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As bases do novo populismo de direita

The bases of the new right populism

EMPOLI, Giuliano da. . Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar as eleições. Tradução de Bloch, Arnaldo. . São Paulo: Vestígio, 2020.

Trata-se de uma obra de extensão pequena, mas que produz uma enorme inquietude nos espíritos daqueles que ainda partilham do espírito democrático. Foi originalmente publicado em francês com o título Les ingénieurs du chaos, pela editora JC Lattès, em 2019.

Ao final da leitura do livro, no qual se estudam as bases da ascensão do novo populismo, a imagem predominante nos aproxima da física quântica. A física newtoniana descreve um mundo mecânico, em que determinada causa produz certa consequência. Existe o fato e sobre ele podem ser erguidas distintas interpretações. A física quântica salpica o nosso mundo de paradoxos que desafiam a racionalidade cotidiana. Nela, uma realidade objetiva não existe, já que cada partícula só pode estar em dois locais ao mesmo tempo. Assim, diversas verdades podem existir sem que uma invalide a outra. As narrativas são múltiplas, e os fatos são “construídos” para alimentá-las. Cada observador determina a sua escolha - esta é a nova configuração da política hodierna: uma política quântica. É sobre essa base que se erguem os novos populismos.

Giuliano da Empoli estuda a ascensão do novo populismo no mundo atual mencionando várias situações, entre as quais as que envolvem Israel, França e Brasil. Contudo, o foco de sua análise são os Estados Unidos, com as eleições de Donald Trump; a Inglaterra, com a votação do Brexit; a Hungria, com a permanência no poder de Viktor Orban e, sobretudo, a Itália, o “Valle do Silício” do populismo moderno, com a constituição e a ascensão ao poder do Movimento 5 Estrelas (M5E), que o autor denomina de partido-algoritmo, nascido em 2010, sob a direção do comediante Beppe Grillo. E hoje é o maior partido da Itália. Segundo o cientista político formado na Science Politique, de Paris, tais personagens ou movimentos são os que têm visibilidade. O mais importante, porém, são os invisíveis, os produtores do sucesso dessas novas forças políticas: físicos, matemáticos, engenheiros, tecnólogos e estatísticos. Porque a vitória dessas novas forças políticas depende justamente desses novos profissionais. Da Empoli desvela as suas feições que a maioria das pessoas não têm ideia. São, entre muitos outros, personagens como Gianroberto Casaleggio (Itália), o qual, aliado ao comediante Beppe Grillo, cria o partido-algoritmo M5E; Dominic Cummings (Inglaterra), que conduz o movimento Bretix ao sucesso, quando as expectativas eram inversas; Steve Bannon2 2 No dia 21 de agosto de 2020 Steve Bannon foi preso sob acusação de se apropriar de recursos destinados à construção do muro entre os EEUU e o México, sendo solto em seguida sob pagamento de fiança. (EEUU), o grande estrategista de Donald Trump, que revolucionou sua campanha eleitoral, e o seu auxiliar, o inglês Milo Yiannopoulos, e Andrew Breitbart, o seu mestre, além de Arthur Finkelstein, americano nova-iorquino, que leva Benjamin Netanyahu a vencer Simon Perez, em Israel, e Orban ao poder na Hungria.

Como era de se esperar as situações estudadas são distintas, possuindo determinadas especificidades. Mas, elas têm elementos comuns. São estes, e não as especificidades de cada local, o que o livro contém de mais relevante - e que tentaremos, de forma breve, mostrar.

Um traço marcante - e esperado em todas as novas forças populistas, dos Estados Unidos à Europa - é o nacionalismo. O líder húngaro, Viktor Orban, sintetiza claramente esse componente quando declara que “não queremos entre nós nenhuma minoria com patrimônio cultural diferente do nosso” (apud EMPOLI, 2020EMPOLI, Giuliano da . Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar as eleições. Tradução de Arnaldo Bloch. São Paulo: Vestígio, 2020., p. 120). Em toda parte, o sentimento anti-imigração reúne a direita, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos.

Em todos os casos estudados, particularmente nos Estados Unidos, os líderes populistas são grosseiros em seus discursos, declarações e conversas. Trump trata mal negros, mulheres e imigrantes, da mesma forma como o faz Bolsonaro em relação a gays, mulheres e índios. O curioso é que isso, passível de ser lido como um defeito, é tido como qualidade por seus eleitores, pois compreendido como prova de autenticidade, isto é, traços que os distinguem das elites políticas, odiadas por parte dos eleitores, que as culpabilizam por todos os males que sofrem.

Em alguns locais, os líderes populistas, acompanhados de seus ministros, quando ascendem ao governo, são reconhecidamente incompetentes, como ocorreu com o M5E. Em vez disso ser lido pelos seus eleitores como ruim, é interpretado como uma prova de autenticidade, de pureza. São inexperientes porque não pertencem às elites, não estão corrompidos pelo sistema.

