde esse lugar científico e humanitário, com os efeitos de poder que lhe são consequentes, é dito que o problema está no passado, quando a Ditadura forjava laudos, alcançando-nos hoje na forma de herança em uma perícia desumanizada e pouco rigorosa. Daí que, em acordo com o que nos mostra Adalton Marques (2018)MARQUES, Adalton. (2018), Humanizar e expandir: Uma genealogia da segurança pública em São Paulo. São Paulo, IBCCrim. sobre a interseccionalidade entre os temas da segurança pública, democracia e direitos humanos a partir da transição política, as soluções reformadoras são expressas em termos de adequações técnicas e da produção de rearranjos entre o campo acadêmico-científico e o fazer pericial para assim colocar este em harmonia com as promessas no novo regime. Carregada de razão institucional e dualismo temporal, a perspectiva reflete bem as teorias elaboradas nos marcos da Justiça de Transição. Teorias para as quais o ano de 2016 fechou os caminhos no Brasil.34 34 O processo de institucionalização e capilarização do campo MVJ, tal como descrito na nota 26, sofreu revés a partir de 2016, entrando em período de desarticulação de seus atores, descontinuação de suas políticas e produção de entraves à implementação de suas ações. Tal processo compõe a conjuntura política vivida amplamente no país após o golpe parlamentar de 2016 e as eleições de 2018, quando saíram vitoriosos políticos de perfil conservador e reacionário nas esferas executiva e legislativa em âmbitos nacional e estaduais. Para uma discussão sobre os impactos da conjuntura sobre o campo MVJ, ver: Azevedo e Sanjurjo, 2020.

Considerações finais

Foi com falta de assombro que os funcionários de Perus falaram aos jornais sobre uma normalidade científica e burocrática que levava desconhecidos à vala comum. Como bem argumenta Letícia Ferreira (2009)FERREIRA, Letícia. (2009), Dos autos da cova rosa. A identificação de corpos não identificados no Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, E-papers/LACED/Museu Nacional., desconhecido não é uma identidade nem um fato físico verificável, mas uma classificação na qual são enquadrados indivíduos considerados tão perigosos quanto desimportantes. Esse modo de administrar certos corpos não foi criado pela Ditadura, conforme indica sua pesquisa, realizada entre 1942 e 1960, mas há uma facilidade de incluir nele tipos sociais estigmatizados. O que parece explicar por que o regime elegeu o caminho científico burocrático como mecanismo de desaparecimento. Capaz não somente de ocultar corpos, mas de categorizá-los oficialmente como matáveis e descartáveis e, portanto, passíveis de ocultação. Trata-se de instituir uma verdade sobre eles.

Analisando as práticas escritas do IML, na tentativa de dissecar esse modo de gestão, Ferreira elencou uma dezena de características que remetem à (i)legibilidade das práticas de escrita do Estado. Tal como dizem Das e Poole (2004)DAS, Veena & POOLE, Deborah. (2004), Anthropology in the Margins of the State. New Mexico: School of American Research Press., elas não são debilidades, mas mecanismos de poder. É impressionante como as mesmas características foram notadas pelo movimento de familiares nos registros de seus desaparecidos. Nos papéis de Dimas, temos a evidência de algumas delas, mostrando a intencionalidade da associação entre uma forma de classificar os cidadãos e de gerir as suas mortes: o prevalecimento da palavra policial como matriz da atribuição de identidade ao morto e da definição dos acontecimentos que envolvem sua morte; a repetição de certas informações combinada às inúmeras lacunas deixadas sem preenchimento; as anotações marginais de termos não oficiais estigmatizantes. Para os opositores diretos do regime, em vez do habitual “indigente”, o “terrorista”, abreviado pelo misterioso, mas bastante visível, “T”.

Analisando o laudo necroscópico de Emanuel, vítima de execução sumária durante uma incursão militar ocorrida em 2008 em uma favela carioca, Juliana Farias (2015)FARIAS, Juliana. (2015), “Fuzil, Caneta e Carimbo: notas sobre burocracia e tecnologias de governo”. Confluências. Vol. 17, nº 3: 75-91. se refere a outra anotação “T”. Naquele caso, simbolizando a “zona de tatuagem”, em referência ao resíduo de pólvora deixado na pele pelo tiro à queima-roupa. Ao acompanhar a busca familiar por justiça, a partir de explicações dadas por um perito independente, seu trabalho mostra duas questões relevantes. A primeira é como, ao registrar à caneta a lesão marcada por arma de fogo no corpo, os papéis periciais articulam uma inscrição da morte na engrenagem estatal que está indexada por essa mesma marca. Isso me lembrou que o “T”, nos papéis de Dimas, chamou atenção do legista para a versão “morto em troca de tiros”. Como sabemos, mantida na trajetória dos papéis que o encaminharam à vala comum. Nos papéis de Emanuel, o “T” também é aquilo que a autora chamou de indizível burocrático. Ele remete à (i)legibilidade porque, mais do que uma lesão, ele é uma marca de tiro que se conforma com o registro do “auto de resistência” para produzir um modo de administrar as mortes faveladas, que se projeta para um modo de administrar esses territórios e suas populações. Isso ocorre em razão da segunda questão relevante apontada pela autora, o fato de a visibilidade do “T” no documento não o tornar propriamente legível. Mesmo que saibamos se tratar de indício de execução, não é dado a qualquer um dizê-lo, menos ainda fazer tal registro ou mobilizá-lo em um laudo ou tribunal.

Para finalizar parafraseando a autora, esses papéis são, de fato, plataformas de registro oficial, nas quais a mobilização combinada de saberes que se entrecruzam rearticula sua própria soberania. Razão pela qual não se trata de um ato de livre exercício. É porque efeitos de poder se desdobram do exame pericial que construir um modo de gestão humanitário implica engajar-se na produção e arquivamento de papéis que tanto coligem informações quanto articulam padrões de verdade. Daí que tal construção não se limite a questões de rigor, metodologia e significado, mas surja indissociável de disputas pelos saberes e autoridades, que garantem um lugar nos processos de construção e reconstrução do Estado através de suas práticas escritas. Mas daí também que, como ato de governar, tal tecnologia siga observando categorizações que hierarquizam a população segundo desigualdades estruturais. Como política pública direcionada exclusivamente a casos reconhecidos como violência política, o poder identificador humanitário se dispõe a identificar uma maioria de corpos da Vala de Perus como não-identificados. Reafirma, com isso, as clivagens sociais que (re)inscrevem corpos desigualmente na engrenagem estatal.

Agradecimentos

As reflexões feitas neste trabalho estão apoiadas em pesquisas realizadas com o suporte de bolsa de doutorado (processo 2012/15601-7) e bolsa de pós-doutorado (2016/15525-0) Fapesp. Agradeço muito aos pareceristas anônimos por suas leituras generosas, comentários instigantes e sugestões valiosas, que verdadeiramente ajudaram a aprimorar este artigo.

  • 1
    Para esse artigo, a consulta aos documentos ocorreu no âmbito da pesquisa etnográfica no Grupo de Trabalho Perus contextualizada mais adiante. O leitor pode acessá-los livremente em: Arquivo Dimas Casemiro / Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva / Disponível em: http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/mortos-desaparecidos/dimas-antonio-casemiro/ Acesso em: (27/01/2021).
  • 2
    Os trechos entre aspas no parágrafo são da nota oficial: “Grupo de Trabalho Perus identifica restos mortais de militante político”. Disponível em: https://www.unifesp.br/reitoria/dcik2/boletins-anteriores-dci/item/3186-grupo-de-trabalho-perus-identifica-restos-mortais-de-militante-politico, consultado em 18/03/2020.