À semelhança dos demagogos na Grécia antiga e dos nazistas e fascistas dos anos 1930, para o populismo moderno os principais adversários são as elites financeiras, políticas e intelectuais. Para os seus eleitores, as elites constituem uma casta blindada formada por traidores do povo e da nação. No slogan dos líderes populistas, o mundo assiste, hoje, à revolta dos povos contra as elites globais, o capital financeiro, a intelectualidade de esquerda, os políticos e partidos tradicionais.

A propaganda do populismo moderno é assentada, em todos os países, nos sentimentos de raiva e medo existentes na grande massa dos seus eleitores, particularmente em grupos extremistas - estes compõem o núcleo duro de seus apoiadores, que se mobilizam, investem, agem. A esse grupo se soma a grande massa dos seus eleitores, que se sentem ameaçados por inimigos reais ou imaginários: os imigrantes, a globalização, a União Europeia, a valorização da diversidade, os valores tradicionais ameaçados pelas mudanças dos costumes, entre outros.

“A raiva, dizem os psicólogos, é o afeto narcisista por excelência” (EMPOLI, 2020EMPOLI, Giuliano da . Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar as eleições. Tradução de Arnaldo Bloch. São Paulo: Vestígio, 2020., p. 76). Os líderes populistas a compreendem e dela se aproveitam: “a culpa é dos outros e você pode se tornar um soldado pela justiça, agregue-se a nós” (Ibidem, p. 77). A raiva é uma grande fonte de energia em pleno desenvolvimento no mundo inteiro, graças às redes sociais. O mote da vitória do Brexit era: descubra por que as pessoas estão com raiva, identifique o quê, diga que a culpa é da Europa e peça para ela votar contra a Europa (Ibidem, p. 90).

Segundo Giuliano da Empoli, as redes exacerbam os conflitos de forma generalizada. A publicidade populista rearticula-os no grande conflito entre “nós” e “eles”, o povo e as elites. Como cada um recebe a mensagem que lhe cabe, ninguém sabe o que o outro recebe, só o centro da propaganda. Não existe comunicação horizontal, somente vertical. Para cada eleitor identificado e caracterizado pelos computadores, é produzida uma mensagem particular, pessoal, com variações e modalidades distintas e em grande quantidade. A campanha publicitária da eleição de Trump emitiu 5,6 milhões de mensagens dessa natureza; já a de Hillary, sua rival, 66 mil (EMPOLI, 2020EMPOLI, Giuliano da . Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar as eleições. Tradução de Arnaldo Bloch. São Paulo: Vestígio, 2020., p. 153). Tais campanhas visavam mobilizar seus eleitores e desmobilizar os eleitores do adversário.

A propaganda utilizada por Trump é exemplar. Nas vésperas das eleições, a sua campanha enviou mensagens particulares para eleitores de Hillary, particularmente três grupos. Àqueles que apoiaram o candidato democrata, o qual perdeu as primárias para Hillary, Bernie Sanders, foram remetidas mensagens das relações de Hillary com o mundo financeiro. Para as jovens mulheres, eleitoras do partido democrata, mensagens sobre “desvios” sexuais da família Clinton. Finalmente, para os afro-americanos, foram disparados trechos de discursos da adversária, em geral retirados de seu contexto, que se referiam de maneira indelicada ou grosseira aos afro-americanos. As mensagens legais, que tinham algum respaldo na imprensa, relatórios ou livros, eram enviadas pela central da campanha de Trump. As mensagens ilegais, ou seja, as fake news sobre os mesmos temas, eram encaminhadas por centenas de centros distribuídos no mundo, inclusive Petersburg na Rússia (EMPOLI, 2020EMPOLI, Giuliano da . Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar as eleições. Tradução de Arnaldo Bloch. São Paulo: Vestígio, 2020., p. 153-154).

Com a propaganda customizada, de acordo com Giuliano da Empoli, o jogo político não consiste mais em reunir as pessoas em torno de um denominador comum, um programa de ideias e proposições, mas inflamar as paixões, estimular os grupelhos nos extremos e depois adicioná-los, mesmo à revelia. Unir os extremos e não convergir ao centro.

Outra ideia chave do livro é que a política populista vive da mentira. Arthur Finkelstein define com clareza esse aspecto da política do moderno populismo: “ninguém sabe de nada e o que você percebe como verdade é que é verdade” (apud EMPOLI, 2020EMPOLI, Giuliano da . Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar as eleições. Tradução de Arnaldo Bloch. São Paulo: Vestígio, 2020., p. 129). O bom político é aquele que diz uma série de verdades para, em seguida, dizer uma série de coisas falsas. A mentira tem em média 70% mais chances de se propagar do que uma verdade, pois, como dizia Mark Twain, “uma mentira pode fazer a volta ao mundo ao tempo em que a verdade calça seus sapatos” (apud EMPOLI, 2020EMPOLI, Giuliano da . Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar as eleições. Tradução de Arnaldo Bloch. São Paulo: Vestígio, 2020., p. 78-79). No meio dos eleitores do populismo, um líder que agrega fake news à sua narrativa é um homem de ação, que constrói a sua própria realidade para responder aos anseios de seus seguidores, pois, para estes, a veracidade dos fatos não conta. O que importa é a versão explicitada pelo líder, já que, para os eleitores do populismo: “Ele sabe, ele conhece, ele diz o que pensamos e sentimos. Ele diz a verdade”.