  • 3
    Os IMLs são ligados às Secretaria de Segurança Pública ou às Polícias Civis estaduais. Eles documentam obrigatoriamente dois tipos de morte: suspeita de violência e de pessoas de identidade desconhecida. Em geral, são pessoas mortas sem documentos e/ou sem a presença de conhecidos. O IML pode lograr identificá-las pelo nome próprio ou atribuir a identificação de “não identificado”, conforme mostra Ferreira (2009)FERREIRA, Letícia. (2009), Dos autos da cova rosa. A identificação de corpos não identificados no Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, E-papers/LACED/Museu Nacional.. Os corpos encaminhados pelos necrotérios do IML, hospitais públicos e Serviço de Verificação de Óbito (SVO) são sepultados no setor dos cemitérios municipais destinados a órgãos públicos, distinto do reservado ao sepultamento familiar.
  • 4
    Por movimento de familiares de mortos e desaparecidos políticos, refiro-me às organizações e atores que apresentam demandas ao Estado a partir da afirmação de laços de parentesco com militantes fatalmente vitimados pela Ditadura: os mortos e desaparecidos políticos. A constituição indissociável dessas duas categorias passa pelos casos: narrativas que condensam a história da busca, articulando testemunhos e documentos em um enredo verossímil sobre a militância da vítima e a violência de Estado na origem da ausência. A produção do caso permitiu cotejar ausências das pessoas coletivamente buscadas para estruturar um padrão de entendimento a respeito do desaparecimento político como fenômeno social, associando a natureza da vítima à da violência. Assim, o fenômeno geral foi entendido como a soma dos casos particulares (re)conhecidos. Convertendo os casos em artefatos políticos, jurídicos, mnemônicos e morais que organizam, simultaneamente, a causa e o universo social desestruturado pelas ausências, e fixam, a um só tempo, os familiares e os desaparecidos como atores políticos (Azevedo, 2018AZEVEDO, Desirée. (2018), Ausências Incorporadas. Etnografia entre familiares de mortos e desaparecidos políticos. São Paulo, Unifesp.).
  • 5
    O acervo, com cópias mantidas nas sedes de algumas organizações do movimento de familiares de mortos e desaparecidos políticos, é base do Dossiê Ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985), documento de referência para o processo histórico de reconhecimento do fenômeno.
  • 6
    A primeira pesquisa foi orientada por Bela Feldman-Bianco e fomentou tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Unicamp, em 2016. A segunda foi realizada, entre 2017 e 2019, durante pós-doutoramento junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unifesp, sob supervisão de Cynthia Sarti. Por se referir a um tema sensível e a processos de disputa política, importa registrar que a realização dessa segunda pesquisa foi autorizada pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo, assim como pelos comitês científico e gestor do Grupo de Trabalho Perus.
  • 7
    Justiça de Transição é o ramo no campo internacional dos Direitos Humanos dedicado à elaboração de soluções globais para processos de transição política ou pacificação. Altamente normatizado, define como obrigações do Estado: 1) investigar, processar e punir; 2) revelar a verdade; 3) oferecer medidas de reparação; 4) reforma das instituições.
  • 8
    O norte-americano Clyde Snow chegou à Argentina em 1984, chefiando delegação da Associação Americana para o Progresso da Ciência, para trabalhar na exumação e identificação de remanescentes ósseos de desaparecidos. Junto a uma equipe multidisciplinar de profissionais locais, entre os quais o antropólogo forense Luis Fondebrider, começou a desenvolver a abordagem para casos de violação humanitária que, em seguida, levou à fundação da Equipo Argentina de Antropología Forense (EAAF).
  • 9
    A Lei N° 6683/79, ao perdoar genericamente “crimes políticos e conexos”, foi aplicada preventivamente aos agentes do regime, enquanto beneficiava parcela dos perseguidos políticos, já que não se aplicaria aos “condenados por crimes de sangue”. Para além dos efeitos jurídicos prescritos, ela foi mobilizada para pregar o esquecimento, com base na ideia de equivalência entre as “partes em conflito” e os atos por elas cometidos.
  • 10
    A mais importante dessas pressões foi a condenação do país na Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia), em 2010.
  • 11
    “Prefeitura de São Paulo investiga vala que teria ossadas de presos políticos”. (1990), Folha de São Paulo, 05 set. (caderno Cidades), Disponível em: acervo Folha, consultado em 11/04/2019.
  • 12
    TOGNOLLI, Cláudio. (1990), “Perus recebia subversivos mortos, diz Shibata”. Folha de São Paulo, 06 set. (caderno Política), Disponível em: acervo Folha, consultado em 11/04/2019. No município, a exumação administrativa ocorre com 3 anos, sendo obrigatória para desconhecidos (Município de São Paulo, Ato Nº 326, de 21 de março de 1932). Contudo, a vala de Perus não possuía registro como ossário, nem foram registrados os corpos nela reinumados. Ao contrário, estima-se que ali estivessem os corpos sem registro de reinumação. O administrador de Perus assumiu, no inquérito policial, tê-la criado, alegando conformidade com a lei e prática dos cemitérios públicos da cidade: “Administrador nega enterros”. (1990), Folha de São Paulo, 26 set. (caderno Política), Disponível em: acervo Folha, consultado em 11/04/2019.
  • 13
    “Maluf nega estar envolvido no caso”. (1990), Folha de São Paulo, 06 set. (caderno Política), Disponível em: acervo Folha, consultado em 11/04/2019; “Anistia prescreveu crime” (1990), Folha de São Paulo, 06 set. (caderno Política), Disponível em: acervo Folha, consultado em 11/04/2019. Paulo Maluf era prefeito nomeado de São Paulo, em 1971, quando o cemitério de Perus foi criado. Na data da reportagem, era candidato a governador nas eleições que ocorreriam em dois meses.
  • 14
    “Famílias podem processar União”. (1990), Folha de São Paulo, 07 set. (caderno Política), Disponível em: acervo Folha, consultado em 11/04/2019.
  • 15
    “Governo espera ação para intervir”. (1990), Folha de São Paulo, 07 set. (caderno Política), Disponível em: acervo Folha, consultado em 11/04/2019; “Exército não vai investigar o caso”. (1990), Folha de São Paulo, 08 set. (caderno Política), Disponível em: acervo Folha, consultado em 11/04/2019.
  • 16
    “Grupos querem afastar IML”. (1990), Folha de São Paulo, 07 set. (caderno Política), Disponível em: acervo Folha, consultado em 11/04/2019; “Quércia afasta diretor do IML da investigação sobre tortura”. (1990), Folha de São Paulo, 11 set. (caderno Política), Disponível em: acervo Folha, consultado em 11/04/2019.
  • 17
    “Entidades irão fiscalizar o IML, diz governo”. (1990), Folha de São Paulo, 08 set. (caderno Política), Disponível em: acervo Folha, consultado em 11/04/2019.
  • 18
    Para mais detalhes, Hattori, 2019; Calazans et al, 2019, Teles & Lisboa, 2012.
  • 19
    Em 1985, foi exumado em São Paulo corpo atribuído a Josef Mengele, criminoso de guerra nazista que vivia clandestino no Brasil, onde se escondia de investigações coordenadas pelos governos americano, alemão ocidental e israelense para levá-lo a juízo internacional. Iniciada pelo IML de São Paulo, a identificação de seus remanescentes acabou reunindo especialistas estrangeiros, conformando-se em um marco importante do processo de incorporação da antropologia forense no tratamento internacional dos crimes de guerra e violações humanitárias (Keenan e Weizman, 2015KEENAN, Thomas y WEIZMAN, Eyal. (2015), La calavera de Mengele. El advenimiento de una estética forense. Buenos Aires/Barcelona, Sans Soleil.). O trabalho de Nadai (2018)NADAI, Larissa. (2018), Entre pedaços, corpos, técnicas e vestígios: o Instituto Médico Legal e suas tramas. Tese de doutorado. Instituto de Filosofia Ciências Humanas da Universidade Estadual de São Paulo, Campinas. mostra as inúmeras controvérsias que o caso gerou no âmbito da perícia oficial brasileira e suas relações com o caso dos remanescentes de Perus.