O método dos assessores dos líderes políticos populistas, em todo o mundo, é o microtargeting: análises demográficas sofisticadas, levantamento de dados nas redes sociais e sondagens eleitorais constantes. Identificar os eleitores, os seus gostos, dúvidas e raivas é o objetivo primeiro. Trata-se do trabalho dos “físicos”. Por isso. Dominic Cummings declara: “Se você quer fazer progresso em política contrate físicos ao invés de cientistas políticos e comunicadores” (apud EMPOLI, 2020EMPOLI, Giuliano da . Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar as eleições. Tradução de Arnaldo Bloch. São Paulo: Vestígio, 2020., p. 19 e 142). O físico habituou-se a trabalhar com uma infinidade de dados, o que não ocorre com os cientistas políticos. Na física, o comportamento de uma partícula não é previsível, mas o de aglomerados, sim. Pela observação do sistema, é possível identificar o seu padrão de funcionamento, pois ele possui características e regras que o torna previsível. Há 10 anos, os dados não permitiam trabalhar com os aglomerados humanos, hoje sim. A evolução tecnológica com a internet das coisas e o big data proporcionarão uma profusão de dados ainda maior sobre as pessoas, que permitirão fazer uma política de convencimento, mobilização e discriminação como jamais vista no mudo.

Para o cientista político ítalo-francês, a política dos populistas é um carnaval. Não há lugar para observador na política populista, todos são atores. Não há lugar para comportamentos politicamente corretos, tudo é gozação e grosseria. O intelectual progressista é um pedante, logo é preciso ridicularizá-lo. Não existe compromisso com a verdade, com os fatos, mas apenas com a narrativa do líder populista. Antes havia opiniões e interpretações diferentes em torno dos mesmos fatos, agora não, pois os fatos são distintos em função da narrativa de cada um. O carnaval não se afina com o bom senso, está concentrado na intensidade da narrativa e não na exatidão ou veracidade dos acontecimentos.

Para finalizar, segundo o autor, duas conclusões de caráter mais geral: (i) uma máquina superpoderosa irrompeu na política, transfigurando-a; e (ii) as campanhas eleitorais se transformaram em guerras entre softwares (EMPOLI, 2020EMPOLI, Giuliano da . Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar as eleições. Tradução de Arnaldo Bloch. São Paulo: Vestígio, 2020., p. 155). O jogo eleitoral mudou. Antes, predominava uma força centrípeta, ganhava quem ocupava o centro do corpo eleitoral. Agora, domina a força centrífuga, que estimula os grupelhos extremistas, radicaliza-os e, depois, agrupa-os no dia das eleições. A mensagem agora é individual e pode ser contraditória sem que ninguém perceba. O líder político se torna um homem oco (Ibidem, p. 158), pois a sua vontade é ditada a partir do que as máquinas conseguem captar dos sentimentos dos indivíduos. Dessa forma, e de maneira surpreendente, as minorias intolerantes já ditam o rumo da história em alguns países.

Entretanto, apesar da descrição de Giuliano da Empoli ser relativamente convincente, ela não apanha a multiplicidade de fatores que desenham e redesenham a política hoje. Ela não apreende o imprevisto como o movimento dos “Sardinhas” que derrotou o líder populista de direita na Itália, Salvini, em janeiro deste ano, nas eleições na região de Emilio Romana, eleições estratégicas para o seu retorno ao poder. Nas eleições europeias, ainda deste ano, o M5E ficou em terceiro lugar. Na Polônia, o presidente populista de direita, que tenta desfazer a democracia naquela país, Andrzej Duda, venceu as eleições por muito pouco. Trump perigou perder as eleições de novembro de 2020. Assim, o “Poder Absoluto”, sonho de todos os autoritários, ainda está por vir. Mas, aparentemente, o longo caminho a ser percorrido já foi iniciado.

Referências

  • EMPOLI, Giuliano da . Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar as eleições. Tradução de Arnaldo Bloch. São Paulo: Vestígio, 2020.
  • 2
    No dia 21 de agosto de 2020 Steve Bannon foi preso sob acusação de se apropriar de recursos destinados à construção do muro entre os EEUU e o México, sendo solto em seguida sob pagamento de fiança.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    25 Ago 2020
  • Aceito
    15 Dez 2020
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