  • 20
    No processo penal, o fazer pericial é de exclusividade policial na fase de inquérito (Medeiros, 2018MEDEIROS, Flávia. (2018), “O morto no lugar dos mortos: classificações, sistemas de controle e necropolítica no Rio de Janeiro”. Revista M. Rio de Janeiro, v. 3, n. 5, p. 72-91, jan./jun.). Ele engloba outras especialidades científicas no caso das análises de laboratório e de campo. Contudo a análise de corpos está pautada pela exclusividade médica de autopsiar e de atestar morte, fazendo dos IMLs (e demais necrotérios policiais) espaços exclusivos dos médicos-legistas e, em menor medida, dos odontólogos.
  • 21
    As normativas internacionais são: Declaração sobre a proteção de todas as pessoas contra o desaparecimento forçado (1992); Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas (1994); Convenção Internacional para a Proteção de todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado (2010). O Brasil as promulgou apenas em 2016. Para uma discussão sobre a diferença entre a categoria brasileira e a internacional, ver: Azevedo, 2018.
  • 22
    Familiares brasileiros estavam integrados à Federación Latinoamericana de Asociaciones de Familiares de Detenidos-Desaparecidos (FEDEFAM) e também receberam apoio do Núcleo de Estudos da Violência da USP para contatar a EAAF (Teles & Lisboa, 2012TELES, Maria Amélia Almeida e LISBOA, Suzana. (2012), “A vala de Perus: um marco histórico na busca da verdade e da justiça”. In: INSTITUTO MACUCO. Vala Clandestina de Perus. Desaparecidos Políticos, um capítulo não encerrado da história brasileira. São Paulo, Instituto Macuco.). Poucos anos depois, o NEV seria alçado ao centro da elaboração dos Programas Nacionais de Direitos Humanos (Marques, 2018MARQUES, Adalton. (2018), Humanizar e expandir: Uma genealogia da segurança pública em São Paulo. São Paulo, IBCCrim.).
  • 23
    “Entidades irão fiscalizar o IML, diz governo”. (1990), Folha de São Paulo, 08 set. (caderno Política), Disponível em: acervo Folha, consultado em 11/04/2019.
  • 24
    Mesma restrição existia na Argentina, onde esses registros periciais oficiais puderam se converter não somente em base para os trabalhos da EAAF, mas também em arquivos MVJ, que serviram às lutas políticas e jurídicas pela reinscrição da verdade sobre os mortos, conforme mostra Sarrabayrouse (2011)SARRABAYROUSE, María José. (2011). Poder Judicial y dictadura. El caso de la morgue. Buenos Aires, Editores del Puerto. sobre os papéis periciais do necrotério de Buenos Aires.
  • 25
    O principal deles é conhecido como Protocolo de Minnesota (1991). A comissão internacional de especialistas que o atualizou, em 2016, incluía Fondebrider, da EAAF, e representantes de mais duas organizações citadas adiante: a International Commission on Missing Persons e o Comitê Internacional da Cruz Vermelha.
  • 26
    Refiro-me a campo no sentido de Bourdieu (2011)BOURDIEU, Pierre. (2011), “Espíritos de Estado: gênese e estrutura do campo burocrático”. In: ___. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, Papirus., como um sistema relacional formado entre agentes e instituições, que se voltam para um debate segundo interesses específicos e posições relativas. Entendo que, a partir das mobilizações para inserir o eixo memória e verdade no PNDH-3 até o golpe de 2016, o tema do passado ditatorial viu aumentar as arenas e atores a ele dedicados, entre acadêmicos, movimentos sociais, autoridades e especialistas de diversas áreas, aumentando também as conexões entre eles, com o objetivo de movimentar uma agenda comum rumo à consolidação, em políticas públicas, de um novo padrão de sensibilidade e de produção da verdade sobre o passado.
  • 27
    O Exército brasileiro é condenado por desaparecimentos forçados perpetrados entre 1972 e 1974 na região do rio Araguaia, sudeste do Pará. Em 2009, com a chegada do caso à Corte Interamericana, foi criado o Grupo de Trabalho Tocantins (GTT) junto ao Ministério da Defesa, com buscas coordenadas pelo Comando do Exército. Com a condenação, o GTT é reformulado como Grupo de Trabalho Araguaia (GTA), somando órgãos MVJ à coordenação. Em termos técnicos, a perícia passou a incluir peritos oficiais ligados à segurança pública e peritos acadêmicos. Em 2013, em torno aos debates sobre Perus, foi criado o Grupo de Antropologia e Arqueologia Forense (GAAF), cuja assessoria técnica trazia peritos, de ambos os grupos, que trabalharam para o GTA e a CNV. Em 2014, o GAAF deu lugar ao GTP, para onde migraram vários desses profissionais. Além do corpo técnico e da estruturação institucional, todos esses grupos periciais tiveram em comum coordenações compostas por representação institucional. Isto é, não pelos profissionais executores dos trabalhos, mas por aqueles com poder de representar as instituições admitidas na gestão do desaparecimento político. Suas composições podem ser conferidas em: Portaria n° 1.267 SDH, de 06 de novembro de 2013; Portaria Interministerial nº 01 MD/MJ/SDH-PR, de 05 de maio de 2011; Portaria n° 567 MD, de 29 de abril de 2009; Portaria nº 620 SDH, de 9 de outubro 2014.
  • 28
    A EAAF não permaneceu no projeto, apenas participou das articulações iniciais. Já a EPAF deixou o GTP por ocasião da identificação de Dimas.
  • 29
    O ICMP surgiu no contexto do Tribunal Penal Internacional para a Iugoslávia, enquanto a Equipo Peruana de Antropología Forense (EPAF) teve seu núcleo científico formado também por Snow nos anos 1990. O Comitê Internacional da Cruz Vermelha passou a atuar na área forense nos anos 1990.
  • 30
    No Brasil, os chamados quatro campos da Antropologia passaram por demarcações teóricas e institucionais que os definiram como campos do saber distintos: a social/cultural se institucionaliza junto às Ciências Sociais, a Linguística nas Letras, a antropologia física na Medicina Legal, mas também na Biologia e Arqueologia. Ao traçar a trajetória de Nina Rodrigues, Mariza Corrêa (2013)CORRÊA, Mariza. (2013), As ilusões da liberdade: a escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. Rio de Janeiro, Editora Fio Cruz. nos remete ao período anterior ao estabelecimento dessas fronteiras, quando o médico e seus discípulos mobilizavam as teorias do racismo científico e da criminologia para articular os problemas do controle social e da formação nacional. Em torno a questões como a identificação civil (Carrara, 1984CARRARA, Sérgio. (1984), “A “Sciência e Doutrina da Identificação no Brasil” ou Do Controle do Eu no Templo da Técnica”. Boletim do Museu Nacional, n. 50: 1-28.), eles pautaram a institucionalização da Medicina Legal entre a universidade e os aparelhos burocráticos. Daí que a figura do antropólogo forense, comum na Europa e, especialmente, nos Estados Unidos, onde antropólogos físicos se voltam à atividade forense, por aqui seja substituída pela figura do médico-legista. Em contraste, pela experiência das equipes forenses no contexto de transições democráticas latino-americanas, a figura do antropólogo forense no continente está fortemente relacionada ao desaparecimento forçado e ao humanitarismo.
  • 31
    Cabe destacar como complexificador do processo político o fato de o ICMP, que possui importante renome na área genética, possuir relação prévia com a Polícia Civil do Distrito Federal, por meio da qual chegou ao processo.
  • 32
    Apesar de esse ser fator determinante para reduzir críticas ao humanitarismo forense, diversos autores vêm problematizando o debate por fora dos termos transicionais para mostrar, por exemplo, seus efeitos coloniais sobre epistemologias, moralidades e formas não ocidentais de se relacionar com a verdade, a morte e os mortos (Rojas-Perez, 2015ROJAS-PEREZ, Isaias. (2015), “Death in transition: The truth Commission and the Politics of reburial in Postconflict Peru”.In: FERRÁNDIZ F. & ROBBEN, A. Necropolitics Mass Graves and Exhumations in the Age of Human Rights. Philadelphia, University of Pennsylvania Press.; Robledo, 2019ROBLEDO, Carolina. (2019), “Descolonizar el encuentro con la muerte: Hacia una ciencia afectiva en torno a la exhumación de fosas comunes en México”. Revista sobre acesso à justiça e Direitos nas Américas. Brasília v.3, n.2: 138-170.) ou sua capacidade de confluir com disputas políticas, nacionalismos e mecanismos de distribuição desigual da cidadania (Rousseau, 2015ROUSSEAU, N. (2015), “Identification, politics, disciplines: missing persons and colonial skeletons in South Africa”. In: ANSTETT, Élisabeth & DREYFUS, Jean-Marc. Human Remains and identification. Mass violence, genocide, and the “forensic turn”. Manchester, Manchester University Press.; Azevedo, 2019AZEVEDO, Desirée. (2019). “Os Mortos Não Pesam Todos o Mesmo. Uma reflexão sobre atribuição de identidade política às ossadas da Vala de Perus”. Papeles del CEIC. International Journal on Collective Identity Research, vol.2, papel 218: 1-20.).
  • 33
    Peço paciência ao leitor com a referência jocosa às formulações de Weber (1963)WEBER, Max. (1963), Ensaios de sociologia. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro, Zahar Editores. sobre o tipo ideal de burocracia moderna como modo de governo racional e delimitado pela norma. Mais do que tentar contrapor o modelo a realidades operadas por atores interessados e posicionados, reforçando, assim, certo senso comum sobre a obra do autor, a intenção é destacar o quanto a racionalidade, a objetividade e o formalismo, de fato, impõem-se nos espaços burocráticos, seja como recurso retórico de poder, seja como valor compartilhado socialmente pelos que estão dentro e fora do Estado. Tais pressupostos fundamentam tanto o poder e os domínios burocráticos quanto as críticas feitas a eles, conforme vemos no caso específico da perícia.
  • 34
    O processo de institucionalização e capilarização do campo MVJ, tal como descrito na nota 26, sofreu revés a partir de 2016, entrando em período de desarticulação de seus atores, descontinuação de suas políticas e produção de entraves à implementação de suas ações. Tal processo compõe a conjuntura política vivida amplamente no país após o golpe parlamentar de 2016 e as eleições de 2018, quando saíram vitoriosos políticos de perfil conservador e reacionário nas esferas executiva e legislativa em âmbitos nacional e estaduais. Para uma discussão sobre os impactos da conjuntura sobre o campo MVJ, ver: Azevedo e Sanjurjo, 2020AZEVEDO, Desirée & SANJURJO, Liliana. (2020), “On Silenced Memories: Dictatorship and Democracy in Question”. Hot Spots, Fieldsights, 28 jan..
  • As reflexões feitas neste trabalho estão apoiadas em pesquisas realizadas com o suporte de bolsa de doutorado Fapesp (processo 2012/15601-7) e bolsa de pós-doutorado (2016/15525-0). Agradeço muito aos pareceristas anônimos por suas leituras generosas, comentários instigantes e sugestões valiosas, que verdadeiramente ajudaram a aprimorar este artigo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    18 Maio 2020
  • Aceito
    06 Out 2020
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